1. Introdução
Em 2012, no âmbito do trabalho de campo desenvolvido em contexto prisional para a minha tese de doutoramento, conversava com um recluso que trabalhava no bar reservado aos profissionais e elementos externos ao estabelecimento prisional. Nas pausas das extenuantes consultas de processos judiciais e penais, a conversa com os reclusos que circulavam na área administrativa da prisão era um bálsamo que aproveitava vorazmente. Numa dessas conversas, o recluso que me tirava o café assim que eu entrava no bar contou-me brevemente a sua história de vida. Entre várias outras coisas, disse-me que já tinha estado “preso em casa”, sob o sistema de vigilância eletrónica, antes de dar entrada no estabelecimento prisional no qual estávamos, à data um dos mais sobrelotados do país, num ano em que a sobrelotação oficial era a segunda mais alta da década (112,7%; PORDATA, 2021). A minha curiosidade agudizou-se. De todas as entrevistas que tinha realizado até ao momento, nenhum/a recluso/a tinha estado sob vigilância eletrónica. O meu primeiro instinto, marcado já por vários meses de trabalho de campo nas prisões, onde vi muitos episódios e ouvi muitos relatos que refletiam a dureza e as “dores da reclusão” (Sykes, 1958), foi, portanto, considerar que esse teria sido um período mais tranquilo. Respondi “deve ter sido bem melhor do que estar aqui agora”. Olhando-me como quem percebe a minha ingenuidade, o recluso com quem conversava respondeu-me amavelmente “não, doutora. Não imagina o que é estar preso na sua própria casa. Com a liberdade do outro lado, mas sem lhe conseguir chegar”.
Nos quase 10 anos que me separam dessa experiência de trabalho de campo nunca esqueci esta conversa. Volta-me à memória sempre que leio e oiço representantes de entidades públicas enaltecendo o efeito “humanizante” do sistema vigilância eletrónica (Caiado, 2014), considerado pelos responsáveis máximos da administração da justiça em Portugal “um dos melhores do mundo” (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, 2020, para. 3), bem como quando se noticiam as mais recentes estatísticas que mostram uma franca expansão deste instrumento nos últimos anos (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, s.d.-e). A aparente contradição entre o desabafo deste recluso e o discurso dominante, conduzem-me a interrogar, através de um ceticismo histórica e sociologicamente informado (Benjamin, 2019, p. 26), o uso da vigilância eletrónica em Portugal.
Nos últimos anos, a supervisão de ofensores nas comunidades tem-se vindo a constituir como uma nova faceta da paisagem penal na maioria dos países ocidentais, assistindo-se ao seu crescimento em escala, alcance e intensidade (Hucklesby et al., 2021; Laurie & Maglione, 2020; McNeill & Beyens, 2013; Nellis et al., 2013). Em Portugal, a par das penas e medidas na comunidade e das penas de prisão, destaca-se a vigilância eletrónica como forma de monitorizar ofensores. Este instrumento penal é associado a elevadas expectativas criadas por discursos políticos e por mensagens mediáticas que retratam a vigilância eletrónica como uma forma inovadora e eficaz de lidar com questões de criminalidade e segurança pública, bem como um mecanismo que permite reduzir a sobrelotação e pressão sobre o sistema prisional e custos associados. Ao mesmo tempo, também é argumentado que, ao manter os ofensores na comunidade, a vigilância eletrónica favorece ainda a manutenção dos laços sociais, evita os potenciais efeitos criminógenos da prisão e facilita os processos de ressocialização (Caiado, 2014; Martins, 2019). No entanto, tais argumentos amplamente difundidos carecem de confirmação na medida em que são poucos os estudos que exploram em profundidade a eficácia, funções e implicações deste instrumento penal (ver a este respeito Baiona & Jongelen, 2010; Lopes & Oliveira, 2016).
Neste artigo, inspirando-me nos estudos sociais da ciência e tecnologia e nos estudos da vigilância, mais do que debater sobre a eficiência do sistema de vigilância eletrónica em Portugal, o meu objetivo é explorar como os imaginários sociotécnicos (Jasanoff & Kim, 2015) em torno deste instrumento penal refletem um amplo tecno-otimismo (Quinlan, 2020). Em particular, reflito sobre a forma como o tecno-otimismo tem invisibilizado (a) a ampliação da malha penal; (b) a cooptação da família na esfera penal e a transmutação do espaço doméstico num espaço de reclusão; (c) e, no que concerne à violência doméstica, a caracterização deste flagelo social como tendo uma solução tecnocientífica, estreitando, assim, o debate público sobre a sua prevenção.
2. Vigilância Eletrónica em Portugal: Enquadramento Histórico e Expansão
A vigilância eletrónica foi introduzida no ordenamento jurídico português com a alteração do Código de Processo Penal de 1998, que a associou à fiscalização da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com o objetivo de estabelecer uma alternativa à prisão preventiva. Porém, apenas começou a ser implementada em 2002 no âmbito de um programa experimental em algumas comarcas. Em 2005, construiu-se uma rede especializada de serviços de vigilância eletrónica que permitiu a utilização desta tecnologia em todo o território nacional.
Em 2007, a vigilância eletrónica passou também a estar associada à execução da pena de prisão na habitação e à adaptação à liberdade condicional, bem como à fiscalização da proibição de contactos entre agressor e vítima de violência doméstica em contexto de pena acessória. Em 2009, a fiscalização da proibição de contactos entre agressor e vítima de violência doméstica foi alargada ao contexto de medida de coação, suspensão provisória do processo e suspensão da execução da pena de prisão. No mesmo ano, com a aprovação do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, atribuiu-se também à vigilância eletrónica a capacidade de fiscalizar a modificação da execução da pena de prisão para certos casos de reclusos/as portadores de doenças ou deficiências ou de idade avançada. Em 2015, a vigilância eletrónica foi alargada à fiscalização de condenados pelo crime de perseguição (stalking; Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, s.d.-f).
Por último, a revisão legislativa operada pela Lei n.º 94/2017 (2017) de 23 de agosto determinou a alteração penal no sentido da eliminação da pena de prisão por dias livres e a semidetenção, conferindo a possibilidade de os casos em execução passarem a ser cumpridos em regime de permanência na habitação. Ou seja, determinou o recurso à pena contínua de prisão na habitação com vigilância eletrónica, com eventual possibilidade de saída do condenado para frequência de programas de ressocialização, atividades de cariz formativo ou profissional ou outras obrigações adequadas ao seu processo de reinserção social. Esta mesma revisão legislativa prevê também que, no âmbito do crime de incêndio florestal, a suspensão da execução da pena de prisão e a liberdade condicional possam ser subordinadas à obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, no período coincidente com os meses de maior risco de ocorrência de fogos (Figura 1; Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, s.d.-f).
Nesse sentido, atualmente a Lei n.º 33/2010 (2010), de 02 de setembro prevê que a vigilância eletrónica possa ser utilizada: (a) no cumprimento da medida de coação de obrigação de permanência na habitação (aplicada como alternativa à prisão preventiva); (b) na execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação; (c) na execução da adaptação à liberdade condicional (referente à antecipação da colocação em liberdade condicional por um período máximo de 1 ano); (d) na modificação da execução da pena de prisão; (e) na fiscalização da proibição de contactos entre arguidos/as e/ou condenados/as e vítimas de violência doméstica e de perseguição (stalking); (f) na obrigação de permanência na habitação por crime de incêndio florestal. Devido ao seu caráter “camaleónico”, a vigilância eletrónica é, portanto, aplicada em diversas fases do envolvimento com o sistema de justiça, utilizada de variadas formas, com múltiplos objetivos e numa ampla diversidade de sanções penais. Esta diversidade não é exclusiva do contexto português, sendo também encontrada noutros países (Beyens, 2017; Dünkel et al., 2017; Hucklesby et al., 2021).
A lei portuguesa prevê que a vigilância eletrónica não acarrete quaisquer encargos financeiros para o arguido ou condenado e que dependa do seu consentimento, bem como dos que consigo coabitem, se maiores de 16 anos. O sistema nacional de vigilância eletrónica utiliza dois tipos de tecnologia diferentes: a radiofrequência e a geolocalização. A tecnologia de radiofrequência é utilizada nos casos de permanência na habitação e a geolocalização nos casos de fiscalização da proibição de contactos no âmbito do crime de violência doméstica e de perseguição (monitoriza duas pessoas em simultâneo, agressor/a e vítima). Neste último caso, referente à geolocalização nos casos de violência doméstica e de perseguição, as autoridades judiciárias definem as zonas de proteção da vítima (como, por exemplo, casa e local de trabalho) e o seu raio, os quais podem ser adaptados pelos serviços de vigilância eletrónica em função das circunstâncias dos envolvidos, nomeadamente perfis, rotinas das partes e condicionalismos de natureza geográfica. Ao/à agressor/a é atribuído um dispositivo de identificação pessoal (pulseira eletrónica) e uma unidade de posicionamento móvel que estabelece relação com o sistema de posicionamento global (GPS). À vítima é também atribuído um dispositivo, denominado “unidade de proteção”, o qual “deve ser sempre transportada pela vítima e estabelece relação com o GPS” (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, s.d.-a, p. 2). Esta unidade de proteção não está conectada ao corpo da vítima, sendo o seu transporte aconselhado, mas não obrigatório. Os serviços da vigilância eletrónica monitorizam e detetam eventuais aproximações do/a agressor/a. Se ele/a se aproximar ou entrar nas zonas de exclusão, a vítima é informada dessa aproximação e se o/a agressor/a penetrar numa área geográfica de exclusão é alertado/a automaticamente e pode ser interpelado/a pelos serviços de vigilância eletrónica. Se necessário, os serviços de vigilância contactam as forças policiais para prestar proteção e apoio à vítima.
De acordo com os últimos dados disponíveis, a 31 de dezembro de 2020, estavam em execução, em todo o território nacional, 2.432 penas e medidas fiscalizadas com recurso a vigilância eletrónica. Entre as penas e medidas aplicadas, destaca-se a medida de coação de vigilância eletrónica em contexto de violência doméstica e perseguição (proibição de contactos por geolocalização; 54,23%), medida de coação de obrigação de permanência na habitação (22,28%) e a pena de prisão em regime de obrigação de permanência na habitação (19,94%; Direção-Geral da Política de Justiça, s.d.).
De acordo com o último relatório disponível de autoavaliação da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (s.d.-c), referente ao ano de 2019, a radiofrequência teve um custo e 6,33€ por dia e a radiofrequência 8,24€ (por pessoa monitorizada). A taxa de revogação, relativa a penas e medidas e penas revogadas por incumprimento (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, s.d.-b), entre 2013 e 2018, tem-se situado entre os 2,80% e 3,60%, não existindo dados disponíveis relativos ao ano de 2019.
A estrutura organizacional do Sistema Nacional de Vigilância Eletrónica é composta por um centro de controlo nacional, que está localizado em Lisboa, e 12 equipas territoriais, que em 2020 integravam 141 profissionais, entre os quais 12 coordenadores de equipa, 24 técnicos superiores, 100 técnicos profissionais de reinserção social e cinco assistentes técnicos (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, 2020). Em 2021, reforçando a aposta nesta tecnologia, o Ministério da Justiça, através da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, celebrou, com efeitos a partir de 1 de março, um novo contrato para assegurar a prestação de serviços de vigilância eletrónica para execução de decisões judiciais para o período entre 2021 e 2024 (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, 2021).
3. Perspetivas Analíticas
Este artigo situa-se na intersecção de dois campos de estudo, com pontes várias entre si: os estudos da vigilância e os estudos sociais da ciência e tecnologia. Os estudos da vigilância visam problematizar as múltiplas formas, motivos e consequências da monitorização, vigilância e governação de populações (Frois, 2013; Fuchs, 2011; Lyon, 2002, 2003, 2018; Marx, 2002; Staples, 2014). Focando-se tanto em locais espacialmente definidos, como aeroportos, prisões e empresas, bem como no contexto digital, como redes sociais ou bases de dados, este campo de estudos evidencia a forma como a vigilância pode interferir e condicionar (por vezes, sem que haja consentimento ou conhecimento) direitos civis tais como a liberdade, privacidade e confidencialidade (Frois, 2015). Num contexto fortemente marcado pela expansão da vigilância - massivamente intensificada após os ataques terroristas do 11 de setembro nos Estados Unidos da América (Lyon, 2003) - e por regimes corporativos neoliberais, que subjugam cada vez mais as esferas da vida social (Dardot & Laval, 2016; Harvey, 2005; Mirowski, 2019), os modos contemporâneos de vigilância constituem mecanismos de categorização social que verificam identidades, ao mesmo tempo que avaliam riscos, contribuindo assim para a discriminação e, em alguns casos, segregação de pessoas e grupos (Lyon, 2002).
No âmbito deste corpo de estudos, William Staples (2014) enquadra a vigilância eletrónica como um tipo de “monitorização participativa” (participatory monitoring) na medida em que as pessoas que estão sujeitas a tais medidas também têm a tarefa de participar ativamente na sua própria vigilância. De acordo com o autor, à semelhança do modelo panótico de Bentham, a vigilância eletrónica, permite uma vigilância constante do movimento. No entanto, este exercício de poder opera de forma mais incisiva:
em vez de submeter o corpo a um sistema regimentado de disciplina e controlo institucional, esta tecnologia disciplinar está localizada no próprio corpo. O poder disciplinar foi então desinstitucionalizado e descentralizado. Ao contrário da torre panótica, um tanto primitiva, que na prática só podia ver um número limitado de celas, esta máquina cibernética é capaz de criar um número infinito de confinamentos. (Staples, 2014, p. 84)
Na esteira da analítica geral do poder de Michel Foucault (1975), a vigilância eletrónica segue, portanto, novos princípios do poder disciplinar. A vigilância eletrónica enquadra-se numa forma de discurso moderno (normalizador, mas eminentemente otimista) que a institui como uma técnica eficiente (económica, política e moralmente) em virtude da qual os sistemas de poder têm por objetivo e resultado a singularização e sujeição dos indivíduos. Tais dispositivos, sob pressupostos de invisibilização, colocam o corpo como alvo de incidência do poder (Morais, 2014).
Os estudos sociais da ciência e tecnologia são um campo interdisciplinar que estuda a produção, distribuição e utilização do conhecimento científico e dos sistemas tecnológicos e as consequências dessas atividades para diferentes grupos (Jasanoff, 2004; Latour, 1987, 2000; Latour & Woolgar, 1986; Law, 2008; Lynch, 2012). No âmbito deste campo de estudos evidencia-se como as tecnologias, comummente consideradas como “neutras”, objetivas, científicas e propiciadoras do progresso social, são imbuídas em normas sociais e ideologias que são uma parte constitutiva da sua criação, desenvolvimento e implementação, podendo, portanto, reforçar várias formas de desigualdade (Benjamin, 2019).
Deste campo afigura-se como particularmente útil para este artigo o conceito de “imaginários sociotécnicos” proposto por Sheila Jasanoff e Sang-Hyun Kim (2009) como “formas de vida e ordem social imaginadas coletivamente, refletidas na conceção e implementação de projetos científicos e/ou tecnológicos específicos de cada nação” (p. 120). Conceptualizando a imaginação como uma prática social, o conceito de imaginários sociotécnicos refere-se, portanto, a imaginários partilhados socialmente, que orientam o modo como pensamos e tomamos decisões não só ao nível individual, mas também coletivo (Jasanoff & Kim, 2009, 2015). Assim, os imaginários sociotécnicos incluem não só sistemas de crenças amplamente partilhados, mas também noções que prescrevem o que é desejável, constituindo “dimensões aspiracionais e normativas da ordem social” (Jasanoff &Kim, 2015, p. 5). Os imaginários sociotécnicos estão, portanto, enraizados e inscritos em instituições, na cultura e nos artefactos constituindo uma visão partilhada de um futuro alcançável por via de avanços na ciência e na tecnologia (Jasanoff & Kim, 2015).
Conforme explicado por Andrea Quinlan, no seu trabalho sobre kits forenses utilizados em casos de violação nos Estados Unidos da América (Quinlan, 2020), o tecno-otimismo em torno de algumas tecnologias tem vindo a ser co-construído (Jasanoff, 2004) como um imaginário sociotécnico ancorado na ideia de que a ciência a e tecnologia podem resolver eficazmente problemas complexos do sistema de justiça criminal. Este é um imaginário sociotécnico inscrito em instituições, na cultura e nos artefactos (Jasanoff & Kim, 2009) e amplamente disseminado por meios de comunicação social, decisores políticos, bem como ativistas e vítimas (Quinlan, 2020).
O conceito de tecno-otimismo partilha proximidades com o termo tecno-solucionismo, proposto por Evgeny Morozov (2013), ancorado na ideia de que a tecnologia, por via dos seus códigos, algoritmos e infraestruturas, pode resolver os problemas com os quais a humanidade se confronta. Morozov argumenta que esse impulso em prol da eficiência oblitera outras vias de abordagem e resolução de problemas sociais, conduzindo a um contexto onde são as empresas tecnológicas, ao invés de governos democraticamente eleitos, que determinam a forma do futuro. O enfoque em torno da forma como as corporações empresariais detêm e controlam as tecnologias, afasta-se, porém, do caso da vigilância eletrónica, cuja legislação, implementação e expansão tem sido promovida e controlada ao nível estatal.
4. Imaginário Sociotécnico em Torno do Tecno-Otimismo em Portugal
Em Portugal, o imaginário sociotécnico em torno do tecno-otimismo tem amplas raízes históricas, sociais e culturais. Portugal é um país fortemente marcado por um longo período de ditadura no século XX (1926-1974), caracterizado por repressão política e policial e censura (Pimentel, 2007; Ribeiro, 1995), que deixou uma marca durável na sociedade e principalmente na cultura jurídica e na justiça penal em Portugal. Após a revolução democrática de 1974, e sobretudo após a admissão de Portugal na União Europeia (1986), o Estado português focou-se no investimento em prol da modernização e do progresso, como forma de “acompanhar” os demais países, considerados tecnologicamente avançados (Amelung et al., 2020). De acordo com Catarina Fróis e Helena Machado (2016),
em Portugal, o ideal de modernidade e de luta contra o atraso está tão enraizado que foi assimilado como uma espécie de retórica oficial, a ponto de quase podermos dizer que se tornou um traço nacional, facilmente identificado pelos portugueses como uma caraterística definidora do caráter nacional. (p. 396)
A emergência da vigilância eletrónica em Portugal liga-se, portanto, a este imaginário sociotécnico preexistente e persistente que concebe a modernização por via da expansão e consolidação tecnológica como parte integrante da forma como a sociedade portuguesa é organizada. Da mesma forma que o uso de circuito fechado de televisão (closed-circuit television) e a implementação da base de dados genética forense em Portugal contribuíram para o projeto português de modernização (Frois & Machado, 2016; Machado & Frois, 2014), também a vigilância eletrónica é legitimada por imaginários arraigados na eficiência da tecnologia nas instituições de justiça criminal.
Para além de se ancorar em entendimentos culturais que associam a tecnologia à eficiência, rapidez e neutralidade, o tecno-otimismo em torno da vigilância eletrónica é também reforçado por preocupações políticas e sociais referentes à sobrelotação e elevados custos da população prisional. Portugal é um dos países com a maior taxa de reclusão da União Europeia, não obstante as recentes tendências de decréscimo (World Prison Brief et al., s.d.). Para além disso, é também um dos países onde a maior parte dos reclusos cumpre a quase totalidade da sentença. Nas palavras de Catarina Fróis (2020), “em Portugal condena-se muito, por mais tempo, e esse tempo é cumprido até ao limite do legalmente estipulado” (p. 28). Tal organização do sistema de justiça implica, portanto, consequências graves para o parque prisional português, frequentemente sobrelotado e largamente degradado. Neste contexto, conforme analiso de seguida, a expansão do uso de vigilância eletrónica tem vindo a ser apontada como uma das principais formas de reduzir a pressão sobre os serviços prisionais.
No âmbito deste artigo, exploro criticamente o tecno-otimismo em torno da vigilância eletrónica em Portugal evidenciando as suas implicações invisibilizadas. Por via desta análise, ilustro como a vigilância eletrónica tem sido apresentada e retratada como uma solução tecnológica para uma série de problemas sociais e penais amplos e complexos relacionados com a governação da criminalidade nas suas variadas vertentes, designadamente, proteção das vítimas e reclusão e reinserção de ofensores. Mais especificamente, perscruto como o tecno-otimismo em torno da vigilância eletrónica tem vindo a limitar o questionamento dos efeitos vigilância eletrónica na ampliação da malha penal, os ideais em que se ancora e promove, bem como as suas implicações ao nível da violência doméstica (ver também Quinlan, 2020).
5. Implicações Invisibilizadas
5.1. Ampliação da Malha Penal
Dois dos principais argumentos impulsionadores da implementação de penas e de medidas de vigilância eletrónica têm sido a diminuição da pressão e sobrelotação do sistema prisional e, por consequência, a diminuição de custos. Tal é claramente apontado em documentos e discursos oficiais, como é exemplo o discurso de Rómulo Augusto Mateus, diretor-geral de reinserção e serviços prisionais, que, numa audiência parlamentar no âmbito da Subcomissão para a Reinserção Social e Assuntos Prisionais da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (Assembleia da República, 2020), disse que “é justo dizer que o programa de vigilância eletrónica que temos, dos mais robustos do mundo, tirou cerca de 2.000 reclusos dos estabelecimentos prisionais e foi isso que permitiu baixar a sobrelotação para abaixo dos 100%” (33:24). Tais argumentos são também amplamente difundidos pelos meios de comunicação social que recorrentemente apontam a (alegada) redução de custos possibilitada pelo uso de sistemas de vigilância eletrónica, como é o caso do jornal Público que, em 2019, lançava uma notícia com o título “Pulseiras Electrónicas Pouparam ao Estado Mais de 13,8 Milhões de Euros” (Trigueirão, 2019). Tal conclusão assenta na premissa da comparação entre o custo diário entre um recluso em contexto prisional (44,88€) e um indivíduo em cumprimento de pena sob vigilância eletrónica no regime de radiofrequência (8,24€).
Está fora dos objetivos deste artigo uma análise em profundidade da correlação entre população prisional e indivíduos sob vigilância eletrónica, bem como dos custos inerentes a cada uma destas medidas de reclusão e monitorização de ofensores. Não obstante, uma comparação simples entre a evolução, ao longo dos últimos 19 anos, da população prisional e das medidas de vigilância eletrónica não evidencia uma relação inversa linear (Tabela 1). Ou seja, se é claro que as medidas de vigilância eletrónica têm, efetivamente, vindo a aumentar, a população prisional tem vindo a oscilar, ora no sentido do aumento, ora da diminuição. Com base nestes dados é, portanto, difícil sustentar o argumento linear, tão profusamente propagado, de que o aumento de medidas de vigilância eletrónica tem vindo a reduzir a população prisional.
Fonte. PORDATA (https://www.pordata.pt/) e Estatísticas da Justiça (Direção-Geral da Política de Justiça, s.d.)
Estes dados evidenciam a forma como a vigilância eletrónica se situa no seio de um complexo debate sobre as (des)conexões entre reclusão, alternativas às penas de prisão e medidas na comunidade. Em 1975, Michel Foucault, com a publicação de Vigiar e Punir, como foi intitulada na sua versão portuguesa em 1987, uma obra mais focada nos princípios e tecnologias da sociedade disciplinar do que na prisão como instituição (Mallart & Cunha, 2019), vaticinava que, da mesma forma que a prisão havia tornado as punições físicas obsoletas, também as prisões estariam condenadas ao declínio, no seio de uma racionalidade disciplinar difusa, caracterizada por mecanismos de “disciplinarização” da sociedade mais discretos e diversificados. Outros autores seguiram Foucault nesta análise prospetiva. Aliada a esta ideia estava a confiança em mecanismos não penais, tais como penas e medidas na comunidade (Cunha, 2008).
Assistiu-se, porém, a um fenómeno mais complexo: se, por um lado, efetivamente cresceu o uso de medidas alternativas à prisão, por outro, também se assistiu a uma expansão do universo prisional sem precedentes (Wacquant, 2000). Com base nesta expansão simultânea tem-se, portanto, debatido até que ponto os mecanismos de supervisão de ofensores constituem alternativas à prisão que, efetivamente, diminuem o número de indivíduos recluídos e/ou constituem uma resposta adicional que amplia e diversifica a malha penal (Cohen, 1985), movendo os indivíduos entre diferentes agências ao longo do tempo que ecoam e ressoam entre si, numa configuração que Fábio Mallart (2019) intitula de “arquipélago”.
Alguns autores argumentam que, ao invés de se assistir à bifurcação do sistema através da qual ofensores violentos seriam sujeitos a medidas de reclusão e pessoas que cometem ofensas menores direcionadas para medidas comunitárias e alternativas à pena de prisão, como é o caso da vigilância eletrónica, a proliferação de opções de condenação e monitorização acaba por conduzir à circulação dos mesmos indivíduos entre diferentes agências ao longo do tempo, num processo que Roger Matthews (2013) denomina de “transcarcerização”. Conforme sumarizado pelo autor, “a proliferação de opções de condenação cria um sistema auto-referencial ou autopoiético alargado que recicla os indivíduos por meio de uma rede intimamente ligada de instituições” (Matthews, 2013, p. 9). Uma vez que é possível usar a vigilância eletrónica tanto a jusante (front door) como a montante da reclusão (back door), este sistema tem assim o potencial de expandir o período de envolvimento dos ofensores com o sistema de justiça criminal. Ou seja, tanto como alternativa à prisão preventiva como na modalidade de saída antecipada do recluso, por via do sistema de adaptação à liberdade condicional.
5.2. Cooptação da Família na Esfera Penal e a Transmutação do Espaço Doméstico num Espaço de Reclusão
Para além do (alegado) alívio da pressão sobre o sistema prisional e da redução de custos, outra das vantagens formalmente apontada no uso de vigilância eletrónica diz respeito à “preservação ou retoma da liberdade e dos seus laços familiares e sociais, aspetos que poderão constituir uma mais-valia social importante na modelação de comportamentos e na prevenção de recidivas” (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, s.d.-d, para. 1). Tais argumentos são também destacados pela ministra da justiça que, em entrevista ao Público em outubro de 2019, afirma que “a execução de penas curtas fora do meio prisional impede os efeitos criminógenos da prisão ao mesmo tempo que favorece a reinserção mantendo o condenado no seu ambiente familiar e diminuindo os riscos de reincidência” (Trigueirão, 2019, para. 27). Este racional ancora-se numa tendência crescentemente disseminada nos discursos oficiais e em alguns estudos que associam o apoio familiar, durante e depois da reclusão - em coordenação com serviços de segurança social, saúde, educação, formação e emprego - com processos de reinserção social “bem-sucedidos” traduzidos, por exemplo, ao nível da prevenção da reincidência (Berg & Huebner, 2011; Codd, 2007; Duwe & Clark, 2011; Naser & Vigne, 2006; Visher & Travis, 2003). Em termos gerais, é argumentado que ofensores que sustêm laços familiares durante e após o cumprimento de penas, tendem a ser mais “bem-sucedidos” no processo de reintegração, sendo menos provável que permaneçam envolvidos em atividades criminais após o término da reclusão (Baumer et al., 2009; Mills & Codd, 2008).
As contribuições destas investigações afiguram-se como profícuas e capazes de ajudar a delineação de políticas que visem facilitar a manutenção de laços. Porém, estes estudos não permitem compreender as complexas e variáveis dinâmicas inerentes às relações entre apoio familiar, condições socioeconómicas e processos de reintegração social. Tal como referem Christy Visher e Jeremy Travis (2003) sublinham, “embora grande parte desta pesquisa confirme a correlação entre os laços familiares e o sucesso pós-libertação, esta falha em abordar as questões mais difíceis que poderiam conduzir a um entendimento completo de como e porquê esse efeito ocorre” (p. 102).
Ainda que estes tipos de influências se possam consubstanciar em processos de reintegração “bem-sucedidos” (isto é, evitando a reincidência), é necessária cautela ao colocar expetativas elevadas no potencial das famílias para auxiliar o processo de reinserção social (Codd, 2007; Mills & Codd, 2008; Touraut, 2012). Em primeiro lugar, porque nem todas as famílias desejam e/ou possuem as condições necessárias para acolher ofensores e apoiar, suportar e auxiliar a sua reinserção. A ideia de que as famílias constituem elementos fulcrais no processo de reinserção social tem geralmente subjacentes agregados familiares caracterizados pela divisão sexual do trabalho, não criminais, não violentos, assentes em relacionamentos harmoniosos e providos dos recursos monetários, habitacionais e sociais necessários para disponibilizar aos/às reclusos/as. Por outras palavras, “é a família ‘normal’ que é a base para a promessa de redenção do ofensor” (Aungles & Cook, 1994, p. 78). Este ideal pode, contudo, encontrar-se em clara contradição com as condições socioeconómicas e dinâmicas relacionais de algumas famílias.
No caso da vigilância eletrónica é, portanto, necessário compreender até que ponto as famílias têm efetivamente condições objetivas de vida capazes de assegurar o cumprimento da pena ou medida. A título de exemplo, destaco o caso de um vendedor ambulante com 36 anos que, em 2018, tendo sido sentenciado a 7 meses de pena em regime de permanência na habitação, foi encaminhado para o contexto prisional, em regime de detenção não contínua (cumprindo pena aos fins de semana), por não ter eletricidade legalizada em casa, requisito para o sistema de vigilância eletrónica, não obstante ter sido reconhecida pelo tribunal a precariedade da situação económica do agregado familiar. Conforme destacado por Maria João Antunes, uma das juristas que esteve envolvida na criação da lei que permite que penas de prisão inferiores a 2 anos sejam cumpridas em regime de vigilância eletrónica, em declarações ao Público, “este caso confronta-nos com as obrigações do Estado de direito social. O sistema tem de evoluir” (Henriques, 2018, para. 2).
Para além disso, a forma como as conexões entre apoio familiar e reinserção têm vindo a ser equacionadas evidencia uma subtil, mas ainda assim significativa, tendência no sentido de deslocar algumas das responsabilidades dos sistemas penais relativas à reinserção social para as famílias (Touraut, 2012). Conforme Helen Codd (2007) sublinha:
em certa medida, portanto, o governo pode “transferir a culpa”, desviando as questões da reincidência das discussões sobre os fracassos de práticas punitivas e desintegradoras, no sentido de torná-la [a reincidência] não apenas um fracasso do/a ofensora/a, mas também uma falha da sua família. (pp. 259-260)
Ou seja, tanto em processos de reinserção social, como no âmbito de medidas e penas de vigilância eletrónica, a família passa a ser alvo de uma série de expetativas que acabam por a cooptar para a esfera penal. Esta orientação reflete tendências mais amplas, características de regimes neoliberais (Harvey, 2005), que têm vindo a ganhar proeminência e que movem a responsabilidade do Estado e de outras instituições para os indivíduos, sublinhando como a reabilitação se tornou uma questão de responsabilidade individual (Bosworth, 2007).
Para além da cooptação da família na esfera penal, a vigilância eletrónica também evidencia a transmutação do espaço doméstico num local de reclusão. Tal redefinição simbólica da casa, para além de envolver mudanças ao nível das rotinas quotidianas familiares (como o rearranjo de horários e atividades), implica que as famílias se tornem agentes ativos nos processos de vigilância, num processo de “monitorização participativa” (Staples, 2014) que não envolve apenas os indivíduos sob vigilância, mas também a sua rede familiar (Staples, 2005). Conforme William Staples (2005) sublinha através da sua investigação sobre as implicações da prisão domiciliária para as famílias em contexto norte-americano:
por meio de seus esforços para “apoiar” os que estão em prisão domiciliar, os familiares acabam no papel de “vigilantes” auxiliares, criando uma espécie de conluio entre o objetivo familiar de que o/a ofensor/a termine a prisão domiciliar e o objetivo oficial de garantir conformidade com o sistema [de vigilância eletrónica]. (p. 157)
Esta transmutação do espaço doméstico num espaço penal é, aliás, reconhecida pela ministra da justiça, Francisca Van Dunem, quando, em novembro de 2018, num artigo de opinião no jornal Público, refletindo sobre o regime de permanência na habitação com recurso à vigilância eletrónica, destaca:
numa procura de soluções alternativas capazes de assegurarem a efetividade das finalidades penais, o legislador de 2017 acabou por reforçar, no sistema sancionatório português, a utilização de um novo instrumento punitivo cujas potencialidades e virtualidades permite deslocar o espaço punitivo do tradicional ambiente prisional para um local diverso, como a residência do condenado, sob vigilância eletrónica. (Van Dunem, 2018, para. 8)
Em suma, ao serem retratadas como um dos agentes mais importantes nos processos de reinserção (Naser & Vigne, 2006), criam-se condições para que as famílias e o espaço doméstico passem a co-integrar processos de supervisão e controlo, num processo de “monitorização participativa” (Staples, 2014). O uso da vigilância eletrónica acaba, assim, por expandir a “dimensão coletiva” (Granja, 2018; Touraut, 2009, 2012) da punição, da disciplina e controlo que envolvem este tipo de sanções penais (Staples, 2005, p. 140).
5.3. Estreitar o Debate Sobre a Violência Doméstica
De entre todas as penas e medidas abrangidas pelo sistema de vigilância eletrónica em Portugal, a medida de coação de vigilância eletrónica em contexto de violência doméstica (proibição de contactos por geolocalização) é atualmente a mais expressiva (perfazendo em 2020 cerca de 54% do total; Direção-Geral da Política de Justiça, s.d.). Porém, as complexas formas como a vigilância eletrónica pode funcionar tanto a favor como contra as vítimas de violência doméstica têm sido desconsideradas. Conforme explicado em 2013 pelo então diretor do sistema de vigilância eletrónica, Nuno Caiado, no âmbito de uma audição parlamentar sobre vigilância eletrónica para agressores de violência doméstica, a radiofrequência implica um claro envolvimento da vítima:
é necessário perceber o tipo de colaboração que a vítima pode prestar quando envolvida nas operações de vigilância eletrónica. Porque na realidade a vítima aqui vai ter sempre um papel igualmente ativo. A vítima não é passiva. A vítima, quando sujeita à vigilância eletrónica, porque ela também é sujeita às operações de vigilância eletrónica, ela vai ter um papel ativo e vai ter que ser tão cooperante quanto ( ...) o arguido vigiado nas operações de vigilância eletrónica. (Assembleia da República, 2013, 26:27)
Se o papel ativo da vítima é condição sine qua non para o sucesso da medida, é, portanto, necessário equacionar as complexas formas como a vigilância eletrónica pode funcionar tanto a favor como contra as vítimas de violência doméstica. Quando este sistema é promovido como uma ferramenta que garante a segurança e a justiça, no âmbito de um imaginário de tecno-otimismo que é alimentado por instituições públicas e meios de comunicação social, torna-se difícil aferir até que ponto pode estar a falhar a sua promessa. Da mesma forma, também se torna complexo analisar até que ponto a vigilância eletrónica das vítimas pode contribuir para narrativas assentes na sua culpabilização em contextos judiciais. Um exemplo disto é expresso nas declarações feitas por responsáveis da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, largamente divulgadas pelos meios de comunicação social, na decorrência de um homicídio de uma vítima de violência doméstica, sob o sistema de geolocalização de vigilância eletrónica em 2017. Após o homicídio, várias manchetes noticiosas destacavam a necessidade de as vítimas usarem sempre o dispositivo de segurança.
Autoridades deixam alerta a vítimas de violência doméstica. Devem usar sempre dispositivo de vigilância. Aviso chega depois de um casal ter sido encontrado morto dentro do carro. Ele usava pulseira eletrónica e a mulher um dispositivo que avisava as autoridades no caso de o agressor se aproximar, mas não terá levado o dispositivo para o encontro. (Autoridades Deixam Alerta a Vítimas de Violência Doméstica, 2017, para. 1)
Segundo a direção-geral, embora não sejam “judicialmente” obrigadas a usar tal equipamento, as vítimas de violência doméstica devem fazê-lo para “proteção pessoal”, o que “não aconteceu” com a mulher que quarta-feira foi encontrada morta dentro de um carro em Vila Nova de Gaia. ( ... ) Em entrevista à Lusa, João Moreira, Diretor de Serviços de Organização, Planeamento e Relações Externas da DGRSP [Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais], assinalou que nenhuma vítima de violência doméstica está obrigada pela Justiça a usar o dispositivo Unidade de Proteção da Vítima (UPV), mas deveria fazê-lo para a própria “preservação da vida”. “Não obstante não haver nenhuma obrigação judicial que obrigue a vítima a usar o dispositivo, a vítima deve andar com o aparelho”, reiterou João Moreira, admitindo que o caso da mulher que apareceu morta na quarta-feira passada no interior de um automóvel poderia ter tido outro desfecho se tivesse o dispositivo com ela. (Lusa, 2017, paras. 2-10)
Torna-se, portanto, claro como um sistema que é concebido para proteger as vítimas acaba por as coresponsabilizar pela sua segurança e, em última instância, pela preservação da própria vida. Considerando a elevada complexidade de situações de violência doméstica (Casimiro, 2002; Dias, 2010), bem como a parca confiança das vítimas no sistema de justiça criminal, evidencia-se, assim, uma necessidade premente de imaginar esforços de prevenção que não dependam somente de tecnologias de vigilância que coresponsabilizam as vítimas pela sua segurança. Entender como o tecno-otimismo sobre a vigilância eletrónica é produzido e mantido abre, portanto, a possibilidade de reconhecer e questionar as consequências desse otimismo para as vítimas de violência doméstica e de perseguição, bem como para as suas comunidades. Este tecno-otimismo restringe a crítica coletiva e a oposição às consequências negativas que a vigilância eletrónica pode ter sobre as vítimas e mina as capacidades coletivas de imaginar soluções alternativas para a violência doméstica (Quinlan, 2020; Morozov, 2013). De forma mais ampla, o tecno-otimismo estreita também o diálogo público sobre a prevenção de violência, em vez de promover debates sobre as raízes sociais e culturais da violência e a reforma do sistema de justiça criminal.
6. Conclusão
Retomando a breve interação com um recluso que tinha estado sob vigilância eletrónica que referi no início deste artigo, compreendo hoje que o tecno-otimismo que tem vindo a marcar o discurso dominante sobre a vigilância eletrónica influenciou então a minha reação, bem como, e de forma mais importante, oblitera a crítica coletiva das implicações invisibilizadas da vigilância eletrónica. Não obstante a vigilância eletrónica poder, efetivamente, reduzir a população prisional, facilitar a preservação de laços e proteger as vítimas de violência doméstica, no âmbito deste artigo pretendi analisar a forma como estes efeitos podem coexistir com outras implicações que tendem a ser invisibilizadas pelo tecno-otimismo que enquadra este instrumento penal em Portugal. Em particular, o modo como este tecno-otimismo restringe uma perspetiva crítica sobre como a vigilância eletrónica expande a malha penal, coopta a família na esfera penal e transmuta o espaço doméstico num espaço de reclusão, e estreita o debate sobre a violência doméstica, contribuindo, mesmo que de forma não intencional, para a coresponsabilização das vítimas.
Ao estar imbuído em discursos disseminados não só por instituições oficiais, mas também pelos meios de comunicação social e por uma efervescente indústria da vigilância, o tecno-otimismo em torno da vigilância eletrónica acaba, portanto, por restringir debates públicos sobre a reforma da justiça criminal e do sistema penal ao domínio da tecnociência, ao invés de abrir diálogos sobre as raízes sociais e culturais destes fenómenos (ver também Quinlan, 2020). De acordo com Ruha Benjamin (2019), uma autora que reflete sobre as formas como o racismo e as desigualdades sociais se imbuem em artefactos e mecanismos tecnológicos de forma socialmente invisibilizada, a vigilância eletrónica constitui, portanto, um exemplo de “benevolência tecnológica”. Ou seja, uma tecnologia que, sendo legitimada por argumentos gerencialistas e economicistas, visa resolver complexos problemas sociais e penais sem olhar de forma aprofundada para as suas raízes sistémicas, impossíveis de resolver somente com artefactos tecnológicos.