1. Introdução: A Digitalização e a Memória Coletiva
A obra póstuma de Maurice Halbwachs (1950/1992), On Collective Memory (A Memória Coletiva), lançada em 1950, representa um marco na introdução dos estudos da memória nas ciências sociais, essencialmente abordados pela filosofia e pela psicologia social. Halbwachs defende uma visão integradora que aloca ao ato de recordação, não só a ativação de impressões de experiências da memória individual, como também a consolidação dessas memórias a partir de dinâmicas relativas a grupos e comunidades nos quais se está inserido, e à luz das dúvidas e cogitações do indivíduo no presente. A memória coletiva corresponde, assim, a um processo permanente de reconstituição e ressignificação ativa, de um passado que não é registado como contínuo, mas atualizado e modelado pela memória social, próxima do quotidiano e que dita o que será recordado e o que será esquecido, por oposição à memória histórica, mais distante e baseada em argumentações lógicas para corroborar as narrativas lineares e centralizadoras sobre a humanidade (Halbwachs, 1950/1992). Este processo dinâmico de ressignificação, apoiado na memória coletiva e social, reflete a própria plasticidade do cérebro, que sobrepõe novas ligações às estruturas previamente registadas valorizando, em particular, os estímulos multissensoriais como grandes ativadores (Damásio, 2010). Assim, destaca-se a importância mnemónica do relato oral e dos contextos de convívio e interação familiares e em grupos de maior proximidade (Goody, 1998), bem como de rituais tradicionais e de celebração que asseguram uma rememoração cíclica partilhada e a passagem da memória de geração para geração (Connerton, 1989). Paralelamente, o património cultural e envolvimento de públicos em iniciativas de salvaguarda, preconizadas pelas instituições da memória - que incluem bibliotecas, arquivos e museus - constituem outra estratégia de vulto para a divulgação da memória e dos territórios, embora sejam frequentemente alvo de alguma instrumentalização, nomeadamente turística e económica (Nora, 1989).
A aceleração da digitalização e a proliferação de formatos nativos digitais, deixa para trás os suportes analógicos, que se tornam quase relíquias em álbuns pessoais e familiares, que em muitos casos não chegarão a ser digitalizados (van Dijck, 2007). Não obstante, registam-se fenómenos de revivalismo e nostalgia, que voltam a apostar na recolha e reconhecimento documental e artístico de arquivos pessoais. Nesse âmbito destaca-se o “Family Film Project: Arquivo, Memória, Etnografia. Festival Internacional de Cinema” (https://familyfilmproject.com/pt/), uma iniciativa portuguesa que surge em 2012 com o objetivo de divulgar e incentivar narrativas documentais e ficcionais, que explorem a dimensão mais intimista e biográfica, ligada a memórias pessoais, filmes caseiros e álbuns de família. Começam, também, a aparecer tecnologias que visam dar vida a fotografias antigas, através de técnicas de animação com recurso a inteligência artificial, como a aplicação Deep Nostalgia, que se tornou viral por gerar vídeos de personalidades já falecidas, e se afirma como uma nova vaga de tecno-valorização da rememoração do passado (Le Goff, 1988/1990). Apesar da existência de fenómenos artificiais, nomeadamente gerados pelos média, que evocam uma espécie de nostalgia do não vivido, como aponta Arjun Appadurai (1990), o autor exalta também o grande potencial imaginativo e comunitário que emerge do espaço de fluxo global (Castells, 2001), amplificado pela tecnologia, na medida em que permite uma democratização e reconhecimento da diversidade cultural, a par da disponibilização de ferramentas potenciadoras de práticas sociais e criativas, outrora inacessíveis a muitas esferas sociais marginalizadas.
Neste sentido, o presente artigo pretende salientar, a partir da referência a várias abordagens e projetos, com destaque para iniciativas portuguesas, o modo como a memória coletiva é profundamente afetada pelas formas e tecnologias de registo e acesso, a par das dinâmicas sociais potenciadas por metodologias e ferramentas participativas, com impacto no funcionamento das instituições e no acesso ao conhecimento, aberto e em rede, com outras instituições e junto das comunidades. O documento é estruturado em quatro secções: a introdução ao conceito de memória coletiva e como este foi afetado pela tecnologia e pelo processo de digitalização da cultura; a segunda secção é focada em abordagens participativas implementadas por instituições da memória em relação ao património cultural, rumo à consolidação e expansão de um legado constituído através do património digital; a terceira secção destaca o papel ativo de comunidades na cocriação digital de memórias coletivas, nomeadamente através da constituição de arquivos sociais; e a última secção enuncia algumas considerações finais sobre o impacto e desafios da cultura digital na cocriação de um legado coletivo da memória.
2. Abordagens Participativas ao Património Cultural e a Afirmação do Património Digital
Na sequência da publicação da Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural (2001) e da Convenção Para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial (2003) pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, as instituições da memória - que incluem museus, bibliotecas e arquivos - tornam prioritária a digitalização de coleções e manifestações da cultura e do património, encetadas paulatinamente a partir dos anos 2000. Esta transição digital tem impacto nas práticas das instituições, ao exigir a congregação das competências tradicionais com competências tecnológicas, dando origem a subdisciplinas especializadas, como a cibermuseologia (Langlais, 2005; Leshchenko, 2015), que foca a produção de conhecimento no património digital que, de acordo com a Carta para a Preservação do Património Digital (Charter on the Preservation of the Digital Heritage, 2009; United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, s.d.) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, contempla recursos computorizados e digitais de diversos formatos, tais como textos, sons, imagens estáticas e dinâmicas, bases de dados, páginas web e software. Paralelamente, as potencialidades do digital permitem o desenvolvimento de experiências museográficas sensorialmente ricas e imersivas, que introduzem novas camadas de significado no espaço do museu (Vairinhos, 2015, 2016). Começam a proliferar, também, experiências digitais de exploração cultural no exterior, através de aplicações móveis que tiram partido da geolocalização, das quais se destacam alguns exemplos: a aplicação móvel Streetmuseum1, lançada em 2010 pelo London Street Museum, que recorre à realidade aumentada para apresentar fotografias do passado, sobrepostas à malha urbana, facultando contextualização histórica enquanto se circula pela cidade; a plataforma Historypin (https://www.historypin.org/en/), também lançada em 2010, com a premissa de mostrar a evolução temporal dos locais através de fotografias do passado, mediante a navegação geográfica e através de uma linha temporal, além de disponibilizar ferramentas web 2.0 para a criação de páginas e coleções colaborativas de conteúdos, sendo adotada por utilizadores individuais e institucionais, tais como bibliotecas, arquivos, museus e associações culturais e sociais; e a aplicação móvel ZoomGuide (https://www.zoomguide.app/; https://zoomguide.pt/) que, através de geolocalização e uso de inteligência artificial para analisar fotografias enviadas pelo utilizador, sugere e disponibiliza informação de pontos de interesse cultural nas proximidades. A ZoomGuide, desenvolvida por uma start-up portuguesa com o mesmo nome, foi premiada na categoria de “Cultura & Turismo” pelos World Summit Awards de 2021 pela sua tecnologia inovadora, que dispensa o uso de códigos QR ou dispositivos de proximidade através de Bluetooth (beacons), frequentemente utilizados em percursos e visitas no interior e no exterior.
No âmbito de visitas a museus mencionam-se, ainda, dois projetos que recorrem a este tipo de identificadores de localização no interior do espaço museológico, para gerar memórias digitais personalizadas de visitas: o dispositivo Pen (Cooper Hewitt, s.d.), uma caneta desenvolvida em 2015 para o Cooper Hewitt Smithsonian Design Museum, utilizada para desenhar e interagir com peças interativas específicas, mas também, para registar as obras pelas quais o visitante passou (através do contato da caneta com um símbolo gráfico inscrito nas legendas), permitindo revê-las e aceder a conteúdo mais detalhado, através de uma área online disponibilizada a cada visitante, mediante um código fornecido no seu bilhete de entrada; e o projeto de investigação MixMyVisit, iniciado em 2019 numa parceria entre a AlticeLabs e a Universidade de Aveiro, que desenvolveu uma aplicação para gerar vídeos automáticos de percursos de visitas, tendo sido testada em colaboração com o Museu de Serralves. Além dos vídeos automáticos com conteúdo disponibilizado pelo museu de acordo com as salas visitadas, o utilizador pode também enviar fotografias e vídeos pessoais captados durante a sua visita (através de um chatbot) para serem integrados num vídeo personalizado, que pode editar e partilhar através da plataforma online (Almeida et al., 2021).
Além das experiências de fruição lúdica e imersiva, que enriquecem e facilitam o acesso ao património cultural, é também necessário considerar abordagens de codificação e interpretação ativas (Tilden, 1977) e, cada vez mais, colaborativas entre as instituições e os públicos (Oomen & Aroyo, 2011). Nesta perspetiva, o papel das instituições direcionase para a disponibilização de ligações entre diversas fontes para promover a co-construção do conhecimento e lidar com a diversidade de interpretações e perspetivas, que tornam a cultura mais rica (Langlais, 2005; Stuedahl, 2009). A aceleração da digitalização conduziu a novas práticas para a investigação, nomeadamente para a recolha, documentação e análise dos recursos culturais, introduzindo novas formas de classificação e de envolvimento de comunidades. O foco deixa de estar apenas nos objetos e nas coleções, para passar a contemplar as relações e narrativas digitais que é possível estabelecer entre eles (Stuedahl, 2009). Um exemplo paradigmático é o portal Europeana, lançado em 2008, financiado pela Comissão Europeia, para disponibilizar e relacionar bases de dados de coleções digitais, provenientes de instituições dos vários estados membros. Contudo, um dos maiores obstáculos a este cruzamento de dados advém da falta de interoperabilidade entre os sistemas das diversas instituições, face a diferentes standards de metadados e de taxonomias de categorização. Por outro lado, os standards existentes continuam a representar uma visão ocidental centralizadora de estruturação do saber, que é agnóstica às singularidades de minorias e comunidades específicas, como, por exemplo, os indígenas (Stuedahl, 2009). Por essa razão, os esforços de envolvimento das pessoas nos processos de recolha e significação do património, nomeadamente através de iniciativas tecnologicamente mediadas de folksonomia e croudwdsourcing2(Oomen & Aroyo, 2011), visam inverter esses paradigmas instalados e abrir-se à linguagem de não especialistas, mais próxima dos seus artefactos e práticas, além de procurar valorizar o papel destas pessoas na salvaguarda do seu património, história e memória, levando a um maior envolvimento, sensibilização e corresponsabilização (Rollo, 2020; Simon, 2010; Sousa, 2018). Adicionalmente, ressalta-se a importância de garantir a acessibilidade física, social e intelectual a públicos com necessidades especiais, conforme destacado pela associação Acesso Cultura (https://acessocultura.org/) que, na sequência do trabalho de investigação de Maria Vlachou (2013), autora do blogue Musing on Culture (http://musingonculture-pt.blogspot.com/), tem vindo a promover a acessibilidade à cultura em Portugal.
As dinâmicas online e as ferramentas participativas associadas à web 2.0 (das quais se destacam como pioneiros os blogues e as wikis) conduziram, igualmente, à constituição de comunidades de investigação e realização de estudos especializados vocacionados para museus, destacando-se a iniciativa Museums and the Web (s.d.; https://www.museweb.net/), o trabalho de Nina Simon (2010) em torno da ideia de museu participativo e o conceito de significância 2.0, proposto por Roslyn Russell e Kylie Winkworth (2009), que evidencia o contributo da tecnologia para potenciar a interpretação relacional de artefactos e traçar a sua importância histórica e cultural, através do cruzamento com outras coleções e em interação com os seus contextos e públicos. Félix Stalder (2018) salienta o facto de se estar a assistir a dois fenómenos diferentes, embora relacionados: a digitalização do mundo analógico para o digital, para permitir o seu rastreamento e monitorização; e a condição digital que diz respeito à ubiquidade e às possibilidades de combinação da informação, associada a novos padrões para organizar a cultura. Segundo Stalder (2021), estes padrões correspondem, também, a novas tipologias de públicos, designadamente, baseados na “referencialidade” (nas suas formas individuais de ver o mundo e seus interesses pessoais), na “comunalidade” (no seio de grupos que partilham interesses comuns e integram uma multiplicidade de pontos de vista) e na “algoritmicidade” (baseada nos enviesamentos resultantes do processamento algorítmico de grandes quantidades de dados). Para a maior parte das pessoas, não é claro este enviesamento que dita o que é acessível, sobretudo para muitos nativos digitais para quem a definição de pesquisar e aceder a informação está, desde sempre, ligada à internet, nomeadamente através de motores de busca e das redes sociais, cujos mecanismos de funcionamento, pouco transparentes, assentam em modelos de negócio.
Esta realidade revigora a importância das iniciativas open source (código aberto)3, já proclamadas desde a década de 90 do século XX, passando a tornar-se mais generalizadas nas instituições da memória e do conhecimento, que começam a disponibilizar o acesso aos seus acervos e coleções digitalizados através de interfaces de programação de aplicações, numa lógica de ciência aberta e de acesso FAIR (findable, accessible, interoperable e reusable; localizável, acessível, interoperável e reutilizável). Para viabilizar a inovação que advém da cooperação e da partilha de dados digitais em acesso aberto, é fundamental garantir a adoção de boas práticas4 que permitam a comunicação entre os diversos sistemas, rumo a soluções de agregação semântica. O potencial de trabalhar a maleabilidade e o cruzamento relacional5 de grandes quantidades de dados associados a coleções possibilita, igualmente, a sua remixagem, através de experimentações criativas com recurso a técnicas de big data e inteligência artificial. Algumas dessas abordagens são documentadas na plataforma Google Experiments (https://experiments.withgoogle.com/), que divulga projetos exploratórios desenvolvidos com o apoio da Google. Com todos os riscos de dominação que isso acarreta, este gigante tecnológico, em particular o Google Cultural Institute, representa um dos atores principais no empreendimento de digitalização massiva da cultura, que abrange diversos tipos de artefactos culturais, desde livros a documentos históricos e acervos artísticos. Neste âmbito, destaca-se o programa Google Arts & Culture (https://artsandculture.google.com), que disponibiliza o acesso a coleções e a exposições virtuais em parceria com instituições de todo o mundo. No contexto português, a par de páginas dedicadas a museus e entidades específicas, destaca-se a página Portugal: Arte e Património (https://artsandculture.google.com/project/portugal-art-and-heritage?hl=pt-PT), que agrega informação de museus, palácios e monumentos, e o Museu Virtual da Lusofonia (https://artsandculture.google.com/story/_QVB_gjMuVetJw?hl=pt-BR), lançado em 2020 pela Universidade do Minho. Popularizam-se, também, iniciativas de investigação e desenvolvimento em torno de dados digitais de acesso aberto, nomeadamente a realização de hackatons especializados6, que consistem em maratonas de programação colaborativa, com equipas multidisciplinares, para desenvolver propostas exploratórias que tiram partido das potencialidades dos dados de coleções e acervos, podendo vir a ser implementadas pelas instituições. Neste contexto, Leonardo Araújo (2018, p. 112)7 propõe o modelo de hacking com dados culturais como prática construtivista, vocacionada para o desenvolvimento de “artefactos interpretativos digitais”, que visam aproximar as pessoas das coleções ao facultar ferramentas que lhes permitem interagir, apropriar e criar narrativas que favorecem uma interpretação mais ativa e abrangente.
O Rijksmuseum, em Amesterdão, foi uma das instituições pioneiras a abrir o acesso a reproduções de obras em alta-resolução, livres de copyright, além de incentivar a criação e partilha de coleções temáticas, de composições gráficas criadas a partir de fragmentos de obras e até a personalização de objetos de merchandising, através de ferramentas digitais disponibilizadas numa zona dedicada do website, designada por “Rijks Studio” (Rijksmuseum, s.d.), lançada em 2013. Outra iniciativa de grande envergadura, para democratizar a experimentação em torno das coleções digitais em acesso aberto, é levada a cabo pela Smithsonian Institution (https://iiif.si.edu/), que tira partido protocolar da Estrutura Internacional de Interoperabilidade de Imagens para disponibilizar ficheiros de anotação avançada de obras da sua coleção (desde imagens em alta resolução, vídeos e renderizações 3D) que permitem seguir o rasto da imagem original, aceder ao registo das derivações e até anotar momentos especificos em vídeos, abrindo, deste modo, um vasto leque de possibilidades criativas, nomeadamente para os serviços educativos dos museus, as instituições de ensino e investigação e para o utilizador comum. Outra iniciativa que explora esta tecnologia foi lançada em 2020, pelo Getty Museum, dirigida à comunidade dos videojogos, em particular aos jogadores do Animal Crossing da Nintendo, através da disponibilização da extensão “Animal Crossing Art Generator” (Getty, s.d.), que permite importar fragmentos de obras de arte e utilizá-los no ambiente virtual do jogo.
Noutra perspetiva de envolvimento do visitante no museu, salienta-se The GIFT Project (https://gifting.digital/; 2017-2019), promovido pela Europena, para desafiar os jovens a pensar como será a experiência museológica do futuro. Através da disponibilização de uma toolkit (The Gift Box), que inclui ferramentas open source e técnicas de design e planeamento (design thinking), grupos de jovens propuseram e desenvolveram ideias, através da exploração imersiva no espaço museológico, mediante a produção de conteúdos próprios, a criação de percursos, histórias, mapeamentos sonoros e emocionais, experiências de 360°, entre outras propostas apresentadas, que evidenciam o cruzamento entre a dimensão pessoal e, simultaneamente, partilhável da experiência de visita, aumentada pela tecnologia digital enquanto mediadora de expressão, interpretação e criação. Cada vez mais, estas práticas de apropriação visam cativar e envolver o público, ao facultar-lhe formas personalizadas de explorar e interpretar os recursos culturais de uma perspetiva dinâmica e intertextual, conduzindo a novas perspetivas e possibilidades criativas e de produção de conhecimento, alinhadas com o nosso tempo, mas que não prescindem de uma visão crítica sobre os perigos de instrumentalização e banalização.
3. Arquivos Sociais e a Cocriação Digital de Memórias Coletivas
Atualmente, a criação e partilha social de registos digitais constitui uma prática seminal da cultura visual e participativa contemporânea, levando autores a considerar a chamada “fotografia social” (Jurgenson, 2019) como um género em si próprio. Neste contexto, e na senda dos princípios dos arquivos sociais e comunitários (Bastian & Flinn, 2020), criados espontaneamente por indivíduos e grupos ou mediados por instituições8, muitas vezes associados a objetos efémeros em torno de histórias locais, pessoais, familiares, de minorias, de movimentos sociais ou eventos (e.g., fotografias, registos de história oral, diários, cartas, postais, etc.), ganham uma nova aceção quando consideramos a democratização introduzida pelas plataformas sociais e de partilha online (Benoit & Eveleigh, 2019; Benoit & Roeschley, 2019; Flinn & Sexton, 2019; Geismar, 2017). Assim, e com vista a evitar a perda de registos visuais que constituem um legado histórico e sociológico importante, em termos de manifestações e práticas contemporâneas de relevância em vários domínios, algumas instituições têm vindo a manifestar o interesse na recolha e documentação destes materiais, nomeadamente, com recurso a estratégias participativas que possam agilizar a recolha e dar autonomia aos seus autores para contribuir ativamente nesse processo. Como exemplo, menciona-se o projeto de investigação Collecting Social Photo (2017-2020; https://www.collectingsocialphoto.org/en/home; http://collectingsocialphoto.nordiskamuseet.se/), que resulta de uma parceria entre o Museu Nórdico (Suécia), o Museu do Condado de Estocolmo (Suécia), o Museu Finlandês da Fotografia (Finlândia) e os Arquivos da Cidade de Aalborg (Dinamarca). A partir de casos de estudo conduzidos nas várias instituições, o Collecting Social Photo desenvolveu uma toolkit de métodos, abordagens e recomendações, apoiada no protótipo de uma ferramenta de enriquecimento social de arquivos e recolha participativa de fotografias, criada no âmbito do projeto e disponibilizada em código aberto para ser reutilizada por outras instituições (Boogh et al., 2020).
No contexto específico do património cultural imaterial destaca-se, também, a criação de inventários online9, que compilam e disponibilizam o resultado do trabalho extenso e sistemático de recolha junto de comunidades, que é imprescindível no processo de patrimonialização e salvaguarda. No contexto português distingue-se o projeto MEMORIAMEDIA: e-Museu do Património Cultural Imaterial (http://www.memoriamedia.net/), que surge em 2006, de acordo com as diretrizes da Convenção Para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial (2003). Este museu visa a inventariação e divulgação de recursos multimédia sobre manifestações culturais nacionais, tais como expressões orais e performativas, saberes e ofícios. Enquanto repositório reúne, igualmente, um conjunto de acervos audiovisuais de entidades e particulares, destacando-se, entre outros, a Cinemateca Digital e o Museu do Trabalho Michel Giacometti. O MEMORIAMEDIA está associado a iniciativas científicas10, e ao acompanhamento permanente de eventos cíclicos ligados ao património cultural imaterial, para estudar a sua transformação até aos dias de hoje, bem como desenvolve atividades frequentes de recolha e patrimonialização junto de comunidades. Neste âmbito, salienta-se o trabalho de Filomena Sousa (2015, 2018), que integra a equipa fundadora do projeto, e tem vindo a disseminar um conjunto de metodologias e boas páticas. Segundo a autora, é fundamental salientar a diferença entre o património cultural imaterial em relação aos documentos audiovisuais e multimédia produzidos a partir dele, os quais constituem novas representações mas não o substituem11, uma vez que o património não é apenas memória mas a sua manifestação, que passa de geração para geração. Neste sentido, o património cultural imaterial deverá ser sempre entendido como uma narrativa viva, que depende dos seus protagonistas e do tempo e contexto em que se inserem, sendo o processo de salvaguarda e patrimonialização dependente de uma negociação consentida e, desejavelmente, ativa, para captar o significado e o valor atribuído pelas pessoas e o que elas querem contar e partilhar (Sousa, 2018).
Os testemunhos na primeira pessoa estão na base das práticas de história oral centradas na autobiografia (Thompson & Bornat, 2017), sendo um dos formatos de registo mais ricos, com elevado potencial de encapsular informação expressiva e de gerar identificação e empatia, pelo facto de incorporar a autenticidade e a singularidade da linguagem verbal e não-verbal do sujeito. É essa dimensão pessoal das histórias de vida que está na base do Museu da Pessoa (https://museudapessoa.org/; Museu da Pessoa, 2016), que surge em 1997 no Brasil como um dos primeiros museus virtuais e se distingue por ser colaborativo e pela autonomia que concede aos participantes. O museu faculta instruções de como devem fazer os seus registos e partilhá-los através do website para contribuir para um espólio coletivo e aceder à diversidade cultural patente nestes registos. Em Portugal, num espírito semelhante focado na história oral, o programa Memória Para Todos (https://memoriaparatodos.pt/), iniciado em 2009, é definido pela sua fundadora Fernanda Rollo (2020) como um programa de afetos, no qual se estabelecem relações de amizade duradouras entre investigadores e comunidades, decorrentes de processos longos e de grande proximidade com as pessoas. Esta iniciativa é composta por vários projetos de formação e investigação colaborativa, em articulação com arquivos, bibliotecas, escolas, instituições municipais, entidades privadas e associações locais, com diferentes dinâmicas de mediação e recolha12 junto de comunidades. As recolhas são realizadas essencialmente através de métodos de investigação biográficos e de história oral, através dos “dias da memória” e da colaboração com representantes de cidadãos13, que fomentam a coesão territorial e a mobilização social. O programa regista, atualmente, mais de 30 projetos voltados para memórias ligadas a épocas, locais e temáticas diversas, desde centradas em personalidades, entidades e práticas específicas (e.g., fábricas e o património industrial, ligado a práticas profissionais como a polícia e os seguros, etc.), mas também ligadas à paisagem natural e às questões ambientais (e.g., projetos associados à Lagoa de Óbidos, a reservas de biosfera em várias regiões de Portugal continental e ilhas, ao Parque Nacional da Gorongosa em Moçambique, entre outros). Um dos aspetos basilares deste projeto centra-se na democratização do acesso a ferramentas de investigação histórica e no rigor da verificação científica e crítica de fontes, que muitas vezes se tornam nebulosas quando se referem a memórias vagas e dispersas. Nesse sentido, a maturidade do projeto tem vindo a consolidar um conjunto de boas práticas, sempre em articulação com os especialistas de cada domínio em estudo e com o envolvimento ativo das comunidades, que validam e atestam a sua representação em todos os suportes publicados, alinhados com as diretrizes de promoção do conhecimento em acesso aberto.
Um dos maiores espólios audiovisuais em Portugal de acesso aberto pertence ao projeto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (MPAGDP; http://amusicaportuguesaagostardelapropria.org/) que, no arranque de 2023, conta com mais de 6.500 vídeos e mais de 3.700 projetos. Trata-se de um empreendimento pessoal do realizador Tiago Pereira, que tem como objetivo dar a conhecer o património ligado à tradição oral que ainda se mantém vivo (e.g., cantigas, contos, músicas, danças e práticas sacro-profanas). Este tipo de manifestações culturais ainda é de conhecimento muito circunscrito e encontra-se em risco permanente de desaparecimento, dada a idade avançada dos seus detentores. Desde 2011, esta iniciativa consiste no mapeamento e recolha videográfica de testemunhos nas várias regiões de Portugal no meio da paisagem natural, e, mais recentemente, também fora do país, com o desdobramento do projeto dirigido a minorias e a comunidades específicas: “A Música Cigana a Gostar Dela Própria”; “A Música Ibérica a Gostar Dela Própria”; e a “Música Portuguesa (Lá Fora) a Gostar Dela Própria”, com recolhas no Japão, Berlim, São Tomé e Príncipe, Goa e Malaca.
Além dos canais próprios, esta chancela tem vindo a desdobrar-se em diversas iniciativas, a partir de protocolos municipais, reiterando o valor intrínseco do material recolhido, que se presta a várias possibilidades de formatos de apresentação e de disseminação, nomeadamente, recorrendo a estratégias e suportes online e físicos (e.g., livros com o cancioneiro a acompanhar DVDs, mapas ilustrados e postais musicais com código QR para aceder aos vídeos, podcasts, listas de reprodução em plataformas de streaming, séries documentais, etc.). Destaca-se, ainda, a presença na rádio e televisão públicas (permanentemente disponível online na plataforma RTP Play), nomeadamente: a série documental O Povo que Ainda Canta lançada em 2010 e exibida na RTP, sendo comercializada numa edição limitada em DVD e livro, e com rubricas de comentário por episódios na Antena 1 e Antena 2; e a série diária na RTP Memória com a apresentação e comentário de Tiago Pereira14. No contexto da pandemia, a MPAGDP passou também a ter uma rubrica diária de comentário de vídeos no suplemento cultural multimédia P3, do jornal Público. Entre as mais recentes atividades do projeto, que mudou a sua sede para a vila de Serpins, na Lousã, inclui-se o lançamento da revista semestral Serpins Magazine em 2022, dedicada à divulgação das atividades do projeto, bem como a criação em 2023 de um centro interpretativo nesse território (Lusa, 2021).
Embora Tiago Pereira não assuma uma ambição etnográfica na base deste projeto, recusando-se a ser comparado com o legado de Michel Giacometti, refere que a sua força motriz é a ligação afetiva que advém do contato direto com as pessoas, que generosamente lhe passam as suas memórias e a sua sabedoria ancestral, levando-o a querer preservar e partilhar esse privilégio, que não é totalmente traduzível nos registos (Frota, 2015). Por outro lado, e conforme referido pelo realizador, apesar dos materiais produzidos se encontrarem armazenados digitalmente, não deixam de padecer da volatilidade da cloud e da obsolescência do equipamento de armazenamento que reflete a recolha ao longo de mais de uma década. Esta realidade expõe o risco de perda definitiva, devido à falta de apoios e de políticas públicas de preservação de tais espólios, apesar de nos encontrarmos em plena transição digital. Neste contexto, são fundamentais a criação e a consolidação de redes de colaboração entre o sistema institucional, científico e tecnológico, em proximidade com a sociedade civil, para assegurar que o conhecimento, a memória e o património cultural digital são passados às gerações vindouras (Rollo, 2020).
Apesar de muitos dos projetos participativos mencionados dependerem da recolha feita por equipas de profissionais junto das comunidades, com o surto global da pandemia COVID-19 em 2020, que trouxe restrições de contacto físico e de acesso aos locais, surgiram um conjunto de iniciativas de recurso ao digital para acesso a serviços e à cultura (desde o teletrabalho à telescola) incluindo, também, práticas autónomas de auto-registo. A título de exemplo, o Museu da Pessoa criou a rubrica “Diários da Pandemia” (Museu da Pessoa, s.d.), inteiramente dedicada à auto-documentação de como as pessoas viveram este período conturbado, tendo originado uma exposição virtual. Também o programa português Memória Para Todos criou a rubrica “Memórias de Trazer por Casa” (https://www.instagram.com/explore/tags/memoriasdetrazerporcasa/; Memória Para Todos, s.d.-a; s.d.-b), que incentivava as pessoas a aproveitar o confinamento para partilhar histórias de objetos importantes na sua vida e da sua família, através da hashtag #memoriasdetrazerporcasa, pedindo que contextualizassem o valor funcional e simbólico desses objetos pessoais. No caso da MPAGDP, foi criada a rubrica “A Música Portuguesa a Gravar-se a Ela Própria” (2020), que convidou artistas de todo o país a filmarem-se a si próprios a tocar e cantar, em paralelo com a iniciativa realizada em Vila Nova de Poiares de filmar pessoas a atuar à janela, nas varandas e à distância nos quintais, com o objetivo de combater o isolamento das comunidades rurais e envelhecidas, que foi ainda mais agravado pela pandemia (esectv, 2020).
Conforme evidenciado pelos exemplos mencionados, o mapeamento cultural constitui uma abordagem de investigação-ação recorrente em projetos ligados à memória e ao património cultural, consistindo em dinâmicas de recolha, envolvimento e apresentação ligadas às populações, através de ferramentas educacionais, sociais, artísticas e comunitárias para identificar e dar visibilidade, interna e externa, às práticas culturais nos territórios (Duxbury et al., 2015). No caso do turismo cultural, destaca-se o projeto CREATOUR - Desenvolver Destinos de Turismo Criativo em Cidades de Pequena Dimensão e Áreas Rurais (2016-2019; https://creatour.pt/; Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 2019), coordenado pelo Centro de Ciências Sociais da Universidade de Coimbra, congregando cinco centros de investigação e 40 entidadespiloto, num formato de incubação-demonstração, que convoca artesãos e artistas locais para envolver as comunidades e turistas em atividades como workshops e oficinas, com vista ao desenvolvimento sustentável dos territórios e proporcionar uma ligação imersiva aos locais e suas tradições. Neste âmbito, destaca-se outro projeto ligado aos saberes e ofícios tradicionais, o Anti-Amnésia - Transferência de Sabedoria (https://endlessend.up.pt/antiamnesia/index.html; 2018-2020), promovido pelo ID+, Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, em parceria com outras universidades portuguesas, sendo vocacionado para a etnografia industrial, com o objetivo de reinventar materiais e técnicas de manufatura portuguesas em desaparecimento e desenvolver produtos inovadores. Outro exemplo, focado no território português e alicerçado na cultura oral, é o projeto LU.GAR (https://lugar.memoriamedia.net/), promovido pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e pela associação cultural Memória Imaterial CRL, tendo arrancado em 2018 na região de Alenquer, com o apoio da Câmara Municipal. O projeto aposta em projetos de cocriação comunitários, que congregam eventos presenciais e dinâmicas digitais, tais como oficinas, sessões de leitura, exposições multimédia, podcasts, festivais, publicações, documentários, em parceria com associações e cooperativas culturais, músicos, mediadores de leitura, contadores de histórias, artistas e ilustradores. Salienta-se o enfoque nos contos tradicionais regionais e a exploração de dinâmicas intergeracionais e de contato entre contadores de histórias profissionais com contadores locais. Outra iniciativa que explora dinâmicas intergeracionais, com recurso à internet das coisas, trata-se do projeto LOCUS - Territórios Rurais Ludicamente Conectados (https://locusproject.pt/), desenvolvido pela Universidade de Aveiro. Este projeto aborda a produção criativa de conteúdos culturais georreferenciados, integrados no metaverso do Second Life e no território da aldeia de Amiais, que exploram narrativas sobre a identidade e património cultural local, com vista a combater o isolamento e impulsionar o turismo cultural rural, com potencialidade de replicabilidade a territórios similares.
Destacam-se, ainda, outros projetos etnográficos nacionais focados em repositórios audiovisuais e plataformas participativas ligadas à memória e ao património, sendo demonstrativos do interesse e qualidade crescentes de projetos envolvendo comunidades: o projeto Arquivo da Memória (https://arquivodememoria.pt/) iniciado em 2010, centrado no desenvolvimento de um arquivo digital com base na recolha de testemunhos no Vale do Côa, promovido pela Amigos do Parque e Museu do Coa, com financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian e integrado no Clube UNESCO Entre Gerações; o projeto SOMA - Sons e Memórias de Aveiro (https://soma-ua.pt/; 2018- 2021), promovido pelo Instituto de Etnomusicologia - Centro de Estudos em Música e Dança, que consiste num arquivo vivo digital e num espaço laboratorial intergeracional, com especialistas e membros da comunidade, nomeadamente reformados, com vista a dinamizar o levantamento sonoro de Aveiro e de testemunhos orais, através de atividades de inclusão social, documentários, podcasts e parcerias com rádios locais; a plataforma Lojas com História (http://lojascomhistoria.pt/), que surgiu em 2017 com o intuito de mapear o património cultural ligado ao comércio tradicional e também a aspetos urbanísticos e arquitetónicos da cidade de Lisboa, em resultado de uma parceria entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa; o Mapa Emocional de Miraflor (https://miramapaemocional.net/), iniciativa artística promovida em 2018 pela Associação Cultural Fórum Mira, em parceria com o Programa Cultura em Expansão da Câmara Municipal do Porto e o artista sonoro catalão Nacho Muñoz, com foco nas sonoridades e testemunhos de habitantes e comerciantes da Rua de Miraflor, na zona de Campanhã, tendo sido alargada a outras áreas do Porto a partir de 2021; e a plataforma Rostos da Aldeia (https://www.rostosdaaldeia.pt/), lançada em 2021, criada pela jornalista Luísa Pinto, o autor do blogue de viagens Alma de Viajante, Filipe Morato Gomes, e o videógrafo Tiago Cerveira, para divulgar a cultura popular de territórios de baixa densidade, através de testemunhos das comunidades locais.
A par destes projetos, tem vindo a registar-se, nos últimos anos, a proliferação de eventos científicos que sublinham, igualmente, o interesse crescente na reflexão sobre as práticas ligadas ao mapeamento cultural, ao património e à memória, na sua relação com os museus e os arquivos, e embebidas em dinâmicas participativas que refletem a diversidade de abordagens introduzidas pela cultura digital.
4. Considerações Finais: Oportunidades e Desafios
Mais do que nunca, assiste-se à urgência de preservação digital da informação, nomeadamente cultural, não só para a posteridade, como também para o seu acesso e uso na contemporaneidade. Sobretudo, devido ao aceleramento da sua proliferação, bem como face ao risco de perda permanente, em particular no caso de património imaterial que se extingue com os seus detentores. Para tal, a informação tem de ser nativamente digital, ou ser traduzida sob a forma de registos que possam ser armazenados e acedidos por outros, para além dos seus detentores. Tal tarefa é tão mais difícil quanto mais imaterial e inacessível for a informação a preservar. A salvaguarda do património cultural tem vindo a estar institucionalmente a cargo dos museus, bibliotecas e arquivos, frequentemente designadas por “instituições da memória”, cuja missão é precisamente a recolha, preservação e disponibilização à comunidade. Neste âmbito, a participação do cidadão comum tem vindo a ser cada vez mais valorizada e solicitada para integrar, de forma ativa, esta construção coletiva, de modo a minimizar uma visão centralizadora, com a vantagem de poder facilitar o acesso a certos conteúdos e à sua contextualização mais rica. A integração do indivíduo num sistema controlado por instituições e meios de comunicação, com interesses e agendas muito próprios, pode fomentar maior imparcialidade na veiculação da informação, bem como potenciar a empatia e o sentido de pertença no modo como o indivíduo se vê representado na esfera pública.
Assim, ao longo do presente artigo, evidenciou-se o impacto da digitalização da cultura e das políticas de acesso aberto nas instituições da memória, em termos de gestão das coleções e de experiências de fruição dentro e fora das instituições com recurso à tecnologia, além da apresentação de metodologias de participação ativa de comunidades na documentação e salvaguarda do património cultural imaterial, com destaque para várias iniciativas, em particular desenvolvidas em Portugal. Os vários projetos apresentados confirmam como a maioria dos processos participativos é de média ou longa duração e se reveste da complementaridade entre dinâmicas presenciais e digitais, e de um convívio e partilha ativa de experiências entre especialistas e não especialistas, que promovem trocas mútuas nas quais a mediação digital atua como: ferramenta de registo; facilitador de comunicação; veículo de capacitação e inclusão; estímulo ao conhecimento; e promoção e mapeamento da cultura.
Neste contexto, o mapeamento cultural destaca-se como abordagem agregadora e multidisciplinar, na qual o design e a mediação tecnológica se aliam como catalisadores e ativadores de sistemas sociotécnicos, que convocam a sinergia entre múltiplas disciplinas, comunidades e territórios, apoiados pelo digital. Outro exemplo do potencial do digital efetivou-se durante o contexto desafiador da pandemia global da COVID-19 que, ao acarretar restrições de contacto físico e de acesso aos locais, veio revelar o potencial, não apenas funcional, mas também de criatividade, embebido nas práticas da cultural digital de remediação da distância, que originaram formas alterativas de expressão e de criação. Não obstante, continuam a persistir problemas estruturais de obsolescência técnica e de exclusão digital ainda não totalmente acautelados pela transição digital em curso.
Em todo o caso, o repto de cocriar um legado para gerações vindouras, alicerçado no poder da digitalização e da mediação digital, está irreversivelmente lançado. E trata-se de um movimento de ação transversal, que atravessa a esfera científica e da academia, estendendo-se a grupos e comunidades e não só às suas práticas ancestrais, mas também quotidianas e vernaculares, na produção de cultura e seus vestígios digitais. São estes registos digitais, pautados por uma estética e utilização fragmentada e combinada, de vários formatos e modelos de dinamização, que estão na base dos arquivos e formas de rememoração no futuro. Finalmente, importa não desvalorizar o facto de o ecossistema cultural e tecnológico ser constituído por vários agentes, com interesses nem sempre alinhados, e que, por isso, continuam a constituir desafios para os quais se deve reivindicar a maior transparência e escrutínio.
Neste contexto, na sequência da investigação realizada sobre o impacto da visualização e da participação em práticas de disseminação em rede e cocriação digital (Velhinho, 2023), propõe-se o desenvolvimento de uma plataforma de cocriação e visualização de memórias coletivas, a ser validada no território de Aveiro, a partir de metodologias das humanidades digitais e do design participativo, em parceria com as comunidades e com o Arquivo Histórico Municipal. O objetivo do projeto POLARISCOPE consiste em co-desenhar e testar uma solução de mediação tecnológica e social em mobilidade, que funcione como interface aberto de partilha e disponibilização de registos correlacionados, para o enriquecimento de arquivos documentais e de experiências presenciais. Deste modo, pretende-se conciliar a possibilidade de preservação, estudo e ativação de um arquivo social em construção, que fomente diversas leituras e a criação de perspetivas multidimensionais sobre manifestações culturais, com potencial de ser replicado a outros locais e eventos.