1. Introdução
Os desafios sociais, culturais, económicos e políticos que confrontam o papel e o lugar do jornalismo na atualidade sugerem um renovado interesse, assim como um renovado debate, sobre accountability (responsabilização/prestação de contas) e transparência dos média (Eide, 2016; Ramon, 2020; van der Wurff & Schönbach, 2014). Preocupações públicas referentes à qualidade do jornalismo e esforços de responsabilização e de prestação de contas por parte dos média não constituem um fenómeno inédito ou contemporâneo (Eberwein et al., 2019; Plaisance, 2000). Contudo, o contexto de transição digital e de emergência de um novo ambiente online possibilitou a expansão e o surgimento de novas oportunidades para a mobilização e alargamento do alcance destes processos de monitorização da qualidade do jornalismo (Acharya, 2015; Fengler et al., 2011).
Neste âmbito, a partir de uma discussão iniciada em Miranda (no prelo), este artigo procura aprofundar, ainda que de forma sucinta, a relação entre accountability dos média e qualidade do jornalismo, assim como visa apresentar e discutir os resultados de um estudo exploratório mais específico sobre mecanismos digitais de responsabilização e de prestação de contas de seis projetos editoriais portugueses.
2. Accountability dos Média e Qualidade do Jornalismo
Argumentam Fengler et al. (2021) que “[n]a investigação sobre os média e a comunicação, vários termos e conceitos são utilizados para descrever os processos de gestão da qualidade dentro e fora da profissão jornalística” (p. 5). A par de noções como “autorregulação”, “transparência” ou “governance do jornalismo”, a accountability dos média carateriza-se pela sua natureza holística, que pressupõe uma diversidade de intervenientes nos processos de prestação de contas e de responsabilização do jornalismo.
Conquanto possa ser difícil traduzir o sentido pleno de accountability dos média e a pluralidade de contributos que concorrem na interpretação do termo, uma definição que atravessa a literatura parte de Denis McQuail (ver McQuail & Deuze, 2020), que enquadra neste conceito todos os processos, voluntários ou involuntários, a partir dos quais os média se responsabilizam e respondem não apenas pelas consequências, mas também pela qualidade das suas ações e do que tornaram público. De forma mais específica, Fengler et al. (2011) definem accountability dos média como o conjunto de “instituições informais, offline ou online, implementadas por profissionais e por utilizadores dos média, com o objetivo de monitorizar, comentar e criticar o jornalismo, e de expor e debater os problemas do jornalismo” (p. 20). Neste âmbito, accountability dos média apresenta um sentido mais amplo do que transparência, mas extravasa também o domínio mais circunscrito da autorregulação, porquanto reconhece não apenas os jornalistas, mas também outros atores, como proprietários ou utilizadores dos média, enquanto participantes ativos nos processos de promoção, gestão e controlo da qualidade da informação jornalística (Bertrand, 2008; Fengler, 2019).
Com efeito, o arsenal de mecanismos que agem como meios de ativação e materialização da responsabilização do jornalismo é bastante extenso e diverso, compreendendo, por exemplo, diferentes tipos de documentos (como os códigos deontológicos), processos (como o ensino de jornalismo) ou indivíduos ou grupos (como os provedores do público ou os Conselhos de Imprensa; Bertrand, 2008, 2018). Ao mesmo tempo, a sua origem está longe de se cingir ao âmbito mais circunscrito dos média, podendo assumir uma natureza mais interna ou mais externa às redações e à cultura jornalística (Fengler et al., 2014). Particularmente no que diz respeito a mecanismos que resultam da iniciativa dos média, o resultado da sua atuação pode ser classificado de acordo com o momento da produção noticiosa em que surtem efeito: antes, durante ou após a publicação ou difusão (Heikkilä et al., 2012). Considerando o baixo impacto que cada um destes instrumentos, individualmente, terá na qualidade do jornalismo, a literatura tende a ressalvar o potencial de articulação ou de rede entre estes diferentes mecanismos, exercendo a sua influência como um sistema de infraestruturas (Fengler et al., 2011).
Em contraste com soluções de base legal e de natureza mais impositiva ou coerciva (liability), os estudos sobre accountability dos média relevam os aspetos positivos do que McQuail (em McQuail & Deuze, 2020) denomina como um “modelo responsivo” (answerability), o qual pressupõe uma abordagem dialógica e voluntária da responsabilização do jornalismo, mas implica também a predisposição das organizações noticiosas e dos profissionais para aceitarem críticas das audiências e para se envolverem no debate público sobre as práticas jornalísticas e a produção noticiosa (Brants & de Haan, 2010; Christians, 2009). Perante a incapacidade da legislação em responder a um ambiente mediático em permanente e rápida transformação, e à luz dos riscos de uma regulação excessiva, este segundo modelo surge comummente associado a perspetivas de conciliação entre a salvaguarda das responsabilidades e das funções sociais do jornalismo e a garantia da liberdade de imprensa. Estas conceções não ignoram, porém, o papel fundamental de formas de regulação com intervenção estatal na prevenção do dano e do risco decorrentes da ação dos média. Como conclui McQuail (1997), “a ênfase na primeira instância [liability] estará provavelmente relacionada com questões de dano causado pelos meios de comunicação social e na segunda [answerability] com questões da qualidade dos média” (p. 517).
Aferir o que constitui a qualidade do jornalismo será, se não difícil, pelo menos complexo. O seu significado poderá depender dos tipos de usos e gratificações que esperamos dos média (Jacobsson & Jacobsson, 2010; Neuberger, 2014) ou das caraterísticas e atributos do produto ou conteúdo que analisamos (Fengler, 2008). Mas a noção de qualidade do jornalismo poderá também alicerçar-se no conjunto de padrões definidos pela ação moral dos média e dos jornalistas (Jacobsson & Jacobsson, 2010), assim como na adequação das suas práticas e do seu trabalho aos valores subjacentes ao papel que assumem na sociedade (Meier, 2019). Por seu lado, e com base nestas conceções mais normativas, a qualidade do jornalismo poderá ser estimada a partir de um conjunto de critérios de qualidade, como a diversidade, a relevância, a ética, a imparcialidade, a compreensibilidade ou a precisão inerentes ao resultado do trabalho jornalístico (Urban & Schweiger, 2014). Não obstante a multidimensionalidade subjacente ao conceito, estas diferentes aceções indiciam uma relação intrínseca entre qualidade do jornalismo e os processos de responsabilização dos média.
A partir de uma perspetiva eminentemente autorregulatória, poder-se-á argumentar que as dinâmicas de accountability tendem a munir jornalistas e os média de ferramentas de produção, mas também de prevenção e de correção, que visam assegurar a adequação do seu trabalho aos padrões de qualidade da informação (Fengler, 2008).
Já no que concerne à sua vertente mais participativa ou pública, os processos de accountability dos média constituem, antes de mais, modos de monitorização e controlo social da qualidade da informação (Acharya, 2015; Bertrand, 2018). Groenhart (2012) leva um pouco mais longe esta reflexão, quando sublinha o papel destes mecanismos de acesso público na comunicação sobre os modos de funcionamento e princípios que orientam o processo de produção noticiosa, apetrechando o público com a informação, ou o “vocabulário”, a partir do qual poderá avaliar a qualidade do jornalismo.
Por outro lado, admite Groenhart (2012), a implementação de mecanismos de prestação de contas e de transparência, como perfis biográficos dos autores, newsletters ou cartas de princípios ou de missão, poderá transmitir uma noção de autenticidade e rigor profissional, agindo como uma “marca” de um jornalismo de qualidade.
Considerando a sua vertente mais dialógica ou de chamada de atenção pública (e também mediática) para a realidade do jornalismo e das redações (Groenhart, 2012; McQuail, 2003), a accountability pública dos média poderá não apenas intervir na adequação da conduta do jornalismo aos padrões socialmente definidos de qualidade da informação, como também, em última análise, intervir na definição desses mesmos padrões.
Como advertem Ward (2014) ou Ananny e Crawford (2018), uma leitura mais extensiva destes processos não pode, porém, ignorar as suas limitações ou o facto de que a implementação de instrumentos de accountability não resultará necessariamente em efeitos positivos para a qualidade da informação - aliás, algumas destas práticas de responsabilização e, sobretudo, de transparência (ou o modo como são concretizadas) podem mesmo ser incompatíveis com a conduta de um jornalismo ético e responsável.
3. Accountability dos Média no Ambiente Online
Trabalhos mais recentes - como os de Bastian (2019), Mauri-Rios et al. (2022) ou Suárez-Villegas et al. (2017) - sugerem três dimensões ou pilares que poderão contribuir para identificar e sistematizar os mecanismos contemporâneos de accountability dos média. O primeiro desses conceitos, autorregulação, compreende as normas que orientam o trabalho jornalístico e que fundamentam o compromisso assumido com o público. O segundo, transparência, diz respeito a diferentes esforços de abertura sobre as estruturas jornalísticas e sobre o processo de criação de notícias. O último destes domínios, participação, refere-se ao conjunto de procedimentos e instrumentos que possibilitam o contacto entre os média e o público e que facilitam a intervenção dos utilizadores das notícias.
De forma mais particular, a relevância atribuída a este último conceito não pode ser dissociada de um paradigma de reordenação do ecossistema mediático e de proliferação de novas fórmulas participativas de comunicação, que se, por um lado, veio desafiar o quase-monopólio dos média consolidados no acesso ao espaço público, por outro lado, possibilitou novos modos de interação entre esses meios e as suas audiências, ao mesmo tempo que tornou mais fácil e acessível o envolvimento dos utilizadores na crítica e monitorização da qualidade do jornalismo (Bernier, 2013; García-Avilés, 2019).
É, de resto, perante este quadro de transição digital e de reconfiguração do ambiente comunicacional que contributos como os de Fengler et al. (2011) sugerem uma distinção concetual entre “instrumentos estabelecidos”, tais como os provedores, as cartas à direção ou os Conselhos de Imprensa, e “instrumentos inovadores” de accountability dos média, uma noção que visa sistematizar o conjunto de mecanismos e de procedimentos que surgem no ambiente online. Do mesmo modo, estes novos mecanismos digitais poderão ser repartidos entre instrumentos específicos da web - tais como práticas de hiperligação para as fontes originais ou ferramentas de sugestão de correções por parte dos utilizadores - e instrumentos que resultam de uma replicação ou transposição de instrumentos convencionais para formatos online.
Considerando o impacto e alcance relativamente limitados dos modelos mais tradicionais de accountability e de autorregulação dos média (Alsius et al., 2014), novas formas online de responsabilização vêm captando a atenção da academia e do âmbito profissional, atendendo ao potencial de superação das fragilidades ou lacunas dos formatos convencionais.
Paralelamente a custos mais moderados ou maior facilidade na sua implementação, potencialidades subjacentes à acessibilidade, comunicabilidade ou sincronismo que estes mecanismos emergentes pressupõem (Acharya, 2015; Fengler, 2019) sugerem uma ampliação do leque de oportunidades de prestação de contas dos média e um alargamento da cobertura e impacto da rede de meios que interagem na monitorização e manutenção da qualidade da informação - onde se inclui a possibilidade de estes novos instrumentos poderem penetrar em sistemas ou ambientes com uma fraca cultura profissional ou um baixo envolvimento da sociedade civil (Lauk & Denton, 2011, como citados em Groenhart, 2012).
Contudo, na esteira do potencial participativo da web 2.0, uma das principais premissas destes novos modelos, tanto desenvolvidos a partir das organizações noticiosas como surgindo em outras coordenadas da sociedade, residirá na possibilidade de envolvimento dos cidadãos no debate público sobre as responsabilidades e o papel social dos média e no avanço da qualidade do jornalismo (García-Avilés, 2019; Pérez-Díaz et al., 2020), conferindo, em última análise, sentido e propósito às diferentes críticas públicas que surgem em diferentes espaços do ambiente online (Bernier, 2013; Chaparro-Domínguez et al., 2021).
Como conclui Meier (2019), “a qualidade no jornalismo não pode apenas apoiar-se nos ombros dos jornalistas individuais e das redações”, devendo “diversas iniciativas e instituições da sociedade trabalhar em conjunto, num processo pluralista, a fim de reforçar a qualidade do jornalismo” (p. 5). Da parte das organizações noticiosas e dos jornalistas, este quadro de pensamento implicará uma conceção mais dialógica da ética profissional, não apenas reconhecendo no público e nos restantes agentes da sociedade parceiros na ativação e materialização dos processos de accountability, mas também os corresponsabilizando pela qualidade da informação (Culver, 2017; Ward & Wasserman, 2015).
4. Accountabillity dos Média em Portugal
A regulação do jornalismo português tem-se pautado ao longo do período democrático por uma permanente reordenação institucional, por um modelo de autorregulação relativamente frágil e pelo que Camponez (2011) qualifica como um processo de “juridificação” da deontologia profissional dos jornalistas. Não obstante, a partir de estudos como os de Miranda (2019), Camponez (2011), Fidalgo (2009), Moutinho et al. (2018) ou Renedo-Farpón et al. (2022), é possível identificar em Portugal um conjunto diversificado de instrumentos, com diferentes níveis de institucionalização, que participam na responsabilização e transparência dos média.
Em contraste com o que Bertrand (2018) salienta como a dimensão mais eletiva da prestação de contas, o paradigma da accountability dos média em Portugal pode também ser lido à luz do que Miranda e Camponez (2022) caraterizam como uma abordagem “mandatada” desses processos, em referência à substituição da iniciativa voluntária por requisitos legais ou recomendações para a implementação de instrumentos de accountability do jornalismo. Com efeito, tanto no Estatuto do Jornalista (Lei n.º 1/99, 1999), como na Lei de Imprensa (Lei n.º 2/99, 1999) ou em outras provisões legais, é possível identificar este tipo de preceitos.
Conquanto as experiências online de accountability do jornalismo português surjam num contexto tardio e algo circunscrito (Miranda, 2019; Moutinho et al., 2018), verifica-se a emergência e proliferação de novas fórmulas digitais de responsabilização e transparência dos média portugueses (Christofoletti et al., 2019; Miranda, no prelo; Renedo-Farpón et al., 2022).
5. Objetivos e Metodologia
Sem prejuízo dos diferentes contributos enunciados na secção anterior, o paradigma dos mecanismos digitais de accountability dos média portugueses ainda carece de uma caraterização mais aprofundada e sistematizada.
Neste âmbito, este estudo exploratório assume como principais objetivos (O): (O1) contribuir para o mapeamento dos instrumentos digitais de accountability dos média portugueses; e (O2) compreender o grau e modos de implementação desses mesmos instrumentos.
Tendo em perspetiva os objetivos específicos desta investigação, este estudo centra-se na análise de uma amostra de projetos editoriais jornalísticos composta pelas versões digitais de dois meios de comunicação social escritos (Público e Expresso), dois nativos digitais (Observador e Notícias ao Minuto) e dois segmentos noticiosos de portais online (SAPO24 e ZAP aeiou). A seleção destes meios de comunicação tem por base os dados sobre audiências e consumo da Associação Portuguesa de Circulação e Tiragem (s.d.), assim como os resultados do estudo de Newman et al. (2022). O Público é um jornal diário de referência, fundado em 1990, e que em 1995 lançou a sua versão online. Já o website do semanário Expresso (fundado em 1973) foi lançado em 1997. Entre os nativos digitais, o Observador iniciou a sua atividade em 2014. Fundado em 2012, o projeto editorial Notícias ao Minuto privilegia a oferta de notícias mais curtas (Zamith, 2015). Ao contrário dos outros três meios, que adotam um modelo de negócio sustentado na subscrição, este último medium aposta na distribuição de informação gratuita e nas receitas da publicidade. Por seu turno, os projetos SAPO24 e ZAP aeiou correspondem aos segmentos noticiosos dos portais SAPO e aeiou, respetivamente.
No sentido de responder ao O1, adotando um conjunto de opções metodológicas prosseguidas por Mauri-Ríos e Ramon-Vegas (2015), uma primeira abordagem do estudo visou rastrear os mecanismos digitais de accountability implementados pelas seis organizações noticiosas. O mapeamento destes mecanismos baseou-se na sistematização dos instrumentos identificados em estudos anteriores (Tabela 1), acompanhada pela utilização de procedimentos de amostragem não-probabilística a partir dos websites e outros canais digitais dos média analisados. O mapeamento foi complementado com a aplicação de estratégias de análise de conteúdo, com vista a identificar caraterísticas-chave dos instrumentos sistematizados, nomeadamente a sua natureza digital (replicação de formatos offline ou específico da web) ou o seu enquadramento (autorregulação, transparência ou participação).
Procurando aprofundar e detalhar a caraterização das práticas e instrumentos identificados na primeira etapa do estudo, e tomando como referência os procedimentos aplicados por García-Avilés (2019) e, particularmente, Pérez-Díaz et al. (2020), a segunda abordagem centrou-se na análise da implementação de 15 instrumentos digitais de accountability, representativos das três fases descritas na revisão da literatura, dinamizados por pelo menos uma das organizações noticiosas. Esta segunda abordagem visa também responder ao O2. Com recurso a uma folha de código com categorias de desempenho, como frequência, função ou resultados dos mecanismos, foi desenvolvida uma análise de conteúdo ao longo de um período de nove meses (de julho de 2022 a março de 2023), em semanas não consecutivas. Cada instrumento de cada organização foi classificado de acordo com o nível da sua implementação: consistentemente implementado (1 ponto; ⬤), implementado de forma irregular (0,5 pontos; ◑) ou não implementado (0 pontos; ⭘). Nesta segunda parte da análise, não foram considerados conteúdos publicitários nem conteúdos de opinião1.
6. Mapeamento de Instrumentos e Práticas de Accountability dos Média
No que concerne ao primeiro segmento deste estudo, foram identificados 40 instrumentos digitais de accountability no âmbito da atividade das organizações noticiosas analisadas (Figura 1), os quais vão de procedimentos mais permanentes e consolidados a soluções mais perenes ou irregulares. Não obstante os traços particulares da sua implementação e dinamização, este elenco não sugere elementos radicalmente distintos ou originais quando confrontado com recenseamentos de outras realidades geográficas. Do mesmo modo, não apresenta diferenças significativas relativamente a mapeamentos precedentes do quadro mais amplo dos média portugueses (Miranda, no prelo) - destacando-se, contudo, a inexistência de secções permanentes de acompanhamento dos média ou a ausência de informação clara ou mais detalhada sobre fontes de financiamento.
Deste rol de instrumentos, 21 correspondem a mecanismos específicos da web, como as ferramentas de sinalização de erros ou hiperligações para as fontes originais. Já 19 dizem respeito a formas de transposição de mecanismos de natureza tradicional para o formato digital. Dentro deste último campo, uma diferença pode ser estabelecida entre práticas de reprodução dos mecanismos convencionais nos canais digitais dos meios - como se verifica, por exemplo, com os estatutos editoriais - ou esforços de adaptação desses instrumentos tradicionais às potencialidades do digital - como acontece com o Livro de Estilo do Público ou, como se discutirá posteriormente, com os procedimentos referentes ao direito de resposta aplicados pelo Expresso. Em ambos os casos, a transição digital tende a amplificar as oportunidades de prestação de contas e de responsabilização dos média, facilitando a acessibilidade e aumentando o seu alcance. Aliás, sobre o Livro de Estilo (s.d.) do Público, não deixa de ser interessante observar o apelo feito aos leitores para uma participação ativa no desenho e aperfeiçoamento deste instrumento, convidando-os, no final de cada segmento, a propor alterações ao conteúdo dos capítulos.
Contudo, os mecanismos específicos do ambiente online tendem a centrar-se sobretudo no domínio da transparência. A par de exemplos como encontros digitais com os utilizadores ou referências à antiguidade dos conteúdos, releva-se, entre os média convencionais analisados, a dinamização de diferentes tipos de podcast, que, de forma mais ou menos direcionada e pontual, contribuem para uma explicação sobre as dinâmicas da redação, processos de produção noticiosa ou métodos e fontes de histórias específicas.
Sem prejuízo da natureza voluntária que subjaz a vários destes mecanismos que contribuem para a transparência e autorregulação dos média, importará também observar que a referência a um conjunto de informações sobre os princípios e linhas orientadoras dos projetos editoriais, ou sobre a administração dos meios, refletem requisitos e recomendações legalmente estipulados - a título de exemplo, na Lei de Imprensa (Lei n.º 2/99, 1999) ou na Lei da Transparência dos Média (Lei n.º 78/2015, 2015).
7. Implementação de Práticas e Instrumentos de Accountability dos Média
7.1. Antes da Produção
Como defendem Pérez-Díaz et al. (2020), práticas de accountability dos média com impacto precedente à produção noticiosa podem envolver não apenas procedimentos ou mecanismos referentes aos processos de criação de conteúdos, mas também instrumentos de prestação de contas sobre a organização noticiosa, a sua estrutura ou estratégias empresariais. Os dados da Tabela 2 sugerem práticas relativamente transversais de transparência sobre as organizações noticiosas, mas refletem igualmente algum nível de heterogeneidade na aplicação desses procedimentos, bem como uma subordinação aos requisitos da lei. Este aspeto é especialmente evidente no que se refere à apresentação da missão e dos objetivos dos meios de comunicação social, a qual se encontra, de modo geral, circunscrita ao estatuto editorial, um elemento obrigatório por lei - não se evidenciando um esforço voluntário de ir além do que é legalmente estipulado.
Por seu turno, o debate público que a atualização do código de conduta do Expresso gerou em 2019 (Martins, 2019) poderá ser representativo da relevância que este tipo de mecanismos pode assumir não apenas enquanto instrumento de autorregulação, mas também como forma de vínculo entre os média e a sociedade. No entanto, entre os meios analisados, apenas o Expresso e o Público disponibilizam publicamente o conjunto de normas orientadoras do seu trabalho - o primeiro através de uma subpágina específica e o segundo por via de um segmento do seu Livro de Estilo (s.d.), também disponível online.
Nos diferentes meios, a informação sobre as organizações surge, por norma, na ficha técnica ou por via de subpáginas dedicadas, identificadas no final dos menus ou no limite inferior dos websites. É, aliás, neste último segmento que o Público inclui informação sobre os principais fluxos financeiros. Já no Expresso, o final do website é ocupado por informação sobre o grupo empresarial, onde também surge uma hiperligação para a informação financeira da Impresa. A presença ou a omissão da informação sobre os elementos financeiros e de gestão das organizações noticiosas não pode ser desligada do enquadramento específico de cada projeto editorial e respetivo grupo mediático, mas devem também ser lidas à luz de um conjunto de obrigações de declaração destas informações à Entidade Reguladora para a Comunicação Social, podendo suprimir, de alguma forma, a exigência dessa iniciativa voluntária de transparência.
7.2. Durante a Produção
A identificação da autoria dos conteúdos constitui uma forma de responsabilização de quem os produz, mas também um modo de o público verificar e controlar a qualidade dos trabalhos jornalísticos. Com exceção dos artigos que resultam de uma adaptação mais direta de conteúdos de agência ou de notas de imprensa, verifica-se uma prática generalizada de assinatura dos conteúdos jornalísticos. Existe, contudo, uma diferença entre os procedimentos dos média dos portais, onde a assinatura dos conteúdos é predominantemente assumida pelo meio, e os dos restantes projetos editoriais, onde prevalece a assinatura individual dos jornalistas. A realidade particular do SAPO 24 não poderá ser dissociada do modelo redatorial específico: a produção dos conteúdos resulta de uma parceria com a agência MadreMedia.
Em quatro dos meios analisados, a identificação da autoria é complementada com dados biográficos dos autores - muito embora nem todos os jornalistas disponibilizem essa informação (Tabela 3).
A par de uma transposição para o formato online de práticas de identificação de apoios à realização de determinados conteúdos jornalísticos - como, por exemplo, a utilização da fórmula “o jornal visitou ( ... ) a convite de” -, evidencia-se um aproveitamento do potencial de recursos digitais numa sinalização mais clara e visível de parcerias e de formas de financiamento de conteúdos e projetos editoriais jornalísticos específicos.
A identificação das fontes constitui um procedimento normativo matricial do jornalismo contemporâneo. Na conduta dos diferentes meios analisados é possível identificar esforços de aprofundamento destas práticas, através da utilização de hiperligações para as fontes originais da informação - sejam elas outros conteúdos do próprio projeto editorial, outros meios de comunicação, outros websites ou outros tipos de fontes documentais, como comunicados oficiais, despachos ou legislação. Do mesmo modo, são também transversais práticas de integração (embedded) de conteúdos originais de redes sociais. Com menor frequência, surgem casos de disponibilização, a partir do próprio servidor, de documentos públicos e/ou oficiais que constituem fontes dos artigos.
O ambiente de aceleração e intensificação da produção jornalística confere uma renovada relevância aos valores associados à correção e retificação de erros, uma vez que, ao mesmo tempo que o jornalismo se encontra mais suscetível a imprecisões, a maior fluidez do digital possibilita modos mais ágeis e informados de correção desses erros (Karlsson et al., 2017; Plaisance, 2016; Saltzis, 2012). Com efeito, a maioria dos meios analisados identifica atualizações e correções dos conteúdos. Contudo, estas práticas assumem níveis de frequência e, sobretudo, modos de implementação bastante distintos. Enquanto projetos como o Notícias ao Minuto ou o SAPO24 circunscrevem, geralmente, a sua atuação à sinalização da existência de uma atualização e da hora dessa alteração (por norma no final do texto), o Público, o Observador ou o Expresso completam essa indicação com uma síntese do que foi objeto de modificação e/ou com a explicitação do motivo da alteração. Neste âmbito, será também interessante relevar o caso específico do Observador, que, na secção referente às informações sobre o projeto editorial, dispõe de uma subpágina destinada à política de correções e atualizações de conteúdos. No texto, o meio de comunicação social começa por admitir o “risco real” da existência de erros, assumindo o compromisso de celeridade e de transparência na correção dos mesmos, para, de seguida e de forma mais detalhada, identificar as orientações e procedimentos para cada situação particular: “correção de dados factuais”; “clarificação de informações”; “atualizações”; “correção de notificações”; “correções e atualizações nas redes sociais”; e “apagar conteúdos publicados” (Política de Correção, s.d.). Ainda que num plano não restrito ao digital, também o Ponto 6 do código de conduta do Expresso prevê que “todos os erros, de facto ou de omissão, devem ser pronta e explicitamente reconhecidos e corrigidos, com a devida relevância”, e que, “quando se justifique, deve ser apresentado um pedido de desculpas público” (“Código de Conduta dos Jornalistas do Expresso”, 2008, Ponto 6). Interligado com as questões de correção e retificação, conquanto o direito de resposta configure um requisito legal anterior ao advento da internet, procedimentos como o adotado pelo website do Expresso - que estabelece uma rede de hiperligações entre o(s) conteúdo(s) visado(s) e o texto do direito de resposta - demonstram o potencial do online na promoção e aprofundamento da responsabilização do jornalismo.
7.3. Após a Produção
As formas de accountability dos média com impacto após a produção identificadas neste estudo pressupõem um maior nível de participação do público e de interação entre os utilizadores das notícias e os projetos editoriais. Neste quadro, é relevante constatar que tanto os nativos digitais, como ambos os meios tradicionais, possuem subpáginas dedicadas aos diferentes contactos da redação, assim como disponibilizam formas de contacto mais diretas com os autores dos conteúdos. Já o ZAP aeiou inclui toda esta informação na sua ficha técnica. Por seu turno, a página do SAPO24 não apresenta os seus contactos de forma clara e facilmente acessível. Mais uma vez, isto não pode ser dissociado do modelo redatorial do meio e do enquadramento específico do projeto, enquanto subsegmento do portal online (Tabela 4).
Outra oportunidade de intervenção do público na retificação e responsabilização da informação jornalística diz respeito a mecanismos de sugestão de correções. Tanto o Observador como o Público dispõem de ferramentas de sinalização de erros. No primeiro caso, este mecanismo assume a forma de um texto destacado, no final dos artigos, no qual se identifica o email do autor e se convida à proposta de correções. No segundo caso, este instrumento materializa-se num botão, também no final dos conteúdos, que remete para um formulário destinado para o efeito. Este procedimento gera um email que poderá ser recebido pela equipa da secção “última hora” ou editores responsáveis pelo segmento online, pelos copy-desks e, quando se trata de um conteúdo assinado, pelo autor. Por norma, são os coordenadores da secção online que primeiro lidam com estas mensagens, articulando com as diferentes figuras da redação, de acordo com o tipo de erro sinalizado (tipográfico, factual, etc.).
A par do convite à proposta de correções, o final dos artigos do Observador inclui também o apelo à sugestão de uma “pista”, fomentando, por um lado, o aprofundamento das histórias e, por outro, uma contribuição mais ativa dos leitores na definição da agenda do meio de comunicação social. A partir de uma remodelação implementada em março (“O Novo Clube Expresso: O que É, Para Quem, ao que Vem? E Como Pode Fazer Para Entrar?”, 2023), também o Expresso passou a adotar um texto destacado no final dos artigos, num modelo semelhante ao implementado pelo Observador, que abre a possibilidade de apresentação de dúvidas, sugestões ou críticas diretamente aos autores dos conteúdos.
Frequentemente, os comentários dos utilizadores são pautados por formas de crítica, mais ou menos construtivas, da conduta dos média e dos atributos dos conteúdos jornalísticos oferecidos, as quais poderão intervir na perceção da qualidade das notícias e na responsabilização das organizações noticiosas (Dohle, 2018; Prochazka & Obermaier, 2022). Contudo, enquadrar este mecanismo de participação dos utilizadores como um veículo de accountability dos média deverá merecer maior ponderação (Eberwein, 2019; Ksiazek & Springer, 2020). Com efeito, poderá depender do nível de identificação ou anonimato dos autores desses comentários (Shanahan, 2017), mas também poderá subordinar-se ao modelo de gestão e de moderação desses contributos (Reich, 2011). E, em última análise, implicará igualmente o modo como jornalistas e organizações noticiosas encaram as críticas que emergem nesses espaços participativos (Prochazka & Obermaier, 2022) - por exemplo, se as ignoram, se as consideram ou se intervêm no debate.
Entre os diferentes meios analisados, identifica-se alguma heterogeneidade nos modos de implementação e gestão das ferramentas de comentários. O Público e o Observador assumem, possivelmente, os modelos mais semelhantes: em ambos os projetos editoriais, os comentários nos websites e respetivas aplicações móveis estão reservados a utilizadores identificados, a moderação é realizada pelos próprios leitores e na gestão das participações intervém um sistema de pontuação ou reputação dos subscritores - embora, no caso do Público exista uma limitação diária de dois comentários e três ações de moderação para não-assinantes2. Também ambos os meios dispõem de uma subpágina que estipula as normas da comunidade e onde se prevê um conjunto de casos que poderão conduzir à intervenção da equipa redatorial, nomeadamente, na eliminação de um registo que “seja falso ou apresente identidade duvidosa” (Regras da Comunidade-As Regras dos Comentários, s.d.). Já o Público (“Comentários”, s.d.) permite “o uso de pseudónimos, desde que não sejam utilizados para fins contrários às regras da comunidade” (Critérios de Publicação, Ponto 6), mas proíbe, por exemplo, “comentários que visem deliberadamente desinformar os leitores acerca de processos eleitorais, questões legais ou matérias de saúde e de segurança pública” (Critérios de Publicação, Ponto 3). Paralelamente aos comentários, este segundo jornal disponibiliza um espaço de debate, “Fórum Público”, com uma secção dedicada aos média. Também no âmbito da estratégia implementada em março de 2023, o Expresso voltou a dinamizar ferramentas de comentário, restritas, no entanto, apenas a assinantes. Aliás, relativamente aos comentários, o Expresso refere a promessa de participação do meio de comunicação social no debate (“O Novo Clube Expresso: O que É, Para Quem, ao que Vem? E Como Pode Fazer Para Entrar?”, 2023) - uma prática identificada em vários artigos, nos quais elementos da equipa editorial intervêm na reposta a interpelações e sugestões dos leitores.
Por seu turno, tanto no ZAP aeiou como no SAPO24 não existe uma referência explícita ou clara às normas que regulam o espaço de comentários. Aliás, no que concerne este último projeto e o Notícias ao Minuto, a utilização das funcionalidades de comentários estão limitados a utilizadores registados na rede social Facebook.
Em linha com o que se verificou em outras realidades geográficas (Enkin, 2021), também em Portugal se evidenciou um esmorecimento da tardia e circunscrita experiência dos provedores do público. Com exceção do setor público audiovisual, a manutenção desta figura no Público constituirá uma singularidade entre os média portugueses de iniciativa privada. Muito embora a sua intervenção e os seus textos não estejam exclusivamente reservados ao espaço online, no website do jornal o provedor dispõe de um espaço próprio, que apresenta as suas crónicas, o arquivo de textos de provedores anteriores, assim como uma subpágina dedicada à “definição” da figura, as suas “competências”, os critérios de “nomeação e cessação de funções” e declaração de “incompatibilidades” (“O que É o Provedor do Leitor”, s.d.).
8. Síntese e Discussão de Resultados
O levantamento que resulta da primeira fase deste estudo aponta-nos para um conjunto relativamente amplo e diverso de instrumentos e práticas digitais de accountability dos média, caraterizado não apenas pela replicação online de formatos mais tradicionais - particularmente no quadro da autorregulação profissional -, mas também pela emergência de novos mecanismos específicos da web - sobretudo inerentes a uma dimensão de transparência. Neste âmbito, os resultados sugerem que também no contexto português o advento de um novo ambiente online veio possibilitar a expansão de novas oportunidades de mobilização e alargamento do alcance dos processos de monitorização da qualidade do jornalismo, assim como veio ampliar o potencial de participação dos utilizadores e de diálogo entre os média e o seu público - por exemplo, através da realização de encontros digitais ou em debates nos espaços de comentário. Esta natureza mais participativa ou pública dos processos de responsabilização torna-se tão mais relevante quando entendemos a accountability não apenas como uma marca da qualidade dos média, mas também como um modo de gestão e de “controlo” social da qualidade da informação jornalística (Bertrand, 2008). Aliás, acedendo a que as conceções dos média e as perspetivas dos utilizadores sobre o que constitui a qualidade da informação jornalística não são necessariamente congruentes (Schwaiger et al., 2022), a consolidação destas novas lógicas interativas e dialógicas de accountability dos média poderá assumir um papel relevante na definição e estabilização dos padrões que moldam a qualidade do jornalismo.
Uma outra marca que subjaz à leitura dos resultados das duas fases deste estudo diz respeito à “natureza mandatada” (Miranda & Camponez, 2022) de diferentes instrumentos identificados. Podemos argumentar que, a título de exemplo, a obrigatoriedade de publicação de dados sobre a propriedade e o financiamento dos meios de comunicação social, determinada pela Lei de Transparência dos Média (Lei n.º 78/2015, 2015), ou a exigência da elaboração de um estatuto editorial pela Lei de Imprensa (Lei n.º 2/99, 1999) poderão contribuir para generalizar e consolidar formas de promoção e verificação da qualidade do jornalismo - veja-se, por exemplo, que, a par dos comentários, são os mecanismos mandatados que encontram algum tipo de implementação em todos os média analisados na segunda fase do estudo. Contudo, podemos também inferir que a formalização destes aspetos se predispõe a mitigar a natureza voluntária das dinâmicas de prestação de contas dos média e, em última análise, poderá funcionar como um elemento de dissuasão da experimentação e implementação de formatos alternativos ou complementares de accountability.
Visando aprofundar e detalhar esta caraterização, a segunda etapa do estudo centrou-se na análise da implementação de diferentes mecanismos digitais de accountability. Uma conclusão geral que atravessa estes resultados refere-se à heterogeneidade na regularidade e nos modos como os vários projetos editoriais analisados prosseguem diferentes processos de responsabilização e transparência.
Como indiciam os dados da Figura 2, é entre os dois meios mais tradicionais que encontramos uma maior diversidade e um maior nível de implementação dos mecanismos digitais analisados. Por seu turno, é entre os segmentos noticiosos dos portais online que se evidencia uma menor frequência e consistência na aplicação destes instrumentos digitais. Isto não poderá ser desligado do facto de estarmos perante projetos informativos com uma dimensão redatorial e de recursos mais reduzida, e que constituem uma fração de meios de fornecimento de serviços mais amplos e diversos.
Já no que concerne aos nativos digitais, como demonstra a Figura 3, verifica-se necessário sublinhar a distinção entre o Observador - cuja realidade tende a aproximar-se mais dos meios tradicionais - e o Notícias ao Minuto, que revela uma menor consistência na aplicação, sobretudo, de mecanismos com intervenção durante e após a publicação dos conteúdos. Novamente, a situação particular deste segundo medium não poderá ser dissociada do modelo e dos objetivos editoriais do projeto. De resto, em linha com as conclusões de Pérez-Díaz et al. (2020), também este cenário sugere que, mais do que numa oposição meios tradicionais/novos média, as assimetrias na implementação e experimentação de novos formatos digitais de responsabilização e transparência assentam em fatores culturais, tecnológicos ou económicos, entre os quais podemos elencar a capacidade financeira dos meios, os seus objetivos editoriais ou o seu modelo de negócio e de relação com as audiências. Sobre este último aspeto, note-se que é entre os projetos que apostam em modelos de assinatura ou subscrição e numa intervenção mais direta do público que encontramos um maior nível de implementação de mecanismos digitais de accountability.
Neste contexto, torna-se relevante recuperar a discussão sobre a dimensão dialógica dos novos modelos de accountability. Prosseguindo o que observámos anteriormente, a componente interativa e de participação destes mecanismos de responsabilização e transparência verifica-se fundamental na sua relação com a promoção da qualidade das notícias. Desde logo, a conduta e a atuação das organizações noticiosas e dos jornalistas tenderão a ser afetadas pelo facto de saberem que terão de responder ao seu público e de explicar os processos da produção noticiosa (von Krogh, 2008). Mas, ao mesmo tempo, estas dinâmicas dialógicas poderão contribuir para que o público explique as suas expetativas sobre uma informação jornalística de qualidade e responsável e para que os média ajudem as audiências na sua definição de um jornalismo de qualidade (van der Wurff & Schönbach, 2014). Ainda que relativamente circunscrita no tempo e no seu alcance, a discussão em torno do código de conduta do Expresso é reveladora de que o potencial de debate sobre a qualidade do jornalismo não se restringe apenas a mecanismos de natureza interativa; ele também pode emergir na discussão sobre os próprios instrumentos de responsabilização.
Na esteira do que argumentam Christians (2009) ou Brants e de Haan (2010), o sucesso destas iniciativas de responsabilização na definição e promoção da qualidade do jornalismo depende, em grande medida, da predisposição dos média e dos profissionais para se envolverem no debate com o público. Se, como indicam os resultados, as caixas de comentários constituem o mecanismo voluntário com uma implementação mais transversal, como também vimos, são raros os casos em que se evidencia uma intervenção direta da equipa editorial nas discussões que emergem nesses espaços. Em última análise, a ausência de resposta dos jornalistas às críticas e dúvidas que surgem nestes locais poderá mesmo ter consequências negativas para a qualidade dos média ou, pelo menos, para a perceção da qualidade por parte dos utilizadores, porquanto deixa um vazio no debate, que poderá ser ocupado por outros atores (Prochazka & Obermaier, 2022). Com efeito, estas vagas de participação poderão nem sempre resultar em formas construtivas de diálogo ou de aperfeiçoamento da qualidade da informação (Waisbord, 2020). A exigência de uma participação mais ativa dos jornalistas nestes processos de interação não poderá também ignorar o perigo de alimentar lógicas de sobretrabalho e fadiga laboral dos profissionais da informação (Porlezza, 2019).
Num outro polo, a erosão de mecanismos como o provedor do público - esta figura trata-se do instrumento com menor representação entre os média analisados - é significativa dos desafios que confrontam a sustentabilidade de um jornalismo responsável e de qualidade. Aliás, podemos mesmo argumentar que, num contexto de moderação de despesas e de afirmação de novas estratégias comerciais no jornalismo, o baixo custo e a participação associada a estes novos modelos poderão representar o risco de substituição de formas consolidadas de promoção e de controlo da qualidade da informação (Evers, 2012).
9. Conclusões
Não obstante a nebulosidade ou ambiguidade que permeia a definição de qualidade do jornalismo e das notícias (Molyneux & Coddington, 2020), procurámos neste trabalho explorar, mesmo que de forma sucinta, diferentes linhas de relação entre estes conceitos e o potencial de dinâmicas de responsabilização e de prestação de contas dos média. De forma sintética, este trabalho visou sublinhar três vertentes dessa relação: a accountability enquanto dimensão ou marca da qualidade dos média; a accountability enquanto modo de controlo da qualidade do jornalismo; e a accountability enquanto espaço de definição da qualidade da informação noticiosa.
Com efeito, na sua dimensão mais participativa ou pública, os processos de accountability dos média constituem, antes de mais, modos de promoção, gestão e controlo social da qualidade da informação jornalística, fornecendo igualmente um conjunto de ferramentas orientadoras do trabalho dos jornalistas e das organizações noticiosas. Por outro lado, podem também promover uma marca de profissionalismo e de credibilidade da informação e dos projetos editoriais.
O contexto de transição digital e de emergência de um novo ambiente online possibilitou não apenas a expansão de novas oportunidades para a mobilização e para o alargamento do alcance destes processos de monitorização da qualidade do jornalismo, mas também a ampliação do potencial de participação dos utilizadores e de diálogo entre os média e o seu público.
A análise mais extensiva da realidade dos mecanismos digitais de accountability implementados pelos meios analisados neste estudo tende a sublinhar, por um lado, a realidade heterogénea e o potencial subjacente à adaptação de modelos convencionais de responsabilização para formatos online, mas também a natureza mandatada dos processos de accountability e de transparência dos média, sugerindo-se a necessidade de uma investigação mais aprofundada sobre este fenómeno.
Sem prejuízo do quadro de vantagens e possibilidades subjacentes a uma maior intervenção e participação dos utilizadores na monitorização da qualidade da informação, como discutimos, estas potencialidades devem ser dissecadas com alguma precaução. Neste âmbito, considerando a prevalência do domínio participativo entre os instrumentos inovadores identificados, sugere-se também o imperativo de aprofundar o estudo sobre as expetativas e atitudes dos jornalistas relativamente a estas novas dinâmicas e possibilidades de accountability dos média.
Concomitantemente, a análise mais específica sobre o nível de implementação de vários destes mecanismos assinala alguma heterogeneidade e assimetrias nas formas de aplicação dos instrumentos. Entre estas, é de ressalvar a diferença entre uma dimensão mais pública da sua atuação e uma restrição da sua intervenção apenas entre assinantes ou subscritores. Ao mesmo tempo, se instrumentos como os podcasts identificados no mapeamento, ferramentas de comentário analisadas no segundo segmento do estudo ou outros mecanismos virados para a comunidade do medium pressupõem um maior nível de transparência, poderão igualmente manifestar linhas de estratégia comercial destas organizações, suscitando o interesse de explorar de forma mais aprofundada a relação entre estes elementos.
Sem prejuízo do contributo que procura oferecer para uma abordagem exploratória da realidade dos mecanismos digitais de accountability dos média portugueses, este estudo apresenta algumas limitações. Importará observar que a análise incide sobre uma amostra restrita, ainda que exemplificativa de diferentes realidades dos média digitais portugueses. Por outro lado, centra-se num período de análise concreto, podendo não capturar dinâmicas de responsabilização ocorridas fora deste contexto temporal. Neste âmbito, as pistas de estudo aqui apresentadas poderão também contribuir para mitigar estas limitações.