1. Introdução
Esta pesquisa investiga a cobertura jornalística de duas agências de checagem de fatos associadas a empresas de comunicação mainstream (tradicional) no Brasil: Fato ou Fake (pertencente ao Grupo Globo) e Estadão Verifica (vinculada ao jornal O Estado de S. Paulo). Pretende-se analisar como tais iniciativas vêm sendo utilizadas para legitimar o jornalismo como fonte segura de informações ao longo de diferentes governos, a saber, o de Jair Bolsonaro e o de Luiz Inácio Lula da Silva.
Diante de um cenário comunicativo marcado pela atuação de múltiplos agentes no que concerne à produção e à circulação de conteúdos (Marques, 2023; Waisbord, 2018), o jornalismo tem enfrentado uma crise de legitimidade e confiança (Massuchin et al., 2022; Mick, 2019; Reese, 2022). De acordo com o Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo, a confiança nas notícias vem caindo gradativamente ao longo dos anos - tanto no Brasil, quanto em vários outros países (Newman et al., 2023). Nesse contexto, as organizações midiáticas buscam reafirmar sua autoridade profissional e enfatizar seu compromisso com os princípios da imparcialidade, neutralidade e objetividade (Fontes, 2022; Marques, 2023; Marques et al., 2023) ao reivindicarem que serviços como a checagem de fatos colaboram para conter o avanço da desinformação (Ferracioli, 2021) e consolidam o papel da imprensa como fonte segura de informações (Becker, 2019). O problema é que mesmo tais iniciativas têm sido recorrentemente acusadas de favorecerem determinadas tendências políticas (Adair & Iannucci, 2017; Fernández-Roldán et al., 2023), ocasionando um efeito de tiro pela culatra quanto à intenção de reforçar a credibilidade da mídia.
Considerando tais apontamentos, este trabalho propõe a seguinte questão de pesquisa: em que medida o Estadão Verifica e o Fato ou Fake buscaram reforçar sua autoridade epistêmica por meio da checagem de fatos ao longo dos Governos de Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva? Sabe-se que o Governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) foi marcado por críticas recorrentes do próprio ex-Presidente (Fontes, 2022; Nicoletti & Flores, 2022) e de seus apoiadores (Massuchin et al., 2022) a jornalistas e empresas de comunicação - encorajando a imprensa a reafirmar seu compromisso com os princípios da atividade e com a democracia através de campanhas institucionais, notícias e editoriais (Fontes, 2022; Marques, 2023). Lula, por sua vez, fez críticas à postura de Bolsonaro e iniciou o seu terceiro mandato estabelecendo uma relação menos beligerante com jornalistas (Estado de Minas, 2022; Lopes, 2023; Lula, 2023). No entanto, do ponto de vista histórico, o atual Presidente e seus partidários também acusaram os jornais brasileiros de perseguição - sendo a crítica ao papel da imprensa uma constante quanto à cobertura da Operação Lava Jato e do impeachment de Dilma Rousseff (Albuquerque, 2021). Uma vez que Bolsonaro e Lula estão posicionados em lados opostos do espectro ideológico, tendo se enfrentado na disputa eleitoral de 2022, a pesquisa permite compreender se, e em que medida, houve viés na atividade de checagem de fatos levada à frente por duas das mais importantes empresas jornalísticas do Brasil.
A abordagem empírica compreendeu a coleta de todos os textos publicados pelas duas agências de checagem que, em seus títulos, mencionaram Bolsonaro, no período compreendido entre 1 de janeiro a 31 de maio de 2022, e Lula, entre 1 de janeiro a 31 de maio de 2023. O recorte temporal foi definido de forma a comparar a mesma quantidade de dias dos dois Governos sem haver influência direta dos períodos eleitorais. O corpus compreende 119 textos no total, sendo 95 do Estadão Verifica e 24 do Fato ou Fake. A análise de conteúdo foi operacionalizada a partir da formulação de um livro de códigos construído com base em trabalhos anteriores sobre checagem de fatos (Ferracioli et al., 2022; Marques et al., 2024) e de leituras flutuantes do corpus (Bardin, 1977/2011).
Este trabalho está dividido em cinco seções, além desta introdução. A primeira parte discute os efeitos das mudanças do ambiente informacional sobre o jornalismo. A segunda seção revisa a literatura dedicada à checagem de fatos. Em seguida, são apresentadas as estratégias de coleta e de análise dos dados. O quarto tópico revela os resultados da investigação. Por fim, o artigo reflete sobre suas principais descobertas à luz da literatura.
Os resultados revelam que as fontes mais utilizadas pelas duas agências são provenientes do próprio jornalismo mainstream - servindo de suporte para as checagens, inclusive, materiais das empresas às quais as duas iniciativas estão vinculadas. Essa estratégia de retroalimentação mostra que organizações jornalísticas brasileiras têm se servido dos métodos de checagem de maneira insuficiente, visto que preferem se autoafirmar em vez de aprofundar aspectos como transparência e apuração - o que pode ampliar a desconfiança do público.
2. Legitimidade Jornalística, Polarização e Politização
A emergência do jornalismo profissional “reivindicou o manto do realismo científico para fundamentar a sua atuação de revelador de verdade - centrando-se nos fatos, utilizando métodos quase científicos e colocando entre parênteses a ideologia e a subjetividade” (Waisbord, 2018, pp. 1869-1870). Entretanto, diante da multiplicidade de atores produzindo e compartilhando conteúdos através das plataformas digitais, bem como da proliferação de notícias falsas, o jornalismo tem tentado reafirmar a sua autoridade profissional (Marques, 2023; Reese, 2022). Fontes (2022) destaca que “a delimitação e o reforço da autoridade jornalística envolvem não só enfatizar quais são as características normativas do jornalismo, mas, também, delimitar o que não pode ser considerado como tal” (p. 95). Carlson (2016) ressalta que, assim como ocorre com diversas atividades profissionais, a aceitação social é condição fundamental à autoridade jornalística. Através do discurso metajornalístico, as normas, os protocolos e os significados da profissão são estabelecidos: “o significado é negociado entre aqueles que procuram autoridade e aqueles que a concedem através da sua aceitação” (Carlson, 2016, p. 355).
Assim como ocorreu nos Estados Unidos durante o mandato de Donald Trump (Koliska et al., 2020), parte dos desafios impostos às organizações e profissionais do jornalismo é oriunda dos ataques de lideranças políticas. No caso do Brasil, as disputas entre imprensa e agentes da política se mantêm acirradas desde as manifestações de 2013 - que foram seguidas do impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e da prisão de Lula em 2018 (Albuquerque, 2019; Marques et al., 2023; Pimentel, 2023). No entanto, de acordo com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (2022), os desentendimentos se intensificaram durante o Governo Bolsonaro: no ano de 2021, 69% dos casos de agressão a jornalistas foram provocados por agentes com algum vínculo a instituições governamentais ou estatais.
Com a finalidade de verificar como as instituições jornalísticas buscaram reafirmar sua legitimidade institucional no decorrer da gestão de Jair Bolsonaro, Fontes (2022) analisou textos noticiosos e de opinião de três jornais de referência brasileiros - O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo. Os resultados apontam que a defesa da legitimidade jornalística envolveu o compromisso com os princípios do jornalismo profissional - isenção, imparcialidade e objetividade -, reafirmados por meio de textos de autopropaganda ou divulgação de prêmios recebidos por seus profissionais.
De modo semelhante, Marques (2023) sugere que os constantes conflitos entre Bolsonaro e a imprensa causaram transformações em quatro dimensões das práticas jornalísticas no cenário brasileiro: na promoção de campanhas institucionais da mídia, na produção de notícias, na produção de editoriais e nos modos como os profissionais reagem aos ataques. Para o autor, os gestores de mídia buscaram reformular a construção de sua imagem pública com o objetivo de fortalecer a retórica de que o jornalismo representa o interesse dos cidadãos. Já na seção de notícias, as próprias organizações jornalísticas e seus profissionais passaram a ter destaque na cobertura. Nos editoriais, o argumento de que o jornalismo provê um relato imparcial dos fatos passou a ser frequente. E os profissionais de imprensa, que sempre reivindicaram para si uma posição de neutralidade, passaram a se posicionar mais claramente em relação a atores políticos - em um movimento de politização que ocorre em outras democracias.
Tais mudanças não ocorrem somente no jornalismo brasileiro. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, enquanto jornais locais fecham suas portas, o número de redações partidárias cresce exponencialmente. “O perigo é que os leitores ( … ) recebam notícias emotivas, partidárias e divisivas disfarçadas de reportagens comunitárias, confundindo as duas” (Bartholomew, 2022, para. 8).
3. Checagem de Fatos e a Disputa por Autoridade Epistêmica
A checagem de fatos surge como mais um produto dedicado a reafirmar a autoridade da cobertura jornalística (Graves, 2018), uma vez que reivindica para si a legitimidade epistêmica de declarar o grau de veracidade de determinada declaração ou informação que circula publicamente (Ferracioli, 2021). Lelo (2022) destaca que, mesmo que a necessidade de verificar a veracidade de uma notícia já seja um princípio jornalístico desde o início do século XX, “a verificação moderna de fatos busca revigorar a legitimidade jornalística para o público interessado” (p. 78).
A verificação de fatos não tem, necessariamente, o objetivo de gerar “furos de reportagem”, como costumam fazer os repórteres nas seções noticiosas (Lim, 2018). É comum, inclusive, que a mesma história seja checada por várias agências (Marques et al., 2024). Assim, tal atividade é marcada por uma postura mais colaborativa entre empresas que concorrem comercialmente pela atenção do público. Conforme argumentam Graves e Konieczna (2015), os grupos de verificação de fatos “se entendem como praticantes de um tipo de ‘jornalismo de responsabilização’ que é vital para o bom funcionamento da democracia e encaram o seu trabalho como uma resposta a uma crise contínua no jornalismo” (p. 3). Ressalte-se, ainda, que existe uma tendência para as checagens contemporâneas enfatizarem temas políticos, a exemplo dos discursos de autoridades públicas (Becker, 2019).
Se, nas redações tradicionais, a opacidade com relação a procedimentos e detalhes do cotidiano produtivo ainda é imperativa (Christofoletti, 2021; Gehrke, 2020) - uma característica que as diferencia das iniciativas de checagem é exatamente a alegada preocupação com a transparência, principalmente com relação às fontes e ao percurso de apuração (Becker, 2019; Santos & Maurer, 2020). Esta indicação pode ser verificada nas próprias descrições das agências brasileiras e nas indicações da International Fact-Checking Network: “acreditamos que a verdade e a transparência podem ajudar as pessoas a estarem mais bem informadas e equipadas para navegar na desinformação prejudicial” (Poynter, s.d.-b). Como explica Becker (2019), em tese, a ideia é permitir que o leitor possa seguir os mesmos caminhos feitos pelos checadores. Para Santos e Maurer (2020), a transparência dos processos, inclusive, teria mais potencial de contribuição para os leitores do que a indicação das etiquetas pelas agências.
Em pesquisa com 31 profissionais do projeto Truco dos Estados, da Agência Pública, Seibt e Fonseca (2019) procuraram identificar os princípios jornalísticos que estes relacionam com a atividade. A transparência foi indicada por todos os respondentes, tendo índice maior do que outros valores normativos, como precisão, objetividade e credibilidade. Para as autoras, “se já não é possível confiar no discurso midiático a priori, desvelar o processo de produção do conteúdo é uma alternativa para auferir credibilidade” (Seibt & Fonseca, 2019, p. 11). Gehrke (2020) ajuda a compreender este cenário ao indicar que “este valor jornalístico é frequentemente evocado pelos checadores para defender o seu trabalho, uma vez que a abordagem da transparência exige a demonstração aos leitores das fontes de notícias utilizadas” (p. 2).
No Brasil, as primeiras iniciativas dedicadas à checagem de fatos (Lupa, https://lupa.uol.com.br/, e Aos Fatos, https://www.aosfatos.org/) tinham uma proposta de funcionarem com autonomia, tendo iniciado suas atividades em 2015 sob supervisão de jornalistas que haviam trabalhado em organizações mainstream (Lelo, 2022). Desde então, organizações jornalísticas tradicionais também têm investido em suas próprias unidades de checagem - um fenômeno que se repete em outros países. Nesse contexto, Graves et al. (2016) realizam um experimento com jornalistas políticos dos Estados Unidos a fim de verificar o que impulsiona a publicação de textos “checadores” e descobriram que materiais contendo apelos ao prestígio e aos valores da profissão ainda são significativamente relevantes, apesar das pressões comerciais associadas ao interesse do público.
No entanto, mesmo patrocinar iniciativas a exemplo da checagem de fatos não tem isentado o jornalismo comercial de críticas. Além de ressalvas acerca dos critérios utilizados pelos checadores na seleção das agendas (Uscinski & Butler, 2013), há críticas sobre os possíveis vieses partidários dos profissionais que desempenham a atividade. Adair e Iannucci (2017) demonstram como conservadores nos Estados Unidos questionam a postura “autoproclamada” dos checadores como árbitros da verdade, além de sustentarem que os jornalistas envolvidos com as verificações têm preferência ideológica identificada com partidos de esquerda. No caso espanhol, Fernández-Roldán et al. (2023) mostram que os partidos de direita têm maior probabilidade de terem seus conteúdos classificados como “falsos” do que os partidos de esquerda.
Ao entrevistarem checadores que atuam na Espanha, Fernández-Roldán et al. (2023) concluíram que há agências que não especificam critérios objetivos sobre a seleção das histórias a serem verificadas e sem políticas claras sobre a priorização de fontes. Além disso, os jornalistas revelaram que não havia protocolos objetivos para diferenciar uma história “verdadeira” de “meio verdadeira”, por exemplo. Em outras palavras, os profissionais diziam apelar para critérios jornalísticos na execução do serviço, mas, quando questionados sobre quais seriam os critérios efetivamente empregados, os checadores apresentaram respostas inconsistentes.
No que se refere ao caso brasileiro, Fontes et al. (2019) realizaram entrevistas com jornalistas que cobriram as eleições de 2018, no âmbito do projeto Comprova1. Quanto aos parâmetros relativos à seleção dos conteúdos, os jornalistas afirmaram priorizar histórias que repercutiram nas redes sociais - e alegaram que conteúdos relacionados a Jair Bolsonaro teriam maior alcance.
Tendo em vista a discussão delineada acima, este artigo propõe a seguinte questão de pesquisa: em que medida o Estadão Verifica e o Fato ou Fake procuram reforçar sua autoridade epistêmica por meio da checagem de fatos ao longo dos Governos de Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva?
4. Estratégias Metodológicas
O objeto de pesquisa deste trabalho compreende a cobertura jornalística de duas agências de checagem de fatos: Fato ou Fake (https://g1.globo.com/fato-ou-fake/) e Estadão Verifica (https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/). A escolha pelos dois casos levou em conta que se trata de agências associadas a empresas de comunicação mainstream - o Fato ou Fake está vinculado ao Grupo Globo e o Estadão Verifica é administrado pelo jornal O Estado de S. Paulo. O Fato ou Fake foi criado em julho de 2018 e afirma que seus critérios de checagem estão baseados na transparência das fontes, na transparência de metodologia e na transparência de correções (G1 Lança Fato ou Fake, Novo Serviço de Checagem de Conteúdos Suspeitos, 2018). O Estadão Verifica foi criado em junho de 2018 (Bramatti, 2021) e é signatário da International Fact-Checking Network, grupo que estabelece padrões e princípios para a verificação de fatos2.
A fim de escrutinizar a atuação das duas iniciativas nos Governos de Jair Bolsonaro e Lula da Silva, foram coletadas todas as checagens que, em seus títulos, mencionaram (a) Bolsonaro, no período compreendido entre 1 de janeiro a 31 de maio de 2022; e (b) Lula, de 1 de janeiro a 31 de maio de 2023. A coleta de dados resultou em 95 textos produzidos pelo Estadão Verifica e 24 checagens desenvolvidas pela equipe do Fato ou Fake.
Portanto, o corpus compreende 119 textos.
A partir de observações preliminares dos materiais e da leitura de trabalhos anteriores dedicados à checagem de fatos (Ferracioli et al., 2022; Marques et al., 2024), foi elaborado um livro de códigos (Tabela 1), com o intuito de operacionalizar a análise de conteúdo (Bardin, 1977/2011). Os textos foram codificados por duas pesquisadoras com experiência em tal técnica, sendo que a classificação das variáveis passou por teste de confiabilidade através do alfa de Krippendorff (Krippendorff, 2004).
5. Apresentação dos Resultados
Os gráficos da Figura 1 e Figura 2 evidenciam o número de checagens cujos títulos mencionam Bolsonaro, entre janeiro e maio de 2022, e Lula, entre janeiro e maio de 2023. Em primeiro lugar, ainda que exista uma diferença marcante entre o número de textos de cada agência, ambas deram cobertura semelhante aos dois agentes políticos aqui investigados. Enquanto o Fato ou Fake apresentou 10 checagens nos meses referentes a Bolsonaro e 14 nos meses referentes a Lula, o Estadão Verifica publicou 47 materiais citando o Presidente durante o Governo Bolsonaro e 48 durante o Governo Lula.
Nota-se, ainda, que, em janeiro de 2022, as agências publicaram poucos textos sobre Bolsonaro (quatro no Estadão Verifica e um no Fato ou Fake), ao passo que o primeiro mês do Governo Lula começou mais intenso: foram 16 verificações no Estadão Verifica e sete no Fato ou Fake. A maior parte desses textos se referia a supostas medidas tomadas pelo Governo Lula (por exemplo, “É #FAKE que Canal de Transposição do São Francisco Mostrado em Vídeo Foi Fechado Após Início do Governo Lula”, do Fato ou Fake, a 23 de janeiro de 2023, e “Não Houve Mudança na Taxação do Pix Após Posse de Lula”, do Estadão Verifica, a 6 de janeiro de 2023), e a boatos de que o atual mandatário não teria tomado posse de fato: o caso das checagens “Não, Augusto Heleno Não Assumiu a Presidência do Brasil no Lugar de Lula”, do Estadão Verifica, a 5 de janeiro de 2023, e “É #FAKE que Lula Foi Impedido de Entrar no Palácio da Alvorada e no Avião Presidencial”, do Fato ou Fake, a 4 de janeiro de 2023.
A Tabela 2 mostra que as coberturas das agências se concentraram em assuntos semelhantes durante os dois Governos. Em primeiro lugar, as duas iniciativas priorizaram a abordagem de políticas públicas - categoria que incluía, por exemplo, obras e serviços públicos, assim como regulamentações. No Estadão Verifica, esse tema compreende 21 textos durante o Governo Bolsonaro e 18 textos durante o Governo Lula. No Fato ou Fake, foram três textos durante o Governo Bolsonaro e seis durante o Governo Lula. No caso do Fato ou Fake, todas as checagens de 2023 classificadas nesse tema desmentem boatos de que Lula teria tomado medidas prejudiciais à população, como a suspensão do fornecimento de medicamentos por meio do programa “Farmácia Popular” e o fim dos aplicativos de entrega.
É interessante verificar, ainda, como assuntos específicos acabaram sendo recorrentes nas apurações de políticas públicas. Chama a atenção as que tratam da transposição do rio São Francisco. No Estadão Verifica, o tema foi destaque, por exemplo, em “Ponte Sobre Canal do São Francisco Mostrada em Vídeo Foi Entregue por Temer, não Bolsonaro”, a 4 de janeiro de 2022; e “Falsamente Atribuída a Bolsonaro, Chegada de Água do Rio São Francisco a Barra de Santana (PB) Ocorreu em 2018”, a 19 de fevereiro de 2022. No Fato ou Fake, as duas apurações sobre o assunto são de 2023: “É #FAKE que Canal de Transposição do São Francisco Mostrado em Vídeo Foi Fechado Após Início do Governo Lula”, a 23 de janeiro de 2023, e “É #FAKE que Lula Mandou Fechar Canal de Transposição do São Francisco em Salgueiro (PE)”, a 2 de fevereiro de 2023.
Checagens que tratavam de eleições e apoios políticos compreendem o segundo tema mais recorrente. No Estadão Verifica foram 12 textos em 2022 e três textos em 2023. Era esperado que, em ano eleitoral, as agências de checagem dessem mais atenção aos boatos relativos a eleições e apoios políticos. Porém, o Fato ou Fake apresentou duas apurações sobre o tema em 2022 e quatro em 2023. A título de ilustração, em 11 de janeiro de 2023, o Fato ou Fake apresentou “É #FAKE que Lula Não Foi Eleito Pelo Povo Brasileiro e que Apuração dos Votos Não É Confiável”.
Os boatos referentes a questões internacionais versaram, por exemplo, sobre relações com outros presidentes (“Meme Também Engana: É Falso que Putin Tenha Sido Convencido por Bolsonaro a Não Atacar a Ucrânia”, do Estadão Verifica, a 18 de fevereiro de 2022) e viagens dos mandatários (“É #FAKE que Lula Foi Expulso de Portugal”, do Fato ou Fake, a 26 de abril de 2023). Os materiais desta categoria compreendem três checagens do Estadão Verifica em 2022 e sete em 2023. No Fato ou Fake, foram duas em 2022 e uma em 2023.
Algumas checagens do Estadão Verifica eram extensas e visavam desmentir boatos que circulavam com uma série de informações. Desta forma, foram cinco registros com mais de um tema (dois em 2022 e três em 2023), situação que não foi verificada no Fato ou Fake. Dois temas tiveram poucos registros: COVID-19 (um de cada agência em 2023) e temas morais e religiosos (dois do Estadão Verifica em 2023). Um exemplo do registro de tema moral é a publicação “Vídeo de Lula É Compartilhado com Velocidade Reduzida Para Sugerir Efeito de Álcool” (Estadão Verifica, a 28 de março de 2023). Ademais, as duas agências apresentaram índices semelhantes de materiais que não se encaixavam nas categorias anteriores. Um exemplo é “Vídeo Engana ao Afirmar que Comandante do Exército Deu Recado a Lula e STF” (Estadão Verifica, a 10 de março de 2023).
A Tabela 3 apresenta as fontes utilizadas pelas checagens e em que medida as agências fazem declarações explícitas de apoio ao jornalismo. As duas agências analisadas utilizam o próprio jornalismo como fonte de forma mais recorrente do que outras fontes tradicionais das redações, como de representantes do Estado e da sociedade civil. O Estadão Verifica recorre a matérias de jornais e a outras agências de checagem em 43 textos em 2022 e em 45 textos em 2023. O Fato ou Fake o faz em oito textos em 2022 e em 10 textos em 2023. Para comparação, as fontes do Estado foram utilizadas, pelo Estadão Verifica, em 39 textos em 2022 e em 35 textos em 2023. No Fato ou Fake, foram somente dois textos em 2022 e 10 em 2023. E as fontes da sociedade civil (que incluem especialistas, organizações e cidadãos) foram utilizadas, pelo Estadão Verifica, em 25 textos em 2022 e em 22 textos em 2023. No Fato ou Fake, essas fontes compreendem cinco textos em 2022 e quatro em 2023. Constata-se, ainda, que a utilização de materiais do jornalismo como fonte não apresenta diferenças entre os dois períodos analisados - sendo proeminente tanto nas checagens durante o Governo Bolsonaro quanto de Lula.
Ressalta-se que 19 checagens tiveram apenas o jornalismo como fonte: foram 13 do Estadão Verifica (o que representa 13,5% das checagens da agência) e seis do Fato ou Fake (25% do total de checagens da agência). Um dos exemplos é “É #FAKE Imagem que Mostra Musk Comendo Pastel ao Lado de Bolsonaro” (23 de maio de 2022). A apuração explica que se trata de uma montagem, indicando uma matéria que mostra o real encontro entre Musk e Bolsonaro e outra matéria sobre a viagem de Musk para o Texas, logo depois do encontro.
A utilização de fontes da própria imprensa se dá de duas formas: por citações diretas, indicando o nome da empresa jornalística ou da agência de checagem; e de forma indireta, com destaque aos materiais jornalísticos em links. Enquanto no Estadão Verifica foram mais frequentes as citações diretas ao jornalismo, no Fato ou Fake foram mais comuns as citações indiretas. Destaca-se, ainda, que as duas agências recorrem frequentemente a coberturas jornalísticas de empresas às quais estão vinculadas. O Fato ou Fake prioriza o G1, também do Grupo Globo - foram 13 textos em que isso ocorreu (o que representa 54% do total de suas verificações). O Estadão Verifica apresenta 49 apurações com referências ao jornal O Estado de S. Paulo (isto é, 51,5% do total de suas apurações). Muitas delas, inclusive, referem-se diretamente à cobertura já realizada: “como já explicado pelo Estadão”, “conforme explicou o Estadão”.
Nesse sentido, é interessante observar que, ainda que as referências ao próprio grupo sejam significativas, as agências recorrem a outras fontes jornalísticas. Tal situação ocorre em três ocasiões no Fato ou Fake, mas a equipe do Estadão Verifica utiliza o recurso com frequência. Um exemplo é a checagem publicada em 13 de março de 2023, na qual há direcionamentos por links para Poder360, O Globo e Exame, além de indicação, dentro do texto, de que informações foram apuradas pelo jornal Estado de Minas. Em outra ilustração deste movimento, está o texto publicado em 25 de abril de 2023, que tem referências também à CNN, El País, BBC News, Folha de S. Paulo, Metrópoles e G1. Outra checagem (“Tuíte Confunde ao Mencionar Aumento de Salário de Bolsonaro e Ministros”, a 22 de maio de 2022) traz o seguinte trecho:
a postagem também critica a cobertura jornalística sobre o assunto, como se não tivesse havido repercussão. No entanto, na época do aumento, vários veículos trataram do tema, como O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Estado de Minas, Correio Braziliense, Valor, CNN e G1.
As agências também mencionam checagens já realizadas. Enquanto Fato ou Fake fez mais autorreferências a verificações próprias, o Estadão Verifica mencionou outras agências, como uma estratégia de reforço de que os materiais já tinham sido desmentidos por outros canais. A checagem “Post Imita Visual de Portal Para Espalhar Boato Sobre Lula e Conta de Luz” (27 de fevereiro de 2023), por exemplo, traz que: “esse conteúdo também foi checado por AFP e UOL Confere”.
O Estadão Verifica também se diferencia por uma defesa clara do jornalismo como fonte confiável. Foram 40 registros no período analisado (24 no Governo Bolsonaro e 16 no Governo Lula). Nesse sentido, se destacam os casos em que a agência apresenta como “assinatura” das checagens a sua afiliação à International Fact-Checking Network, como o que ocorreu em 5 de maio de 2022 no texto intitulado “Lei Rouanet: Postagem Engana ao Atribuir a Bolsonaro Processos Para Artistas Devolverem Valores”:
a associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta.
Verifica-se, portanto, que tal defesa do jornalismo é atrelada aos valores jornalísticos, com destaque para a transparência. Há, entretanto, outras formas pelas quais a argumentação aparece. Alguns exemplos são: “procure se informar por meio de veículos de imprensa profissionais, órgãos governamentais e instituições com credibilidade” (“Lula Foi Vacinado Contra Covid, ao Contrário do que Afirma Legenda de Vídeo”, a 6 de março de 2023), “o Estadão Verifica não localizou qualquer notícia em sites confiáveis sobre o atual governo ter decidido suspender deliberadamente o bombeamento de água” (“É Falso que Governo Lula Mandou Desligar Bombeamento de Água da Transposição do São Francisco”, a 20 de janeiro de 2023) e “se houvesse, de fato, implementação de banheiros unissex no país como política de governo, isso estaria sendo noticiado pela imprensa” (“É Falso que Lula Tenha Plano Para Implementar Banheiros Unissex no País”, a 29 de maio de 2023). No Fato ou Fake, a verificação “É #FAKE que Vídeo Mostre que Lula Não Recebeu Vacina Contra Covid”, a 28 de fevereiro de 2023, foi desmentida com a seguinte afirmação: “o evento foi amplamente coberto pela mídia profissional”.
A Tabela 4 indica o número de checagens que expressam claramente se os boatos estavam sendo compartilhados por Bolsonaro, Lula ou por seus apoiadores3. E, nota-se que parte significativa dos textos não estabeleceu essa conexão direta. Quando isso ocorreu, os casos tiveram como foco Bolsonaro e seus apoiadores. No Estadão Verifica, há 16 verificações associando o ex-Presidente ou seus apoiadores à disseminação do boato checado (10 em 2022 e seis em 2023). No Fato ou Fake, isso ocorre em três textos (um em 2022 e dois em 2023): por exemplo, a checagem “Parlamentares Mineiros Exibem Placas com Afirmações Falsas Contra Lula em Vídeo Denunciando rodovia” (13 de março de 2023), na qual os disseminadores são o deputado Nikolas Ferreira (Partido Liberal) e o senador Cleitinho (Republicanos), identificados pelo Estadão Verifica como apoiadores de Bolsonaro.
Lula e seus apoiadores foram indicados como disseminadores de desinformação em somente dois textos. Em 30 de março de 2022, o Estadão Verifica acusou grupos de apoio a Lula de compartilharem uma falsa matéria da Revista Veja que dizia que Bolsonaro teria chance zero de reeleição (“É Falso que ‘Veja’ Tenha Publicado Capa Dizendo que Bolsonaro Não Tem Chance de Reeleição”). E, em 24 de março de 2023, a agência publicou “Lula Alimenta Onda de Desinformação ao Acusar Moro de ‘Armação’ em Operação Contra o PCC”.
A última variável do livro de códigos verifica o agente prejudicado pelos boatos checados (Tabela 5). Em 2022, a maior parte das histórias checadas não era prejudicial a Lula ou Bolsonaro. No entanto, via de regra, as apurações visavam esclarecer que Bolsonaro não havia feito determinada obra ou que apoiadores exageravam em algum feito do Presidente. Exemplos desta situação são: “É #FAKE que Trem Entre Parauapebas (PA) e São Luís (MA) É Obra do Governo Bolsonaro”, do Fato ou Fake (07 de abril de 2022) e “Kit de Material Escolar Mostrado em Vídeo Não Foi Iniciativa do Governo Bolsonaro”, do Estadão Verifica (07 de março de 2022).
Ainda em 2022, no Estadão Verifica, oito textos desmentiam histórias que tinham como intenção descredibilizar Bolsonaro e cinco textos desmentiam histórias que atribuíam descrédito a Lula. No Fato ou Fake, contudo, houve mais desequilíbrio: foram checados somente dois boatos prejudiciais a Bolsonaro e 10 boatos prejudiciais a Lula. Chamam atenção, porém, os dados de 2023. As duas agências se empenharam em desmentir histórias desfavoráveis a Lula: foram 47 textos no Estadão Verifica e 13 no Fato ou Fake. Em resumo, as duas agências parecem ter se mobilizado na defesa do novo Governo.
6. Discussão e Considerações Finais
Partindo-se da premissa de que as organizações jornalísticas de comunicação têm buscado reafirmar sua autoridade epistêmica e de que os serviços de checagem têm sido mobilizados para esse fim (Ferracioli, 2021; Graves, 2018), este trabalho investigou como duas iniciativas de empresas mainstream - o Estadão Verifica, do jornal O Estado de S. Paulo, e o Fato ou Fake, do Grupo Globo - vêm sendo utilizadas para legitimar o jornalismo como fonte segura de informações ao longo de diferentes governos. A literatura demonstra que as agências de checagem procuram confrontar eventos e discursos divulgados através de fontes oficiais, bases de dados oriundas de órgãos do Estado ou de universidades (Becker, 2019; Fernández-Roldán et al., 2023). No entanto, a análise aqui realizada mostrou que o próprio jornalismo acaba por ser uma fonte fundamental para os checadores, em um processo de “retroalimentação”. Os conteúdos da imprensa foram utilizados como fonte em mais de 90% dos textos do Estadão Verifica e em 75% dos textos do Fato ou Fake.
Em alguns casos, a imprensa configura-se, inclusive, como única fonte utilizada. Ou seja, os verificadores não buscam dados oficiais, declarações de agentes do Estado ou da sociedade civil para reafirmar a sua avaliação sobre o evento checado. Não são raros, ainda, os momentos em que os repórteres das agências reproduzem falas e dados oficiais a partir de materiais jornalísticos já publicados. Já foi demonstrado que outra iniciativa brasileira, o projeto Comprova, também utiliza com frequência fontes do próprio jornalismo (Marques et al., 2024). Porém, não superando as fontes do Estado e da sociedade civil, como ocorreu com o Estadão Verifica e o Fato ou Fake.
Nesse sentido, uma reflexão adicional torna-se pertinente. Levando-se em conta que as agências de checagem buscam reafirmar sua credibilidade e autoridade enfatizando a transparência em sua cobertura (Becker, 2019; Seibt & Fonseca, 2019), a autorreferência ao jornalismo como fonte recorrente de informações é passível de questionamento. Ainda que a utilização demonstre o caminho de construção da checagem, não se pode ignorar que a informação proveniente de fonte jornalística já foi apurada anteriormente - muitas vezes, inclusive, sem a transparência de percurso que checadores indicam como muito importante (Christofoletti, 2021) - e, portanto, já passou por um processo de enquadramento. Dito de outra forma, a informação já foi processada por outros filtros editoriais (Santos & Maurer, 2020), o que pode comprometer a transparência do processo de verificação dos boatos.
O reforço de que os esclarecimentos publicados têm credibilidade passa, também, pela indicação de que outras agências de checagem apresentaram os mesmos resultados.
Esses dados estão alinhados com a literatura, que identifica uma postura mais colaborativa das agências de checagem em comparação com o trabalho usual das redações (Graves & Konieczna, 2015). Contudo, acaba-se criando um procedimento tautológico que pode indicar falhas no processo de verificação dos fatos. Além disso, esses dados demonstram um afastamento da checagem das rotinas de produção, que orientam a atividade profissional, uma vez que a apuração é inerente ao trabalho jornalístico (Silva et al., 2022).
A utilização do próprio jornalismo é, portanto, o primeiro aspecto a ser destacado em relação às maneiras pelas quais as agências de checagem reafirmam sua autoridade profissional. Nesse ponto, é importante retomar o período analisado: os Governos de Lula e Bolsonaro. De acordo com Marques (2023), a imprensa brasileira sofreu mudanças durante o Governo de Bolsonaro diante da postura adversária que o ex-Presidente e seus apoiadores mantinham com as instituições jornalísticas. Como já mencionado acima, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (2022) acusou um aumento de casos de agressão aos profissionais de imprensa durante o período. Sendo assim, com o intuito de defenderem seu trabalho, as empresas de comunicação passam a se autorreferenciar não apenas em espaços de opinião, como os editoriais, mas também na seção noticiosa (Marques, 2023). E, o que a análise aqui realizada demonstra é que o mesmo comportamento ocorre nos textos de checagem de fatos. Chama atenção, no entanto, que as agências permanecem atuando da mesma maneira após o fim do Governo de Bolsonaro. Lula e seus correligionários também possuem um histórico de críticas à imprensa brasileira - que é acusada, por exemplo, de ter apoiado o impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff (Albuquerque, 2021). No entanto, Lula iniciou o seu terceiro mandato estabelecendo uma relação mais amistosa com os jornalistas. Mesmo assim, a retórica de defesa da autoridade profissional se manteve - indicando que ela está associada a um fenômeno de deslegitimação do jornalismo que é mais amplo e vai além de governos (Waisbord, 2018).
Os resultados demonstram, ainda, que outras práticas de verificação ao longo dos meses estudados também seguiram praticamente inalteradas. Em primeiro lugar, as duas agências se dedicaram à cobertura de assuntos semelhantes durante os dois Governos (priorizando a checagem de boatos sobre políticas públicas). O mesmo ocorreu com a atribuição de etiquetas pelas equipes - enquanto Fato ou Fake registrou todas as histórias checadas como “fakes”, a maior parte das histórias checadas pelo Estadão Verifica são considerados falsas ou enganosas (em 2022 e em 2023, ou seja, independente do Governo). Em resumo, a análise indica que a operacionalização das checagens segue um processo sistematizado. Em outras palavras: o caminho para determinar se uma informação é falsa, enganosa ou verdadeira não modifica as fontes mais recorrentemente citadas.
Carlson (2016) esclarece que o discurso metajornalístico passa, de fato, por transformações contínuas. Ao mesmo tempo, o autor enfatiza que, por vezes, os profissionais da área preferem proteger paradigmas existentes, deixando de confrontar os problemas e as contradições da profissão. Ao que parece, esse fenômeno vem ocorrendo com a checagem de fatos do jornalismo mainstream. As empresas brasileiras de comunicação vêm constantemente sendo desafiadas pelo público (Newman et al., 2023). E, como resposta, os jornais brasileiros investem em uma retórica corporativista que impede uma reavaliação profunda de seus protocolos profissionais.
A retórica de que o jornalismo é fundamental na disseminação de informações seguras também aparece em declarações mais claras. As agências afirmam que os leitores devem buscar fontes seguras de informação na confirmação de boatos e que se um evento é verdadeiro, ele será noticiado pela imprensa. No Estadão Verifica, tal reforço ocorre, ainda, através do registro de sua afiliação à International Fact-Checking Network e, consequentemente, ao seu compromisso com “apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta” (“Posts Atribuem a Bolsonaro Fabricação de Lanchas Escolares dos Governos Lula e Dilma”, 16 de fevereiro de 2022).
Se as práticas de checagens com relação às fontes, temas e reafirmação da legitimidade jornalística não se modificaram ao longo dos meses, pode-se dizer que as diferenças no que concerne à atuação das agências diante de Bolsonaro e Lula são expressivas. É verdade que a maior parte dos textos não indica claramente se os boatos estavam sendo compartilhados pelos dois atores políticos ou por seus apoiadores - diferentemente do que ocorre com o Comprova, que, entre 2018 e 2021, deu ênfase ao compartilhamento de teorias conspiratórias por apoiadores do ex-Presidente (Marques et al., 2024). No entanto, quando tal identificação foi realizada, os correligionários de Jair Bolsonaro eram culpabilizados. Além disso, mais da metade das publicações das duas agências desmentiu boatos prejudiciais a Lula. E, quando a informação disseminada não afetava diretamente nenhum dos dois agentes políticos, frequentemente, o objetivo era esclarecer políticas públicas erroneamente atribuídas ao Governo de Jair Bolsonaro. Esses resultados são condizentes com a literatura nacional, que investigou a maneira como a imprensa brasileira procurou responder às retóricas de ataque do ex-Presidente (Fontes, 2022; Marques, 2023), além de mostrarem que a adversarialidade da imprensa (Clayman et al., 2007) direcionada a Bolsonaro não vem ocorrendo no terceiro mandato de Lula.
Ressalta-se que esta pesquisa não se dá sem limitações. É preciso considerar que o recorte proposto teve como base a identificação dos nomes dos presidentes nos títulos das checagens - possivelmente, o número de publicações que os citam somente nos textos seja maior. Além disso, sugere-se que novas pesquisas comparem a atuação de agências de checagem vinculadas ao jornalismo mainstream daquelas independentes.