1. Introdução
A infecção pelo vírus do papilomavírus humano (HPV) está diretamente associada a uma parcela significativa de neoplasias como as cervicais, anogenitais e orofaringe (Martel et al., 2017). Esses tipos de câncer compõem 4,5% de todos os diagnósticos globais de neoplasias, totalizando cerca de 630.000 novos casos anualmente (Roman & Aragones, 2021). Além do risco de mortalidade e efeitos colaterais do tratamento para o câncer, os custos para o sistema de saúde são altos: uma média de 140.000 US$ por paciente nos primeiros dois anos de tratamento para câncer de orofaringe (Lairson et al., 2017). Para enfrentar esse problema, têm-se adotado tanto o rastreamento quanto a vacinação contra o HPV, além de campanhas informativas sobre os comportamentos de risco relacionados às infecções sexualmente transmissíveis. Dentre essas estratégias, a vacinação destaca-se pela eficácia comprovada na redução das infecções orais, cervicais, vulvar e vaginais pelo HPV (Timbang et al., 2019).
Porém, um dos grandes desafios para a implementação efetiva dos programas de imunização é estabelecer um diálogo sustentado em fatos e informações confiáveis e equilibradas entre todos os setores importantes para o sucesso da iniciativa (Shen et al., 2014). Por sua presença constante e abrangente na vida cotidiana das pessoas, que buscam cada vez mais por informações sobre saúde, entretenimento e interação (Oliveira, 2014), a mídia de notícias é considerada um importante setor para orientar o debate, traduzir os conhecimentos científicos sobre vacinas para um público mais amplo e auxiliar as autoridades e os usuários na tomada de uma decisão informada (Catalán-Matamoros, 2015). Por sua capacidade de construir uma descrição da realidade e de reconfigurar as experiências cotidianas, identidades e valores, a mídia de notícias exerce influência na sociedade, na cultura e nas questões relacionadas à saúde (Lerner, 2014).
A mídia, por seu papel fiscalizador em democracias multipartidárias, concentra poder de formar opinião e imagens, de influenciar agendas e os poderes constituídos (Fonseca, 2004; Singer, 2000). A relevância decorre da sua função de mediação entre os políticos e os cidadãos, sendo que estes últimos confiam e dependem do jornalismo para se informar sobre as políticas públicas e os políticos, que, por sua vez, são sensíveis às ondas de notícias que podem constranger e comprometer a sua imagem, de seus partidos e dos governos. Nessa perspectiva, o jornalismo detém um grande poder simbólico ao gerenciar e dar visibilidade às demandas sociais e reivindicações de grupos; ao ponto de ser tão significativo que pode cessar certas violações de direitos sociais (Gomes, 2018). Além disso, a mídia cada vez mais se sobressai com as inovações tecnológicas informacionais, o que lhe confere capacidade na esfera pública e transnacional (Fonseca, 2004).
Estudos sobre jornalismo em saúde destacam a crescente importância do tema entre as notícias veiculadas neste século, confirmando o papel crucial da mídia na tradução de conhecimentos científicos para o público e na influência sobre decisões de saúde e comportamento (Schwitzer et al., 2005; Viswanath, 2006). Além disso, a qualidade do jornalismo é uma preocupação constante, especialmente com o surgimento das mídias sociais, que facilitam a rápida e ampla disseminação de notícias falsas, intensificando a necessidade de métodos para analisar e mitigar os efeitos negativos da desinformação (Azevedo, 2012; Guerra, 2003). Alguns jornalistas consideram que sua responsabilidade na cobertura de informações sobre saúde é igual à cobertura de outros assuntos, sem levar em conta as consequências e as necessidades e questões sociais de forma ampla e equilibrada. Entretanto, essa abordagem pode resultar em um jornalismo de baixa qualidade e causar prejuízos ao público (Schwitzer et al., 2005). Falhas e acertos da cobertura têm caracterizado o jornalismo em saúde sujeito ao sensacionalismo, à banalização, à parcialidade e à imperícia dos temas abordados. Acresce que o conteúdo dos temas cobertos tem recebido um tratamento cada vez mais uniforme pelos diferentes veículos sem uma abordagem crítica por nenhum deles (Azevedo, 2012). Diante desse quadro, e do excesso de informações propiciado pela transformação digital, alguns pesquisadores têm reclamado melhorias no jornalismo em saúde para aprimorar sua qualidade, credibilidade e relevância, principalmente em países onde a comunicação de massa é elevada e a literacia em saúde é baixa (Sharma et al., 2020).
No Brasil, a vacina contra o HPV foi incorporada ao calendário do programa nacional de imunizações em 2014, com o propósito de fortalecer as ações de prevenção do câncer cervical, anogenital e orofaríngeo. O objetivo era vacinar adolescentes dos nove até aos 15 anos (Ministério da Saúde, 2019). A introdução desta vacina ocorreu em um contexto de elevada taxa de mortalidade por câncer do colo do útero no Brasil: entre os anos de 2012 e 2016, foi observado um crescimento de 6,86 para 7,18 na faixa etária dos 50-54 anos, considerando o total da população feminina por faixa etária (Tallon et al., 2020).
A introdução dessa vacina foi exitosa no primeiro semestre de 2014, ao atingir uma média de cobertura nacional de 94,4%, no entanto, com uma queda importante no segundo semestre (40,8%). Esse declínio foi atribuído à divulgação de relatos de eventos adversos nos meios de comunicação após a vacinação em escolas na cidade de Bertioga, cidade litorânea do estado de São Paulo (Mauro et al., 2019).
Apesar do investimento na comunicação oficial durante a segunda fase da campanha de vacinação, as respostas do Governo brasileiro vieram tardiamente e a mídia expôs os riscos da vacina e deu espaço ao debate público que envolvia questões religiosas e preocupações sobre os efeitos da vacina na saúde dos adolescentes (Quevedo et al., 2016)
O tema HPV é complexo para a mídia porque associa duas questões intrinsecamente interligadas: as infecções sexualmente transmissíveis e o câncer (Krakow & Rogers, 2016). Além disso, os jornalistas nem sempre conseguem prover o público de material adequado para propiciar um quadro objetivo da realidade por meio de informação precisa e linguagem compreensiva.
Diante destes aspectos, torna-se crucial examinar o debate público propiciado pela mídia impressa. Estudos sobre a ação da mídia conduzidos em países de baixa renda são praticamente desconhecidos pela literatura científica internacional (Catalán-Matamoros & Peñafiel-Saiz, 2019). O objetivo deste estudo foi descrever as estratégias discursivas das narrativas veiculadas pela mídia impressa a fim de elucidar o seu papel no debate público durante a introdução da vacina contra o HPV, entre 2014 e 2018.
2. Metodologia
Realizou-se pesquisa, de abordagem qualitativa, por meio da análise de discurso com base em Michel Pêcheux (1975/1995) e Eni Orlandi (2020), buscando investigar as narrativas difundidas pela mídia impressa. Partiu-se da premissa segundo a qual a produção simbólica encontrada nas mídias representa um substrato relevante para a compreensão da circulação social dos sentidos e para a apreensão do discurso social nas suas relações com a história e as crenças dominantes; e que a análise de discurso é uma abordagem que permite a compreensão dos enunciados disseminados pela mídia como construções sociais (Pachi Filho, 2013). O estudo foi estruturado em três etapas: a coleta dos dados e a construção do corpus, a identificação e codificação dos núcleos de sentido dos excertos, e, por fim, a interpretação dos discursos. Identificou-se, com base na expressão “vacina contra o HPV”, matérias e textos publicados entre 2014 e 2018 nas seguintes fontes: Folha de S. Paulo, site UOL (Universo Online), os jornais Gazeta, O Dia, Extra Classe. O exame das matérias permitiu identificar notas públicas emitidas pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (2012, 2017), uma ação pública movida pelo Ministério Público de Uberlândia1 e notas de repúdio a essa ação pública emitidas por entidades de classe, como a Sociedade Brasileira de Pediatria (2015) e a Sociedade Brasileira de Imunizações (2015). Além disso, a Sociedade Brasileira de Imunizações e a Sociedade Brasileira de Pediatria, em conjunto com a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, publicaram uma “Carta aos Médicos”, reforçando a importância da vacinação (Sociedade Brasileira de Imunizações et al., 2015), o que expressa a abrangência alcançada pelo debate público.
O período selecionado correspondeu à inclusão da vacina no calendário nacional brasileiro até a queda na cobertura vacinal do HPV. O critério de seleção das fontes baseou-se na composição de um conjunto de veículos socialmente diversificado. Para a escolha das publicações jornalísticas, usamos informações do Instituto Verificador de Comunicação (IVC, 2023)2 sobre a propagação da mídia impressa no país entre 2014 e 2018. Segundo o IVC, a Folha de S. Paulo possuía a maior tiragem e ocupava o primeiro lugar no ranking nacional. O Gazeta e O Dia, dos estados do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, respectivamente, além de tradição e longevidade, eram importantes veículos de informação de caráter local.
O Gazeta estava em segundo lugar em seu estado e O Dia estava em sexto lugar no ranking de publicações no estado do Rio de Janeiro. O site de notícias UOL foi selecionado devido à sua relevância e alcance no cenário de mídia digital no Brasil no período descrito. Segundo os dados da Comscore de 20143, quase metade da audiência online brasileira (46%) passava ao menos duas horas por dia na internet, em atividades relacionadas a interação social, seguida de acesso a músicas e notícias (IAB Brasil, 2014). O Extra Classe foi selecionado em razão da orientação editorial direcionada a públicos específicos, no caso professores de escolas privadas do Rio Grande do Sul. A campanha de introdução da vacina contra o HPV ocorreu dentro do espaço escolar, o que tornou os professores agentes fundamentais para o seu apoio e divulgação.
As notas públicas emitidas pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade foram utilizadas por seguintes motivos: pela presença de representantes da entidade em diversas reportagens jornalísticas, entre 2014 e 2018; pela relevância desta organização para os médicos vinculados à atenção básica em saúde; e pelo seu protagonismo no debate público. Além disso, a Sociedade Brasileira de Pediatria e a Sociedade Brasileira de Imunizações, que representam profissionais e especialistas no assunto, foram incluídas entre as fontes de dados na ação pública movida pelo Ministério Público Federal em Minas Gerais, que por requerer à Justiça Federal a proibição da distribuição da vacina contra o HPV em todo o país, ganhou importante repercussão na imprensa escrita.
Na segunda etapa foi realizada a codificação e a categorização dos dados. Iniciouse com a leitura de cada fonte, “combinando uma atenção flutuante e familiarização” (Lima et al., 2017, p. 3) com o conteúdo da narrativa, consideradas como formações discursivas empregadas pelos sujeitos dotadas de indicações de sentido representativas de valores e estruturas de poder presentes em uma dada sociedade num determinado contexto (Orlandi, 2020). Excertos que mencionavam a vacina do HPV foram extraídos, preservando-se sua materialidade linguística. Em seguida, buscou-se identificar padrões e diferenças quanto à consistência a fim de discernir paráfrases, polissemias e interdiscursos. Tal procedimento permitiu a classificação dos discursos em duas categorias: a favor e contra a vacina do HPV. Em cada categoria, foram criadas subcategorias (núcleo de sentido e estratégias de persuasão) para capturar a diversidade de perspectivas dos sujeitos, a disputa de interesses e de valores, e destilar a tensão dos argumentos sobre a vacina, interpretada como objeto simbólico, que produz sentidos e está “investido de significância para e por sujeitos” (Orlandi, 2020, p. 24). Após o exame das formações discursivas, o processo de interpretação foi concluído na terceira etapa com a identificação das propriedades do discurso referidas ao seu funcionamento, isto é, os efeitos de sentidos produzidos pelo material simbólico nas suas relações com a história e as crenças dominantes. A literatura científica sobre o papel da mídia na mediação do debate público complementou as bases teóricas utilizadas na interpretação dos resultados.
3. Resultados
Com base no material selecionado - cinco publicações jornalísticas, uma ação pública e três notas emitidas por entidades de classe -, foram extraídos excertos a favor e contra a vacinação do HPV.
Os excertos contra a vacinação estão apresentados na Tabela A1 (Apêndice), permitindo a sua análise detalhada, dos núcleos de sentidos e das estratégias persuasivas. Eles foram emitidos por mais de um médico, por um juiz do Ministério Público Federal e uma representante do grupo Sou Contra a Vacina HPV. Ao analisar esses excertos, é possível identificar alguns núcleos de sentidos desfavoráveis à vacina, tais como: dúvidas quanto à segurança e eficácia da vacina; ponderação entre risco aos eventos adversos e os benefícios da vacina; a noção de que a vacina não demonstra benefício, segurança ou vantagem econômica; risco de eventos adversos graves; defesa da individualização do risco no uso da vacina; interesses econômicos dos fabricantes da vacina.
Para promover tais discursos desfavoráveis à vacina contra o HPV, os sujeitos empregaram diversas estratégias persuasivas. Os médicos utilizaram sua autoridade profissional para ampliar a incerteza científica quanto à eficácia e à segurança da vacina, destacaram casos isolados de reações graves em outros países para enfraquecer as evidências de segurança e apontaram a eficácia limitada da vacina frente à variedade de subtipos do vírus do HPV e em pessoas que já tiveram relações sexuais. Adicionalmente, questionaram a credibilidade dos estudos científicos sobre a vacina e criticaram a massificação das campanhas de vacinação para propor uma abordagem que respondesse às necessidades individuais. Recorreu-se inclusive à própria experiência pessoal com a educação das filhas.
O magistrado destaca sua autoridade e responsabilidade como juiz para garantir que o poder público e suas instituições tomem decisões conforme o direito à saúde das mulheres. Ele argumentou que, mesmo que os estudos comprovem a eficácia e segurança da vacina, é necessário impedir o fornecimento da mesma se houver qualquer dúvida sobre seus efeitos, justificando sua posição com base no princípio da precaução. Para sustentar os argumentos desfavoráveis à vacina, o magistrado se apoia nos relatos de uma mãe sobre as reações graves de sua filha e na expertise de um neurologista, que cita um caso com um quadro neurológico grave após o uso da vacina contra o HPV, aponta interesses econômicos de pesquisadores envolvidos com os fabricantes da vacina e a falta de fundamento científico na sua aprovação.
E, por fim, a administradora do grupo Sou Contra a Vacina do HPV combinou um discurso com experiências pessoais e a orientação de uma profissional de saúde para reforçar o argumento de autoridade de grupo, visando criar um ambiente seguro para conversar sobre a vacina, especialmente para pais com dúvidas sobre a vacina. Para aumentar o impacto desse discurso, estabeleceu uma ligação próxima com o público ao se referir como “amigas”, além de assumir a responsabilidade de informá-las sobre a vacina.
Na Tabela A2 (Apêndice) encontram-se os excertos que são favoráveis à vacina do HPV, os núcleos de sentido e as estratégias persuasivas. Os excertos favoráveis à vacina do HPV foram emitidos por autoridades de Governo, tanto em âmbito federal (órgão ligado ao Ministério da Saúde), como em âmbito estadual (órgãos ligados ao governo do estado do Rio de Janeiro e do estado do Rio Grande do Sul); por uma autoridade científica e consultor da Organização Mundial de Saúde (OMS); e por representantes das seguintes entidades médicas e científicas: Sociedade Brasileira de Pediatria, Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, Sociedade Brasileira de Infectologia e a Sociedade Brasileira de Imunizações.
Na Tabela A2, os núcleos de sentidos favoráveis à vacina do HPV ressaltam a eficácia e segurança comprovada, sua relevância para a saúde pública, sua equivalência a outras vacinas quanto aos eventos adversos, que a vacinação não é compulsória, e que não estimula a atividade sexual precoce.
Para promover os núcleos de sentido sobre a eficácia e segurança das vacinas, as autoridades governamentais se fundamentaram em estratégias persuasivas que ressaltaram a eficácia duradoura da vacina e sua capacidade protetiva ao nível individual e coletivo. Apontou-se a adoção bem-sucedida da vacina em países desenvolvidos e a defesa dos direitos das mulheres. Utilizaram-se discursos oriundos de organizações de saúde renomadas para consolidar a confiança na vacina, incluindo a apresentação de evidências científicas que demonstram a proteção significativa contra o câncer de colo do útero. No caso do professor de ginecologia, a estratégia persuasiva foi fundamentada na apresentação de dados científicos confiáveis para comprovar a eficácia da vacina e no argumento de autoridade emitido por organizações internacionais de saúde, como a OMS e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Com isso, buscava enfrentar as contestações decorrentes da falta de informações científicas.
Por fim, algumas entidades médicas e científicas uniram-se de forma unânime para sensibilizar tanto os profissionais de saúde quanto a sociedade sobre a confiabilidade da vacinação. Contestaram os argumentos apresentados na ação pública do Ministério Público Federal ao destacar a discrepância entre a ação atual, episódica, que não era condizente com o histórico da instituição.
4. Discussão
Os resultados mostraram as estratégias subjacentes aos discursos favoráveis e desfavoráveis emitidos pelos principais atores durante a implementação da vacina do HPV, indicando como a mídia impressa promoveu e mediou esse debate público. Os achados mostraram que os discursos favoráveis e desfavoráveis adotaram estratégias narrativas com sinais trocados sobre temas similares.
Conteúdos sobre a eficácia, a segurança e os custos econômicos dominaram o debate público, com cada lado trazendo sua própria interpretação dos conhecimentos científicos acumulados. De um lado, críticos levantaram preocupações sobre a segurança da vacina e questionaram a sua eficácia a longo prazo, citando relatos de reações adversas graves em outros países. Um médico do grupo de médicos de atenção primária (GM1) argumentou:
levantam dúvidas sobre a segurança da vacina e dizem que faltam evidências científicas de que vá mesmo proteger a mulher contra o câncer de colo uterino ( … ) países como Espanha, EUA e Japão, há relatos de reações graves, como paralisias e mortes.
Por outro lado, as narrativas favoráveis destacaram os benefícios econômicos e de saúde pública da vacinação. Um representante de entidade de imunizações enfatizou: “o efeito da vacina na redução dos casos de câncer e na mortalidade ocorrerá a longo prazo. O tumor é a quarta causa de morte por câncer em mulheres - são 9.000 por ano”. Também se observaram narrativas sustentadas na ideia de que as pesquisas científicas não são conclusivas quanto à eficácia e segurança, e que, portanto, os custos econômicos não compensam, como segue o trecho de um médico (M3):
qualquer intervenção médica deveria cumprir dois requisitos: comprovar que faz bem e comprovar que não faz mal ( ... ). Os gestores acrescentariam um terceiro item: se é financeiramente razoável. ( ... ) A resposta é negativa em todos os quesitos. ( ... ) Do surgimento de lesões até o aparecimento de um câncer, leva-se, em média, 30 anos para se saber se a vacina protege as mulheres. Os estudos devem levar, no mínimo, este mesmo tempo.
E, por fim, argumentos embasados em evidências científicas e instituições reputadas, como OMS, OPAS e Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, que demonstraram a eficácia, a segurança e a economicidade da intervenção foram postos no debate. Um professor de ginecologia e consultor da OMS afirmou:
o Ministério da Saúde adotou a campanha baseada na boa cobertura mundial apontada pela OMS e OPAS. A vacina é ainda indicada pelo maior órgão de controle que existe nos Estados Unidos, a FDA. “Ela evita lesões que podem se malignizar” ( ... ). Ela [vacina] terá uma proteção de 80% a 90% em relação ao câncer e outras doenças relativas ao HPV, ( ... ) o mais importante é o benefício de se evitar o câncer em mulheres.
Instituições internacionais, como a OMS, são conhecidas pela tradição no fortalecimento de programas de imunização, especialmente em países em desenvolvimento, para promover e coordenar a cooperação técnica de forma a aumentar a cobertura vacinal e introduzir novas vacinas (Homma et al., 2011).
Apesar dos esforços da mídia impressa de mediar os discursos dos atores de ambos os grupos, o debate público não alcançou uma profundidade significativa, pois os veículos de mídia se limitaram a divulgar as narrativas, mesmo diante da possibilidade de acessar uma diversidade de dados e evidências científicas disponíveis a fim de colaborar para o juízo do público sobre que parte dos argumentos eram fatos e quais eram opiniões. Com isso, a mediação do debate público pela mídia não foi capaz de distinguir ciência de pseudociência, que é entendida como um falso conhecimento que tenta passar por ciência, e transformou evidências científicas em opiniões, perdendo com isso a oportunidade de contribuir para a elucidação da eficácia e da segurança da estratégia de saúde pública.
Poucos estudos analisaram o debate público propiciado pela mídia impressa para elucidar o seu papel durante a introdução da vacina do HPV no Brasil, nem o papel da mídia comercial tem sido o foco das pesquisas. Um estudo examinou as estratégias de comunicação do Ministério da Saúde e as reações sociais veiculadas pela mídia impressa, mas os pesquisadores não investigaram as estratégias discursivas adotadas e o papel desempenhado pelos veículos de comunicação em torno da campanha de vacinação contra o HPV (Quevedo et al., 2016). Outro estudo apontou a falta de um debate aprofundado sobre os direitos dos cidadãos e o funcionamento do Sistema Único de Saúde nos jornais, os quais priorizaram a espetacularização das notícias negativas com viés biomédico e medicalizador (Moraes et al., 2017).
A relação entre as políticas de saúde pública e os cidadãos é mediada, em muitas situações, pela comunicação. Segundo Gomes (2018), a mídia contribui para a definição de prioridades sociais (agendas) e para o enquadramento definido pela interpretação predominante sobre uma determinada questão. Além disso, o autor destaca que a mídia fornece uma mediação cognitiva e, frequentemente, emocional entre cidadãos e grupos de cidadãos de distintas partes da sociedade e as políticas públicas, em ambos os vetores - ascendente e descendente.
Na implementação da vacina contra o HPV não se observou a promoção de um debate público que propiciasse o aprofundamento das perspectivas desfavoráveis e favoráveis sobre a vacina, abordando os aspectos controversos e críticos dessas visões a fim de discernir fatos de opiniões. Essa lacuna na abordagem da mídia impressa pode não ter oferecido respostas satisfatórias à questão central que versa sobre a eficácia e a segurança da vacina do HPV, o que pode ter contribuído para a redução da adesão da população à vacina. Portanto, a mediação da mídia neste episódio denota as limitações das empresas de notícias para, mais do que estimular o debate público, codificar e difundir informações que possibilitem uma maior compreensão da sociedade sobre as políticas de saúde e os processos relacionados à saúde-doença (Oliveira, 2014).
Ainda que a cobertura abrangente do HPV possa ser trabalhosa devido à sua complexidade e à necessidade de traduzir relatórios científicos densos em informações compreensíveis para o público, o que se espera da comunicação é um movimento de aprofundamento do debate. Além de buscar apoio em fontes, como especialistas e autoridades vinculadas a diferentes áreas de conhecimento e instituições ligadas ao tema, garantindo assim a pluralidade de vozes, a credibilidade da notícia e distribuição adequada do conhecimento (Langbecker & Catalan-Matamoros, 2021), esse movimento implica interpretar informações, considerando os dados iniciais, e, ao mesmo tempo, buscando por outras informações ao longo do processo. Assim, a partir dos dados mais relevantes se elabora a notícia. Para tal percurso são exigidas três competências: a cognitiva, que consiste em conhecer os fatos e aplicar critérios de relevância; a de conduta, que se refere a verificar a veracidade dos fatos com objetividade e manter isenção; e, por fim, a discursiva, que diz respeito à capacidade de traduzir o conhecimento em discurso noticioso (Guerra, 2003). No episódio deste estudo, a mídia se limitou a divulgar as narrativas a favor e contra a estratégia de saúde pública, transformando fatos resultantes de evidências científicas em opiniões controversas.
Uma revisão abrangendo 24 estudos sobre a queda nas taxas das vacinas HPV e tríplice viral em países desenvolvidos, como Estados Unidos, Canadá, e Nova Zelândia, mostrou que a mídia impressa fez uso de fontes que expressavam opiniões em detrimento de fatos, e divulgou erros factuais e lógicos por meio de informações imprecisas na cobertura de vacinas (Catalán-Matamoros & Peñafiel-Saiz, 2019). Essa distorção de dados científicos gera desinformação e é muitas vezes decorrente da editoria que prioriza a divulgação da opinião do veículo, sustentada ou não, para atender interesses ocultos associados a políticos influentes e aos anunciantes.
O compromisso com os anunciantes em detrimento da finalidade precípua de assegurar o direito das pessoas à informação verdadeira e autêntica, proveniente de uma dedicação honesta para os fatos, visando a formação de um quadro compreensivo do mundo, leva a que a mídia de notícias enquadre a discussão das questões de saúde sob o contexto de um mercado de consumo de serviços de saúde, no âmbito da vida privada, ligado à subjetividade das pessoas. Essa individualização também é veiculada por meio da espetacularização do sofrimento e do relato de experiências pessoais, nos quais se cria um espaço de intimidade para ser mais “autêntico” e “legítimo” (Lerner, 2014, p. 159) devido ao fato de que a notícia viabiliza lucro (Kuscinsky, 2002).
Neste estudo, essa dimensão individualizante é perceptível nos sujeitos desfavoráveis que, para suscitar dúvidas sobre a eficácia e os riscos aos eventos adversos, recorreram a relatos pessoais, como o de um médico e pai, e ao depoimento de uma mãe, conferindo substância ao posicionamento contra a vacina, na tentativa de enfraquecer as evidências relacionadas à sua segurança e eficácia. Sugere-se que a trajetória particular de um determinado indivíduo tem a mesma importância para as decisões de saúde e incorporação de tecnologias de controle das infecções do que o conjunto de conhecimentos e evidências acumulado sobre a estratégia de saúde pública. Um estudo sobre a cobertura da mídia de notícias sobre as vacinas contra sarampo, caxumba e rubéola mostrou que esse falso equilíbrio contribuiu para a incerteza do público em relação à sua segurança (Speers & Lewis, 2004). Um debate falsamente equilibrado, ou seja, desprovido de um contexto adicional sobre onde reside a força das evidências, sugere que os argumentos opostos são igualmente bem apoiados pelas evidências, quando esse não é o caso.
A ênfase em narrativas biográficas reforça o apelo à dimensão emocional e, com isso, reduz a perspectiva e o potencial da notícia de dar visibilidade a fatos sociais. Diante desta superficialidade em tratar as informações, os veículos de comunicação acabam contribuindo para alimentar o medo e o pânico, produzir desinformação e gerar uma repercussão distorcida no cotidiano das pessoas (Moraes et al., 2017). Erros de interpretação dos fatos e dos acontecimentos podem ocorrer eventualmente (Oliveira, 2014). Cabe ressaltar que a superficialidade e o desinteresse da imprensa em aprofundar o debate sobre temas de relevância para a sociedade não se limitam apenas à saúde (Singer, 2000).
No presente caso, relativo a um programa específico de imunização, essas limitações da mídia impressa são particularmente danosas porque contribuem para a erosão da confiança da população nas políticas de saúde enquanto um mecanismo social para endereçar os problemas públicos, e também na vacinação enquanto uma estratégia de saúde pública organizada para o controle das neoplasias associadas à infecção pelo HPV. Outrossim, a distorção das evidências científicas contribui para a desqualificação da ciência na medida em que a desloca para a arena dos relatos e opiniões controversas. Um estudo na Espanha mostrou a existência de um número significativo de jornalistas científicos que faziam pouco caso da ameaça potencial implícita decorrente da pseudociência nos meios de comunicação social (Cortiñas-Rovira et al., 2015).
Alguns especialistas consideram que a comunicação é uma área dos direitos da cidadania pouco desenvolvida no Brasil, devido à existência de um oligopólio midiático no sistema de telecomunicações e do jornalismo. Alguns dos seus proprietários também atuam em outros setores econômicos, tais como financeiro, imobiliário, educacional, agropecuário, transportes e saúde, o que tem impactado a agenda pública, podendo omitir ou distorcer informações em favor de seus interesses. E qualquer esforço de debater esses conflitos de interesses e desconcentração do poder é enquadrado como autoritarismo ou opressão, pois a comunicação brasileira está assentada no paradigma político liberal (Santos et al., 2022).
Portanto, o debate público é um processo multifacetado e abrangente, envolvendo não apenas os meios de comunicação, mas também uma diversidade de atores sociais, incluindo cidadãos, organizações da sociedade civil, acadêmicos e o próprio Estado com suas políticas de saúde pública (Fuks, 2000). Os atores encontram canais propensos para que determinado assunto esteja presente nos espaços públicos e, com isso, influenciam significativamente a mediação da mídia. Embora a mídia desempenhe um papel central na divulgação e interpretação de informações, não é o único determinante na formação das opiniões públicas e na configuração do debate.
Diante desse contexto, estudiosos defendem que as autoridades de saúde sejam transparentes nas suas decisões ao avaliar os riscos potenciais derivados da implementação das estratégias e das tecnologias empregadas na saúde (Dixon & Clarke, 2013), e que a mídia impressa seja mais profissional, no sentido de uma atuação mais crítica e responsável na mediação do debate público na área da saúde (Azevedo, 2012).
5. Considerações Finais
Este estudo investigou o papel da mídia impressa na formação do debate público sobre a vacina contra o HPV no contexto da queda da cobertura de vacinas de rotina no Brasil. Por meio da análise do discurso, a pesquisa examinou os núcleos de sentidos e as estratégias persuasivas dos sujeitos na produção jornalística que moldaram o conteúdo das narrativas em torno das vacinas, incluindo notas públicas de fontes institucionais que ganharam repercussão na mídia impressa. Os achados mostraram que os discursos favoráveis e desfavoráveis à vacina contra o HPV adotaram estratégias narrativas com sinais trocados sobre temas similares.
Frente aos resultados apresentados, pode-se concluir que o debate público mediado pela mídia impressa, mesmo diante da possibilidade de acessar a uma diversidade de dados e evidências científicas disponíveis a fim de colaborar para o juízo do público sobre que partes dos argumentos a favor e contra eram fatos e que partes eram relatos de experiências, se restringiu à divulgação de um quadro de opiniões controversas, e não contribuiu para elucidação da eficácia e da segurança da estratégia de saúde pública. Com isso, a mídia impressa caminhou em direção a seu simulacro e se afastou da sua natureza original de um jornalismo crítico-informativo, o que deve ser um ponto de grande preocupação para as autoridades de saúde pública.
Uma das limitações deste estudo diz respeito à quantidade de fontes investigadas. Embora um número significativamente maior de fontes tenha produzido notícias sobre a vacina contra o HPV durante o período, a seleção das fontes teve por propósito compor um conjunto de veículos socialmente diversificado que permitisse identificar os sujeitos individuais e coletivos que participaram do debate público, mediado pela mídia impressa, na condição de especialista, magistrado, e representante de entidade coletiva (grupo antivacina, agência sanitária, entidade científica, associação profissional). Notas públicas de fontes institucionais que sustentaram as matérias jornalísticas foram incluídas no corpus do material para permitir uma apreensão mais acurada do sentido de cada discurso. Com isso, a trama de discursos e as estratégias persuasivas foram elucidadas, propiciando um quadro que ajudou a ampliar a compreensão sobre o fenômeno investigado.
Trabalhos futuros poderiam expandir a análise para incluir mídias digitais e redes sociais, bem como explorar a resposta do público às diferentes formas de cobertura. Essa abordagem mais abrangente poderia oferecer uma visão mais completa sobre como diferentes plataformas contribuem para a formação das opiniões sobre vacinas e outras políticas de saúde.