Han, B.-C. (2014). A sociedade da transparência (M. S. Pereira, Trad.). Relógio D’Água. (Trabalho original publicado em 2012)
O volume acentuado de informação e de comunicação não é garantia automática de um adequado esclarecimento sobre a realidade. Há até quem sustente que “quanto maior é a informação que se mobiliza, mais intrincado se torna o mundo” (p. 62). É nesta posição que se situa Byung-Chul Han, um crítico da sociedade contemporânea. “Está demonstrado que mais informação não leva necessariamente a melhores decisões” (p. 15).
Algo semelhante havia sido explanado pelo filósofo italiano Gianni Vattimo, em 1989, numa obra com título semelhante, A Sociedade Transparente. Estranha-se a falta de referência, quer pela proximidade do título, quer pelos pensadores citados por ambos. Vattimo (1989/1992) preconiza que a preponderância dos meios de comunicação não caracteriza a sociedade como “mais ‘transparente’, mais consciente de si, mais ‘iluminada’, mas como uma sociedade mais complexa, até caótica” (p. 10).
A Sociedade da Transparência é um ensaio breve (73 páginas), na linha de outras obras do autor já publicadas, em Portugal, na coleção Antropos da Relógio D’Água. A versão portuguesa do original alemão (publicado em 2012) está disponível desde setembro de 2014, com tradução de Miguel Serras Pereira.
Desde então, mais de 20 ensaios estão traduzidos e publicados em Portugal, alguns dos quais dedicados a temáticas próximas da comunicação, como: A Crise da Narração (original alemão de 2023, publicado em 2024), Infocracia e Não-Coisas (originais de 2021, publicados em 2022), No Enxame (original de 2013, publicado em 2016).
Com A Sociedade da Transparência, foram lançados em Portugal, na mesma data, dois ensaios: A Sociedade do Cansaço e A Agonia de Eros. Podemos dizer que se trata de uma “trilogia” de iniciação ao pensamento do autor. É tal a ligação entre elas que, sendo curtas e retiradas as afirmações enfáticas repetidas como soundbite, poderíamos ter apenas uma publicação com a mesma perspetiva crítica sobre a sociedade. A repetição entre capítulos também acontece em obras diferentes, como neste exemplo: “o explorador é, ao mesmo tempo, o explorado. O ator e a vítima coincidem. A exploração por si mesmo é mais eficaz do que a exploração alheia, porque é acompanhada por um sentimento de liberdade” (p. 71); “o explorador é o explorado. O sujeito é, ao mesmo tempo, ator e vítima. A exploração de si mesmo é muito mais eficaz do que a alheia, porque é acompanhada pelo sentimento de liberdade” (Han, 2012/2014a, p. 17).
Byung-Chul Han é um filósofo sul-coreano (Seul, 1959), radicado na Alemanha desde o final dos anos 80 do século passado, país onde iniciou a formação filosófica e teológica, cujo pensamento vai partilhando em pequenos ensaios, desde 2010, ano em que lançou o original A Sociedade do Cansaço, o primeiro da “trilogia”. Fez os estudos filosóficos na Universidade de Friburgo e formação em Literatura e Teologia na Universidade de Munique. Nesta universidade, o jovem estudante de metalurgia, que, pouco depois dos 20 anos, emigrou da Coreia do Sul para a Alemanha, completou o doutoramento, em 1994, com uma tese sobre Martin Heidegger, autor convocado, com frequência, nas suas obras. Pensador transdisciplinar, as suas reflexões são também inspiradas pela Escola de Frankfurt. Tornou-se, entretanto, um dos mais famosos filósofos da contemporaneidade. Entre as razões do sucesso, pode-se apontar um estilo próprio potenciado pela brevidade das obras, com “frases ágeis e incisivas, por vezes extremamente assertivas, que parecem surgir do papel como rajadas de uma metralhadora” (Sibilia, 2018, para. 9).
Este ensaio aborda o tema da transparência, antes de mais associada à liberdade de informação, agora uma característica que perpassa todos os âmbitos da sociedade, sobre a qual exerce um poder transformador. De tal modo assim é que a transparência se torna um atributo qualificativo da sociedade. Hoje, é tal a violência exercida pela transparência que o ser humano se torna “elemento funcional de um sistema” (p. 13).
Não se esgota na liberdade de informação ou no combate à corrupção, a transparência altera a velocidade da comunicação e uniformiza as dinâmicas sociais, a “exigência omnipresente da transparência” (p. 11) transforma a sociedade num “inferno do igual” (p. 17), procura a “eliminação de todas as relações assimétricas” (p. 32). Na medida em que elimina o estranho (diferente), a transparência acelera a comunicação, porque o outro, não igual, transporta consigo a negatividade e a ambivalência que se opõe à transparência. Do mesmo modo, porque não podem tornar-se operacionais, a transparência elimina todos os rituais e cerimónias “porque são um obstáculo à aceleração dos ciclos da informação, da comunicação e da produção” (p. 48).
A partir da teoria do panóptico de Bentham, formula a sua teoria do panóptico digital, que anula “a distinção entre centro e periferia, distinção constitutiva do panóptico de Bentham” (p. 67). Agora, “cada um e todos controlam todos e cada um” (p. 69), coincidem o ator e a vítima, o explorador e o explorado, não há separação entre o interior (dentro) e o exterior (fora). Carente de perspetiva, a vigilância deixa de estar ancorada num único ponto, mas em todos os vigiados que, note-se o paradoxo, controlados uns pelos outros, “creem estar em liberdade” (p. 68), porque, ao contrário do que se supõe, “a vigilância não se realiza como ataque à liberdade” (p. 72). Voluntários e ativos são os mesmos vigiados que colaboraram na construção e na conservação do panóptico digital, “na medida em que eles próprios se exibem e se desnundam” (p. 69).
Han mostra-se determinado em assinalar os equívocos paradoxais da transparência. Primeiro, “o homem nem sequer para si mesmo é transparente” (pp. 13-14), como também “é impossível a instauração da transparência interpessoal” (p. 14). Outros malefícios são a aniquilação da espontaneidade e da intuição, do pensamento e da espiritualidade, do prazer, da fantasia e do encanto, da confiança, da alteridade e da distância, da narratividade e da memória, do aroma das coisas e do tempo, da contemplação e da transcendência. De tanto buscar a transparência, torna-se uma sociedade “diáfana sem luz. ( ... ) O meio da transparência não é uma luz, é antes uma radiação sem luz, que, em vez de esclarecer, tudo penetra e tudo torna transparente” (pp. 59-60). Outro paradoxo reside na eliminação da distância sem, contudo, promover a proximidade, porque “a transparência desdistancia tudo até o tornar uniformidade desprovida de distância - nem próxima nem longínqua” (p. 27).
A sociedade da transparência é uma sociedade caracterizada pelo excesso de exposição e de exploração, desenvergonhada e despida, pornográfica, monocromática e despolitizada, desconfiada e anestésica, obscura e obscena, desprovida de metamorfose e de sedução, de verdade e de aparência, de poesia e de música, de sentido e de santidade. Apesar de ter, no elenco dos seus principais valores, a produção e o rendimento, é uma sociedade vazia e morta: “só o vazio é completamente transparente” (p. 61); “só o que está morto é totalmente transparente” (p. 15).
Os nove capítulos, através dos quais denuncia os múltiplos equívocos da transparência e nos quais se percebe o esforço de encadeamento entre eles, acrescentam outras tantas declinações próprias da sociedade hodierna: a sociedade positiva, a sociedade da exposição, a sociedade da evidência, a sociedade porno, a sociedade da aceleração, a sociedade íntima, a sociedade da informação, a sociedade da revelação, a sociedade do controlo.
O excesso de positividade é o ponto de partida que sustenta os principais equívocos desta sociedade da transparência. Ela “manifesta-se, em primeiro lugar, como uma sociedade positiva” (p. 11), desprovida de negatividade e de pensamento. O pensamento não é transparente, “o interior do pensamento é habitado por uma negatividade, que permite fazer experiências que o transformam” (p. 48). Do mesmo modo, o tempo fica “destituído de todo o destino e de todo o acontecimento” (p. 11) e as imagens tornam-se “pornográficas”, desprovidas de “amplitude temporal” (p. 45), de silêncio e de contemplação.
Ao contrário do que aparenta, “torna o homem incapaz de fazer alguma coisa” (Han, 2010/2014b, p. 55), a positividade é uma das causas do cansaço próprio desta sociedade: “um cansaço da potência positiva” (p. 55). Este ponto de partida no ensaio A Sociedade do Cansaço é assinalado de novo nesta segunda parte da “trilogia”, A Sociedade da Transparência: “as perturbações psíquicas, como o esgotamento, o cansaço e a depressão, que teremos de atribuir ao excesso de positividade” (p. 17).
Com frases curtas, muitas delas paradoxais, a exigir uma pausa na cadência de leitura, Byung-Chul Han convoca diversos autores para sustentar ou contrapor os seus pontos de vista: Heidegger, Hegel, Nietzsche, Humboldt, Baudrillard, Simmel, Benjamin, Schmitt, Barthes, Lacan, Foucault, Agamben, Sennett, Platão, Rousseau, Bentham, entre outros. A facilidade com que Han convoca tão diversos pensadores torna evidente a falta de outros, por exemplo: conclui o quarto capítulo com a convicção de que “a sociedade porno é uma sociedade do espetáculo” (p. 45), sem referir la société du spectacle (a sociedade do espetáculo), termo cunhado por Guy Debord (1967/2012) na obra do mesmo nome, cujo original remonta a 1967 e publicada em Portugal em abril de 2012; o último capítulo intitula-se “A Sociedade do Controlo” sem referir Gilles Deleuze que, em 1990, celebrizou o referido termo (Sibilia, 2018).
Apoiado nas provocações que despertam a reflexão do leitor, Byung-Chul Han esboça caminhos alternativos, a percorrer em sentido inverso aos da sociedade da transparência. A denúncia dos malefícios é, em simultâneo, uma tentativa de apontar uma espécie de antídoto capaz de purificar o excesso provocado pela ideologia da transparência.