1. Introdução
Depois de hesitações, a Organização Mundial de Saúde decreta a Covid-19 como uma pandemia, a 11 de março de 2020. Nessa altura, o novo coronavírus tinha infetado mais de 118 mil pessoas em 114 países e provocado já 4291 mortes. A primeira morte por SARS-CoV-2 aconteceu na China a 10 de janeiro de 2020. A 24 de janeiro de 2020, o coronavírus chega à Europa. Portugal registou as duas primeiras pessoas infetadas a 2 de março de 2020. A 16 de março, o Governo português anunciou a suspensão das atividades presenciais nos estabelecimentos de ensino, das creches ao ensino superior. A 18 de março, o Presidente da República decretava o estado de emergência por 15 dias, renovado a 2 e 17 de abril de 2020, estendendo-se, assim, até 2 de maio de 2020. Nesse tempo, o país viveu em confinamento, sempre reportado pelos media noticiosos, que assumiram uma orientação dos cidadãos para comportamentos preventivos da doença, procurando constituir-se como uma frente de combate à pandemia, importante para ajudar o país a ‘ficar em casa’.
Neste artigo, questiona-se se “a cobertura noticiosa da pandemia provocada pelo SARS-CoV 2 foi ocasião para se evidenciarem alguns sinais de mudança no jornalismo” a fim de equacionar possíveis alterações estruturais no campo jornalístico, que podem vir a ter consequências em termos de mudança de paradigma na história do jornalismo português. Para isso, analisa-se um inquérito feito à classe jornalística sobre o trabalho desenvolvido a propósito do SARS-CoV-2, bem como a cobertura feita por dois jornais diários portugueses (Público e Jornal de Notícias) em três períodos: entre 18 de março e 2 de maio de 2020; 9 de novembro e 23 de dezembro de 2020 e 15 de janeiro e 26 de fevereiro de 2021, num total de 2.933 peças noticiosas que incluem 6.350 referências a fontes de informação. Percorrendo esse período, constata-se que em tempo de confinamento do país houve uma assinalável mobilização das redações em torno do noticiário sobre a pandemia: mudaram-se ritmos de produção noticiosa (muitos jornalistas ficaram em teletrabalho e os outros sujeitos a restrições de movimentos); alteraram-se alinhamentos; introduziram-se novos temas; alargaram-se as fontes de informação; abriram-se plataformas para conversar à distância com certos interlocutores; desenvolveram-se formatos mais centrados na literacia em saúde; a informação de fontes científicas era muita e nem sempre fiável, pois a comunidade científica estava perante um novo vírus, cujo comportamento era desconhecido, o que exigiu aos jornalistas um esforço acrescido na seleção e confirmação das fontes de informação. A história dos media e, particularmente, a história do jornalismo, é também a compreensão e problematização da evolução das práticas profissionais, bem como a análise e sistematização do papel do campo discursivo do jornalismo na construção da esfera pública. É certo que a perceção de mudanças estruturais e a delimitação de novos paradigmas (Charron e Bonville, 2012) exigem distanciamento, até por envolverem um conjunto complexo de fatores - evoluções tecnológicas com impacto nos dispositivos de mediação e no quotidiano dos profissionais (Kawamoto, 2003; Vos & Heinderyckx, 2015); mudanças nos contextos político-sociais, com impactos diretos e indiretos na constituição e regulação profissional (Fidalgo, 2005; Lopes, 2015), etc. - identificados por especialistas deste campo de estudos (Correia & Baptista, 2007; Tengarrinha, 2013; Sousa, 2001, 2008 e 2011). Não deixa, porém, de ser importante construir uma narrativa do presente (Motta, 2005), assente em estudos de caso particulares, que permitam dar conta de sinais de mudanças, de inflexões, derivas e alterações em curso. O estudo de caso que se apresenta neste artigo, partindo da pergunta acima enunciada, possibilitará documentar alterações recentes na práxis jornalística em Portugal, decorrentes de um acontecimento disruptivo, como é a pandemia de COVID-19, com
impactos a diversos níveis na reconfiguração do jornalismo.
2. Enquadramento teórico: a comunicação em saúde e a importância das fontes jornalísticas em contextos pandémicos
O surgimento do vírus SARS-CoV-2, detetado em finais de dezembro de 2019, constitui uma emergência de saúde pública que requer uma gestão muito controlada, em termos de comunicação de risco em saúde. O desenvolvimento rápido do vírus levou as pessoas a procurar informação de saúde que as ajudasse a adaptar comportamentos individuais (Paakkari & Okan, 2020), a esclarecer dúvidas e, por conseguinte, a limitar os contágios. À medida que o vírus se multiplicava, também a informação em torno da pandemia se multiplicava por diversos canais. Um pouco por todo o mundo, as pessoas estavam recolhidas nas suas casas e os media, nas suas várias formas, tornaram-se a fonte primária de informação de saúde (Mheidly & Fares, 2020). Neste cenário, o jornalismo enfrentava novos desafios, nomeadamente no acesso às fontes de informação e na relação entre estas e os jornalistas; alteração de rotinas de produção; aumento da circulação de informação falsa e desinformação, apenas para citar alguns exemplos.
No contexto de uma crise de saúde pública, a comunicação assume-se como um elemento essencial - isto mesmo já tinha sido demonstrado em surtos anteriores, como a epidemia de Ébola (Goldberg et al., 2015) ou de Zika (Vraga & Jacobsen, 2020), em 2014 e 2015-2016, respetivamente. De facto, este tipo de crises sanitárias vem reforçar a centralidade da informação como uma ferramenta que pode ajudar a reduzir a incerteza e a ansiedade (Casero-Ripollés, 2020), mas também como um elemento crítico na própria disseminação da doença (Goldberg et al., 2015). Assim, são vários os autores que reconhecem a importância da comunicação em saúde como uma arma no combate à Covid-19 (Finset et al., 2020; Fielding, 2020), e os media constituem-se como aliados indispensáveis nas respostas públicas a emergências de saúde, operando como mediadores entre governos, instituições de saúde e os públicos (Mheidly & Fares, 2020). A natureza complexa e desconhecida da pandemia catapulta os media para um papel de relevo, funcionando como “os olhos do público”: “os canais de media tornam-se janelas através das quais o público procura informação correta, factos científicos sólidos, decisões governamentais e reações do público em geral” (Mheidly & Fares, 2020). Dada a extensa continuidade temporal da situação pandémica, a cobertura mediática que começou por alicerçar-se em valores-notícia como o inesperado, o impacto e a abrangência do acontecimento, passou a ser ditada também pela continuidade. Os picos de atenção suscitados por surtos cada vez mais frequentes ou outros focos de noticiabilidade alternavam com as próprias rotinas instituídas pelas fontes de informação oficiais, quer políticas, quer científicas. Tal ficou bem patente com os boletins diários e conferências de imprensa promovidos pelo Ministério da Saúde e pela Direção-Geral da Saúde e também pelos encontros regulares promovidos no Infarmed. Neste processo de construção de uma informação rigorosa, as fontes assumem, pois, um papel central. Vários autores demonstraram, ao longo das últimas décadas, através de trabalhos empíricos, que as fontes oficiais detêm o domínio do espaço noticioso, impondo a sua influência sobre as rotinas das redações (Araújo, 2016; Fernández-Sande et al. 2020; Gans, 1980; Lopes et al. 2011; Magalhães, 2012;Ribeiro, 2006; Santos, 1997).
O processo de seleção de fontes é socialmente relevante, na medida em estabelece quem tem voz e quem é remetido para as margens silenciosas. Quem fala define o que chega à sociedade, podendo ainda influenciar como a informação é interpretada pela opinião pública (Fernández-Sande et al., 2020). É fácil, portanto, deduzir o valor estratégico decorrente da ocupação do espaço mediático, que alimentou até uma “revolução das fontes”. Ou seja, as fontes organizaram-se e profissionalizaram-se, assumindo - com competência - a gestão da informação que veiculam aos jornalistas. Apelidadas de “sofisticadas” (Ribeiro, 2006), estas fontes aproveitam a passividade dos media, assumindo as rédeas das propostas informativas que diariamente caem nas redações, rentabilizando o seu peso e credibilidade junto dos jornalistas e, sempre que possível, gerindo estrategicamente as mensagens transmitidas em benefício próprio.
No campo da saúde, as fontes de informação são sobremaneira vitais. Quando o tema é saúde, os jornalistas dependem em larga medida dos subsídios informativos que lhes chegam das fontes oficiais (tais como o Governo ou as autoridades sanitárias) ou outras (Hospitais, Universidades ou revistas científicas) (Araújo, 2016; Lopes et al., 2011; Magalhães, 2012; Tanner, 2004; Wilkie, 1996). Investigação realizada neste domínio permite concluir que, mais do que uma “hierarquia das fontes”, existe uma “confraria”, composta por fontes masculinas, urbanas, nacionais e associadas a organizações com poder e prestígio social, cujo discurso tende a reproduzir-se de forma contínua, excluindo vozes alternativas (Lopes, 2011).
O grupo de fontes auscultadas na área da saúde restringe-se ainda mais do que noutras editorias devido a dois fatores principais - as dificuldades inerentes à linguagem médico-científica, a falta de formação e especialização dos jornalistas (Marcinkowski, et al., 2014; Wallington, et al., 2010) e o esvaziamento das redações. Confrontados com informações sensíveis, como as da saúde, e sem tempo para tratar a informação com cuidado, confirmando dados e consultando outras fontes, os jornalistas não resistem à utilização sistemática dos press releases prontos a usar, sobretudo quando os assuntos a tratar fogem ao seu domínio (Magalhães, 2020). Como advoga Silva, “quanto menos informação existir sobre um assunto, mais os jornalistas tendem a aceitar o material cedido pelas fontes”, especialmente quando esse material vem acompanhado de dossiês de informação, imagens e grafismos, que rapidamente possam alimentar a máquina noticiosa (Silva, 2005, p. 204).
A estes fatores acrescem os constrangimentos de tempo e de espaço, bem como os interesses e as pressões provenientes dos grupos que os órgãos de comunicação integram e que, condicionam, o relacionamento entre as fontes de informação e os jornalistas. Juntos, estes fatores dão vantagem às fontes, especialmente àquelas que possuem as ferramentas necessárias para influenciar a agenda mediática, através do fornecimento de conteúdos de saúde que cumpram os requisitos jornalísticos, em termos de forma, de conteúdo, e nos timings certos (Araújo, 2016; Conrad, 1999; Davis, 2000; Len-Rios, et al., 2009; Lopes, et al., 2011).
No âmbito do processo de seleção das fontes na cobertura de temáticas sobre saúde, as fontes especializadas de informação (como investigadores e profissionais de saúde) desempenham um papel relevante, sobretudo quando a saúde é perspetivada pelo ângulo da Ciência (Conrad, 1999; Hanson, et al., 2017; Nelkin, 1987; Nisbet, et al., 2003; Stroobant, et al., 2018). A sociedade outorga às fontes especializadas um elevado grau de credibilidade. Consequentemente, os jornalistas reconhecem-lhes independência face ao poder, pois a sua autoridade é fruto do seu mérito profissional e científico, e dependente de um trabalho de continuidade (Magalhães, 2020). Assim, as fontes especializadas são usadas como “fontes de autoridade” (Briggs & Hallin, 2016), contribuindo para a qualidade do noticiário, através da redução de traços de exagero nas notícias de saúde (Bossema, et al., 2019), por exemplo.
Neste enquadramento, a atual pandemia de Covid-19 tem constituído um desafio para os jornalistas e para as fontes, destacando-se aqui as de natureza oficial, com responsabilidade sobre a gestão da crise sanitária. Os media noticiosos estão sempre em busca de informação atualizada e, não raras vezes, as fontes não têm capacidade de resposta, até porque se trata de campos com vivências temporais opostas: os jornalistas escrevem ‘em emergência’, as fontes, sobretudo as científicas, gerem o tempo necessariamente de outro modo. Os jornalistas dependem de fontes de informação para fazerem o seu trabalho e, no caso de uma emergência de saúde pública, a natureza predominantemente técnico-científica da informação faz aumentar essa dependência (Arroyave, 2012; Tanner, 2004). Para que os jornalistas não fiquem reféns das fontes oficiais, a solução passa pela busca de novas fontes, sendo que, é aqui que as fontes especializadas podem ter um papel determinante a desempenhar.
3. Estudo empírico
3.1 Abordagem metodológica
A cobertura noticiosa da pandemia provocada pelo SARS-CoV 2 foi ocasião para se evidenciarem alguns sinais de mudança no jornalismo? Foi esta a preocupação que motivou esta investigação, que visa analisar a cobertura jornalística da pandemia de Covid-19 a partir de media noticiosos generalistas em Portugal, e das perceções dos jornalistas relativamente a essa cobertura e às suas próprias práticas profissionais. Para responder a este objetivo, definiu-se uma metodologia quantitativa com recurso a duas ferramentas: 1) um inquérito por questionário a jornalistas, para avaliar as suas perceções sobre o impacto desta pandemia nas rotinas profissionais e, de forma mais abrangente, no jornalismo português; e 2) uma análise de conteúdo das notícias sobre Covid-19 publicadas em dois diários nacionais, um de referência (Público) e outro de linha mais popular (Jornal de Notícias).
O inquérito por questionário foi desenvolvido com recurso à plataforma Limesurvey e disponibilizado por administração indireta aos jornalistas. Os dados foram recolhidos entre 11 e 29 de maio de 2020, e foram tratados, codificados e categorizados com recurso ao programa de análise estatística SPSS. Para a seleção dos jornalistas, listaram-se todos os órgãos de comunicação social (OCS) de âmbito nacional. A partir daí, os profissionais de cada OCS foram estratificados por categorias mutuamente exclusivas: jornalistas, jornalistas de saúde ou de ciência, editores/coordenadores e diretores. Pese embora esta segmentação, a seleção dos indivíduos seguiu a amostragem não probabilística, pois embora se tenha solicitado a participação a todos, responderam aqueles que voluntariamente entenderam integrar a amostra. Foram validados 200 inquéritos, com a seguinte distribuição: jornalistas, 114; jornalistas de saúde ou de ciência, 18; editores/ coordenadores, 50; e diretores de informação, 18. O inquérito procurou atender às seguintes dimensões: i) impacto do teletrabalho, ii) organização das redações/secções, iii) preocupação com a literacia em saúde, iv) escolha das fontes de informação e v) eventuais mudanças que o estado de emergência possa ter provocado no jornalismo.
Para a realização da análise de conteúdo foram escolhidas as versões digitais pagas dos dois jornais acima referidos, selecionados tendo em consideração os dados da Associação Portuguesa de Controlo de Tiragem relativos à circulação digital paga, no último quadrimestre de 2020.
Para garantir uma abordagem transversal e significativa, foram delimitados três intervalos de tempo - de 18 de março a 2 de maio de 2020, de 9 de novembro a 23 de dezembro de 2020, e de 15 de janeiro a 26 de fevereiro de 2021. Estes correspondem a períodos em que o estado de emergência esteve em vigor em Portugal, constituindo, assim, intervalos temporais comparáveis. Para a seleção dos casos consideraram-se todos os textos noticiosos publicados nas secções dos jornais intituladas “Primeiro Plano” (Jornal de Notícias) e “Destaque Covid-19” (Público). Estas secções foram escolhidas pela sua natureza passível de uma análise comparativa, na medida em que correspondem ao que é sinalizado pelas publicações como mais relevante, no repertório noticioso de cada edição. Os dados recolhidos foram tratados, codificados e categorizados com recurso ao programa de análise estatística SPSS, de acordo com uma grelha de análise previamente elaborada e testada por um grupo de investigadoras (Lopes, et al., 2011; Araújo, 2016; Magalhães, 2020), adaptada ao contexto pandémico através de técnica de amostragem, durante a análise das peças publicadas no primeiro estado de emergência.
A análise das peças (foram autonomizadas as infografias e outros géneros “explicadores” e foram excluídos os textos de opinião presentes nas secções analisadas, bem como as peças com apenas um parágrafo de extensão) declinou-se nos parâmetros e variáveis que constam na Tabela 1:
Relativamente às fontes de informação, os objetivos foram perceber i) o tipo de fonte a que os jornalistas mais recorrem; ii) o estatuto das fontes. Para tal, foram usadas as variáveis que constam na Tabela 2, sendo as fontes de informação agrupadas de acordo com o seu estatuto. No caso das fontes de natureza humana, temos as fontes oficiais (todas aquelas que ocupam cargos públicos, de nomeação ou eleição como, por exemplo, o Primeiro-Ministro ou a Diretora-Geral da Saúde); fontes profissionais com cargo (aquelas que, pela sua formação, se constituem como especialistas em determinada área e representam um grupo, como é o caso do bastonário da Ordem dos Médicos ou do presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública); fontes profissionais sem cargo (aquelas que, pela sua formação, se constituem como especialistas em determinada área, mas falam em nome individual como, por exemplo, um enfermeiro ou um nutricionista); representantes de associações profissionais; não profissionais com e sem cargo (onde se incluem os militantes de partidos ou membros de associações de doentes, com e sem cargo respetivamente); e os cidadãos. Quanto ao tipo de fonte, temos ainda a categoria de não humanas, onde se incluem os media e a Web 2.0 (páginas não noticiosas).
O corpus de análise é composto por 2.933 textos noticiosos com 6.350 referências a fontes: 1.850 textos foram publicados durante a primeira fase de emergência nacional, com 4.048 citações ou referências a fontes; 457 foram publicados na segunda fase, apresentando 857 referências, e 626 publicados na terceira fase, com
1.445 referências a fontes de informação.
3.2 Resultados e discussão
O jornalismo deu alguns sinais de mudança que se evidenciam nos artigos noticiosos e que são antecipados pelo resultado do inquérito, feito à classe, a propósito da cobertura jornalística da pandemia. Podem estes ser traços resultantes de um contexto particular, suscetíveis de desaparecer. Não obstante, há um conjunto de razões que sustentam a hipótese inicial: pela extensão deste período pandémico, que se prolongou por mais de um ano, e enraizou certas práticas; pela maior visibilidade de certos temas e fontes que criaram uma opinião pública de certa forma duradoura e interessada nessa tematização e consequente discussão; pela inovação, utilidade e repercussão pública que este jornalismo reuniu. No entanto, este período também é atravessado por traços mais críticos, o principal dos quais tem que ver com a descontinuidade da força do noticiário sobre a pandemia ao longo de 2020, que coincidiu com um certo relaxamento no cumprimento de medidas de prevenção por parte da população e, consequentemente, com um agravamento dos números de infetados e mortos. Também a tematização passou por uma certa oscilação na agenda noticiosa, dificultando assim a consolidação de um debate público.
3.2.1. Um noticiário que enfraquece à medida que o vírus ganha força e que se reabilita no clímax da pandemia
A 18 de março de 2020, dia em que Portugal decretava o estado de emergência a vigorar a partir do dia seguinte e já com o país confinado, contavam-se 642 infetados e registava-se a segunda morte; a 2 de maio de 2020, dia em que termina a primeira fase do estado de emergência, os números divulgados foram relativos à totalidade de casos infetados detetados desde o início desta pandemia (25.190 casos) e de registo de mortes (1.023). Nesse tempo, os dois jornais diários aqui em análise publicaram 1.850 textos noticiosos, com 4.058 citações de fontes. O segundo período do estado de emergência começou a 9 de novembro de 2020, dia em que Portugal atingiu o máximo diário do número de mortes, 63, e registava 4.096 novos casos. Desde março somavam-se 183.420 pessoas infetadas e 2.959 mortos. A 23 de dezembro de 2020, os registos apresentavam 4.602 novos casos e 89 mortes, contabilizando-se no país, desde março, 383.258 pessoas infetadas e 6.343 óbitos. Nesta fase, publicaram-se em ambos os diários 457 textos jornalísticos, com 857 referências diretas a fontes de informação. A terceira vaga tem como referência o dia 15 de janeiro de 2021, data a partir da qual Portugal fez um confinamento severo, registando-se só nesse dia 10.663 pessoas infetadas e 159 mortes. Estudaremos esta fase, contando o mesmo número de dias, portanto, até 26 de fevereiro de 2021, dia em que o país registou 1.027 infetados e 58 mortos. Nesse período, os mesmos jornais publicaram 626 artigos com 1.445 referências a fontes de informação. Nessa altura, Portugal apresentava o seguinte retrato desde o início da pandemia: 817.530 infetados, 16.768 mortes.
Entre o final da primeira vaga e a segunda vaga, houve uma diminuição substancial do número de notícias e um agravamento da pandemia: à medida que o vírus foi progredindo, a noticiabilidade foi perdendo força. Esta é uma das explicações para o facto de Portugal ter evoluído de um país que, na primeira vaga, conseguiu um confinamento rápido e um certo controlo da pandemia para um dos países que, no início de 2021, registou o mais grave número de mortos. Generalizava-se uma fadiga pandémica, vivia-se uma crise económica que se agudizava desde março de 2020, mas havia igualmente uma opinião pública menos mobilizada para o tema. Decretado o segundo confinamento a partir de 15 de janeiro de 2021, com idênticas medidas às de março de 2020, a noticiabilidade aumentou. Rapidamente as redações privilegiaram esta tematização. E também depressa houve uma resposta dos portugueses, embora dessa vez o número de peças noticiosas não tivesse tido a expressividade da primeira fase, nem tão pouco o confinamento tivesse sido tão rigoroso como em março de 2020. Como atesta o painel PSE Mobilidade1, houve mais pessoas a circular no espaço público, mas mesmo assim a maior parte ficou confinada a sua casa. Consequência: depressa o país voltou a ter os números de infetados e de mortes dentro de um certo controlo. E isso também se deveu a uma população bem informada que foi aderindo às restrições. Deste período fica a seguinte constatação: ainda que tivessem dispersado a agenda temática por outros campos, em tempo de emergência as redações rapidamente voltaram a centrar-se naquilo que foi o seu propósito no início da pandemia: fixar o noticiário no tema e dotar os cidadãos de informação pertinente para comportamentos de prevenção.
3.2.2. Uma tematização que valoriza temas periféricos
Em tempos de pandemia, a agenda noticiosa mudou. Vários campos ganharam grande visibilidade, principalmente o da Saúde, mas também os da Ciência, da Educação e da Economia. Temas que, até então, estavam na periferia da seleção noticiosa, iam sendo puxados para o topo dos alinhamentos, ora porque correspondiam a evoluções de um conhecimento científico que despertava interesse por poder ser a chave no ataque à pandemia, ora porque refletiam retratos de um Portugal confinado que subitamente enfrentava outro estilo de vida que importava retratar e enquadrar. Percorrendo a noticiabilidade na imprensa diária em análise neste artigo, sobres-
sai uma certa inconstância no que à tematização diz respeito, como se constata pela Tabela 3, mas essas oscilações, em termos de frequência, são normais dada a evolução da doença. Sendo sempre campos com uma certa visibilidade, a Sociedade e a Economia tiveram destaques e enfoques diferenciados. Com Portugal fechado em casa, a imprensa, num primeiro momento, importou-se muito em conhecer como viviam as pessoas e quais os seus reais problemas. Esse interesse pela vida em casa regressou no segundo confinamento, particularmente pelas questões do teletrabalho e ensino a distância. Essa vida era sobretudo salientada pelos piores motivos: falou-se bastante dos mais novos, a braços com um ensino remoto que se fazia sem meios; e dos mais velhos que, nos lares, iam sucumbindo em número significativo. Também a Economia teve enfoques distintos: na primeira fase, este campo foi muito valorizado, havendo uma atenção particular à crise, respetivos apoios e às questões laborais; na segunda fase prestou-se mais atenção aos contextos laborais; em 2021, com uma situação pandémica a atingir um elevadíssimo número de mortes, as questões económicas não foram tão prioritárias, falando-se sobretudo de crise. Também a Ciência teve uma alteração de ângulo: primeiro, atendeu-se bastante às análises epidemiológicas, depois valorizou-se mais o desenvolvimento de novos medicamentos e vacinas. A política nacional, embora tivesse sempre suscitado interesse jornalístico, reuniu mais espaço na segunda vaga, altura em que as preocupações com a saúde estavam mais suavizadas. Os temas ligados à Sociedade reúnem um forte interesse na primeira fase, esbatem-se na segunda e voltam a ser prioritários na terceira fase, ou seja, quando as pessoas se confinam, a agenda noticiosa atende mais à vida de todos, que nesses momentos, se faz em casa.
Um traço que permaneceu sempre inalterável foi a contagem de infetados e de mortos, embora particularmente acentuado no terceiro período, altura em que atinge uma frequência de 10,2%. É verdade que os jornalistas apreciam bastante os dados quantitativos, mas também foi assim que as autoridades políticas e sanitárias apresentavam a evolução da doença, promovendo conferências de imprensa, no início a ritmo diário, posteriormente em três dias da semana, e que, estranhamente, foram interrompidas a 5 de janeiro de 2021, momento a partir do qual Portugal começou a registar valores que o colocavam entre os casos mais graves a nível mundial. Esses retratos nacionais tiveram sempre grande destaque na noticiabilidade produzida e, mesmo no tempo em que os encontros com os jornalistas foram suspensos, os relatórios oficiais com esses dados continuaram a ser divulgados pela Direção-Geral da Saúde. Por isso, houve sempre uma linha evolutiva feita com base em números a partir dos quais se tomavam decisões de vária ordem. E isso foi colocando os jornalistas numa esfera de grande dependência das fontes oficiais, sendo essa tendência amplamente conhecida no campo do jornalismo.
3.2.3. O valor dos especialistas enquanto fontes de informação
Ainda que a classe política no poder nunca tivesse saído dos alinhamentos noticiosos, este período apresenta uma certa mudança nas fontes de informação, em número e natureza. No período em análise, contamos 4.058 referências a fontes de informação, na primeira fase, 857 referências na segunda, e 1.445 na terceira.
Apesar de as fontes oficiais continuarem a ter grande visibilidade (principalmente o Primeiro-Ministro, alguns governantes e a Diretora-Geral da Saúde), os especialistas, sobretudo os ligados à área da saúde, ganharam muito espaço no discurso noticioso. Em tempos de pandemia, os jornalistas procuraram particularmente professores universitários, investigadores e profissionais de saúde. Era preciso dotar a informação de uma espécie de “saber sábio” que as fontes de informação mais especializadas garantiam com mais facilidade e rigor. À notoriedade pública, tradicionalmente apreciada pelos media noticiosos, a classe jornalística em tempos de Covid-19 valorizou sobretudo a informação que uma fonte detinha e a respetiva capacidade de comunicação, como documentam as respostas do inquérito que realizámos (Gráfico 1).
Esta mudança do perfil das fontes foi também favorecida pelo facto de se ter agilizado as formas de contacto. Para além do telefone, os jornalistas, principalmente os de televisão, começaram a introduzir nas suas peças interlocutores que entrevistavam por diversas plataformas digitais (Zoom, Skype, Teams, etc.). Assim, tornava-se mais fácil haver maior diversidade de nomes e de geografias. A distância física e os impedimentos horários deixaram de ser um constrangimento no acesso às fontes de informação.
Como se constata na Tabela 4, há uma forte visibilidade dos profissionais, enquanto fontes de informação, preferindo-se aqueles que detêm um cargo. Dentro destes grupos, valorizam-se mais os médicos enquanto detentores de cargos, e os académicos enquanto representantes de si próprios. Foi assim nos três períodos. Esta diferença de opções deve procurar-se quer no processo de gatekeeping jornalístico, quer no modo como estes grupos profissionais se organizam. Priorizando-se sempre a área da medicina às outras áreas do saber (ciências naturais e físicas, tecnológicas ou sociais), as redações preferiram falar com médicos, quando estes representavam serviços, hospitais, áreas de especialidade. A própria classe médica também tem uma certa dificuldade em falar em nome próprio, e nem era isso que interessava neste contexto, particularmente em janeiro e fevereiro de 2021, altura em que vários hospitais começaram a manifestar sinais de rutura dado o elevado número de internamentos. Importava ouvir estes especialistas enquanto detentores de um saber que representasse uma instituição ou grupo, porque grande parte das vezes era isso que estava em causa: os tratamentos adotados em determinado serviço, a capacidade de resposta de determinados hospitais. Os académicos apresentam outros processos de escolha. Mesmo que inseridos em equipas, um investigador sente mais legitimidade para assumir por si uma investigação ou, sobretudo, uma problemática. Neste contexto, também não se procurava um académico para falar propriamente do seu trabalho, mas da pandemia. Assinale-se que este modo de escolha das fontes manteve-se inalterável ao longo de todo este tempo. Os documentos também foram valorizados, sobretudo na segunda fase. A este nível, não são os comunicados os que mais se salientam, mas antes os relatórios das entidades oficiais de saúde, os artigos científicos, os textos legais e as análises estatísticas.
3.2.4. Uma literacia que vai conquistando espaço
Ainda que o noticiário sobre a Covid-19 se decline na imprensa portuguesa predominantemente através de notícias (78% na primeira fase, 61.1% na segunda fase e 75.9% na terceira fase), a verdade é que as preocupações com a literacia também se evidenciaram em tempo de pandemia. Na primeira onda, infografias, textos de conselhos e de perguntas e respostas somaram 10.9% do espaço; na segunda esse valor cresceu para 30,6%; e na terceira onda somou 13.9%.
Sempre complementares de outras editadas normalmente em género de notícias, estas peças, ao fornecerem informação adicional, procuravam de certa forma alterar comportamentos a favor da prevenção. Esse cuidado foi, aliás, sublinhado no inquérito feito aos jornalistas sobre o jornalismo desenvolvido durante todo o estado de emergência: 92.2% dos jornalistas declararam ter tido uma preocupação permanente em ajudar os cidadãos a adotar condutas que evitassem o contágio, uma escolha nunca vista no Portugal democrático depois do 25 de Abril de 1974. Essa ajuda manteve-se presente ao longo do tempo pandémico.
4. Linhas conclusivas
O jornalismo português mudou em tempo de pandemia. Mudaram os temas, mudaram as fontes e mudou o registo que, por vezes, os jornalistas adotaram para informar os seus públicos. Seria certamente precipitado apontar-se já para uma transformação de paradigma, como se explicou antes, mas as alterações que se registaram nesta fase reconfiguraram o campo jornalístico, a diversos níveis: práticas profissionais, relação com fontes, papéis sociais, géneros discursivos, etc. Tornaramno uma frente de combate em casos de saúde pública; mais atento a temáticas nem sempre valorizadas, como a Educação; integrador de outras fontes de informação em zonas de maior destaque, como é o caso dos especialistas, alargando-se assim o espaço público mediático, e mais atento a conteúdos vocacionados para desenvolver a literacia dos cidadãos. Serão estes sinais que vingarão? Só o tempo permitirá dizer se isso vai acontecer.
Na véspera do dia de Natal, a 24 de dezembro, o jornalista Bento Rodrigues, no noticiário da hora do almoço, despedia-se assim:
E assim chegamos ao Natal, este ano muito diferente do que tínhamos planeado. À mesa não estão todos os que nos habituámos a ter, não há o toque e a troca que a época pede, é o que tem de ser para garantir a proteção dos nossos. Orgulhemo-nos disso, portanto.
Houve críticas, mesmo da classe, a este jornalismo que, aqui e ali, se fez num registo mais paternalista e moralista, mas é indiscutível que o trabalho que se desenvolveu foi aturado, permanente e diversificado em vários ângulos, o que, numa primeira fase, ajudou a atenuar o pânico e a convencer as pessoas a ‘ficarem em casa’. A relevância e a missão de serviço público que o jornalismo assumiu foram inequívocos e isso fica como uma marca importante deste tempo.
Também houve uma alteração grande nas fontes de informação: a notoriedade pública, a acessibilidade e as capacidades de comunicação deixaram de ser traços prioritários na seleção das fontes. Valorizaram-se sempre os especialistas e, desse modo, reconfigurou-se o espaço noticioso, dando outra dinâmica à esfera pública mediática que, ao longo de 2020/21, tanta atenção deu à Covid-19. A maior parte dessas fontes especializadas eram desconhecidas da opinião pública, mas à força de tanto falarem com os jornalistas adquiriram grande notoriedade mediática e isso tornou-as parte de uma antiga confraria mediática que, até então, era dominada pelos políticos e pela própria classe jornalística (Lopes, 2011). A partir de então, o cerco daqueles que importava ouvir alargou-se e, mais do que uma função fática que sempre se valorizou, acrescentou-se a importância da credibilidade da informação, principalmente de uma espécie de “saber sábio” mais orientador de um quotidiano que mudou radicalmente com esta pandemia.
Também os conteúdos promotores de literacia em saúde foram mais destacados. Os próprios jornalistas reconheceram que, por vezes, tão importante como a informação era dotar os cidadãos de conhecimentos acerca daquilo de que se falava. Por isso, explicou-se mais, apresentaram-se mais dados adicionais, procuraram-se mais ângulos através de textos e de infografias. Este jornalismo de serviço público não ambicionou apenas dizer o que se passava, mas ajudar as pessoas a encontrar âncoras de segurança para se protegerem da doença.
Dada a duração da pandemia e as longas consequências que terá em vários campos, estas práticas jornalísticas tenderão a permanecer e isso vai certamente reconfigurar o jornalismo atual: o modo de selecionar temas e pessoas, e os formatos e registos escolhidos para desenvolver conteúdos noticiosos. Agora, haverá um tempo em que a ameaça deste vírus vai esbater-se enormemente, e aí veremos se as mudanças se mantêm estrutural e temporalmente, o que se poderia traduzir num novo paradigma para o jornalismo português. Este estudo pretende ser um contributo para avaliar o jornalismo português em contexto pandémico e poder-se-á constituir como um primeiro passo para investigações futuras.