In the animal kingdom, the rule is eat or be eaten; in the human kingdom, define or be defined (Thomas Szaz, 1973, p. 20)
O presente trabalho começa por propor uma leitura do fenómeno político-discursivo designado por “populismo” à luz de um enquadramento sócio-fenomenológico do mundo e do conhecimento comuns, para entender o fenómeno sob o ponto de vista de uma lógica de exclusão, de clivagem do comum e como anti-pluralismo. Na segunda secção, esboçar-se-ão alguns tópicos de debate em torno das aporias de uma definição politológica desses mesmos fenómenos. Por fim, uma terceira secção na qual, tomando o caso concreto dos debates televisivos da última campanha eleitoral presidencial, de janeiro de 2021, em Portugal, se procura discernir linhas de articulação dos fenómenos populistas e mediáticos, tentando evidenciar como as lógicas do discurso populista fraturante, ao mesmo tempo que se insurgem contra todas as formas de mediação, encontram terreno fértil nas lógicas conflituais e de simplificação das mediatizações contemporâneas.
1. O “populismo” enquanto exclusão, clivagem do comum e anti-pluralismo
Para iniciar, podemos ensaiar enquadrar o fenómeno num campo de inteligibilidade que, desde logo, surge como paradoxal: o populismo, mesmo que se reporte à voz do “povo”, não inclui a comunidade em geral, nem se aplica à comunidade política, antes instaura fissuras e exclusões das quais se nutre.
O populismo afirma-se, em termos gerais e imprecisos, como distinguindo-se do “sistema” e das “elites” e, acrescente-se, é anti-pluralista. Müller (2016, p. 23) assinala dois traços característicos do populismo: a hostilidade reiterada às elites e o anti-pluralismo, que o autor considera expressar a pretensão dos populistas a incarnar o povo - paradoxo do populismo quando, na realidade, defendem uma concepção estreita do povo. Concomitantemente, o populismo adota um registo gerador de exclusividades. Segmentos da comunidade são excluídos do “povo”, tais como as elites - particularmente as elites políticas, ou os políticos (ligados ao “sistema”) - os imigrantes, aqueles que recebem o rendimento social de inserção, os ciganos, os criminosos (a escória), tanto quanto os grupos que defendem uma sociedade multicultural, a transição ecológica, etc. Deste modo, o populismo provoca a “clivagem da comunidade política em diferentes componentes” (Oudenampsen, 2011), atuando no afastamento dos cidadãos comuns da política e, ao mesmo tempo, agregando pessoas dispersas e heterogéneas em torno de ideias imprecisas e gerais.
É, por isso, paradoxal que o populismo se anuncie como a visão comum da comunidade dos cidadãos comuns, quando o conceito de “comum” - seja em termos da doxa social ou do conhecimento comum (Berger & Luckmann, 1985; Schütz, 1987), seja em termos de “mundo comum” (Arendt, 1988; Taylor, 2009 a, 2009 b) - está fora da sua esfera de pensamento e ação que, justamente, se funda numa lógica de exclusões. Nessa medida, convocamos, aqui, quadros teóricos clássicos relativos à constituição de um “mundo comum”, cujos referenciais não estão presentes no populismo. O mundo comum, em Arendt (1988), é o espaço comum do “viver em conjunto”; existe quando é objeto de diálogo, no seio do qual se congrega a pluralidade de pontos de vista1, ou os mundos vividos partilhados com os outros. Como a autora adverte, “é a presença dos outros vendo o que nós vemos, ouvindo o que nós ouvimos, que nos garante a realidade do mundo e de nós mesmos” (Arendt, 1988, p. 90). O comum, por isso, é correlativo ao domínio da vida pública e da política, do interesse geral e do bem público, do livre agir e da pluralidade. É um espaço policentrado e de interstícios intervalares (domínio do intervalo e da philia entre os homens), lugar da ação e dos modos de subjetivação não-identitários (em oposição aos processos de identificação comunitária e aos territórios da familiaridade), porque se distingue das formas fusionais e fraternais do vínculo social. Nessa medida, o comum contém intrinsecamente a pluralidade, o que é antagónico à lógica de exclusões em que o populismo se baseia, desde logo assumindo-se como outra coisa, distinta do “sistema” e das “elites políticas”. O discurso populista segrega outros (outras identidades ou grupos), revertendo a pluralidade de pontos de vista em base de segmentação e segregação. Isto contrariamente ao fundamento postulado por Arendt (1988) de que “o mundo comum termina logo que é visto sob um ponto de vista, logo que não tem o direito de se apresentar senão mediante uma única perspetiva” (p. 99).
Mantemo-nos no campo da fenomenologia social, para lembrar que Schütz (1987) deu conta quer de “realidades múltiplas” quer do conhecimento comum que corresponde a uma realidade comum. A “atitude natural”, defendida pelo fenomenólogo (desde logo, por Husserl), é a capacidade de tratar os objetos, as ações e os acontecimentos da vida social a fim de manter um mundo comum. O conhecimento comum corresponde a uma realidade comum e partilhada, sancionada intersubjetivamente2. Segundo Schütz, a intersubjetividade é um dado do mundo da vida e deve ser entendida no mundo e no contexto da atitude natural, já que a experiência de outrem é tão originária e imediata como a experiência de si e a relação ao mundo é mediatizada pela relação a outrem. O mundo intersubjetivo da vida social é construído, partilhado, tipificado, significativo e o conhecimento comum é possível graças ao que Schütz designa a “(tese geral da) reciprocidade de perspectivas”, que possibilita uma compreensão mútua. Ou seja, os conhecimentos são socialmente elaborados, partilhados e transmitidos e, por meio desse processo de ajustamento e reciprocidade de pontos de vista, os atores conseguem dissipar as suas divergências de percepção do mundo. Também o “construtivismo fenomenológico” da construção social da realidade e do conhecimento comum, obra clássica de Berger e Luckmann (1985), de que se destacam os modos de construção do real em todos os domínios da sociedade, ou o processo de construção permanente da realidade social, reafirma o conhecimento como socialmente construído e distribuído.
Ou seja, a realidade da vida quotidiana e o conhecimento comum supõem a diversidade de perspetivas, mas não é de ponto de vista ou de perspetiva que se trata quando vozes populistas denunciam saberes comuns e conhecimentos científicos (por exemplo, a validade das vacinas contra o coronavírus SARS-CoV-2), ou negam a realidade da vida comum partilhada (as mortes por Covid-19). O negacionismo, praticado por movimentos populistas, não é da ordem do ponto de vista, antes assenta numa lógica da exclusão e clivagem do comum. Posições e declarações como as que seguem alicerçam-se na recusa do mundo e conhecimento comuns:
Para este magistrado [juiz Rui Fonseca e Castro], a mortalidade em Portugal em 2020 não foi superior à de 2019 “se calhar até foi inferior”. Só que “os números foram manipulados durante meses”, para parecer que as pessoas tinham morrido de covid-19, quando as causas dos óbitos seriam afinal outras. “Não houve autópsias”, insurgiu-se o magistrado. (Jornal Público, 7 de Setembro de 2021)3
Uma vez invocadas algumas perspetivas clássicas sobre a pluralidade de experiências e de conhecimentos partilhados e sobre a construção do conhecimento e do mundo comuns, poderá aduzir-se que sempre existiram invisibilidades e vozes não audíveis 4 e, hoje, mais do que no passado, em resultado dos mass media e, sobretudo, da mundialização das comunicações electrónicas, a troca comunicacional é desenfreada sem, propriamente, criação do comum. Refira-se a fragmentação e a dispersão que predominam nas redes sociais digitais, onde a comunicação de massa convive com uma comunicação interpessoal individualizada, que Castells (2009) apelidou de “auto-comunicação de massas” (mass self-communication), podendo ser entendida como auto-comunicação de massa ou “comunicação interpessoal de massa”. 5
A rede é, por natureza, interativa, colaborativa, multimodal, a-centrada, de inclusão e de exclusão, global e de uso individualizado. Por isso, as significações comuns construídas, que encontram o seu terreno nas interações comunicativas, dispersam-se nas redes, favorecendo a emergência das expressões individuais e da comunicação personalizada.
Taylor (2009a, 2009b) já identificara a fragmentação, o atomismo social e o utilitarismo enquanto os males da modernidade, tanto quanto um modo fragmentado de participação política. Nessa medida, cada vez é mais ténue a identificação do indivíduo com a sociedade política, considerando Taylor (2009 b, p. 179) que há falta de reconhecimento daquilo que constitui um factor de identidade nas sociedades contemporâneas. Muitos movimentos de defesa das minorias, em nome do igual reconhecimento na esfera pública, acentuam a diferença como fundamento para o reconhecimento. Frequentemente, considera Taylor (2009b), são excluídas à partida, “a noção de pertença e de forte aliança para com uma comunidade política, a percepção de que o igual reconhecimento se deve sustentar em características comuns e complementares que superam e transcendem a diferenciação” (p. 178).
Justamente, o autor esclarece que há uma conexão dialógica entre identidade e reconhecimento, quer ao nível individual e privado, quer ao nível social, público e político.6 A identidade depende das relações dialógicas com os outros (Taylor, 2009, pp. 49-52) e o reconhecimento está incorporado na identidade socialmente derivada (Taylor, 2009, p. 53).
Todavia, o modo de identificação do populismo - e a lógica de segmentação do social e de exclusão em que assenta - não é dessa ordem, operando antes uma identificação pela negativa em relação às elites, a determinados grupos (frequentemente de esquerda), aos imigrantes, aos criminosos, etc. Como Oudenampsen (2011) comenta,
Isso começa com uma identificação negativa, que coloca certos grupos fora da comunidade, formando assim um ‘exterior constituinte’. O ‘povo’ toma forma pela desqualificação de certos grupos, define-se por referência àquilo que ele não é. A oposição às ‘elites de esquerda’ e a qualquer forma de Outro (o inimigo) no caso holandês, os (terroristas) muçulmanos, ou os imigrantes fornece uma identidade comum a um eleitorado disforme e heterogéneo, que não partilha a priori qualquer ideologia ou orientação política positiva. A força de afirmação positiva própria da política simbólica do populismo assenta na apropriação e na politização de símbolos culturais capazes de expressar essa ideia limitada de ‘povo’ isto é, de um comum do qual foi subtraída uma parte a fim de cristalizar a outra em torno de uma reivindicação Unificadora. (p. 173)
Ou seja, o populismo define-se por aquilo que não é e exclui grupos para fora da comunidade. Afirma-se pela negativa contra os outros por ele identificados, instalando-se na dicotomia “nós” / “eles” que aniquila o pluralismo. Deste modo, o discurso populista não detém modalidades não negativas de construção do “nós”, muito embora também se possa observar que o “nós” da comunidade se esboroou, em parte, na modernidade, graças ao individualismo e, entre outros fatores, ao enfraquecimento ou mesmo desagregação de coletivos (sindicato, classe social, família) criadores de espaços comuns.
2. O “populismo” como controvérsia no vazio da “pós-política”
Pelo prisma politológico, a ideia central que aqui se propõe é a de que o “populismo” constitui uma modalidade de oportunismo político e é discursivamente um significante vazio. Um operador de sentido implícito, usado como categorização do outro no contexto de lutas políticas nas quais o adversário não pode, por não recorrer a formas físicas de violência insurgente, ser, por exemplo, designado por fórmulas políticas tão depreciativas quanto igualmente insubstanciais de que será exemplo, por antonomásia, o “terrorismo”.
Como começa por notar D’Eramo (2013, p. 11), o termo consiste numa heterodefinição, já que “o populismo nunca é uma autodefinição […], mas sim um epíteto endossado pelos inimigos políticos”. Está-se, portanto, neste âmbito da reflexão, em plena inscrição da (in)capacidade de definir ou de escapar à definição, arena em que a linguagem política se joga enquanto discurso e ação como no-la devolve concetualmente Ricoeur (1989, p. 37) que a situa “nessa zona vulnerável entre a prova rigorosa e a manipulação sofística”.
O ponto de partida de qualquer programa de exame do discurso e ação políticos parece, assim, implicar a necessidade de os construir enquanto problema, enquanto pergunta a responder e não enquanto questão respondida. Por outras palavras, o exame desse fragmento da linguagem política que é o apodo “populista” (como, correntemente, na direção inversa, o encómio “democrata”) implica um gesto analítico que vá para além do jogo próprio da política onde ele opera e é operado. 7
Articula-se, portanto, a presente secção deste trabalho numa dupla direção: 1) uma discussão breve em torno da arqueologia do termo e da respetiva controvérsia, no polemos político e na agonística social e 2) a argumentação, na esteira de Laclau (2005, p.59), segundo a qual: a) o “populismo” possui uma lógica própria e b) o apodo “populismo” é menos uma questão de natureza do que de grau, o que o tornará inerente a toda a ação política.
Pensar a labilidade da noção de “populismo” começa por implicar a diferenciação existente entre “povo” e “Povo”. Escreve Agamben (2001) que, nesta distinção, tudo sucede como se isso a que chamamos povo fosse, na realidade, não um sujeito unitário, mas uma oscilação dialética entre dois polos opostos: por um lado, o conjunto do Povo como corpo político integral e, por outro, o subconjunto do povo como multiplicidade fragmentária de corpos carenciados e excluídos […] bio e zoé.” (pp. 32-3)
Ou seja, na terminologia de Balibar (2010), ao analisar a teorização schmitteana da política como traçado da fronteira amigo/inimigo, e da fusão entre povo e Estado transubstanciada na ideia de “nação”, deparamo-nos sempre com a aporia da soberania do povo, emergente das revoluções inglesa, americana e francesa, i.e., de um ‘corpo moral’ em tensão permanente na ideia de um coletivo “que seria ao mesmo tempo soberano e sujeito [súbdito], exercendo o poder (puissance) de governar e de fazer as leis e obedecendo incondicionalmente a essas mesmas leis e decretos dos quais é autor” (Balibar, 2010, p. 154).
É, portanto, na ambivalência entre “povo” e “Povo” que se declina toda a fala política em geral e, também, a fala do específico oportunismo político que se designa por “populismo”. O que está em causa é uma complexa operação epistémica, cuja dimensão linguístico-política se deixa captar pela reflexão de Badiou (2002) em torno de um significante político idêntico na sua indeterminação, o de “terrorismo”, relativamente ao qual o filósofo francês assinala a sua “notável transformação” desde o tempo em “que qualificava claramente uma figura particular do exercício do poder de Estado” (La Térreur, na Revolução Francesa), para vir “a significar exatamente o contrário” (Badiou, 2002, pp. 22-29). Mais do que apreciar uma mutação semântica, trata-se, então, de “examinar os efeitos da cadeia nominal induzida pela passagem do adjetivo ‘terrorista’, que qualifica formalmente ações, ao substantivo ‘terrorista’ ou ‘o terrorismo’”. Por outras palavras, “este é […] o momento em que insidiosamente a forma se torna substância” (ibid.). A operação que se realiza ao afetar
a uma substância formal (como é toda a derivação substantiva de um adjetivo formal) um predicado, não consiste noutra coisa senão em dotar a forma de um conteúdo aparente […] dar uma aparência de conteúdo à palavra […], ela própria, vazia de todo o conteúdo. (Badiou, 2002, pp. 22-29)
Algo de similar ocorre com o termo “populismo” que, ao contrário do que hoje sucede, nem sempre teve conotações negativas (Ferreira, 2001; D’Eramo, 2013; Kaltwasser et al., 2017). A marcha semântico-política do termo encontra-se, de resto, ligada ao já mencionado percurso linguístico do termo “povo” na nossa tradição política, decantando-se este caminho por duas vias paralelas e sequenciais que foram atravessando os séculos, naquilo que Breaugh (2010, pp. 382-383) designou por “uma dupla história do ‘grande número’”. Por um lado, a linhagem positiva que agrega a existência política do eixo “demos, populus, povo-nação” e o seu alter negativo, a sequência despojada da polis, representada pelos “hoi polloi, plebs e multidão”. Para o autor, esta “dupla provisão linguística” (ibid.) marca, na nossa história política, a linha de fronteira que legitima ou deslegitima o direito à cidadania política de cada um dos seus componentes.
Estruturada no pensamento politológico a partir da chamada Democracia
Jacksoniana, do Partido do Povo nos Estados Unidos, dos Narodniki russos e do boulangerismo francês, fenómenos, todos eles, do século XIX (Kaltwasser et al., 2017, pp. 18-19), a noção de “populismo” viria no pós-Guerra, a generalizar-se a um tal ponto que, como escreve Ferreira (2001, p. 13), “se tornou tão elástica e, de certo modo, a-histórica, que passou a explicar tudo e, como ocorre nesses casos, a explicar muito pouco”.
Com efeito, assente sobre uma longa teorização fraturante das “elites” no dealbar do século XX (ver Mosca e Pareto, citado em Cruz, 1989) e na conceção sua simétrica das “classes perigosas” (Mattelart, 1996; Zafaroni, 2005), é sem surpresa de maior que a dicotomia povo-elite vai marcar toda a política oligárquica tanto a liberal como a iliberal, proveniente quer dos poderes quer das oposições, ao longo da segunda metade de século XX. E é, sobretudo, sem inocência alguma que a aliança entre saber e poder vai selar-se, em finais da década de 1950, sobre o termo “populismo”, estabelecendo, (pelo menos) objetivamente, a academia uma estratégia conceptual de legitimação da política oligárquica predominante na dicotomia entre “governantes” e “governados”. Protagonistas de numerosas ficções políticas, o “populismo” e os “populistas” tornar-se-ão daí em diante protagonistas de um vasto conjunto de ficções académicas que, ainda hoje, não alcançaram uma substantivação satisfatória para o adjetivo que tentam transubstanciar.
Sob a designação de “populismo” cunhou-se, pois, a partir da obra de revisionismo
histórico The Age of Reform, da autoria de Hofstadter (1955), um mote ainda hoje repetido, cujas glosas se declinam invariavelmente em torno da “simplicidade ilusória” com que os populistas vislumbram “a vitória sobre a injustiça e a solução para todos os males sociais concentradas na cruzada contra um único interesse relativamente pequeno, mas imensamente forte: o poder do dinheiro” (Hofstadter, 1955, citado em D’Eramo, 2013, pp. 25-26). 8
É desse modo que até à queda do bloco de Leste, em 1990 (momento que marca uma forte reentrada do “populismo” na linguagem política depois da perda de atratividade do “comunismo” e até do “terrorismo” como construções de inimigos e produções de ameaça suficientemente válidas), o “populismo” estiola lentamente no discurso público, assim como na produção académica. A sua improdutividade conceptual mantém-se num ecletismo que, apesar da sua aparência díspar até ao disparate, é implicitamente percorrida, todavia, por um fio coerente: a sucessora da “teoria dos totalitarismos opostos” (nazismo=comunismo), que agora dá lugar à “teoria dos extremos opostos”, visando uma articulação de sentido na qual o “populismo” ganha o seu double-corps: o “populismo de extrema-direita” e “o populismo de extrema-esquerda”, ambos extremistas e, por isso, igualmente idênticos e deploráveis (cf. D’Eramo, 2013, pp. 30-31).9 A dificuldade conceptual do populismo está, em primeiro lugar, na frequente falta de distanciamento meta-político de análises e analistas mergulhados em excesso na controvérsia que pretendem esclarecer (a figura do intelectual mediático, académico ou não, é aqui preponderante). Mas existe, para além disso, uma dificuldade epistémica destes fenómenos tão arbitrária e atrabiliariamente adjetivados como “populistas”, que consiste no facto que D’Eramo (2013) destaca pela sua ordem paradoxal: “não pode negar-se que existe um problema. Como dizer que são populistas expoentes que nunca falam de ‘povo’? ” (p. 22). Como abordado na primeira secção deste trabalho, o chamado “populismo” exerce uma função de exclusão e é em razão desse funcionamento que logra aceder aos lugares desertificados da pós-política, ganhando quotas de visibilização mediática por vezes muito superiores às da sua representatividade eleitoral efetiva.
Os trabalhos de Laclau ao propor a existência de um racional para o chamado “populismo”, afastam a possibilidade de compreender o fenómeno a partir da sua consideração moral. Para o autor, o “populismo”, para além da sua “produção discursiva de significantes tendencialmente vazios” (Laclau, 2010, p. 62), tem uma lógica própria, constituindo “simplesmente um modo de construir o político” (2005, p. 11). Por isso, qualquer inquérito desassombrado ao “populismo” precisa menos de definições que sublinhem a negatividade da sua existência, do que necessita de questionamentos capazes de dar conta das condições de possibilidade da sua emergência. Laclau (2005, pp. 31-32) propõe, assim, que a pergunta “o que é o populismo?seja substituída por outra diferente: ‘a que realidade social e política se refere o populismo?’ ”. A que deve juntar-se ainda uma indagação subsequente: ‘de que realidade ou situação social é expressão o populismo?’ ”. Não será o “populismo” precisamente na sua vacuidade “uma consequência, em algumas situações, da vacuidade e indeterminação da própria realidade social?” Poderá, em suma, o chamado populismo ser, pela sua vacuidade, mais do que uma “tosca operação ideológica” por parte dos seus autores, uma “condição para construir significados políticos relevantes?”.
Articulado este feixe de questões com a reflexão teórica aparentemente estabilizada (Kaltwasser et al., 2017, p.36) segundo a qual o populismo progride com a democracia (prescinde-se aqui, por razões evidentes, de esboçar uma problemática conceptual em torno da democracia) 10, a questão está em saber que tipo de produção política é essa que produz este subproduto? Para Laclau (2010, p. 69), no limite, a questão estaria mal formulada, na medida em que pressupunha uma natureza diferente entre movimentos políticos populistas e um (inexistente) tipo de movimentos políticos não populistas quando, para ele, a diferença não se encontra na natureza populista ou não da política (toda ela o é, em alguma medida), mas sim no grau, uma vez que o próprio da politica é a articulação hegemónica de reivindicações, exigências, requisitos, posições heterogéneos que se tornam capazes por essa via de emergir publicamente. É isto que sugere a reflexão de Laclau (2005) que, distinguindo entre “populus” (o povo) e “plebs” (os pobres), interpela a falta de qualidade da resposta representativa hegemónica, a qual abre um território vazio, uma terra de ninguém, entre “demandas sociais insatisfeitas e um poder que lhes é insensível” (p. 108). Mais do que um debate teorético entre “democracia representativa” e “democracia direta”, o que está a montante do oportunismo político que se designa por “populismo” parece antes situar-se no que se opta, neste trabalho, por designar como uma fissura entre bolhas, ou esferas: a bolha oligárquica dos poucos e a esfera de um populus crescentemente em risco de se tornar plebs, por via da agudização das desigualdades que alastram do económico-social ao jurídico-cultural, no que se torna, progressivamente, uma “política dos poucos” para os poucos. O “populismo” não germinará, assim, do seu próprio mérito, mas do demérito das políticas públicas (único terreno em que se pode combatê-lo) e da alienação da política que deixa sem expressão nem representação aqueles de quem se esquece. É a isto que neste trabalho se aplica a formulação de “democracia pós-política” (Zizek, 2012, p. 7) em que o chamado “populismo” se dá a ver como protagonista das reclamações inatendidas, numa disputa pela legitimidade política com as respetivas oligarquias liberais hegemónicas, tornando-o, como diz D’Eramo (2013, pp. 11-12), “um instrumento hermenêutico útil sobretudo para identificar e caraterizar
aquelas fações políticas que acusam os seus adversários de ‘populismo’”.
3. “Populismo”, Mediações e Mediatizações: Um caso nos debates presidenciais de 2021
Como os dados desta pesquisa evidenciam, as maiores audiências dos debates televisivos nas eleições presidenciais de janeiro de 2021, em Portugal, ocorreram em momentos nos quais esteve envolvido André Ventura (ver quadro 1), a figura da política portuguesa com mais frequência identificada com o apodo convencional de “populismo”. 11 A sua erística baseava-se na injúria provocatória ao adversário, na fuga oratória às questões concretas falsamente respondidas com generalidades, na interrupção sistemática da argumentação do oponente e em truques de telegenização, como o sucedido com a exibição da fotografia do adversário, o candidato incumbente Marcelo Rebelo de Sousa, com habitantes negros de um bairro dos subúrbios da capital que visitara enquanto Presidente da República, e a quem Ventura chamou “bandidos”.
O debate, transmitido pela SIC a 6 de janeiro de 202112, ainda se encontrava em tom amistoso e tranquilo, nas trocas iniciais de argumentos, quando, a propósito de uma declaração precedente de Marcelo Rebelo de Sousa sobre o modo de distinguir “as direitas que cada um representa”, André Ventura pegou numa folha de papel que trouxera para o estúdio e, antes mesmo de a voltar para as câmaras, disse: “Sobre a questão da direita social e securitária, gostava de mostrar ao candidato Marcelo Rebelo de Sousa esta fotografia. Vamos ver se ele se recorda disto”. Esta derradeira frase já se ouve apenas em “off”13, uma vez que, no momento em que André Ventura enunciou a intenção de mostrar “esta fotografia”, a realização televisiva passou a mostrar o oponente, reagindo sem dizer palavra àquilo que se estava a passar. Ato contínuo, a imagem volta a André Ventura e este mostra a fotografia tirada ao próprio Marcelo Rebelo de Sousa e a elementos da família Coxi, moradores do Bairro da Jamaica, no Seixal (ver fotograma 1), numa visita que o então chefe de Estado ali realizara, a 4 de fevereiro de 2019, dias depois de violentos confrontos entre a polícia e moradores que tiveram o bairro como palco. Ao mesmo tempo que mostrava a fotografia, e olhando para o oponente que respondera, entretanto, “sim, sim”, Ventura prosseguiu:14
Esta fotografia mostra tudo o que a minha direita não é! Nesta fotografia, o candidato Marcelo Rebelo de Sousa juntou-se com bandidos - um deles é um bandido verdadeiramente! -, que tinham atacado uma esquadra policial e, quando o presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi ao Bairro da Jamaica, foi visitar os bandidos! Não foi visitar os polícias.
A realização passa, entretanto, a mostrar a reação de Marcelo Rebelo de Sousa que esboça um sorriso enquanto André Ventura insiste:
E esta fotografia não engana! Porque esta fotografia que está aqui - eu creio que o candidato Marcelo Rebelo de Sousa reconhecerá a veracidade da fotografia -, não foi tirada depois na esquadra de polícia, foi tirada só - entre aspas e vão desculpar a linguagem -, à ‘bandidagem’.
Para concluir, de seguida: “Eu não tenho medo de ser politicamente incorreto, de lhes chamar os nomes que têm de ser chamados e dizer o que tem de ser dito”.15
No seu conjunto estes artefactos cénicos e oratórios produziram o ambiente de ruído no qual prosperava a típica e simplista divisão maniqueia entre “bons” e “maus”, tão mais atrativa para o voyeurismo quanto fácil para a compreensão.
A mobilização da questão racial ou da imigração consistia, por seu lado, na convocação mimética de problemas existentes noutras sociedades europeias, embora de quase nula expressão em Portugal. Mas, sobretudo, Ventura trouxe para o debate político, porventura como nunca até aqui, entre nós, o género de contenda zaragateira, a gesticulação belicista oriunda das discussões televisivas sobre futebol. Por outras palavras, tornou a complexidade tradicional das questões políticas num objeto sensacionalista, tão capaz de lhe render votos a ele quanto audiências aos media, correspondendo àquilo a que Sloterdijk (2007, pp. 99-101) chamou uma “mediologia de arena” ou um “fascismo de entretenimento”.16
Reportagens investigativas fortemente hostis incidiram sobre lutas intestinas, modos de financiamento do partido e conexões de diversa índole, retratadas como duvidosas. A par da sua parlamentarização, estas ligações permitiram ao Chega a mobilização crescente de um forte conjunto de recursos de visibilização que elevaram a sua construção inicial, da escala residual de uma força de oportunidade e oportunista, a um partido que ensaia uma dimensão nacional. Ao longo desta marcha, Ventura buscou também estratégias de legitimação no campo político em que procura filiar-se, como foram os casos de encontros com dirigentes da direita parlamentar radical europeia, como Marine Le Pen e Matteo Salvini ou Santiago Abascal.17
Esta atração dos auditórios tende a suscitar, uma vez mais, a reflexão sobre as correlações entre o crescimento das propostas “populistas” e a cobertura mediática que lhes é dispensada, um debate frequentemente pautado por apreciações morais, ou injunções normativas sobre o dever ser e o dever fazer de cada um dos atores em presença, os media e os políticos. Luca Manucci (2017) expõe, todavia, uma abordagem multifacetada e mais complexa, que equaciona estas relações. Não enquanto uma batalha entre duas lógicas opostas, mas antes como “um processo integrado de produção de conteúdos” que os envolve a ambos. A sua tese vai mais longe, estendendo estas lógicas de articulação “tanto aos media tradicionais quanto aos novos media”, destacando o investigador que “a relação entre discursos populistas e os media é estruturada enquanto um processo multifacetado e circular envolvendo [as] diferentes plataformas mediáticas e atores mediáticos” (Manucci, 2017, p. 535).
Num aprofundamento desta linha analítica, parece razoável entender que a relação entre a estratégia oportunista de articulação política na qual consiste o chamado “populismo” e os dispositivos técnicos de amplificação de discurso para grandes massas, a que chamamos os media, implica uma compreensão preliminar das lógicas do mercado eleitoral 18, por um lado, e do mercado mediático19, por outro. Ambos disputam a atenção daqueles a quem se destinam. Os votos que no primeiro caso permitem aceder a quotas maiores de poder; os espetadores, no caso do segundo, através de cujo número é possível aumentar os ingressos do emissor por via das receitas em publicidade. A relação entre ambos pode, noutros termos, deixar-se pensar em torno de dois grandes eixos, a saber: (1) o da produção-consumo e (2) o do funcionamento e função. No primeiro eixo produção/consumo -, parece pertinente ter em conta que ambas as instâncias (media e política), sobretudo num tempo em aceleração contínua marcado pela omnipresença da imagem, operam a partir da visibilização dos seus materiais, impondo registos e formatos crescentemente reduzidos e simplistas. Do mesmo modo, se a par do tradicional valor da controvérsia e do conflito, um dos valores-notícia mais fortemente emergentes é a “conversabilidade” futura dos conteúdos exibidos (Gomis, 1991, p. 57), a oratória erística trazida do infoentretenimento para o debate político configura-se como uma estratégia privilegiada de mútua retroalimentação.
Ainda pelo ponto de vista da produção-consumo se, como preconiza Laclau (2010, p.62), o esforço político populista é um esboço continuado de simplificação que só termina, com frequência, na imagem do “líder”, esse mecanismo vai ao encontro da dromologia imagética de visibilização do político que é, hoje, uma supressão da própria política (Rosa, 2011). Aprofunda esta lógica, Ramonet (1999) quando sublinha que “o abstrato não possui imagem, seu grande defeito ontológico, […] a vida política torna-se um entrechoque de homens (ou de mulheres), carnal, filmável, muito mais que um entrechoque de ideias, que não se sabe como representar” (p. 93).
Em suma, se a lógica dos media e dos populismos políticos coincide tanto no plano dos seus mercados de consumo/participação, quanto nos seus regimes de produção formal e de conteúdos, a compreensão das interações e retroações mútuas entre ambos deverá ter em conta aquilo a que, no já longínquo ano de 1970, falando acerca do conceito de opinião pública, Luhmann (2009) apontava como sendo as “regras da atenção”, de qualquer sistema social. 20 Às quais será necessário acrescentar, conforme nota o mesmo autor, como os meios de comunicação “não são meios no sentido de transportarem informações dos que sabem àqueles que não sabem” (Luhmann, 2009, p. 115), mas, antes, subsistemas que “atuam na geração e no processamento de irritações” (ibid., p. 47).
Já tomando o segundo eixo da relação, entre a função social normativa dos media informativos e a realidade do seu funcionamento, as análises de tendências na cobertura mediática da política por Blumler e Kavanagh (1999), sublinham, de há muito, pelo lado do funcionamento, a convergência espetacular, estabelecida em torno das questões jurídico-morais que crescentemente invadem quer os noticiários políticos quer os argumentários do oportunismo populista. Para estes dois autores, as coberturas televisivas são crescentemente “justicialistas”, colocando os políticos “sob suspeita” e assim instituindo um espírito hostil que parece ter impregnado a relação” entre ambos. A previsão destes analistas é a de que as campanhas futuras venham a basear-se mais em publicidade, […] formatos de ‘soft media’ e na criação de eventos e espetáculos políticos ‘que você não pode perder!’, […] visando diretamente o público, com menor mediação” (Blumler & Kavanagh, 1999, p. 216) e um aumento do que já é percebido como “uma cínica obsessão […] pelo fait divers, escândalos e negatividade” (p. 216).
Enquanto, pelo prisma da sua função, se adensam as insuficiências e a preocupação relativamente a esta evolução justicial-moralista da praxis mediática, sobretudo porque as questões morais ou, mais precisamente, moralistas, pontificam pela sua eficácia nesta dinâmica que vai novamente ao encontro das lógicas de mediatização da política, amplamente incidentes sobre aspetos da vida privada das figuras púbicas, por um lado, e sobre a judicialização da política, por outro lado, para Luhmann (1993, p.168) “[qualquer] esquema moral que pretenda que só nós somos bons e dignos de respeito e que a parte oposta, pelo contrário, é má e deve ser repudiada […] equivale a pôr em questão as regras da democracia”.
4. Nota conclusiva
Em forma de breve conclusão, afastando a sua função normativa e o seu funcionamento prático quer na ação política quer na cobertura mediática, o populismo e os media (ou o oportunismo “populista” e o negócio mediático), pelos seus respetivos sincretismo e sintonia entre produção e consumo, fazem corresponder à inflamação formal dos discursos “populistas” a sensacionalização crescente dos conteúdos mediáticos. Daí a importância de uma análise crítica à correlação entre a expansão do populismo e a cobertura mediática deste, que se reveste frequentemente em simplificação e supressão da própria política.
Registando-se o papel escrutinador que o jornalismo pode ter acerca dos fenómenos políticos desta natureza e que escapam, no essencial, às lógicas cruzadas entre as leis do espetáculo e as regras da atenção em cada sociedade, parece, todavia, suceder que a cobertura do oportunismo dito “populista” ajuda à constituição de um saber de fundo, em torno de ideias imprecisas e gerais, onde as regras do espetáculo coincidem com as da produção de “irritação” sistémica. É, pois, fundamentalmente nesta conjugação que parecem ser legíveis, no que à mediatização respeita, tanto os resultados das audiências nos debates de André Ventura, como os seus logros em matéria eleitoral. No limite, como sublinhava Luhmann (2009, p.33), a pergunta “mais urgente” já não é a de saber que meios de comunicação são estes que assim descrevem a sociedade, mas antes, “que sociedade é esta que se descreve a si mesma e ao mundo desta maneira?”.
No limite, dir-se-á que se os media de massa e, a outros níveis e segundo outras lógicas, as redes digitais sociais são responsáveis pelo aumento da visibilidade desses fenómenos, o crescimento do populismo será uma consequência ou derivação da mediatização da política e da própria política, ela mesma, sujeita a uma lógica de (produção)consumo.