Introdução
Os relatos jornalísticos sempre estiveram associados ao efeito de realidade, desde a consolidação da profissão, no século XIX. Não é difícil perceber, portanto, a dimensão alcançada por uma história ficcional, narrada em um programa de rádio da rede CBS, em 1938, nos Estados Unidos. Tratava-se de uma simulação de um noticiário sobre uma invasão alienígena em New Jersey, em uma adaptação para o formato radiofônico do romance “Guerra dos mundos” (1898), de autoria de Herbet George Wells, realizada por Orson Welles (1915-1985). O problema é que a narração de Welles - que viria depois a ser o diretor do aclamado filme Cidadão Kane (1941) - foi tão convincente, incluindo reportagens e depoimentos, que muitos ouvintes entraram em desespero por acreditarem ser um evento real, apesar do alerta, no início do programa, de que era uma dramatização. Este icônico episódio é lembrado por Eco (1994), segundo quem os relatos de ficção - as narrativas artificiais - podem ser reconhecidos por sinais ficcionais, como a palavra “romance”, evidenciada na capa de um livro ou o mais óbvio sinal que é a introdução do tipo “Era uma vez”. Mas esses indicadores não ficaram claros para parte dos ouvintes - alguns somente sintonizaram na CBS após o início do programa -, como aponta Eco (1994): “O mal-entendido e até mesmo o pânico resultaram do fato de alguns ouvintes acreditarem que todos os noticiários radiofônicos constituem exemplos de narrativa natural, enquanto Welles pensava que havia fornecido aos ouvintes um número suficiente de sinais ficcionais” (p. 126). A construção dessa “autoridade jornalística” como uma profissão a serviço da disseminação da verdade foi fortemente influenciada pelo desenvolvimento da fotografia, como aponta Aitamurto (2023): “O fotojornalismo foi enquadrado como uma representação verdadeira do mundo; foi oferecido aos leitores como prova da reportagem verdadeira. A fotografia serviu como prova para os leitores, por exemplo, da linha da frente na Segunda Guerra Mundial” (p. 113). Este papel atribuído aos jornalistas de revelar à sociedade a verdade dos fatos ao longo do tempo foi se cristalizando no imaginário social e já foi representado no universo da ficção em diversas obras, como ocorre no filme Spotlight - segredos revelados (2015). Entre as diversas representações do jornalismo na ficção cinematográfica e televisiva está a série norte-americana The Morning Show (AppleTV, 2019), que aborda o jornalismo contemporâneo e a crise que afetou, de forma estrutural, os modelos de negócios das organizações midiáticas no início deste século. No episódio 1 da 1ª temporada da série, em uma conversa entre o então diretor da Divisão de Notícias da rede de TV UBA, Cory Ellison, e o produtor do The Morning Show, Charlie Black, sobre o futuro do programa, Cory fala para o produtor: “É engraçado como todo o mundo da televisão pode acabar em poucos anos”. E continua: “A menos que o reinventemos. Vamos todos ser comprados pelo setor de tecnologia, a menos que algo mude”.
As transformações no jornalismo ao longo da sua trajetória sempre foram definidas pela evolução tecnológica, desde a mecanização da impressão e a produção de jornais em escala industrial, como lembra McQuail (2013). O autor sustenta que foi, no entanto, o surgimento da internet, que mais desestruturou as relações entre o jornalismo e a sociedade desde então. Esses avanços tecnológicos e dos modelos econômicos são sempre apontados pelas disrupções que causam na prática jornalística, como também apontam Broersma & Peters (2017). No cenário contemporâneo, os autores ressaltam que estas mudanças são de ordem estrutural e afetam a própria essência do jornalismo, levantando inclusive a questão de qual a função da atividade jornalística, “se o jornalismo já não é ‘a principal prática de produção de sentido’ da sociedade e empresas como a Google, o Facebook e muitas outras corroeram as pretensões do jornalismo de servir o público de forma abrangente” (Broersma & Peters, 2017, p. 15). Em meio a essa profunda crise financeira e de credibilidade que afetou a profissão, as empresas têm buscado se reinventar, por meio da criação de conteúdos inovadores, da experimentação de novos formatos narrativos, entre eles os que utilizam tecnologias imersivas. Assim, o que acontece nas duas primeiras décadas do século XXI, como ressalta Vicente (2019), é uma expansão do campo da narrativa jornalística no meio digital, resultando no aparecimento de novos subgéneros narrativos - a exemplo dos documentários interativos, dos newsgames e do jornalismo imersivo/de realidade virtual -, como uma resposta das organizações de mídia e, também, de produtores independentes ao declínio da audiência em formatos e meios de comunicação tradicionais.
Um dos autores responsáveis pela definição de narrativa mediática, situada no recente campo dos Estudos Narrativos Mediáticos, Lits (2015) salienta que é neste cenário de disrupção tecnológica, em que a produção de informação passa a ser também protagonizada pelo público, que há um regresso do jornalismo narrativo nos Estados Unidos e na Europa, na forma escrita e em novos suportes. O autor destaca ainda que o aparecimento de novas narrativas por meio de formas mediáticas híbridas, como reportagens em animação ou webdocumentários, em que recursos tecnológicos diversos são integrados, traz um debate sobre a objetividade jornalística. Neste contexto, o jornal The Washington Post lançou o vídeo imersivo 12 Seconds of gunfire (2019), uma adaptação da reportagem homônima Twelve seconds of gunfire, de autoria de John Woodrow Cox, publicada dois anos antes pelo The Post, nos formatos impresso e on-line. O intuito deste artigo, que tem o vídeo como objeto de estudo, foi perceber como foi construída a história apresentada, identificando estratégias narrativas adotadas pelos produtores para garantir o efeito de real, ou seja, a veracidade (Motta, 2013), em um vídeo que consiste em uma animação, ou seja, em um conjunto de imagens geradas por computação gráfica. Buscou-se compreender como se cruzam o real e o ficcional na animação, e como os valores jornalísticos da objetividade e da transparência estão presentes na narrativa, partindo-se do pressuposto de que toda narrativa é uma construção da realidade.
Metodologia
Optou-se neste estudo por uma análise a partir de uma perspectiva narrativa, ancorada em contribuições dos Estudos de Jornalismo - principalmente sobre a narrativa jornalística (Motta, 2013) e sobre a objetividade (Tuchman; 1972) - e em contributos dos Estudos Narrativos Mediáticos (Lits, 2015; Peixinho, 2019; 2024), que têm a narrativa mediática como objeto de estudo. A investigação sobre a narrativa jornalística emerge como um dos domínios mais férteis dos Estudos Narrativos Mediáticos, campo de estudo interdisciplinar, que deriva da evolução da Narratologia (Peixinho, 2019), área ligada originalmente ao Estruturalismo francês (Estudos Linguísticos) e aos Estudos Literários, e que acolhe conceitos e teorias dos estudos mediáticos. Sobre as narrativas mediáticas, Cunha & Peixinho (2020), destacam o conjunto de narrativas, em diferentes gêneros e linguagens, que os media oferecem e que desempenham um relevante papel na vida dos cidadãos:
Responsáveis pelo modo como organizamos o mundo, como geramos imagens do real, como articulamos e lemos a sua complexidade, as narrativas mediáticas - ficcionais (telenovelas, filmes), factuais (notícias, documentários, reportagens) e híbridas (publicidade, reality-shows) - são importantes disseminadores de ideias, de crenças e de visões do mundo. (p. 128)
As narrativas são, de acordo com Motta (2013), um modo de expressão universal que permeia a existência humana e que atravessa o jornalismo, o cinema e a publicidade, entre outras mídias. No caso do jornalismo, trata-se de uma narrativa que, à semelhança da biografia e da historiografia, pretende reproduzir de forma fiel a realidade, referindo-se a pessoas reais que, nessa representação da realidade, executam funções de personagem. A partir de uma perspectiva da produção jornalística - não se caracterizando, assim, como um estudo de recepção - este artigo centra-se, portanto, na personagem como uma categoria que é central para a narratividade do texto jornalístico e para a própria análise do jornalismo nos estudos narrativos. O foco estará na figura Ava, que protagoniza o vídeo e que se configura como um elemento-chave para que os usuários se identifiquem com a história.
A imersão como um recurso para envolver o público
De acordo com o conceito proposto por De La Peña et al (2010), uma das premissas básicas do jornalismo imersivo é a imersão. O termo é comum na cultura contemporânea para se referir a uma experiência artística prazerosa e que de forma mais ou menos intensa, seja envolvente para quem a vivencia (Ryan, 2015). Esta ideia de imersão tem origem não no jornalismo imersivo enquanto narrativa não-ficcional, mas em campos artísticos como o cinema e a literatura. Nesta última expressão artística, está relacionada à envolvência por meio da leitura de um texto, segundo Ryan. “Na fenomenologia da leitura, imersão é a experiência pela qual um mundo ficcional adquire a presença de uma realidade autônoma e independente da linguagem, povoada por seres humanos vivos” (Ryan, 2015, p. 9). Aqui a imersão ocorreria de forma mental, por meio da imaginação do leitor. Já no mundo dos games - e na proposta de jornalismo imersivo, por meio de uso de óculos de realidade virtual - esta experiência envolveria o próprio corpo do usuário, interpelado a vivenciar a história de forma mais atuante, não apenas como o mero leitor/ouvinte/espectador. Para Domínguez (2017) e Longhi (2017), duas autoras que contribuíram para as discussões sobre a imersão em narrativas jornalísticas - reconhecendo o potencial dessas novas tecnologias sem deslumbramento tecnológico -, o jornalismo também tem, em sua trajetória, esta busca de uma narrativa que desperte no público a sensação de estar presente na história relatada. Domínguez (2017) destaca que a imersão esteve presente como técnica de reportagem na prática dos jornalistas investigativos já no final do século XIX e início do século XX. Aqui, a imersão consistiria na experiência física do repórter, de dedicar algum tempo a estar presente no cenário da realidade social que ele estava tentando captar para contar sua história. Por outro lado, tal qual na literatura, em que a imersão ocorre por meio de um ato mental do leitor, a imersão também está presente de forma marcante em outro campo da prática jornalística - o jornalismo narrativo, também designado como jornalismo literário e novo jornalismo (Vicente, 2019). O autor aponta que a narratividade das produções jornalísticas - narrativas não ficcionais -, ou seja, o como a história é contada, ocorre a partir da plena adoção desses elementos da narratividade, como a voz do narrador, ponto(s) de vista, cenários temporais e espaciais, para a não ficção. Em formatos como a grande reportagem, utilizada em coberturas de guerra, por exemplo, uma linha tênue separa o jornalismo da literatura. Nos anos 1960, ao tempo em que a mídia impressa e o rádio começam a ceder espaço em todo o mundo diante de uma mudança tecnológica que foi divisora de águas para o jornalismo, que foi o surgimento da televisão, emerge também na imprensa dos Estados Unidos (estendendo-se gradualmente à Europa), um movimento intitulado Novo Jornalismo - distinto daquele Novo Jornalismo que surgiu no século XIX e que buscava separar fatos e opiniões pessoais dos jornalistas (Traquina, 2005). Neste movimento, que deu protagonismo ao jornalista como parte da história noticiosa (Jones, 2017), era exatamente a subjetividade que era valorizada, abrindo espaço para que os jornalistas deixassem sua marca pessoal nas reportagens e explorassem novos recursos estilísticos. Recorrendo a técnicas do campo da literatura, construíram narrativas não-ficcionais de fronteiras opacas entre jornalismo e literatura, com destaque para a caracterização dos personagens e descrição dos cenários onde se deram os fatos. O jornalista Truman Capote, autor do clássico livro Cold Blood (1965), que narra a história da chacina de uma família nos Estados Unidos, dedicou cinco anos a investigar os assassinatos da família Clutter e a caracterizar os assassinos, por exemplo. Esta ênfase na subjetividade explorada pelo Novo Jornalismo - em contraponto à objetividade que integra as convenções noticiosas - é alvo de críticas e levantou preocupações que também ressoam no jornalismo imersivo em vídeos de 360º onde, segundo Jones (2017), “as formas narrativas precisam de ser analisadas quanto ao valor e à localização da voz do repórter” (p. 174).
É possível, portanto, estabelecer uma relação entre passado e presente - o jornalismo narrativo e o jornalismo imersivo - no que diz respeito a essa combinação de conteúdo informativo e imersão na produção jornalística, como se o novo formato buscasse resgatar essa experiência mais imersiva por meio da subjetividade do relato, com o diferencial da mediação tecnológica (seja do vídeo em 360º seja da realidade virtual). Assim, a tensão entre informação e ficção, entre objetividade e subjetividade, que está na essência do jornalismo narrativo, também é evidenciada no caso das narrativas em RV e em 360º, especialmente em histórias recriadas por computador (diferente de vídeos esféricos que captam imagem reais) e conduzidas, em 1ª pessoa, pelos personagens, como é o caso do vídeo aqui analisado.
O jornalismo imersivo e a simulação do real
Consideramos aqui o conceito de Realidade Virtual (RV) proposto por Steuer (1992), que a define como “um ambiente real ou simulado no qual um observador experiencia a telepresença” (pp. 76-77). Segundo o autor, essa telepresença é uma percepção mediada, é a experiência - sensorial e motora - de presença em um ambiente tridimensional (3D) gerado por um meio de comunicação. Predominante no universo dos games, a realidade virtual tem sido aplicada cada vez mais por outras áreas, como a cultura (em exposições, por exemplo) ou no jornalismo, como uma tentativa de permitir a imersão do usuário em diversos cenários criados por computador. Proposta há quase 15 anos por De La Peña et al (2010), a definição de jornalismo imersivo trazia consigo a ambiciosa promessa de permitir ao espectador, por meio do uso de óculos de realidade virtual - os headsets - uma imersão em narrativas audiovisuais, a partir de uma experiência em primeira pessoa. Um jornalismo que seria capaz de oferecer a possibilidade única de experienciar as notícias e compreendê-las de uma maneira inovadora, se comparada às mídias tradicionais (De La Peña et al, 2010; Pavlik, 2019). A novidade causou um certo encantamento tecnológico, resultando em uma intensa produção de vídeos com o rótulo de jornalismo imersivo na última década. Sob esta chancela, começaram a ser publicadas, a partir de 2015, com a popularização dos headsets, narrativas inovadoras para abordar, principalmente, temas sociais relevantes, a exemplo de tragédias humanas decorrentes de guerras e da crise migratória.
Despontando como uma das organizações jornalísticas pioneiras no uso da RV em seus conteúdos, o jornal New York Times lançou, no final de 2015, o aplicativo NYTVR, para visualização de suas produções imersivas. Para atrair os assinantes, distribuiu na época um milhão de unidades do Google Cardboard (óculos de realidade virtual de baixo custo) para visualização do primeiro vídeo - The Displaced (2016), que relata a experiência de três crianças (da Síria, da Ucrânia e do Sudão) obrigadas a abandonar suas casas em virtude da guerra. Pelo mesmo caminho seguiram grandes organizações como o The Guardian, a TV Al Jazeera e o The Washington Post, que começaram a apostar também no uso da tecnologia. As produções imersivas tiveram um boom principalmente em 2015 e 2016, na América, Europa e Ásia, e desaceleraram ainda antes da pandemia de Covid-19 devido, principalmente, aos altos custos de produção. Produzidos para visualização com óculos de realidade virtual, os vídeos realizados principalmente pelas organizações de mídia, que encabeçaram o hype do jornalismo imersivo, em geral, também podem ser vistas nos dispositivos móveis, como vídeo esférico. A maior parte desses conteúdos, na verdade, se configura como vídeo 360° (Fonseca et al, 2019; Mabrook & Singer, 2019; Sánchez Laws, 2020), ou seja, apesar de oferecer uma expansão narrativa por causa da visão esférica, não se configura como realidade virtual, ou seja, reconstrução realizada por computação gráfica. Aqui, segue-se a terminologia vídeo 360º usada por Sánchez Laws (2020) para se referir “a um formato de vídeo que geralmente usa várias câmeras (duas ou mais) e processamento de computador para unir/costurar uma imagem de vídeo esférica completa” (s.p.). Esta divergência entre a proposta original de De La Peña et al (2010) e a prática tem, inclusive, resultado em reflexões que sugerem uma revisão conceitual do termo jornalismo imersivo, segundo Lima & Barbosa (2022). Ainda que não se saiba o que está por vir quanto ao uso dessa tecnologia, pesquisadores e profissionais da área de jornalismo imersivo seguem dedicados a compreender o impacto da realidade virtual, considerando que ela trouxe novas possibilidades narrativas, mas fez emergir também desafios para a profissão, ao pôr à prova algumas das principais convenções jornalísticas, a exemplo da posição do jornalista e do público nas histórias (Watson, 2017; Sánchez Laws, 2020; Pérez-Seijo & Vicente, 2022).
A representação do espaço físico, limitado por um enquadramento nas imagens de um vídeo no jornalismo convencional, é uma das rupturas mais marcantes do jornalismo imersivo em relação à forma tradicional de contar histórias. Há uma remoção desse quadro, que antes era restrito ao campo de visão resultante do recorte realizado pelos profissionais do jornalismo, enquanto em um vídeo em 360º o cenário é esférico. O usuário passa a ter, então, autonomia quanto ao controle da direção do próprio olhar, o que vai ao encontro da grande promessa das narrativas imersivas no meio digital, que é ampliar a interatividade oferecida ao público. E essa ilusão de estar no lugar preciso onde a história aconteceu, quase sem mediações, de uma forma experiencial não permitida em outras mídias, altera o envolvimento do público com a atividade jornalística e com o próprio conteúdo. Além disso, ao promover a experiência personalizada das notícias, o jornalismo imersivo afeta de forma marcante a objetividade, um dos valores mais simbólicos do jornalismo (Mabrook & Singer, 2019). O conceito de objetividade utilizado aqui é o proposto pela socióloga Tuchman (1972), que sugere que a “objetividade” - a autora usa o termo sempre entre aspas - “pode ser vista como um ritual estratégico que protege os jornalistas dos riscos de seu ofício” (p. 660). Seria uma espécie de muralha, uma defesa entre estes profissionais e as críticas inerentes a este trabalho, segundo a autora, diante das diversas pressões que afetam estes indivíduos, sejam relativas a prazos, a processos por difamação ou a repreensões de seus superiores. Essa objetividade enquanto noção de equilíbrio, aponta Traquina (2005), também representa um instrumento de reivindicação da legitimidade da profissão de jornalista, do papel social que lhe é atribuído. E a prática dessa objetividade está intimamente relacionada à verdade, enquanto informação precisa, em que se pode confiar e que pode ser verificada, e que se constitui como um dos princípios básicos que regem a atuação dos jornalistas, como sustenta McQuail (2013). A verdade, defende o autor, “refere-se ao objetivo ou expetativa de que o jornalismo forneça um relato fidedigno e suficientemente completo dos aspectos relevantes da realidade dos acontecimentos e circunstân-
cias atuais ‘sem receios nem favores’” (p. 55).
As discussões sobre esses desafios éticos que emergem com as experimentações em jornalismo imersivo - sobre os limites, propostas e aplicações dessas tecnologias (Nuno Vicente, & Pérez-Seijo, 2023) - têm levado alguns autores como Aitamurto (2023) e Wu (2022) inclusive a questionar se as normas balizadoras da atuação do jornalismo até então ainda são válidas. Na visão de Aitamurto (2023), que discute as normas de exatidão, objetividade e transparência, esses recursos imersivos têm forçado as fronteiras que definem o que é o jornalismo, o que pode levar ao surgimento de novas normas. A autora lança questões sobre o que deve ser mais importante no jornalismo, se é informar ou envolver o público, e se é possível conciliar um jornalismo imersivo que atenda aos valores da precisão, imparcialidade e autenticidade (tanto quanto possível) com um jornalismo que também é envolvente. Entre os potenciais problemas de caráter ético que a realidade virtual (RV) coloca para o jornalismo, Pavlik (2021) aponta a questão de que a tecnologia pode contribuir para tornar cada vez mais frágil a linha que separa fato de ficção. Segundo ele, ainda que a RV possa contribuir para um jornalismo de maior contextualização, algumas experiências noticiosas imersivas são simulações. “Nomeadamente, pode esbater a linha entre fato e ficção, inclusive no domínio das recriações, uma prática há muito questionável no documentário ou noutras formas de jornalismo” (Pavlik, 2021, p. 338). Esta preocupação com a questão da objetividade já tinha sido apontada, na década de 1990, pelos autores Biocca & Levy (1995). Por um lado, eles apontaram a tecnologia como um promissor meio de comunicação de massas que dotaria os jornalistas da capacidade de causar, no público, a sensação de ser transportado para locais e eventos distantes. “Há mais de um século que os noticiários se esforçam por encontrar formas de aproximar as suas audiências de momentos dramáticos e históricos. A própria linguagem do jornalismo sugere o objetivo da telepresença” (Biocca & Levy, 995, p. 138). No entanto, os autores também destacaram a problemática do uso de simulações - as quais já estavam presentes em muitas notícias, como por exemplo na encenação de fatos em noticiários de TV -, que enriquece a interação com os conteúdos noticiosos, mas afeta a credibilidade do jornalismo, cuja autoridade está assentada na preocupação com o real.
Da reportagem escrita ao vídeo animado
Em setembro de 2016, um adolescente de 14 anos invadiu a escola primária de Townville, na Carolina do Sul, nos Estados Unidos, e disparou contra crianças que brincavam no parque. Entre os três feridos, uma vítima mortal: Jacob Hall, de seis anos. No ano seguinte, foi publicada, nas edições impressa e online do The Washington Post, a reportagem Twelve seconds of gunfire, de autoria de John Woodrow Cox. A narrativa apresentava um perfil de quatro crianças do 1º ano do ensino primário que foram expostas ao tiroteio - Ava, Collin, Siena e Karson. Contada de forma sensível e profunda, a história integrou uma série de reportagens sobre a violência em escolas americanas, que foi finalista do prêmio Pulitzer 2018, na categoria “Reportagens Escritas”. Aqui vale destacar alguns aspectos relativos ao contexto de produção como um importante elemento para se compreender a narrativa do filme animado, lançado em abril de 2019. Diferente do que ocorreu na reportagem longform (de formato longo), apenas uma das quatro crianças é escolhida como protagonista: Ava Olsen, de sete anos, que precisa lidar com o trauma e a perda do melhor amigo, Jacob Hall. O filme não dedica muito tempo a recriar o tiroteio, mas, sim, busca revelar os sentimentos da menina após a tragédia. Com roteiro do próprio John Woodrow Cox, o vídeo foi finalista do prêmio Online Journalism Awards (OJA) 2019, na categoria “Excelência em Jornalismo Imersivo”. Criado para ser visualizado com óculos de realidade virtual (headset), em plataformas como a Oculus ou o YouTube VR, o filme também pode ser visto como vídeo plano, no site do jornal.
A reportagem que inspirou o vídeo foi publicada em 2017, meses após a posse do presidente americano Donald Trump. Em 2016, o The Post havia apoiado a candidata Hillary Clinton, concorrente de Trump na corrida presidencial. Com um tratamento hostil para os jornalistas, o presidente acusava a imprensa de manipulação e divulgação de notícias falsas, travando uma guerra com alguns meios de comunicação, especialmente o The Post e o The New York Times. Apologista do armamento da população, Trump assinou, pouco depois da sua posse, uma lei para revogar uma medida do presidente anterior, Barack Obama, que dificultava o acesso às armas por pessoas com diagnóstico de transtornos mentais. Em 2018, após um tiroteio com 17 mortos na Flórida, Trump sugeriu armar os professores, para que pudessem reagir em situações de violência. Seguindo para 2019, ano de publicação da animação - e quando se completaram 20 anos do massacre na escola Columbine, em que 13 pessoas foram assassinadas por dois adolescentes -, o agendamento jornalístico tratou de evidenciar o tema na imprensa norte-americana. O The Post dedicou vários editoriais para fazer dura crítica à política de Trump no combate à epidemia de episódios de violência com armas. O jornal recorreu, então, a um formato inovador - uma animação ilustrada - para mobilizar a atenção pública para o problema. Fazer isso por meio da “voz” de uma criança sobrevivente de um tiroteio torna mais apelativo o produto jornalístico criado.
A tensão entre o ficcional e o real no vídeo do The Post
Uma forma de narrar a vida em sociedade, o jornalismo algumas vezes se aproxima da literatura, ainda que se diferencie dela por ser uma narrativa não-ficcional - assim como a narrativa histórica - que tem compromisso com o real, aqui considerado sinônimo de verdade. Como destaca Hassan (2023), na Era Moderna, o jornalismo, por meio da imprensa, se apropriou de uma prática ancestral entre vários povos e culturas - a de conta histórias - e isso conferiu à prática jornalística “uma coerência narrativa facilmente compreensível à organização dos fatos e das afirmações de verdade por parte do jornalista” (p. 150). Uma das características do texto jornalístico é precisamente a narratividade, como aponta McQuail (2013), para quem “é evidente que as notícias são muito mais do que informação sob a forma de factos, mas também uma série de ‘histórias’, com enredos, personagens, heróis e vilões, finais felizes ou trágicos, etc” (p. 15). Essa narratividade, em que o jornalismo assume a forma e a estrutura de uma história a ser contada, segundo o autor, anda junto com outras características que fazem parte da essência de uma notícia, a exemplo da atualidade, da veracidade, e da objetividade. Representar o real é, portanto, o que distingue o jornalismo da ficção. Para a leitura de uma obra de ficção, existe um “acordo ficcional” (Eco, 1994), um pacto que o leitor deve aceitar para diferenciá-la da realidade. Existe, então, segundo o autor, uma “verdade ficcional”, que faz sentido dento de uma estrutura narrativa de ficção, e que precisa estabelecer um paralelo com nosso conhecimento do mundo real, o mundo das nossas experiências, para que sejamos envolvidos pelos mundos ficcionais. Ainda de acordo com o autor, as histórias de ficção exercem um fascínio sobre nós porque está intimamente relacionada ao nosso cotidiano e nelas buscamos sentido para a vida.
Ela nos proporciona a oportunidade de utilizar infinitamente nossas faculdades para perceber o mundo e reconstituir o passado. A ficção tem a mesma função dos jogos. Brincando as crianças aprendem a viver, porque simulam situações em que poderão se encontrar como adultos. E é por meio da ficção que nós, adultos, exercitamos nossa capacidade de estruturar nossa experiência passada e presente. (Eco, 1994, p. 137)
Em busca de uma história envolvente, o jornalismo imersivo mescla o real e o ficcional, recorrendo a códigos distintos (o do jornalismo, que busca informar, e o da ficção, que tem a finalidade de entreter) para construir uma narrativa - com personagens, enredo e cenário - ancorada no real. Tanto no jornalismo imersivo como no jornalismo narrativo, ambos de natureza subjetiva, a intenção é construir uma relato que possibilite ao leitor/espectador um entendimento mais profundo sobre o assunto que está sendo apresentado. Seguindo o hype das organizações jornalísticas que experimentavam tecnologias imersivas, o The Post apropria-se de uma história comovente, já publicada em formato escrito, para ressignificá-la em uma animação ilustrada, uma simulação da realidade recriada por computador. O uso da animação foi justificado pela equipe do jornal como uma forma de permitir uma abordagem mais subjetiva da história, focada na representação dos sentimentos de Ava diante da tragédia que a afetou. Em entrevista ao site jornalístico Poynter, em abril de 2019, o diretor de iniciativas estratégicas do The Post, Jeremy Gilbert, contou que o objetivo foi tornar a história “mais rica e atraente do que seria de qualquer outra forma”. A simulação como forma de reconstruir um fato, como um momento em que um crime ocorreu, não é novidade no jornalismo audiovisual, sendo um elemento utilizado como parte de uma notícia ou reportagem para esclarecer/aprofundar algum ponto relevante do assunto. No caso aqui discutido, trata-se de um produto jornalístico que é todo uma simulação, uma recriação feita em computador. Como lembra Aitamurto (2023), seja no vídeo tradicional, seja no vídeo em computação gráfica, há uma reconstrução do acontecimento, por parte dos jornalistas, para a história que vai ser contada, mas a diferença está na autenticidade das imagens, pois enquanto o jornalismo em 360º utiliza imagens captadas de forma autêntica - assim como no vídeo plano convencional - nas reconstruções geradas por computador “as imagens são construídas por humanos, com base nas suas ideias sobre o aspeto que as imagens devem ter” (p. 110). Além de ser uma reconstrução apresentada na forma de uma animação, o que aproxima mais do formato da ficção do que do jornalismo, a produção também recorre ao uso de uma voz de uma atriz, que representa a menina Ava, cujo luto está no centro da narrativa. Não fica claro para quem assiste o vídeo - exceto para quem lê os créditos no final do vídeo - que a história é narrada por uma atriz - Ainsley Deegan- e não pela própria Ava, permitindo, portanto, que a voz da atriz seja tomada como a da criança vítima do tiroteio. Crucial em qualquer história, a narração, no relato jornalístico, está intimamente associada à atuação de um jornalista como narrador, como contador de histórias (Vicente, 2019). Um dos marcadores visuais usados no jornalismo televiso, a presença do repórter no vídeo pode ser vista como um elemento que dá credibilidade ao conteúdo, que acrescenta autenticidade em um vídeo imersivo (Jones, 2017). Falamos aqui de outro conceito-chave na perspectiva dos estudos narrativos: o narrador. Este papel do jornalista-narrador (Motta, 2013), que vai até o local onde os fatos aconteceram e atua como um mediador entre o relato e o público, tem sido redefinido pelo uso de tecnologias imersivas, em produções que privilegiam a narração conduzida pelos protagonistas da história, como forma de gerar um maior envolvimento do público. No caso do objeto deste estudo, o narrador, figura que inclui o autor da reportagem e outros atores envolvidos na roteirização da história, conta o mundo da personagem Ava, figura que se torna o eixo da narrativa, e fala em 1ª pessoa. A escolha pela narração conduzida por personagem e não pela narração conduzi-
da por um repórter, categorias apresentadas por Jones (2017) para produções imersivas, enquadra-se em uma proposta que privilegia a subjetividade da experiência do usuário, numa reconfiguração das posições ocupadas pelo jornalista e pelo próprio público na narrativa. Diferente de uma história em que o repórter guia o olhar dos usuários no vídeo esférico, seja pela presença em cena, seja pela locução, na narrativa conduzida por personagem, a força da história reside precisamente nos relatos de personagens - e aqui, naturalmente, surgem questionamentos acerca da questão da objetividade na narrativa imersiva. O uso de uma fonte primária como personagem que conduz o relato é justificado por ser um elemento que dá mais valor e autenticidade à história, além de o jornalista ser visto como uma barreira entre o público e o tema abordado, impedindo que o usuário fique completamente imerso no vídeo (Jones, 2017). Diante do caráter ficcional que marca o filme, a produção recorre a vários recursos para “lembrar” o espectador de que se trata de uma história real, de forma a não desassociar o vídeo animado do tiroteio que teve lugar em Townville. Foram selecionadas aqui as cenas mais representativas para ilustrar as estratégias utilizadas pelos produtores no jogo entre informação e ficção.
O efeito de realidade na produção imersiva
Logo na abertura do vídeo, lê-se o texto: “A verdadeira história de um tiroteio em uma escola”. Segundo os produtores do filme, todas as cenas são baseadas em eventos e em fotos de lugares reais. Da mesma forma, os textos verbais foram falados ou escritos anteriormente pela protagonista. A atenção ao efeito de real pode ser observada em momentos como a representação do parque da escola onde Ava e o amigo brincavam ou do quarto da menina, de onde ela escreve um bilhete para o melhor amigo, Jacob (1’10” do vídeo). Um texto que, segundo a reportagem original, foi escrito alguns dias antes do tiroteio, mas que não chegou a ser entregue, e que é recuperado para que o usuário estabeleça uma conexão com a dimensão humana da história. Mesclando jornalismo e ficção, os produtores recorrem, em todo o filme, a uma narração em voiceover, realizada por Ainsley Deegan, atriz que dá voz a Ava Olsen.
Em uma cena adiante, Ava está no playground da escola com Jacob (Figura 1), remetendo à alegria genuína e à inocência naquele templo da infância e que dá lugar, subitamente, a um cenário de caos e violência. Na sequência do som de tiros, ouve-se um áudio real (2’20” do vídeo), um trecho da ligação telefônica de uma funcionária da escola para o serviço de emergência naquele dia: “Temos um tiroteio na Escola Primária de Townville. Um menino foi baleado. O atirador está andando por aí. E nosso pequeno garoto está lá embaixo. Ele está sangrando horrivelmente”. Mais um recurso utilizado para garantir a veracidade no filme, o áudio, que não é inserido como tal na reportagem original - somente é transcrito - foi estrategicamente acionado para transmitir a ideia do pânico instalado na escola e para lembrar o espectador de que a tragédia realmente aconteceu. É o único momento em que se ouve outra voz que não a de Ava. Como a ideia é adentrar no universo psicológico da personagem - recurso comumente utilizado no jornalismo narrativo -, outros personagens são “silenciados” ao longo da narrativa.
Outro importante recurso usado para remeter à história real são as cartas que Ava escreve para o presidente Donald Trump, para contar o que viveu, e a resposta dele para a menina. As cartas não são mencionadas na reportagem original porque foram escritas depois. Na animação, Ava escreve o texto, narrado em voiceover (5’20” do vídeo). Aqui, a voz da personagem tem um tom marcado pela tristeza do luto. A carta dirigida ao presidente termina com a mensagem: “Por favor, mantenha as crianças a salvo de armas”. Da carta que o presidente enviou em resposta à menina (Figura 2) - apresentada por meio de uma imagem real do documento (6’50”) -, três frases são destacadas no filme (7’12”): “A senhora Trump e eu sentimos muito por saber da perda de seu amigo, Jacob” e “Escolas são lugares onde as crianças aprendem e crescem com seus amigos. Suas salas devem estar livres de medo”. Aqui, atenta-se para um dos princípios jornalísticos, que é o de apresentar “o outro lado” da história, no caso, uma fonte oficial, um representante do governo americano.
Como último elemento semiótico utilizado para provocar o efeito de real, são exibidas, no final do vídeo (7’23”), duas fotografias: uma de Ava e outra de Jacob, com uma legenda sobre o ataque de 28 de setembro de 2016 (Figura 3).
Essas imagens reais apresentadas remetem à afirmação de Aitamurto (2023) sobre a relevância desse jornalismo visual para a credibilidade da prática profissional, de uma atuação ancorada nos valores da exatidão e da objetividade. “Uma fotografia de um acontecimento noticioso num jornal é uma alegação, que afirma os pormenores do acontecimento. O jornalismo visual utiliza assim a verossimilhança das fotografias como prova de uma narrativa autêntica e exata” (Aitamurto, 2023, p. 109). No entanto, o vídeo produzido pelo The Post, e outros produzidos sob a chancela de jornalismo imersivo, com recriação de imagens por computação gráfica, configuram uma narrativa que mistura os códigos do jornalismo e da ficção, da informação e do entretenimento, em que se constroem novas camadas na representação do denotativo e do conotativo, onde o autêntico e o não-autêntico se misturam. Assim, no jornalismo imersivo, “o elemento ‘tal como é’, que representa a exatidão e a objetividade no jornalismo visual, é ofuscado e ultrapassado pelos aspectos conotativos, simbólicos e imaginários (Aitamurto, 2023, p. 110).
Considerações
Historicamente, a prática jornalística sempre foi transformada à medida que novas tecnologias surgiam, num movimento inerente de adaptação ao tempo em que está situada. Assim, a procura por formas narrativas inovadoras, que transcendem as convenções vigentes, tem sido recorrente na profissão. Na década passada, o jornalismo começou a experimentar um novo formato para tornar mais atrativos seus conteúdos audiovisuais, apresentados em geral por meio de reportagens televisas e documentários, numa aproximação com o universo do cinema. Com o surgimento de tecnologias imersivas - a exemplo da realidade virtual e do vídeo 360º - o jornalismo, que por diversas vezes é representado de forma ficcional, em filmes e séries de televisão, recorre mais uma vez aos códigos da ficção - assim como no jornalismo narrativo - para produzir vídeos que apelam para as emoções dos usuários.
A reflexão aqui proposta, apoiada nos Estudos de Jornalismo com os contributos dos Estudos Narrativos, centrou-se nas estratégias narrativas adotadas na construção da história do The Post, estabelecendo um diálogo com os valores jornalísticos da objetividade e da transparência no jogo entre real e ficcional presente no vídeo animado. Rica em detalhes e em cores, em referência ao universo infantil retratado, a animação potencializa o conteúdo da reportagem publicada em 2017, por meio dos recursos audiovisuais acionados. A escolha do jornal pela adaptação para vídeo de uma reportagem longform, que remete ao jornalismo narrativo e que vai buscar nos códigos da literatura elementos como narrativa em 1ª pessoa para construir uma história envolvente, indica a aposta em uma produção imersiva com mais potencial para cativar o público e provocar o efeito de real, na medida em que é conduzida por uma personagem. Ainda que em um formato inovador - um vídeo esférico - a narrativa de 12 Seconds of Gunfire mantém algumas das convenções narrativas estabelecidas na prática jornalística, a exemplo do uso do áudio de uma ligação para o 911 ou da exibição de fotografias das crianças, como provas de autenticidade da história relatada. No entanto, apresenta um perfil psicológico de uma das quatro crianças entrevistadas para a reportagem escrita, aproximando-se do jornalismo narrativo, focado na subjetividade do narrador, o que aponta para um distanciamento do valor jornalístico da objetividade e contribui para tornar mais opaca a linha que separa o jornalismo da ficção. A construção da personagem Ava, figura central na narrativa, busca chamar a atenção do público para a questão da violência armada em escolas dos Estados Unidos e para a política do governo Trump no combate ao problema. Ao encobrir a subjetividade do narrador por meio de falas atribuídas à personagem, o filme causa a ilusão de uma transparência da narrativa em relação ao real que ela representa, como se fosse dotada de uma autenticidade inquestionável na medida em que a história é contada por uma personagem real, cujas citações confeririam veracidade ao relato. Assim, cabe a reflexão acerca do jornalismo imersivo, que por um lado tem o potencial para criar histórias com as quais o público estabeleça uma conexão mais profunda, por outro lado aumenta a tensão entre jornalismo e ficção. Na animação do The Post, os elementos gráficos lembram os usuários de que se trata de uma reconstrução, mas não fica claro para quem interage com o vídeo que a voz infantil usada na narração em voiceover é, na verdade, de uma atriz que interpreta Ava. Fato e ficção se misturam e podem confundir os usuários do filme imersivo, cuja abertura alerta tratar-se de uma história verdadeira. É um exemplo de que o jornalismo imersivo, para atuar de forma ética, precisa estabelecer critérios mais claros de transparência, seja para produções com uso de imagens reais, seja para reconstruções por computador. Apesar dos questionamentos éticos terem sido levantados pelos pesquisadores do campo do jornalismo no que diz respeito aos uso de tecnologias imersivas, ainda faltam regras balizadoras na produção desses conteúdos, com orientações sobre até onde deve ir o jornalismo para contar uma história envolvente. Com fronteiras cada vez mais opacas separando informação e ficção, é preciso que estudiosos e profissionais pensem em soluções para que o jornalismo possa coexistir, de forma ética, com essas tecnologias, mantendo um papel relevante de organização e interpretação da realidade na sociedade contemporânea.