Introdução
A Mutilação Genital Feminina (MGF) é definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como todos os procedimentos que envolvam a remoção parcial ou total dos órgãos femininos externos ou provoquem lesões nos mesmos por razões não médicas. Em risco, podem estar várias crianças na fase de infância e adolescência, mas também mulheres adultas.
A MGF é uma prática complexa, particularmente difícil de abordar, e a sua simplificação pode comportar inúmeras consequências nefastas, sendo até o próprio termo alvo de controvérsia. Neste sentido, as representações uniformes da prática, bem como a utilização da terminologia “mutilação” conduz a que se reduza todos os cortes dos órgãos genitais femininos à prática mais severa. No entanto, as práticas variam desde a punção, para tirar uma gota de sangue, à infibulação, abrangendo diversas práticas que a OMS (1998) condensou em quatro tipos.
Estando cientes do significado que a palavra mutilação comporta, no âmbito desta investigação, optámos pela utilização do termo Mutilação Genital Feminina/MGF por ser aquele é utilizado pelos órgãos de comunicação social portugueses, além de ser o termo adotado pela OMS (1998).
A representação desta prática nos órgãos de comunicação social tem diversas implicações sociais e políticas. Em agosto de 2002, a primeira página do jornal Público deu lugar a um longo artigo sob o título “O holocausto silencioso das mulheres a quem continuam a extrair o clítoris”. Este terá sido um dos primeiros momentos de exposição mediática da MGF em Portugal, tendo então começado também a surgir as primeiras medidas por parte do Estado português de combate e de prevenção à prática. Embora não seja possível afirmar um nexo de causalidade entre os dois acontecimentos, cremos que o momento não deixa de ilustrar a força catalisadora que os meios de comunicação social possuem para influenciar questões que preocupam a humanidade. Por isso, este papel comporta o encargo de ser exercido de forma responsável e construtiva para a sociedade.
Num primeiro momento teórico, enquadraremos a MGF sob o prisma dos Direitos Humanos, procurando trazer à colação não só os principais factores pelos quais se alega que a prática é uma violação destes, como também posições críticas a essa abordagem. Numa segunda parte, examinaremos teoricamente a representação mediática da MGF, tendo presente o poder instigador que os média assumem para mudanças sociais.
Partindo desta ideia, e com um olhar atento sobre os Direitos Humanos, temos como propósito responder à seguinte questão: qual é a representação da MGF na imprensa online portuguesa? Para tal, recorremos metodologicamente à análise temática, conforme é enunciada por Braun e Clarke (2006) e que aliámos à análise de enquadramentos, conforme definida por Entman (1993) e ainda a uma abordagem crítica e feminista que se inspira, nomeadamente, na questão da interseccionalidade como método crítico assim definido por Hill Collins (2019). Através de um corpus de análise de janeiro de 2018 a julho de 2021, composto por 108 conteúdos noticiosos, recolhido a partir de quatro jornais generalistas portugueses (Correio da Manhã, Diário de Notícias, Público e Expresso), onde o tema “Mutilação Genital Feminina” surgiu como foco central, os resultados obtidos serão discutidos em dois momentos distintos: primeiro, identificaremos os temas que surgiram no enquadramento que a MGF teve nos conteúdos mediáticos recolhidos relativamente à definição de problema, diagnóstico de causas, realização de julgamentos morais e sugestão de soluções, conforme as funções definidas por Entman; segundo, alargaremos a perspectiva dos enquadramentos a um momento de discussão de outras questões críticas, que abordaremos numa perspetiva crítica e interseccional, como definida por Hill Collins.
A MGF e os Direitos Humanos
Internacionalmente, a MGF é considerada uma violação dos Direitos Humanos, sob as mais variadas formas. A MGF é frequentemente vista como um contributo para manter as mulheres num estatuto inferior, para fomentar a sua discriminação na sociedade e para controlar a sua sexualidade. As consequências nocivas da prática impedem as mulheres de progredirem e participarem ativamente na sociedade. Assim, enquadrando-se dentro da violência de género, é considerada uma violação fundamental dos direitos humanos das mulheres. A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, dentro do elenco de atos que abrange no seu artigo 2.º, incluiu a MGF como violência contra as mulheres. Fruto da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica de 2011, mais conhecida Convenção de Istambul, enquanto primeiro instrumento dentro da União Europeia a criar um quadro legal para a luta contra a violência de género, vários países da Europa proibiram a MGF, quer seja através de disposições criminais específicas (Áustria, Dinamarca, Itália, Espanha, Suécia, Suíça, Reino Unido e Portugal, por exemplo) ou de disposições gerais do Código Penal que punem lesões corporais e mutilação (Finlândia, França, Alemanha e Holanda, por exemplo). No âmbito dos Direitos das Crianças, todas têm o direito a “desenvolver-se física, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade”, tal como consagrado no Princípio 2.º da Declaração dos Direitos da Criança. É preciso ter em conta que “devido à incapacidade das crianças abaixo de uma certa idade de fornecer consentimento informado, a sua vulnerabilidade fornece uma base potencialmente convincente para denunciar a prática da MGF” (Shell-Duncan, 2008, p. 228).
Quanto ao direito à saúde, o artigo 15.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) afirma que “todas as pessoas têm direito a um padrão de vida adequado à sua saúde e bem-estar”. Não se conhecendo qualquer benefício para a saúde, a prática pode impossibilitar gravemente o bem-estar físico e psicológico das crianças e mulheres. Neste sentido, Johnsdotter (2002) alerta para o facto de que alguns/mas autores/as têm reagido contra o foco ocidental que é dado sobre os riscos à saúde provocados pelo MGF, considerando que se trata de uma imagem distorcida do que entendem da prática.
Na senda seguida por Shell-Duncan (2008), a estrutura dos Direitos Humanos olha, por vezes, para os problemas e para as soluções de maneira muito limitada, até porque o movimento pelos Direitos Humanos articula os problemas com termos políticos e soluções em termos jurídicos, estratégias essas que isoladamente não funcionarão para acabar com a prática. A MGF não é uma prática isolada, representando uma extrema importância dita cultural e cujo fim pode ter múltiplos efeitos sociais potencialmente nefastos para as vidas das mulheres. Paradoxalmente, esta prática que, por um lado, é visivelmente prejudicial, por outro, constitui um ritual de coesão social que conduz à inclusão das mulheres dentro das comunidades. Enquanto ritual de passagem de crianças a mulheres, a MFG é considerada uma prática que as torna capazes de assumirem o seu papel dentro da sua organização social: uma mulher não mutilada perde a sua mais-valia social e é colocada à margem da comunidade. Como refere Marcelino (2007), “em qualquer sociedade, a inclusão social, o sentimento de fazer parte do grupo, de ser aceite pelos pares é fundamental para o equilíbrio de cada elemento e da comunidade como um todo” (p. 117).
Posto isto, atentemos na questão levantada por Silva (2007) de como “a prática da mutilação genital feminina é talvez a prática que desafia de forma mais acutilante todo o edifício que suporta o princípio da universalidade dos Direitos Humanos” (p. 16), acrescentando que ela evidencia a dificuldade de conciliação entre direitos universais, direitos coletivos e direitos individuais. Além disso, é necessário um apelo aos Direitos Humanos que seja refletido, sustentado e consciente e não negligencie a dimensão cultural e política da MGF, recaindo na estigmatização das comunidades que se considera estarem envolvidas. Não se compreendendo verdadeira a prática na sua totalidade, sujeitam-se famílias a sofrimentos desnecessários, enquanto continuamos a falhar com quem dizemos estar dispostos/as a proteger.
A MGF nos media noticiosos
Os órgãos de comunicação social são comummente designados de “quarto poder”, a par dos poderes legislativo, executivo e judicial, tendo o dever de não violar os direitos humanos de outras pessoas quando exercem as suas liberdades. A capacidade dos meios de comunicação em influenciar para questões que preocupam a humanidade comporta uma responsabilidade que exige que este papel seja desempenhado de maneira responsável e construtiva para a sociedade. Não alcançando este objetivo, a influência que têm pode ter um impacto antípoda no público e tornar os meios de comunicação parte do problema (Selvarajah, 2020).
Para Donahue (2016), “os media ocidental parecem ter chegado a um consenso: a mutilação genital feminina (MGF) está sempre errada” (p. 1). Os meios de comunicação têm-se apresentado como agentes sociais na prevenção da MGF, trazendo reflexões sobre a realidade da MGF e a sua relação com a saúde pública e fazendo campanhas que promovem o respeito pelos direitos humanos, enquanto mecanismos de prevenção. Este fenómeno mediático permitiu ainda a possibilidade de denúncia das mulheres sobreviventes de mutilação, começar um debate em torno da prática dentro e fora das comunidades afetadas e refletir sobre como a comunidade política e sociedade civil não se encontravam preparadas para abordar temáticas como o multiculturalismo e os direitos humanos (Silva, 2007).
No entanto, enquadrando-se a MGF numa perspetiva de “um problema de mulheres” e de “só algumas mulheres”, a compreensão desta prática implica olhar para a ligação entre género e todas as intersecções que lhe estão associadas, pelo que deveremos lançar um olhar de como os órgãos de comunicação social têm representado estas questões.
Brooks e Hébert (2006) denotam como os media se apresentam como fundamentais na construção e disseminação das ideologias de género, reconhecendo a tendência do feminismo e dos estudos dos media feministas para privilegiar o género e as mulheres brancas, sobre outras categorias sociais, como raça e classe. Analisando os movimentos feministas, enraizados na luta para acabar com a opressão sexista, estes falharam (e em muito) no facto de, tal como relata hooks (2018), “as mulheres brancas do movimento de emancipação não questionaram esta prática sexista/racista; deram-lhe continuidade” (p. 27). Nas narrativas que nos apresentam “há por vezes uma tendência problemática de embranquecer a história do feminismo” (Matos, 2017, p. 14), apresentando-se esta como o “tipo de feminismo que tem bastante poder e visibilidade na mídia” (Matos, 2017, p. 14).
Como contextualiza Julios (2019), “compreender o fenómeno da MGF requer abordagens teóricas que reconheçam as intersecções de idade, género, contexto socioeconómico, tradições culturais e religiosas patriarcais, bem como barreiras institucionais que prejudicam as possíveis vítimas da MGF, enquanto privilegiam os perpetradores” (p. 9). Brooks e Hébert (2006) referem que, numa sociedade mediatizada, o que é valorizado como importante é muitas vezes fruto daquilo que é produzido e disseminado pelos media. Salientando o papel destes meios para representar realidades sociais, a forma como os indivíduos constroem as suas identidades sociais, como chegam a compreender o que significa ser homem, mulher, negro/a, branco/a, asiático/a, latino/a, indígena até mesmo rural ou urbana é moldada por textos mercantilizados produzidos pelos média para públicos cada vez mais segmentado pelas construções sociais de raça e género (p. 297).
Neste sentido, trazemos aqui à colação a noção de Jornalismo de Direitos Humanos, tecida por Shaw (2011), enquanto “estilo diagnóstico de reportagem que oferece uma reflexão crítica das experiências e necessidades das vítimas e perpetradores de violações (físicas, culturais e estruturais) dos direitos humanos” (p. 58). Com esta prática jornalística, não só se prevê duas conceptualizações essenciais, a da exposição de violações de Direitos Humanos e a da liberdade de expressão, mas também permite que se contemple a prática através de uma ótica que extravase esse papel de denúncia de violações de direitos humanos e que seja um jornalismo para todos os seres humanos. Importa, agora, olhar para a forma como, na prática, o poder por parte dos media noticiosos portugueses é exercido, tematizando e enquadrando de determinadas formas os acontecimentos em torno da questão que aqui nos ocupa.
Resultados e discussão
Percurso metodológico
A partir das questões sobre a problemática que nos ocupa, orientámos a nossa investigação para a seguinte questão: qual é a representação da MGF na imprensa online portuguesa? Para tal, recorremos metodologicamente à análise temática, conforme é enunciada por Braun e Clarke (2006) e que aliámos à análise de enquadramentos, conforme definida por Entman (1993) e ainda a uma abordagem crítica e feminista que se inspira, nomeadamente, na questão da interseccionalidade como método crítico assim definido por Hill Collins (2019).
Confirme Braun e Clarke (2006), a análise temática permite seguir uma abordagem acessível e teoricamente flexível, tendo em conta os objetos de estudo a que supra nos propusemos, enquanto um método qualitativo que possibilita identificar, analisar e interpretar padrões/temas, dentro dos dados recolhidos (Reses & Mendes, 2021). Seguindo a conceitualização de Braun e Clarke (2006), esta investigação sustentada nesta metodologia conduziu-nos a trilhar um caminho de seis etapas: familiarização com os dados; geração de códigos iniciais; procura por temas; revisão dos temas; definição e nomeação de temas; produção do relatório.
Por outro lado, aliou-se uma abordagem crítica e feminista com inspiração na interseccionalidade como método crítico definido por Hill Collins (2019), mostrando que esta componente pode surgir como um método que “abre uma janela para pensar a importância das ideias e a ação social na mudança social” (p. 288).
Optámos por esta metodologia e por estes métodos já que a sua interceção nos permitiria seguir uma abordagem acessível e teoricamente flexível para analisar o conjunto de dados que recolhemos. Assim, constituímos um corpus de análise de janeiro de 2018 a julho de 2021, que é composto por 108 conteúdos noticiosos, sendo a recolha feita a partir da pesquisa da palavra-chave “Mutilação Genital Feminina” como foco central. As peças informativas foram recolhidas a partir das edições online de quatro jornais generalistas portugueses - Correio da Manhã (20), Diário de Notícias (32), Público (37) e Expresso (19).
Veremos em seguida que, num primeiro momento, serão identificados os temas que surgiram no enquadramento que a MGF teve nos conteúdos mediáticos recolhidos relativamente à definição de problema, diagnóstico de causas, realização de julgamentos morais e sugestão de soluções, conforme as funções definidas por Entman; segundo, alargaremos esta análise para um momento de discussão de outras questões críticas, que abordaremos numa perspetiva crítica e interseccional, como definida por Hill Collins. Neste último âmbito, os temas levantados prenderam-se com: ocidental e o dialético do “não ocidental” como o “Outro”; as “school holiday mutilation” e outros estereótipos: as consequências da estigmatização; as “pequenas histórias de terror”; e o impacto da criminalização na mediação dos conteúdos.
Resultados quanto ao enquadramento da MGF na imprensa portuguesa
Sobel (2015) esclarece que, para entender a representação que é dada à MGF na cobertura jornalística, é necessário percecionar como a mesma foi enquadrada. Segundo Entman (1993), enquadramento “é selecionar alguns aspetos da realidade percebida e torná-los mais salientes num texto comunicativo, de modo a promover uma determinada definição de problema, interpretação causal, avaliação moral e/ ou recomendação de tratamento para o item descrito” (p. 52). O autor considera que frames definem os problemas (“determinam o que um agente causal está a fazer com quais os custos e os benefícios, geralmente medidos em termos de valores culturais comuns”), diagnosticam as causas (“identificam as forças que estão a criar o problema”), fazem juízos morais (“avaliam os agentes causais e os seus efeitos”) e sugerem soluções (“oferecem e justificam tratamentos para os problemas e prevêem os seus prováveis efeitos”) (Entman, 1993, p. 52).
À semelhança de Sobel (2015), denotamos a pertinência de identificarmos os temas que surgiram no enquadramento que a MGF teve nos conteúdos mediáticos do corpus de análise relativamente à definição de problema, diagnóstico de causas, realização de julgamentos morais e sugestão de soluções, conforme as funções definidas por Entman (1993). Num segundo momento, como já referimos e como veremos nos pontos que se seguem, alargámos a perspetiva dos enquadramentos a outras questões críticas, que abordámos numa perspetiva crítica e interseccional, como definida por Hill Collins (2019).
Relativamente ao primeiro momento de identificação dos temas segundo a perspetiva dos enquadramentos, verificámos o seguinte:
No que concerne à definição do problema, a MGF foi enquadrada nos conteúdos jornalísticos recolhidos maioritariamente pelo prisma de problema de saúde e de abuso de direitos humanos. Houve igualmente conteúdos que definiram o problema enquanto violência, tendo-se aqui em conta quando a MGF é enquadrada como violência de género ou como ofensa à integridade física ou psicológica. Identificámos ainda a temática de consequências nocivas generalizadas como definição do problema, quando os conteúdos não faziam referência específica às consequências ou extrapolavam as consequências na saúde, incluindo outras, nomeadamente o impacto económico.
Quando os artigos apresentavam causas para a prática, estas apareciam sempre enquadradas na temática de um ritual ou de uma tradição de foro cultural ou religioso, fazendo referência directa a essa componente ou mencionando-se neste âmbito argumentos que sustentam a MGF como um ritual de purificação, de passagem para a vida adulta ou uma condição necessária para casamento. No entanto, também houve notícias que apresentaram como causa a sexualidade das mulheres, enquadrando-a distintamente de ritual ou de tradição de foro cultural ou religioso.
Dentro dos juízos morais, onde se teve em conta em quem recaía a “culpa”, os temas que surgiram foram relacionados com a sociedade, na falta de medidas protetoras por parte dos Estados, na família e na pessoa que fez o corte.
Por último, procurámos ver se os artigos sugeriram soluções para a prevenção da prática. Como temas principais das soluções apresentadas, identificámos os seguintes: formação de profissionais em variados níveis nos mais diversos setores, como na saúde, na educação, na justiça, na segurança e no Estado; participação dos jovens, líderes religiosos e homens; criminalização da prática; apoio a organizações e campanhas; campanhas e programas que informem e sensibilizem para as consequências; trabalho conjunto internacional para o combate; chegar às comunidades afectadas pela prática; criar mecanismos de proteção e apoio a crianças e mulheres em perigo e risco e coaduná-los com soluções que envolvam os familiares e as comunidades; apoio às sobreviventes; investimento monetário numa campanha global; e empoderamento feminino.
Após este primeiro momento de percecionar em que temáticas foi enquadrada a MGF quanto a definição de problema, a causas, a julgamentos morais e a soluções, evidenciamos a existência de outros temas que careciam de uma análise mais específica. Assim, e no que se segue, passaremos a examinar criticamente esses outros temas que devem ser considerados numa perspetiva feminista que, nomeadamente, adota a interseccionalidade como um método que “abre uma janela para pensar a importância das ideias e a ação social na mudança social” (Collins, 2019, p. 288).
Discussão interseccional das temáticas
Ocidental e o dialético do “não ocidental” como o “Outro”
Como constata Frick (2014), “ao longo das últimas décadas, a migração devido à herança colonial, mobilidade de trabalho e regimes de asilo transformou quase todas as sociedades europeias em condições multiculturais substanciais” (pp. 1-2). A autora descreve como “a expectativa de que os imigrantes logo se livrariam da sua marca cultural assim que entrassem em contacto com a supostamente superior civilização europeia experimentou uma refutação empírica” (p. 2).
Wade (2009) usa o termo “exemplarismo” como uma perspetiva americana de ser um exemplo para o resto do mundo, distinguindo-se assim do nacionalismo, uma vez que a lealdade se deve a todas as sociedades que se aproximam do estilo de vida americano; do etnocentrismo, enquanto “crença na superioridade da própria cultura sobre as outras”, tendo em conta se trata de um imperativo moral em culturas consideradas inferiores para que igualem o exemplar; e do racismo, devido ao facto de se dar ênfase à superioridade cultural em vez da racial.
Assim, como a autora indica, esta narrativa exemplarista, que se pode considerar típica de todo o mundo dito ocidental, considera uma das suas conquistas a igualdade de género, onde, embora as mulheres possam estar em desvantagem no Ocidente, existe a crença que a opressão sofrida por mulheres de outros lugares é incomparável com a que se vive no Ocidente (Wade, 2009). Na lógica binária modernidade/ tradição, as mulheres ocidentais são vistas como modernas e livres e as mulheres não ocidentais como tradicionais e oprimidas (Wade, 2009).
O problema nasce essencialmente quando as notícias surgem inspirados na perspetiva exemplarista de Wade, mas enquadrados como opressão feminina e depravação cultural (Wade, 2009). Ou seja, quando a luta pela eliminação da MGF tem como intuito o estigma da natureza bárbara de outras culturas, inferiorizando-as.
Vejamos como esta perspetiva se encontra bem expressa nos artigos do Expresso Mutilação genital feminina “não é mais do que violência de género”1 com a afirmação “custa acreditar que hoje em dia ainda se encontre em sociedades ocidentais. Mas encontra-se. E não é tão rara como isso” e 50 raparigas hospitalizadas após serem sujeitas à mutilação genital feminina com a declaração “a operação continua a ser praticada em países da África, da Ásia e do Médio Oriente, constituindo uma evidência particularmente chocante da natureza patriarcal dessas sociedades”. Estas duas afirmações presentes nos conteúdos mediáticos recolhidos denotam uma perspetiva onde claramente se superioriza a cultura ocidental, inferiorizando culturas consideradas não ocidentais.
Uma prática não resume uma cultura. Atentemos nas palavras de Dirie (1998): “por criticar a prática da mutilação genital feminina, algumas pessoas pensam que não aprecio a minha cultura. Mas estão tão erradas. Oh, eu agradeço a Deus todos os dias por ser de África. Todos os dias” (p. 221).
Dembour (2001) alude ao facto de que “para uma sensibilidade ocidental, a própria ideia de que tais operações sejam realizadas em mulheres jovens e até em bebés causa calafrios na espinha e enche a pessoa de horror. Como isso pode ser possível?” (p. 60). Este relato teve lugar em alguns conteúdos mediáticos recolhidos como, por exemplo, no artigo do jornal Expresso Mutilação genital feminina “não é mais do que violência de género”, quando refere: “Atualmente, como passou a ser penalizado, é feito em crianças mais pequenas. Muitas vezes à nascença, muitas vezes quando ainda são bebés de meses, com um mês, mês e meio”.
A maioria dos conteúdos recolhidos quando cita pessoas e entidades resume-se essencialmente perspetivas ocidentalizadas, como por exemplo a OMS, a UNICEF, a ONU ou figuras de Estado portuguesas. Em 108 artigos analisados, poucas notícias evidenciaram uma preocupação em citar pessoas que vamos denominar como conhecedoras da prática ou pertencentes às comunidades afectadas pela prática. Numa vertente extremamente ocidentalizada onde facilmente as mulheres acabam por ser vistas como culpadas da prática, “o argumento de que a excisão é um ato de amor parece aberrante” (Dembour, 2001, p. 66), pelo que conteúdos noticiosos incidindo em relatos de sobreviventes se manifestam cruciais para a compreensão da prática. O Público é o único dos jornais aqui analisados que nos conteúdos mediáticos referentes a MGF contém uma caixa de resposta para a questão “Faz parte de uma comunidade afectada pela mutilação genital feminina/corte? Está envolvido/a no combate a esta prática? Deixe-nos uma mensagem e ajude-nos a conhecer melhor esta realidade”, denotando um interesse em perspetivar a MGF num prisma que não se cinja
a pessoas/entidades ocidentais e uma preocupação em conhecer melhor a prática.
As “school holiday mutilation” e outros estereótipos: as consequências da estigmatização
Quando os órgãos de comunicação social começaram a incluir a MGF na sua agenda, Sobel (2015) relata como “os críticos foram rápidos em condenar os meios de comunicação por não cobrir o assunto ou por torná-lo sensacionalista” (p. 385). A autora acrescenta que a importância que os media têm em moldar o discurso público e em influenciar decisões de formulações políticas, pelo que uma cobertura “precisa” é essencial. Mestre i Mestre e Johnsdotter (2017) debruçam-se sobre a questão de a estigmatização da MGF conduzir a que se simplifique a prática através de estereótipos como “European girls being circumcised on kitchen tables” ou “school holiday mutilation” sem se atender e verdadeiramente compreender a complexidade e dificuldade da prática que não corresponde na sua grande maioria aos “simplistic cognitive models” que são definidos.
Em Portugal, o conceito de “school holiday mutilation” ocupou lugar na cobertura dos dois casos que moveram os tribunais para tomada de decisões: uma delas na retirada “de urgência” de duas crianças aos seus pais, tendo o serviço de obstetrícia onde tinha nascido uma das crianças alegado que a mãe tinha manifestado a intenção de levar as filhas dentro de seis meses à Guiné e aproveitaria para submetê-las à prática, e a outra na condenação a três anos de prisão a uma mãe pelo crime de MGF, que veremos melhor infra. Dentro dos conteúdos mediáticos recolhidos, surgiram ainda notícias referentes a campanhas contra a MGF em aeroportos.
Embora, em nosso entender, não seja evidente se existe uma estigmatização ou apenas um relato dos factos por parte dos jornais analisados, a verdade é que, não tendo a MGF uma visibilidade considerável nos órgãos de comunicação social e, dentro dessa pouca visibilidade, aparecendo um número significativo de notícias que alerta para “estas viagens”, remete o público para uma ideia de simplificação da prática enquanto acontecendo apenas no decurso das férias escolares com intenções premeditadas e pré-concebidas de que a viagem se vai realizar só para esse fim. A linguagem e o discurso utilizados para abordar a MGF podem ser uma ferramenta chave para aumentar a consciencialização para o potencial das mulheres, crianças e comunidades e promover os elementos essenciais para a eliminação da prática. Por isso, incumbe aos meios de comunicação social a sensibilidade de adotar uma linguagem precisa e não estigmatizante. A linguagem e o discurso utilizados pelos media têm um impacto direto nas formulações que o público tece sobre a prática, podendo positivamente levá-lo a desempenhar um papel ativo na prevenção ou negativamente reforçar-lhe estereótipos e preconceitos.
O próprio uso do termo “Mutilação Genital Feminina” em todos os conteúdos que recolhemos pode ser controverso. Esta terminologia, cunhada em 1970 e utilizada em textos internacionais a partir do início de 1990, apareceu em contraste com o termo circuncisão feminina, que foi considerado muito próximo com circuncisão masculina. A expressão Corte Genital Feminino surgiu como um termo culturalmente mais sensível para descrever a prática, havendo instituições que optam pela combinação de Mutilação Genital Feminina/Corte. A palavra mutilação é considerada por muitos/ as como sendo forte, podendo ser crítica para as comunidades afetadas, prejudicar o movimento contra a prática e recair numa perspetiva estigmatizante e depreciativa. Contudo, há também quem considere que a utilização de locuções como corte ou circuncisão não denotam tão fortemente os danos sofridos, pelo que o termo MGF surge como um instrumento de consciencialização e de defesa. Neste sentido, cremos que a posição que deverá ser tomada passa por “um/a jornalista (…) em contacto direto com uma sobrevivente ou comunidades afectadas deve perguntar qual termo a pessoa ou comunidade prefere, para evitar a alienação e mostrar sensibilidade para os indivíduos que são sobreviventes da violência” (End FGM European Network, 2016). Como abordámos no ponto anterior, na retórica ocidental, as mulheres sobreviventes de MGF surgem maioritariamente como vítimas totalmente oprimidas e não como agentes sociais com direitos próprios. É precisamente como vítimas que as pessoas submetidas à MGF surgem identificadas na maioria dos conteúdos mediáticos recolhidos. A utilização da palavra vítima é igualmente problemática, dando-se prevalência à utilização do termo sobrevivente. Sobrevivente aparece como um elemento empoderador da linguagem e enfatiza a resilência das pessoas submetidas à prática, enquanto um papel ativo na superação e no combate à MGF, ao mesmo tempo que denota a violência pela qual passaram. Não se pode descurar que há quem prefira a terminologia vítima, não só porque esta tem um significado legal numa prática que se encontra criminalizada na maioria dos países, mas também porque manifesta “empoderamento para demonstrar que a violência a que foram submetidas é reconhecida e não esquecida” (End FGM European Network, 2016). Assim sendo, à semelhança de como denominar a prática, os/as jornalistas devem sempre questionar qual o termo que as mulheres ou crianças entrevistas preferem que se usem. Na ausência de entrevistas, dever-se-á privilegiar o uso da palavra sobrevivente.
Igualmente, na nossa visão, dever-se-á privilegiar, por parte dos meios de comunicação social, a expressão “comunidades afetadas pela prática” em vez de “comunidades que praticam”. A primeira procura evidenciar uma realidade mais abrangente, denotando que a prática é prejudicial tanto para as sobreviventes como para as comunidades, enquanto a segunda parte de uma perspetiva mais neutra e descritiva (End FGM European Network, 2016).
As “pequenas histórias de terror”
Johnsdotter (2002) traz-nos a expressão de “pequenas histórias de terror” enquanto narrativas que têm como características denotar tudo de tão diabólico que se possa imagina e que pretendem provocar a indignação ocidental sobre a MGF. No mesmo sentido, Sobel (2015) ilustra como “representações dos média sobre o CGF são acusadas de embelezamento grosseiro, servindo a função de excitar o público ocidental com histórias terríveis sobre a dominação sexual dos homens africanos sobre as mulheres” (p. 386).
O conceito de pânico moral surge como um medo ou uma preocupação que é desproporcional à ameaça representada pelo comportamento (ou suposto comportamento) de um determinado grupo de pessoas, de acordo com Johnsdotter (2002). Para tal concorrem cinco características: preocupação (enquanto a sociedade como um todo estar ameaçada de uma forma ou de outra), hostilidade (enquanto dicotomizações de personificação do mal, com uma divisão entre “nós” e “eles”), consenso (enquanto aceitação mínima de que a ameaça é real e causada por certas pessoas), desproporcionalidade (enquanto denotação da existência de um maior número de indivíduos envolvidos do que aqueles que realmente são) e volatilidade (enquanto explosões repentinas de atenção que também rapidamente diminuem) (Johnsdotter, 2002). Neste sentido, a história de uma menina de 10 anos que morreu, na Somália, depois de sofrer uma mutilação genital feminina assumiu contornos distintos nos conteúdos mediáticos analisados. O jornal Público, no artigo Menina de dez anos morre na Somália após mutilação genital focou-se na falta de medidas no país. Já nos artigos do jornal Correio da Manhã Pai apoia ritual depois de a filha de 10 anos morrer mutilada e do jornal Expresso “Foi levada por Alá.” Menina de 10 anos morre depois de mutilada genitalmente o ênfase da situação foi atribuído ao pai da criança. As notícias pretendem causar o choque no público contando que o pai “continua a defender a prática da mutilação e acredita que a filha foi “levada por Alá”” ou “o pai da criança aceita a morte da filha, acredita que ela foi “levada por Alá” e defende a prática”. Estes dois artigos transparecem uma tentativa de causar o choque, o horror e o terror no público, enaltecendo a “natureza bárbara” do pai ao apoiar a prática após a morte da filha.
O impacto da criminalização na mediação dos conteúdos
Em Portugal, a Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, trouxe alterações ao Código Penal, entre as quais a autonomização do crime de Mutilação Genital Feminina no artigo
144.º-A. Esta autonomização veio em cumprimento da já mencionada Convenção de Istambul, ratificada por Portugal em 2013 e com entrada em vigor em 2014. Com o enquadramento que foi dado no Código Penal, “existe uma conexão com os crimes sexuais, na medida em que a liberdade e autodeterminação sexual da mulher é gravemente cortada e condicionada” (Lopes & Milheiro, 2015, p. 262).
Sublinha-se MacKinnon (2007) quando refere “a maioria das mulheres dirá que a lei tem pouco a ver com as suas vidas quotidianas” (p. 32). Mas a criminalização da prática e os casos que daí decorrem tem tido grande relevância para os meios de comunicação social. No final de 2020 e durante o ano de 2021, o caso de uma mãe acusada do crime de MGF, por ter permitido o corte da filha, teve cobertura por várias vezes nos jornais portugueses por se tratar do primeiro julgamento e da primeira condenação pelo crime em Portugal.
A sentença do tribunal de primeira instância resultou numa condenação a três anos de prisão efetiva, que em nada se pautou pela função preventiva que o Direito Penal assume, sendo que posteriormente se veio confirmar, de alguma forma, esse facto pelo Tribunal da Relação de Lisboa ao suspender a execução da pena. O Tribunal de segunda instância considerou que “a arguida é uma jovem mãe então com 19 anos de idade, incapaz de se sobrepôr à pressão exercida pela sua família, encontrando-se num contexto de grande vulnerabilidade, sem condições para resistir às normas sociais impostas” e que “o cumprimento efectivo da pena de 3 anos de prisão por parte da arguida não deixaria de representar um novo castigo para a sua filha de tenra idade, já por si fragilizada pelo sofrimento que lhe foi infligido, e a precisar da mãe para o seu crescimento”.
O tribunal de primeira instância não teve em conta os depoimentos da arguida de que não “cortou” nem “mandou cortar” a zona genital da filha e que repudiava a prática, vendo a sua negação como uma manifestação de não haver “qualquer arrependimento em julgamento, chegando ao ponto de negar a evidência científica e de depreciar a intervenção dos médicos e enfermeiro do centro de saúde que tiveram a premonição de que tal iria acontecer, como veio a suceder, mas não foram a tempo de evitar os maus tratos e os sofrimentos infligidos à menor”. O tribunal nunca olhou para a arguida num prisma de ela própria sendo sobrevivente de MGF, apenas resumindo-a a uma posição de culpada.
A cobertura mediática que foi dada ao caso acabou por perpetuar o entendimento do tribunal. Conforme Mestre i Mestre e Johnsdotter (2017), “as notícias podem ser socialmente úteis em sociedades democráticas quando descrevem problemas sociais e crimes e interrogam a política, legislação, policiamento e processos judiciais” (p. 21). Os jornais analisados não procuraram interrogar aprofundadamente as componentes dúbias deste processo judicial. O foco principal das notícias cingiu-se sempre à argumentação dada pelo tribunal, delegando para segundo plano e com apenas uma breve referência de todas as componentes que nos fazem questionar se este foi um processo justo ou não.
À excepção do jornal Público, os jornais Correio da Manhã, Diário de Notícias e Expresso contribuíram para um duplo julgamento (o judicial e o do público) da arguida ao revelar o seu nome e o da filha nos conteúdos mediáticos que foram recolhidos. Se na cobertura da primeira condenação no Reino Unido pelo crime de mutilação genital feminina, reportada por dois dos jornais aqui em questão, se teve em conta que o nome da arguida não pode ser revelado para proteger a identidade da vítima, a mesma protecção não foi conferida ao caso português por estes jornais.
Assim, Mestre i Mestre e Johnsdotter (2017) têm-se debruçado sobre vários casos que configuram situações em que se provocou um sofrimento complemente desnecessário a famílias, submetidas injustamente a processos judiciais, motivados pela falta de conhecimento sobre a prática. Neste sentido, as autoras consideram que, tanto o conceito de “defesa cultural” como o de “perícia/conhecimento cultural” precisam de ser mais explorados. Frick (2014) define que “dentro de um determinado sistema de direito penal, a defesa cultural pode funcionar em dois aspetos: no que diz respeito à exculpação, ou seja, a exclusão de qualquer culpa com o efeito de que nenhuma punição seja infligida; ou em relação aos factores atenuantes, que reduzem a culpa do réu e a pena sucessiva” (p. 2). Já Mestre i Mestre e Johnsdotter (2017) explicam que “a introdução de perícias/conhecimentos culturais em processos judiciais criminais não é sinónimo de defesa cultural; em vez disso, ajuda a contextualizar os atos criminosos sem reforçar os estereótipos” (p. 2).
Conclusão
O debate sobre a MGF nos países do dito mundo ocidental, no qual Portugal se insere, apresenta prismas tanto melindrosos como distintos: “um que vê o CGF como uma questão feminista e uma violação bárbara dos direitos humanos, e outro que vê os defensores da primeira visão como imperialistas culturais ocidentais” (Sobel, 2015, p. 386). A existência de diversas culturas pelo mundo implica também que existam diversas maneiras através das quais os direitos são interpretados e aplicados. Dentro do elenco de componentes que poderíamos aqui trazer em jeito conclusivo para explicitar a multiplicidade de questões que a MGF suscita, recordemos que esta prática levanta a sua índole problemática, desde logo, por se enquadrar numa perspetiva de “um problema de mulheres” e de “só algumas mulheres”. A discriminação histórica e sistémica sofrida em função do género e de todas as intersecções que lhe estão associadas culminam num continuum de discriminação, nos mais diversos âmbitos da vida quotidiana. As pessoas enquadradas em grupos minoritários não só têm sido negligenciadas ao longo de toda a história da humanidade, como no presente momento ainda têm de erguer vozes em apelo ao que deveria ser óbvio: os seus direitos são Direitos Humanos.
A MGF é representada pelos meios de comunicação social como um problema social recorrente, sendo o público conduzido para o facto de que a prática é sempre nociva. E, na verdade, na medida em que é um procedimento em que os órgãos genitais femininos são deliberadamente cortados, feridos ou alterados, sem qualquer razão médica para que tal seja feito, é, com efeito, algo muito violento sobre os corpos das crianças e mulheres que com frequência não podem dizer “não”, no exercício do controlo dos seus corpos. No entanto, é fundamental também perceber que se trata de um problema muito complexo. A MGF constitui uma parte crítica da identidade de mulheres e de meninas muito jovens em muitas culturas. Em algumas comunidades, a prática sinaliza o amadurecimento de idade e solidifica a adesão dentro da comunidade. Este rito de passagem tem o apoio das autoridades locais, incluindo líderes tribais ou religiosos, e até mesmo algumas equipas médicas, sendo muitas vezes acompanhado por celebrações, reconhecimentos públicos e presentes.
O que isto demonstra é que não basta reconhecer o problema como uma prática criminosa à luz do Ocidente. É preciso compreender normas, contextos e expectativas culturais para compreender por que razão, por exemplo, pode ser difícil a uma jovem menina ou mulher dizer “não” à prática. As pressões sociais para se conformar, o medo de não ser aceite pela sua comunidade, o medo de ser vista como alguém que se não pode casar são factores muito reais que têm de ser compreendidos de forma interseccional e que raramente são transmitidos nas notícias para as quais, com frequência, se trata de uma luta para “salvar” o outro não ocidental.
Recordamos a visão de Davis (2020) ao considerar que “é fundamental resistir à representação da História como obra de indivíduos heróicos, para que as pessoas reconheçam hoje a sua potencial capacidade de agir como parte de uma crescente comunidade de resistentes” (p. 17). Organizações e pessoas ocidentalizadas surgem muitas vezes como os “indivíduos heróicos” no combate à MGF nos média noticiosos. Esta mensagem transmitida por Davis transmite-nos duas questões essenciais: é preciso dar voz às sobreviventes, enquanto “crescente comunidade de resistentes” e a urge a inserção de sobreviventes permite-nos ter um conhecimento real da prática, sem afloramentos ocidentais que tendem a simplificá-la.
Esta inclusão poderá igualmente ajudar quanto à linguagem e o discurso utilizados para abordar a MGF. A linguagem e o discurso utilizados pelos meios de comunicação social têm um impacto direto nas formulações que o público tece sobre a prática. Se o uso de uma terminologia cuidadosa pode contribuir para positivamente os média desempenharem uma função ativa na prevenção, já o recurso a vocabulários imprecisos e degradantes podem negativamente reforçar estereótipos e preconceitos e prejudicar o movimento global contra a MGF.
Olhar para a MGF pela ótica dos Direitos Humanos - e mais especificamente na ótica dos Direitos das Mulheres implica que a estrutura destes não limite a articulação entre ambos em termos políticos e em soluções jurídicas. Estas estratégias isoladamente dificilmente funcionarão para acabar com a prática. A autonomização da MGF como crime no Código Penal em 2015 e os casos que daí decorrem tem tido grande relevância para os meios de comunicação social. É crucial que estes clarifiquem que a vida das mulheres, infelizmente, não muda com medidas legislativas, enquanto se continuar a conferir um determinado papel às mulheres na sociedade e a perpetuar atitudes, percepções e estereótipos em relação a esse papel. Além disso, alguns casos levados à justiça nem sempre fazem valer o verdadeiro significado que este conceito deveria representar. Os média devem assim procurar interrogar aprofundadamente medidas políticas, legislações e processos judiciais que se manifestem dúbios quanto à função de justiça que deveriam estar a prosseguir.
Com a presente investigação, pretendemos contribuir para uma melhor perceção de como a prática é representada na imprensa online portuguesa, bem como oferecer possíveis soluções para as questões problemáticas que foram levantadas nessa representação.