INTRODUÇÃO
Combater a malnutrição em todas as formas, desde a desnutrição à obesidade, é um desafio do século XXI (1, 2). Além da morbilidade e mortalidade associada à alimentação inadequada, o atual padrão de consumo alimentar é uma ameaça ambiental, pela perda de biodiversidade, poluição do solo, água e ar (3). A produção agrícola é responsável por 40% do uso global da terra (4) e representa 69% do consumo total de água doce (5). Os sistemas alimentares globais correspondem a cerca de um terço do total de emissões de gases com efeito de estufa (6). E, enquanto 870 milhões de pessoas passam fome no mundo, um terço dos alimentos produzidos é desperdiçado (7). Como resultado, a crise climática influenciará a qualidade e quantidade de alimentos produzidos e a capacidade de distribuí-los de forma equitativa (8, 9).
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura define dieta sustentável aquela que tem baixo impacto ambiental e contribui para a segurança alimentar e nutricional da população, assim como para o seu estado de saúde, no presente e no futuro. As dietas sustentáveis protegem e respeitam a biodiversidade e o ecossistema; além de otimizarem os recursos naturais e humanos. Estas são também culturalmente aceites, nutricionalmente adequadas, acessíveis pela população, seguras e economicamente justas (10). Em 2015, a Organização das Nações Unidas estabeleceu um plano de ação com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030 (11). Embora Portugal ocupe o 18.º lugar, num total de 166 países que são avaliados em relação à implementação dos ODS, permanecem grandes desafios para erradicar a fome, garantir a segurança alimentar, melhorar a alimentação e o estado nutricional das populações e promover a agricultura sustentável; e garantir padrões de produção e consumo sustentáveis (12). Deste modo, deve ser dada mais ênfase à mudança de comportamentos dos consumidores, para que os padrões alimentares beneficiem a saúde humana e do planeta (13). Urge uma intervenção direcionada à população, o que requer atenção aos contextos culturais e sociais dos consumidores (14). A avaliação do grau de preocupação e de adesão a comportamentos e atitudes relacionadas com a sustentabilidade é relevante na definição de ações que conduzam a práticas de consumo alimentar sustentáveis. O recurso a escalas e questionários permite avaliar a adesão a padrões alimentares, a sua associação com resultados em saúde ou estudar fatores associados, sendo importantes na intervenção em política alimentar e na educação para a saúde (15). Na literatura é possível encontrar instrumentos de medição que avaliam comportamentos sustentáveis associados à alimentação. Tobler et al. (16) desenvolveram o Index of sustainability of food practices, constituído por 6 itens, em escala de 4 pontos, que procura conhecer a predisposição de consumidores adultos suíços para a adoção de padrões de consumo alimentar que minimizem o impacto ambiental. Verain et al. (17) exploraram a distinção entre escolhas alimentares sustentáveis e comportamentos de restrição em adultos holandeses, através da aplicação da escala Sustainable food behavior, de 9 itens e resposta dicotómica. Weller et al. (18) validaram a escala Green eating behavior, com 6 itens, para avaliar a consciência ambiental aplicada ao consumo alimentar em universitários americanos. Todavia, estes instrumentos não consideram premissas associadas a uma alimentação saudável na avaliação de comportamentos alimentares sustentáveis. Para suprir esta lacuna, Żakowska-Biemans et al. (19) desenvolveram a escala Sustainable and Healthy Eating (SHE) Behaviors para avaliar os comportamentos alimentares saudáveis e sustentáveis (CASS) autoreportados por adultos jovens polacos. A escala integra 34 itens e avalia 8 fatores: Alimentação saudável; Certificação e marcas de qualidade; Redução do consumo de carne; Preferência por alimentos locais; Escolha de alimentos pobres em gordura; Redução do desperdício alimentar; Respeito pelo bem-estar animal e Preferência por alimentos sazonais. Cada afirmação é pontuada conforme a sua frequência, numa escala de resposta tipo Likert (1-nunca, 2- muito raramente, 3-raramente, 4-às vezes, 5-frequentemente, 6-muito frequentemente, 7-sempre). As pontuações dos fatores são calculadas pela média das pontuações atribuídas aos itens desse fator. A pontuação total da escala é obtida pela média das pontuações atribuídas aos fatores.
No nosso melhor conhecimento, em Portugal, são parcos os instrumentos que avaliam os CASS. O Índice KIDMED que tem por objetivo avaliar a adesão ao padrão alimentar mediterrânico, um padrão alimentar saudável e sustentável adaptado à cultura portuguesa, seria um instrumento interessante mas este encontrase atualmente adaptado para a população alvo a que se destina - adolescentes (20). Desta forma, com o presente estudo pretendese traduzir e adaptar a escala SHE para uma população de jovens adultos portugueses a frequentar o ensino superior. O período universitário pode ter um grande impacto no desenvolvimento de padrões de consumo alimentar que terão efeitos a longo prazo, na idade adulta (21), pelo que se revela de grande interesse estudar e avaliar os hábitos alimentares deste segmento da população. Como a compreensão incorreta dos itens poderá comprometer a avaliação de CASS, a adaptação deve ponderar as perspetivas dos estudantes, maximizando-se a obtenção de equivalências semântica, idiomática, conceptual e cultural entre a escala original e a escala portuguesa (20). A sua aplicação permitirá traçar um diagnóstico aos CASS dos portugueses, útil na elaboração de programas de saúde pública e basilar para acelerar o cumprimento da Agenda para o Desenvolvimento Sustentável.
OBJETIVOS
Traduzir e adaptar transculturalmente a escala SHE para a língua portuguesa em universitários portugueses.
METODOLOGIA
Tradução e Adaptação Transcultural da escala SHE
A partir da versão em inglês cedida pelo autor original, os itens da escala foram traduzidos e adaptados para a língua portuguesa, de acordo com a recomendação internacional de Beaton e Bombardier (22), seguida em trabalhos anteriores (20). 1: A primeira etapa constitui na tradução preliminar da versão em inglês para a língua portuguesa, por dois indivíduos independentes, ambos fluentes em inglês e nativos da língua portuguesa, sendo que apenas um estava bem informado sobre os objetivos do estudo e conceitos para análise. 2: As traduções foram avaliadas pela equipa de investigação e pelos tradutores e foi obtida uma versão consensualizada. 3: Seguiu-se para a retrotradução, ou seja, a tradução da versão em língua portuguesa para o inglês, por um indivíduo bilingue, nativo em inglês e sem conhecimento sobre o instrumento, o que permitiu reconhecer inconsistências em relação à versão original. 4: A equipa de investigação e os tradutores envolvidos analisaram as diferenças entre a versão original, as duas traduções e a retrotradução, e a versão retrotraduzida foi considerada equivalente à original. 5: O estudo incluiu uma amostra não probabilística de conveniência, tendo sido convidados 40 participantes, dos quais 35 aceitaram integrar o estudo e 5 recusaram. Foi realizado um pré-teste através de entrevistas semiestruturadas. Cada participante preencheu um questionário que integrava dados sociodemográficos, como idade, sexo, área de estudo (Escola Superior de Saúde (ESS), Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto (ISCAP) ou Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP)) e grau académico que frequenta (licenciatura ou mestrado), e a escala. Depois, o participante foi entrevistado, com recurso a um guião de entrevista com os objetivos da investigação, as questões fundamentais e de recurso. Assim, foi possível verificar se os itens da escala eram compreendidos e indagar sobre a sua extensão. 6: Após análise das perspetivas dos participantes acerca da escala, obtidas pelos dados transcritos das entrevistas, foi necessário reformulá-la para melhor adaptação à amostra em estudo. 7: Um painel de 5 especialistas, com publicações nas áreas da sustentabilidade alimentar e psicologia da saúde, fez sugestões à clareza e adequação da escala e validou as adaptações efetuadas.
Análise dos Dados
O conteúdo das entrevistas foi transcrito em texto, tendo sido feita a análise de conteúdo com uma primeira leitura dos dados e, depois, o agrupamento da informação numa tabela de categorias e subcategorias (23). A análise descritiva dos dados obtidos com a resposta ao questionário foi realizada recorrendo-se ao programa IBM SPSS Statistics 26.0. Para testar a normalidade das variáveis foi utilizado o teste de Shapiro-Wilk. Aplicou-se o teste T-Student para 2 amostras independentes, de modo a analisar a pontuação média total e a pontuação média por fator da escala em função do sexo. O mesmo teste foi aplicado para explorar a pontuação média total em função do grau académico e o teste de Kruskal-Wallis para analisar a pontuação média total da escala em função da instituição de ensino. Foi fixado α=0,05 como nível de significância.
RESULTADOS
Caracterização da Amostra
A média de idades dos estudantes foi de 21,8 anos (DESVIO-PADRÃO(DP)=1,5), variando entre 19 e 25 anos. A amostra era maioritariamente do sexo feminino (56,7%). Estavam inscritos no ISEP 46,7% dos estudantes, 33,3% no ISCAP e 20,0% na ESS. Frequentavam licenciatura 66,7% e mestrado 33,3%.
Avaliação dos CASS
A pontuação média total foi de 3,9 (DP=1,1). A pontuação média do fator “Redução do consumo de carne” foi a mais baixa da escala, 2,5 (DP=1,1). A pontuação média do fator “Evitar o desperdício alimentar” foi a mais elevada da escala, 5,4 (DP=1,2). As pontuações médias total e por fator constam na Tabela 1. Obtiveram-se diferenças estatisticamente significativas (p=0,024) na pontuação média total entre jovens do sexo feminino e do sexo masculino, ou seja, as estudantes tiveram maior frequência dos CASS. Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas (p=0,220) na pontuação média total entre universitários na licenciatura e no mestrado e o mesmo se observou na pontuação média total entre jovens conforme a área de estudo (p=0,883).
Proposta de Adaptação da Escala SHE
A totalidade das alterações realizadas à escala é apresentada na Tabela 2, sendo que se destacam as seguintes:
- Originalmente, apenas os pontos mínimo, máximo e intermédio da escala de Likert estavam legendados. A pedido de 3 estudantes, todos os pontos foram legendados, para facilitar o raciocínio aquando do preenchimento da escala.
- O termo “vegetais” foi trocado por “produtos hortícolas”, por ser o adequado do ponto de vista técnico-científico. A alteração foi uniformizada em toda a escala.
- Na afirmação (A) 3 incluíram-se exemplos de aditivos alimentares naturais e artificiais, pois 3 estudantes reportaram dificuldades (Resposta (R) 1: “Não sei diferenciar aditivos de ingredientes artificiais.”). Na A5 foi adicionado um exemplo de ingrediente artificial. A A4 teve erros na interpretação por desconhecimento do conceito (Entrevistadora (E): “Pode dar-me um exemplo de um alimento que contém ingredientes naturais?”; R20: “A fruta...”), logo os peritos exemplificaram.
- Na A6, o conceito “alimentos orgânicos” foi substituído por “alimentos de produção biológica”, por ter sido referido pelos especialistas que seria o mais adequado em termos de adaptação para a língua e cultura portuguesas, e com igual justificação, na A12, o conceito “sazonais” foi substituído por “da época”.
- Na A7, 1 perito alertou que as marcas e selos de qualidade podem não estar no rótulo, mas noutro local da embalagem, pelo que a frase foi ajustada. A palavra “certificados” foi trocada por “selos”, por sugestão do mesmo perito. Note-se que 1 estudante exemplificou o semáforo nutricional como marca de qualidade do produto. Porém, os peritos decidiram não colocar exemplos, pela diversidade de selos e marcas de qualidade que podem constar no produto.
- Na A8, 1 perito sugeriu mudar o conceito “certificado regional” para “certificado regional ou tradicional”, garantindo indicações geográficas ou especialidades tradicionais. Foi necessário dar exemplos. A coerência foi mantida na A11.
- Na A10, a palavra “restos” foi trocada por “sobras”, pela adequação científica.
- A A13 foi reorganizada, sem alteração do conteúdo (R12: “Quando li a frase esqueci-me dos agricultores, (...) o sazonal no fim da frase tem mais destaque.”).
- Na A14, os peritos acrescentaram exemplos, uma vez que nenhum inquirido identificou os néctares como bebida açucarada.
- Na A15 foi recomendado pelos peritos juntar exemplos do uso de sal adicionado, desde logo, produtos com elevado teor de sal, dado que ao longo das entrevistas, as respostas foram restritas à redução do uso de sal adicionado.
- Na A16, o termo “muitas vitaminas e minerais” foi substituído por “ricos em vitaminas e minerais”, tendo sido referido pelos peritos que seria o mais adequado cientificamente. Com igual justificação, na A18, o termo “alimentos nutritivos” foi substituído por “alimentos ricos do ponto de vista nutricional”.
- Na A22, o termo “cultivo próprio” foi substituído por “da minha própria produção”, considerando a adequação à língua portuguesa pelos peritos.
- Na A24 foi óbvio o desconhecimento do conceito de leguminosas (E: “Sabe o que são leguminosas?”; R8: “Acho que são legumes...”; R13: “É o tomate, feijão verde, feijão frade.”). Os peritos sugeriram adicionar exemplos de leguminosas.
- Na A29, os peritos adequaram à realidade portuguesa, onde se pode encontrar no supermercado ovos com diferentes modos de criação das galinhas.
- Na A31, o termo “muita gordura” passou a “rico em gordura”, por ser o correto na adaptação para a língua portuguesa, conforme os peritos. Nas A32 e A33, “produtos baixos em gordura” foi mudado para “produtos pobres em gordura”.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A maioria dos estudantes considerou a escala de fácil preenchimento e útil (R17: “Acho que qualquer estudante percebe.”), estimulando a autoavaliação sobre os CASS (R14: “Obrigou-me a pensar nos meus hábitos e já não pensava há algum tempo...”; R4: “Nunca tinha pensado tanto como neste questionário.”). Apenas 1 estudante reportou que era a primeira vez que pensara em CASS (R1: “Já sigo blogs e páginas de Instagram de alimentação saudável e de estilos de vida sustentável há algum tempo.”; R12: “Em casa temos o hábito de ter uma alimentação saudável, mas penso que podíamos comer menos sal, carne e peixe e comer mais vegetais e leguminosas.”; R7: “Já pensei e considerei alterar os meus comportamentos alimentares, mas foi a primeira vez que me deparei com a recolha de informação relativa a esse aspeto.”).
Uma tradução simples dá origem a escalas com propriedades diferentes da original, pelo que a sua adaptação para a língua portuguesa foi semelhante ao processo de construção de uma escala (24). O painel de peritos foi essencial para assegurar o rigor científico após a tradução, nomeadamente, no uso de termos como “produtos hortícolas”. Já as entrevistas aos estudantes permitiram verificar se estes entendiam os itens do modo que era esperado pelos peritos. Em alguns casos, os jovens expuseram dúvidas ou desconhecimento de conceitos. Assim, adequar a linguagem ao público-alvo e introduzir exemplos de conceitos de difícil compreensão são essenciais para assegurar uma resposta consciente e informada. Nas entrevistas foi possível proceder a esclarecimentos e sinalizar que há obstáculos na interpretação da informação nas embalagens (R17: “Pode ser o semáforo, mas é confuso, há muita informação nos produtos.”).
As principais limitações da adaptação portuguesa da escala SHE foram a extensão e a redundância associada a algumas afirmações (R5: “Acho longa e tem afirmações parecidas.”; R1: “Nas perguntas 31, 32 e 33 apesar de perguntarem coisas diferentes, na prática não existe uma clara distinção entre elas.”; R7: "A 21 sobrepõe-se à 13 (...)”. Como a escala já incorpora itens representativos de dimensões diferentes, a intenção desta repetição poderá ser medir a coerência das respostas (24). Nesta etapa, optou-se pela manutenção de todos os itens, contudo, a avaliação posterior das propriedades psicométricas da escala poderá alterar esta decisão. Uma vez que o preenchimento do questionário levantou dúvidas aos participantes, a avaliação obtida através da versão portuguesa da escala SHE poderá estar enviesada. Salvaguardando esta limitação, comparou-se esta avaliação com os resultados obtidos noutros estudos com população semelhante. A pontuação média total dos inquiridos polacos (n=220) de 4,1 está próxima da pontuação média total dos portugueses e, de igual modo, a redução do desperdício alimentar foi o comportamento com maior frequência (4,7 (DP=1,2)) e a redução do consumo de carne foi realizado com menor frequência (3,4 (DP=1,5)). Na versão turca da escala SHE (n=226) (15), embora a pontuação média total de 3,6 seja semelhante à verificada neste estudo, a preferência por alimentos locais foi o menos frequente (2,8 (DP=1,3)) e a escolha de certificação e marcas de qualidade foi o mais frequente (4,6 (DP=0,8)). Na população turca, a insegurança alimentar tem impacto negativo na adoção de CASS (25). Porém, poucos estudos foram realizados com recurso à escala, o que dificulta também a comparação de resultados entre países.
A principal vantagem do presente estudo foi obter uma versão traduzida e adaptada à cultura e língua portuguesas, contribuindo com um instrumento que avalia os CASS em jovens adultos universitários portugueses. No futuro, deve avaliar-se a reprodutibilidade e validade da escala.
CONCLUSÕES
A escala SHE foi traduzida e adaptada para universitários portugueses, através da tradução e retrotradução e da análise qualitativa às entrevistas a jovens adultos e às considerações de peritos. As entrevistas deram visibilidade ao tema e foram, em si, um momento pedagógico. A escala permitirá caracterizar os CASS em universitários portugueses e avaliar o impacto de projetos de educação alimentar e de políticas alimentares nesta população.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
AGC, CA e SR: Desenvolvimento da metodologia de investigação; AGC: Recolha de dados; AGC, CA e SR: Análise e interpretação dos dados recolhidos; AGC: Redação do artigo; AGC, CA e SR: Revisão da redação do artigo e apreciação crítica do trabalho. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do artigo.