INTRODUÇÃO
Por vezes prestam-se serviços de Saúde Ocupacional a empregadores que contratam mão de obra migrante, em alguns casos de regiões muito distantes, geográfica e culturalmente. As circunstâncias de vida destes trabalhadores e caraterísticas socio/económico/culturais serão certamente muito diferentes da generalidade dos funcionários portugueses, pelo que surgiu a necessidade de pesquisar o tema. Pretende-se com esta revisão resumir o que mais relevante se publicou neste contexto.
METODOLOGIA
Em função da metodologia PIC o, foram considerados:
-P (population): trabalhadores a exercer num país diferente daquele em que nasceram
-I (interest): reunir conhecimentos relevantes sobre as eventuais particularidades da Saúde Ocupacional destes indivíduos
-C (context): saúde ocupacional nas empresas com postos de trabalho ocupados por migrantes
Assim, a pergunta protocolar será: Que particularidades poderão existir nos parâmetros relevantes da Saúde Ocupacional em trabalhadores estrangeiros?
Foi realizada uma pesquisa em setembro de 2021 nas bases de dados “CINALH plus with full text, Medline with full text, Database of Abstracts of Reviews of Effects, Cochrane Central Register of Controlled Trials, Cochrane Database of Systematic Reviews, Cochrane Methodology Register, Nursing and Allied Health Collection: comprehensive, MedicLatina e RCAAP”.
No quadro 1 podem ser consultadas as palavras-chave utilizadas nas bases de dados.
INTRODUÇÃO
Os migrantes geralmente contribuem para o desenvolvimento económico do país onde trabalham (1). Aliás, algumas zonas/setores profissionais estão dependentes do trabalho proporcionado pelos migrantes (2-7); ainda que os postos, por vezes, possam ser sazonais (3).
Países mais pobres dependem das receitas enviadas pelos migrantes (como é o caso do Nepal, Libéria, Haiti e o Tajiquistão), por vezes gerando quantias superiores às utilizadas por Organizações Não Governamentais nesses mesmos países (8).
Estatísticas associados aos Trabalhadores Migrantes
Um artigo publicado em 2017 estimou que existiam cerca de 232 milhões de migrantes a nível mundial (8). Em 2019, esse número subiu para cerca de 272 milhões, ou seja, quase 11% da população mundial (9). Simultaneamente, há estimativas de que aproximadamente 1/7 da população mundial vive noutro sítio diferente daquele onde nasceu e esse valor continua a aumentar, ou seja, 173 milhões em 2000 e 258 milhões em 2017 (10), segundo outros autores.
A ILO (International Labour Organization), por sua vez, divulgou que existiam cerca de 164 milhões de trabalhadores migrantes no mundo (com quase 96 milhões pertencentes ao sexo masculino), podendo estes constituir cerca de 10% da população em quase 53% dos países (como é o caso de Itália e Espanha) (11). Noutro artigo mencionou-se que essa mesma organização quantificou a existência de cerca de 150 milhões de migrantes, a maioria deles a exercer na América do Norte e Europa; é de realçar que neste último continente o número de migrantes aumentou cerca de 50% na última década, estimando-se que também constituam, aproximadamente, 10% da população europeia (12).
Em 2016, cerca de 71% ficou no setor dos serviços (incluindo 8% atividades domésticas), 18% na indústria e construção e 11% na agricultura (8).
Em determinados contextos, 10% dos migrantes são menores não acompanhados, cujo apoio social se torna ainda mais rudimentar e poderá tornar a experiência ainda mais stressante (13).
Condições gerais de Trabalho
Na generalidade, os migrantes ficam com os empregos "3-D": "dirty, demanding e dangerous" (8) (11) (14) e/ou “degrading” (11). Ou seja, com piores condições de trabalho (5) (9) (12) (15) (16); normalmente são postos que exigem menos habilitações, têm mais fatores de risco e ainda são alvo de alguma discriminação no local de trabalho (11). Por norma não exercem nos setores da educação ou administração, mas sim agricultura, construção e indústria (15). Por vezes, o sexo feminino fica em situação ainda pior (9) (17), devido aos setores a que se dedicam com maior prevalência, nomeadamente serviços domésticos e como cuidadoras (9) (limpeza de casas/hotéis e apoio a crianças) ou até na “indústria” do sexo (15). Para além de os postos serem genericamente mais complicados (14) (17), geralmente são também mais inseguros em relação ao vínculo e continuidade (14). Os postos são também mais instáveis, com menores salários, com lacunas na formação, pior acesso a cuidados médicos e piores condições de segurança (17). Por vezes, não há vínculo laboral e/ou a duração das tarefas é por pouco tempo ou até são pagos ao dia (2).
Contudo, trabalhadores Migrantes também apresentam geralmente maiores riscos ocupacionais, devido a comportamentos inseguros, nomeadamente associados à utilização de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), sobretudo em empresas de pequena e média dimensão; devido ao menor nível cultural, geralmente têm menor perceção de risco e piores comportamentos de segurança (2) (18). O tempo que o migrante está na instituição não parece influenciar a perceção de risco; por sua vez, o tempo de permanência no país já o consegue fazer. Ela também é modulada pelo clima de segurança, liderança, carga de trabalho, conhecimentos e formação em segurança; bem como personalidade, atitude e experiência prévia (acidentes, morbilidade) (19).
A grande maioria não tem consulta de Saúde Ocupacional, nem reporta acidentes laborais, devido ao receio de perder o emprego (9).
Para além disso, por vezes, as habitações onde residem não têm condições e, em alguns casos, podem ser alvo de maus-tratos físicos (8).
O facto de não falarem o idioma do país onde trabalham e/ou não estarem em situação legalizada poderá alterar o acesso a alguns postos de trabalho, mantendo-se disponíveis outros, com piores condições (2). Para além disso, não conhecendo o idioma do país onde trabalha, algumas mensagens escritas relativas à segurança poderão não ser assimiladas; por vezes, quando são utilizados pictogramas/símbolos, também se poderá perder parte da informação, até devido a diferenças culturais e educacionais, idade e/ou da experiência de vida; pelo que a redefinição dos desenhos talvez devesse ser analisada (20).
Ainda assim, é possível que a pandemia por COVID19 permita que os empregadores e instituições fiscalizadoras fiquem mais atentos à melhoria de alguns parâmetros nas condições de trabalho (2).
Por vezes os filhos menores dos migrantes também executam tarefas laborais ou ficam na proximidade dos pais, mesmo em setores com elevada sinistralidade ou até fatalidade (21).
Alguns investigadores avaliaram se a participação nos rituais do Ramadão (ou seja, comer e beber apenas entre o pôr e o nascer do sol, estando em jejum durante o dia) poderiam alterar alguns aspetos da Saúde e Segurança Ocupacionais em migrantes islâmicos, mas concluiu-se que não existiram relações estatisticamente significativas. De acrescentar que, em alguns países, as datas podem coincidir com os dias mais longos do ano e/ou mais quentes, ou seja, conjuga o jejum com a desidratação, podendo prejudicar a tomada de decisão e potenciar o erro (22).
Sinistralidade laboral
A taxa de acidentes é geralmente maior nos migrantes (20) (23) e o risco de morte é 20% superior (19). Ou seja, a sinistralidade laboral fatal e não fatal é superior nos migrantes (7). Contudo, quando esta taxa é elevada no país de origem, poderá ocorrer que, emigrando, o risco de acidente na realidade fique atenuado (24), por comparação. Aliás, os postos de trabalho ocupados por trabalhadores migrantes apresentam por si maior sinistralidade (22).
Acesso a cuidados Médicos
Geralmente os migrantes não costumam ter acesso facilitado aos cuidados de saúde do país onde trabalham (8) (25); aliás, se não estiverem legais, não têm qualquer acesso (8); tal pode incentivar a automedicação e à dependência do empregador (2). Se se melhorarem as condições de trabalho, também melhorará o nível de saúde dos migrantes. Ainda que o objetivo seja obter um melhor patamar económico, poderá acontecer que tal não seja atingido, acrescentando-se problemas físicos, emocionais e sociais (8) (9). A semiologia mais frequente poderá incidir no stress, depressão, alterações do sono, mialgias, cefaleias e gastralgias (9); apresentam, também, maiores prevalências de síndroma depressivo, ansiedade, dependência, alterações do sono e burnout (14). Está descrito que os principais problemas médicos são as patologias músculo-esqueléticas; contudo, eventualmente, alguns investigadores mencionam que os problemas de saúde mental podem ser sub-reportados (mais frequentes com determinados estados civis, rigidez do empregador, residência com más condições e preocupações legais) (26).
Por vezes, o local onde estão alojados não apresenta condições adequadas de salubridade e/ou a alimentação também não é adequada.
Apesar de as patologias serem razoavelmente frequentes, a procura por cuidados médicos é baixa, eventualmente devido a barreiras linguísticas. Por vezes, tal também se relaciona com o facto de não terem acesso a seguros, sobretudo em países com sistema de saúde mais privatizado ou sem sistema de saúde nacional e tendencialmente gratuito (4). Ainda assim, a procura destes serviços e o nível geral de saúde em migrantes é superior entre os que estão acompanhados pela família (23) e nos que têm mais idade (25).
O sexo masculino parece estar menos disponível para participar em atividades de educação e promoção para a saúde, por isso tem piores conhecimentos a esse nível e maior aceitação do risco (21). Contudo, migrantes do sexo feminino parecem necessitar mais de cuidados médicos, mas têm menos acesso, mesmo com patologia crónica (25).
Indivíduos com problemas de comunicação frequentam menos os serviços de saúde e apresentam menor adesão às terapêuticas propostas. A presença de um intérprete ajuda muito, mas nem sempre é possível; com maior probabilidade sentem-se discriminados quando existem barreiras linguísticas (25).
Principais barreiras para a melhoria das condições
O facto de estarem ilegais, pode impossibilitar o acesso a serviços médicos e aos direitos laborais básicos; pode também existir medo de ser despedido, ficar sem salário e/ou ser deportado. Outra barreira, como já se mencionou, poderá ser o idioma (6) (13). Esta pode ser significativa em contexto de saúde e segurança; pois a linguagem não só ajuda a socializar, como a criar laços e facilita a argumentação; logo, tal irá perturbar muito a comunicação a nível de questões laborais, necessidades e desejos (27). Devido às barreiras linguísticas e culturais (11) (14), geralmente ocupam postos manuais, menos qualificados, precários e pior pagos, recusados na maioria das vezes pelos trabalhadores nacionais (11); tendo em conta essas caraterísticas, fica pior a questão da sinistralidade e doenças físicas e emocionais (14) (28); situação essa eventualmente agravada pela mobilidade constante (28).
Poderão também existir ausência de formação/treino profissional, pouca valorização da segurança, pobreza e isolamento cultural. Tal irá perturbar o desenvolvimento do trabalhador e aumentar a probabilidade de lesão, baixos salários, doença, abuso e violência (13).
A não validação das habilitações também poderá fazer com que tenham acesso a postos de trabalho mais complicados (com mais riscos) e, com maior probabilidade, serão alvo de discriminação/bulling (12) (14).
Redes organizadas de Trabalho Migrante
Por vezes, existem redes organizadas para a exploração dos migrantes (3). Tráfico laboral ou trabalho forçado poderá ser considerado como uma forma moderna de escravatura, na qual o indivíduo é colocado a exercer tarefas, através da força, fraude, coerção ou algum tipo de chantagem/ameaça (29). Por vezes, algumas redes de recrutamento exigem o pagamento de quantias avultadas para ter acesso ao posto de trabalho, valor esse obtido pelos migrantes através de um empréstimo no seu país ou ficando a dever à própria rede/empregador, por vezes demorando anos a conseguir liquidar, o que obviamente pode originar ansiedade (5).
DISCUSSÃO/ CONCLUSÃO
O desenvolvimento de um serviço de Saúde Ocupacional que consiga se adaptar às particularidades dos migrantes avaliados terá maior probabilidade de ter uma melhor eficiência e desempenho, trazendo vantagens para os trabalhadores, chefias e empregadores. Para além disso, generalizando, estes indivíduos aceitam com mais facilidade piores condições de trabalho, tarefas com riscos mais elevados e sentem menos necessidade e/ou capacidade para exigir os seus direitos laborais, pelo que os acidentes laborais e doenças profissionais também serão mais prevalentes e/ou graves.
Seria relevante estimar o número de migrantes a exercer em Portugal, qual a sua origem e outras caraterísticas sociodemográficas, bem como eventuais correlações com diversos parâmetros da Saúde Ocupacional.