INTRODUÇÃO
Não é raro que durante o exame de Saúde Ocupacional o trabalhador refira ter Epilepsia, facto esse que, em determinados contextos laborais, poderá implicar um risco de acidente eventualmente grave, surgindo, por vezes, algumas dúvidas em como classificar a Aptidão, mantendo o sigilo médico e simultaneamente informando o empregador/chefia/recursos humanos que tarefas deverão ser evitadas.
Para esta pesquisa foram selecionados apenas artigos que relacionassem a existência de Epilepsia com a Saúde e Segurança Ocupacionais; parte desses documentos mencionaram detalhes relativos a definição, classificação de tipos de Epilepsia, terapêutica e efeitos secundários, entre outros; ainda que de forma menos completa que outros artigos sobre a Epilepsia em si, sem enfase no contexto laboral- daí que alguns destes subtemas estejam aqui retratados de forma muito sumária, em função da forma com que foram desenvolvidos nos artigos selecionados.
METODOLOGIA
Em função da metodologia PICo, foram considerados:
-P (population): população ativa Epilética.
-I (interest): reunir conhecimentos relevantes sobre os condicionantes que a Epilepsia poderá condicionar em determinados contextos laborais
-C (context): Saúde e Segurança ocupacionais nas empresas com postos de trabalho ocupados por Epiléticos.
Assim, a pergunta protocolar será: Quais os condicionantes colocados pela Epilepsia perante a Saúde e Segurança Laborais?
Foi realizada uma pesquisa em janeiro de 2022 nas bases de dados “CINALH plus with full text, Medline with full text, Database of Abstracts of Reviews of Effects, Cochrane Central Register of Controlled Trials, Cochrane Database of Systematic Reviews, Cochrane Methodology Register, Nursing and Allied Health Collection: comprehensive, MedicLatina e RCAAP”.
No quadro 1 podem ser consultadas as palavras-chave utilizadas nas bases de dados.
No quadro 2 estão resumidas as caraterísticas metodológicas dos artigos selecionados.
Artigo | Caraterização metodológica | Resumo |
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1-E2 | Artigo de Revisão | Trata-se de um artigo espanhol, no qual os autores abordam sucintamente algumas das caraterísticas mais relevantes da Epilepsia e os aspetos que devem ser realçados para avaliar a aptidão laboral; acrescentando ainda algumas normas nacionais relativas a restrições profissionais concretas, que devem ser consideradas neste contexto. |
2-R3 | Artigo Original | Esta referência bibliográfica é proveniente do Brasil e nela os autores registaram um estudo relativo à avaliação prospetiva de quase 400 trabalhadores Epiléticos, com destaque para o acesso e manutenção do posto de trabalho, em função da idade e número de anos de doença. |
3-A1 | Neste documento alemão os autores avaliaram a sinistralidade em 167 trabalhadoras Epiléticas, com realce para a eventual ocorrência de fraturas, sobretudo em contexto de osteoporose. Concluíram que o uso de terapêutica anticonvulsivante e para a osteoporose adequadas diminui o risco de fraturas. | |
4-A4 | Artigo de Revisão | Este artigo norte-americano pretendeu abordar a ocorrência de morte súbita e disritmias em Epiléticos, explorando alguns raciocínios patofisiológicos plausíveis. |
5-A3 | Trata-se de um documento que retrata uma revisão efetuada por autores norte-americanos, relativa à capacidade de condução de veículos motorizados, da parte de Epiléticos, resumindo normas em vigor em alguns países, conjugando com noções relativas a risco de recorrência, terapia anticonvulsivante e tipos de crises. | |
6-A5 | Artigo Original | Neste documento esloveno os autores pretenderam examinar o risco de acidentes de viação entre Epiléticos, consumidores de álcool e/ou outras substâncias psicoativas e patologias diversas (psiquiátricas, cardiovasculares e/ou oftalmológicas), através de uma metodologia de caso-controlo. |
7-E1 | Alguns investigadores ingleses pretenderam analisar a influência da Epilepsia e da Diabetes (com realce para algumas complicações da doença em si e mau controlo glicémico) na sinistralidade laboral, através de uma metodologia baseada na regressão logística. Os autores concluíram que nenhuma das patologias atrás mencionadas contribuíram significativamente para os acidentes de trabalho neste país. | |
8-R1 | Autoras brasileiras pretenderam analisar os fatores mais alterados na qualidade de vida de Epiléticos, através de uma amostra de 134 elementos. A dimensão laboral pareceu ser a mais afetada, com enfase no desemprego/subemprego e respetivas consequências (integração social e económica, bem como realização pessoal). | |
9-R2 | Esta referência bibliográfica também é proveniente do Brasil e incide numa amostra de mais de 300 Epiléticos, na qual se avaliaram questões relativas a habilitações/qualificações, emprego/desemprego, frequência/duração e tipo de crises epiléticas e eventual discriminação. Concluíram que indivíduos com crises diárias não conseguem estar empregados e mais de 9% dos que têm crises semanais também. | |
10-A2 | Artigo de Revisão | Dois autores japoneses resumem a evolução das normas de acesso à autorização para conduzir veículos motorizados no seu país, em Epiléticos, ao longo das décadas e apresentam ainda cinco casos clínicos concretos. |
11-E3 | Artigo Original | Este estudo prospetivo polaco analisa a interação que a restrição conduzir veículos motorizados pode ter a nível de qualidade de vida; incluindo também a perspetiva da população geral, relativamente a autorizar ou não indivíduos com esta patologia a conduzir. |
CONTEÚDO
Noções generalistas sobre epilepsia
Na Epilepsia verifica-se a existência de atividade elétrica anormal a nível cerebral (1); trata-se de uma disfunção do sistema nervoso central, episódica e imprevisível (2), ainda que controlável na maioria dos indivíduos. O ritmo circadiano de vigília/sono pode alterar o funcionamento elétrico cerebral. Não só algumas crises ocorrem numa fase específica do sono, como a privação do sono pode potenciar a prevalência e/ou gravidade de algumas convulsões. A hipóxia causada pela apneia do sono também tem essa capacidade (1).
A crise epilética pode cursar com perda de consciência e/ou contração muscular intensa e involuntária (7). As situações mais perigosas são as que causam perda de consciência e queda (1); das quedas em si podem resultar fraturas e cortes (7).
Estima-se que a prevalência mundial de Epilepsia seja na ordem dos 3%. Nos EUA, por exemplo, pensa-se que existam cerca de dois milhões de epiléticos. A mortalidade destes é de 1,6 a 9,3 vezes superior à da população geral (4).
A morte súbita justifica 8 a 17% da mortalidade entre Epiléticos e parece ser mais frequente nos indivíduos com mais anos de doença, pior controlo e uso de vários fármacos anticonvulsivantes.
Acredita-se que a sua etiologia neste contexto seja multifatorial e associada a disfunção autonómica, descarga catecolaminérgica, fármacos anticonvulsivantes, disritmias/arritmias e/ou isquemia/hipoxia (ou seja, de alguma forma relacionada a disfunção respiratória e/ou alterações na vascularização cerebral). No período circundante à convulsão, por vezes, são verificadas taqui/bradidisrimtias ou até assistolias, bem como fibrilação auricular e/ou bloqueios auriculoventriculares (4).
Uma investigação estimou que, durante um ano, a prevalência de acidentes em Epiléticos tenha sido na ordem dos 14-18%, podendo atingir valores de cerca de 28% nos casos de tratamento mais difícil; ainda que se suponha que a taxa real seja superior, devido a alguns eventos não serem reportados (7).
Em média, acredita-se que o risco de recorrência da Convulsão seja de cerca de 14% para um ano e 7 a 8% posteriormente (9). Outros investigadores estimaram mais especificamente que a probabilidade de recorrência de uma crise tónico-clónica é de 35 a 45%, sobretudo nos primeiros meses, quando existem antecedentes familiares de Epilepsia e alterações neurológicas (no Eletroencefalograma ou exames de imagem) (1). Um período longo sem Convulsões diminui o risco de estas voltarem a existir (9); ou seja, o risco de nova crise é inversamente proporcional ao tempo entretanto decorrido desde o último evento. Por sua vez, o consumo de substâncias psicoativas e Convulsões mais graves apresentam maior risco de recorrência (1).
O aperfeiçoamento dos fármacos anticonvulsivantes ao longo dos anos diminui o risco de Convulsões e, secundariamente, de acidentes (7) (2); contudo, nem todos os Epiléticos têm o mesmo acesso (2), muito variável entre países e sistemas de Saúde. Estima-se que cerca de 60 a 70% dos epiléticos deixarão de ter crises, desde que adequadamente medicados. O risco de recorrência no primeiro ano de interrupção da medicação está estimado entre 12 a 30% (9).
Contudo, alguns destes fármacos poderão ter efeitos secundários invasivos na capacidade de trabalho: por exemplo, a vigabatrina e a lamotrigina podem originar episódios psicóticos. Alguns efeitos secundários podem contribuir para o abandono da terapêutica ou, pelo menos, omissão de algumas doses (1).
Algumas cirurgias cerebrais conseguem melhorar a capacidade de executar tarefas, bem como a atenção e a velocidade de processamento da informação e, consequentemente, o desempenho para manobrar máquinas (6), por exemplo.
Acesso ao mercado de trabalho e empregabilidade/aptidão laboral
A taxa de desemprego (2) (7) (8) e subemprego é superior nestes indivíduos (8); não só pelo estigma (2) (9) associado à crise (1) (2) e risco de acidente, mas também devido aos efeitos secundários dos fármacos (como sonolência, vertigem, cefaleia e/ou alterações cognitivas) (1), que podem diminuir o desempenho laboral (8). Para além disso, o desemprego pode ficar potenciado ainda com a diminuição da autoestima (2), menores qualificações (2) (9) (a nível de habilitações e experiência profissional) e por existir pouca informação acerca da doença (da parte de colegas e empregador, por vezes). Também ainda em relação ao estigma, quando o nível cultural é baixo, podem-se considerar que existem causas sobrenaturais a provocar a convulsão (2). O desemprego, por sua vez, o menor nível socioeconómico e a discriminação podem perturbar a adesão à terapêutica e piorar ainda mais a situação (9).
Avaliar a aptidão laboral de um Epilético é uma tarefa complexa, sobretudo quando existem Convulsões razoavelmente recentes. A aptidão variará caso a caso, considerando o tipo de Epilepsia, frequência e intensidade das crises, controlo proporcionado pela medicação e eventuais efeitos secundários, bem como tarefas laborais em si (1).
Em função da discriminação, alguns trabalhadores preferem ocultar a patologia ao empregador.
Por vezes tal afeta a autoestima (como já se mencionou) e pode implicar que o indivíduo restrinja a procura de postos de trabalho melhores e/ou tentativas para aprofundar as relações sociais; estar desempregado, por sua vez, pode diminuir ainda mais a autoestima (8).
O fator determinante para a empregabilidade (acesso e manutenção do posto de trabalho) é o controlo das crises (8) (9). Num estudo, todos os que tinham crises diárias e 9% dos que tinham convulsões semanais não conseguiam ter atividade remunerada regular, por exemplo. Considera-se que cerca de 20% dos epiléticos não consegue controlar a recorrência das crises. O tipo de convulsão também modula o acesso e a manutenção do posto de trabalho. No momento da crise o indivíduo necessita de apoio de terceiros e a situação cria insegurança e ansiedade; a imprevisibilidade destas diminui a autoconfiança e a autonomia; limitando as expetativas e a autoestima, sendo o trabalho fundamental para a ascensão social e socialização. Por sua vez, a maior competitividade no mercado de trabalho e o desemprego, dificulta ainda mais o acesso para trabalhadores com algum tipo de limitação (9).
Os empregadores, sobretudo no setor industrial, podem recear que a crise gere um acidente e, por vezes, também acham que estes indivíduos devem ser menos produtivos (9). Alguns investigadores também consideram o mesmo, mas tal não é consensual (2). Aliás, em média são pior remunerados, mesmo ajustando outras variáveis associadas (9).
O tempo de duração da convulsão não parece modular a capacidade de trabalho. O número de anos com Epilepsia também não parece influenciar o acesso ou capacidade de trabalho (2).
A Nível de cuidados laborais específicos, alguns autores consideram que poder-se-ão considerar genericamente, de forma mais ou menos consensual:
-preservar a conforto térmico (evitar variações de temperatura superiores a dez graus, por mais de um quarto do horário de trabalho)
-atenuar o ruido (proporcionar proteção auricular para mais que 80 decibéis)
-iluminância (evitar alterações bruscas de intensidade e/ou contraste)
-vibrações (tentar manter um nível inferior a 40 Hzs)
-cargas (sobretudo se elevadas e/ou em contexto de tarefas com posturas forçadas/mantidas)
-controlo da duração do horário de trabalho, ou seja, turnos menores que oito horas por dia e tentar efetuar pausas em cerca de 15% do horário de trabalho; evitando também turnos noturnos (1).
Segundo a legislação espanhola em específico, por exemplo, um Epilético não deverá ter acesso a postos de trabalho como polícia, militar, mergulhador, piloto de aeronaves, controlador aéreo, bombeiro, guarda prisional, agente de segurança com porte de arma, posto ferroviário e/ou condutor de veículos pesados (de mercadorias e passageiros). Para além destas restrições, existem outros postos de trabalho que podem ficar particularmente perigosos em caso de Convulsão, desde que envolvam outras maquinarias com capacidade de causar dano, agentes químicos relevantes, eventual contato com eletricidade, risco de queimadura, tarefas em altura ou ainda postos com turnos rotativos (entre noite e dia) (1), devido a se potenciar o risco de crise. Outros autores também acrescentam restrições para algumas atividades executadas pelos bombeiros, professores de natação, nadadores-salvadores, auxiliares de apoio à infância, enfermeiros e cirurgiões (9).
Condução de veículos
No passado ter Epilepsia era condição suficiente para não conseguir ter autorização legal para conduzir uma viatura motorizada. Essa situação foi mudando na generalidade dos países à medida que os fármacos foram evoluindo e o controlo das convulsões potenciado (9) (14). No Japão, por exemplo, é exigido um período mínimo de dois anos sem convulsões; na Austrália é de um ano e na Nova Zelândia seis meses (se existir recomendação médica; caso contrário são doze meses também). Na Itália, Reino Unido, Alemanha, França, Holanda, Espanha, Suíça e Bélgica é de um ano ou menos. Na Polónia, Portugal e Eslovénia são no mínimo dois anos (9) (14). Nos diversos estados dos EUA o período mínimo exigido sem convulsões é de três a seis meses. Se, por acaso, o indivíduo perceber que se esqueceu de tomar a dose habitual de anticonvulsivante, não deverá conduzir (9).
Estima-se que atualmente cerca de 60% dos Epiléticos tenha carta de condução, ou seja, aproximadamente 700.000 indivíduos (9).
Acredita-se que cerca de 1% dos acidentes rodoviários se associem a Convulsões; contudo, por exemplo, estima-se que o álcool atinja um valor sete vezes superior (9) e 156 vezes mais mortes a conduzir. Outros investigadores especificaram que o risco de acidente de viação com Epilepsia é de 0,1 a 0,3%, enquanto com o álcool é de 6 a 9% (11).
A capacidade para fazer a condução de máquinas não é afetada apenas pela Convulsão; também é possível que os Epiléticos apresentem atraso psicomotor, sedação secundária aos anticonvulsivantes, deficits intelectuais/cognitivos, alterações da visão, estado confusional, tonturas, astenia, diminuição da memória e/ou da concentração (1).
Num estudo polaco uma parte considerável dos epiléticos considera que indivíduos com epilepsia não deveriam ter a possibilidade legal de conduzir a título profissional (77%), ou mesmo a nível particular, uma vez que a convulsão pode ocorrer em qualquer momento ou sítio (11). Por isso, muitos Epiléticos não reportam as Convulsões aos médicos assistentes, como já se mencionou. Ainda assim, 38% afirmou já ter tido uma convulsão dentro de uma viatura, como passageiro; dos que tinham licença para conduzir, 5% já tinha tido uma convulsão a conduzir (1).
O não acesso à carta de condução diminui a qualidade de vida e o acesso ao mercado laboral. Às vezes a própria família, uma vez que receia o acidente, preferiria que o Epilético não tivesse licença para conduzir (11). Ainda assim, até cerca de 40% dos indivíduos com convulsões continua a conduzir, devido às suas necessidades profissionais, familiares e domésticas (6).
DISCUSSÃO/ CONCLUSÃO
Não se encontraram Guidelines consensualmente aceites, relativas a como atuar com trabalhadores Epiléticos; em alguns países e/ou setores profissionais específicos existem indicações sumárias e pontuais. Caberá assim ao Médico/Enfermeiro do Trabalho e Técnico de Segurança atuar caso a caso, de forma a garantir as melhores condições de trabalho. Parece ser consensual que, à partida, pelo menos dois anos sem Convulsões poderão permitir supor que a taxa de recorrência será razoavelmente baixa. Em caso de dúvida, os elementos da Saúde e Segurança poderão se socorrer de parecer por escrito do neurologista assistente, de forma a existir uma salvaguarda técnica e legal, perante o parecer colocado na classificação de aptidão e/ou timing para reavaliação.