INTRODUÇÃO
O Teletrabalho (TT) é, atualmente, uma realidade de milhares de pessoas em todo o mundo. Embora muitos lhe reconheçam marcados benefícios e vantagens, existem estudos que apontam para o seu impacto negativo no âmbito da saúde mental. Gao et al verificaram que se associava a maior risco de ansiedade, depressão e stresse (1). Por sua vez, Gajendran et al, além de corroborarem o impacto negativo descrito na literatura, sugeriram também que os teletrabalhadores apresentam menores níveis de satisfação com o emprego e qualidade de vida (2).
Antes da pandemia COVID-19, o TT era adotado apenas por algumas empresas, contudo, face às adversidades verificadas, houve uma necessidade de adaptação por forma a minimizar o impacto financeiro e funcional decorrente da situação global vivida à data. Todavia, em muitos casos, esta adaptação revelou-se uma estratégia fácil e funcional, levando a que muitas das entidades empregadoras decidissem continuar neste regime. Por conseguinte, existe uma efetiva preocupação dos Serviços de Saúde e Segurança do Trabalho (SSST/SO) em identificar os principais fatores de risco psicossociais que lhe estão associados, de forma a sugerir estratégias e implementar medidas que minimizem o seu impacto na saúde mental.
Os profissionais de saúde ocupacional assumem uma posição privilegiada na avaliação dos riscos psicossociais, na medida em que, além da avaliação psicológica e física do indivíduo, podem também avaliar os fatores associados à entidade empregadora - condições do ambiente de trabalho, equipamentos, horários, entre outros. Cabe-lhes também a possibilidade de, juntamente com outros profissionais (psicólogos, assistentes sociais), realizar avaliações conjuntas, definir programas de prevenção e intervenção e ainda encaminhar para avaliação e orientação psiquiátrica, sempre que a mesma se revele decisiva.
METODOLOGIA
Em função da metodologia PICo, considerou-se:
P (population): trabalhadores em regime de Teletrabalho
I(interest): reunir conhecimentos relativamente aos principais fatores de riscos psicossociais associados ao Teletrabalho;
C (context): saúde ocupacional nas empresas com regime de Teletrabalho.
Assim, a pergunta protocolar será: Quais os principais fatores de risco psicossociais associados ao Teletrabalho e qual a sua evidência?
Trata-se de uma revisão narrativa da literatura realizada em março de 2023, nas bases de dados Scopus, SciELO, PePSIC, PsycInfo, PubMed, Applied Social Sciences Index and Abstracts (ASSIA) e Web of Science. Foram incluídos artigos publicados em língua portuguesa, inglesa e espanhola, disponíveis em texto integral, datados entre 1 de janeiro de 1985 e 1 de março de 2023 e que abordassem os riscos psicossociais associados ao TT.
CONTEÚDO
O TT consiste na utilização de tecnologias de comunicação e informação, de forma a ser possível executar tarefas laborais, sem que exista necessidade de deslocação física para o local de emprego. Tal como já descrito por Santos et al, o TT pode ser em regime de tempo inteiro, parcial ou ocasional, sendo o mais frequente a tempo parcial. Relativamente às instalações pode ocorrer em casa do funcionário; escritórios satélite da chefia; telecentros; telecottage; escritórios turísticos; hoteling; remoto, offshore ou ainda em regime móvel ou nómada. O seu tipo e forma de comunicação pode ser offline, onewayline ou online. Em termos de subordinação jurídica, o mesmo pode subdividir-se em com subordinação, autónomo ou sem subordinação jurídica, mas com dependência económica e parasubordinação (3).
Ainda que se julgue como um conceito recente, existem estudos do século anterior que abordam o TT. Nilles, um dos primeiros investigadores a publicar sobre o tema; definia-o como “uma forma de trabalho em que uma parte significativa do mesmo é realizada fora de um escritório central e são utilizados recursos de telecomunicações” (4). Foram, desde logo, reconhecidas inúmeras vantagens, tais como maior flexibilidade e autonomia para os funcionários e, por outro lado, maior produtividade e menores custos económicos para as entidades empregadoras. Porém, em 1985, Nilles previu que pudessem surgir algumas barreiras à implementação desta forma de trabalho, como resistência à mudança, isolamento social e insegurança no emprego, por parte dos funcionários (4). Na perspetiva das entidades empregadoras, as principais barreiras seriam a preocupação com a diminuição da produtividade, as condições de segurança dos indivíduos e a legislação/regulamentação associada a esta nova forma de trabalho (4).
Embora este conceito se tenha tornado cada vez mais popular nas últimas décadas, é seguro afirmar que a sua verdadeira implementação surgiu aquando da pandemia COVID-19. Em 2020, perante uma crise global, houve uma necessidade de adaptação das chefias, como tentativa de minimizar o impacto negativo da pandemia na economia global. Assim, o TT foi uma das principais estratégias adotadas, existindo estudos que apontam para que a quantidade de teletrabalhadores tenha triplicado (5). Estima-se que na Europa a sua prevalência tenha aumentado de 11 para 48% (6).
Facilmente se lhe reconhecem benefícios e vantagens associadas, nomeadamente a maior flexibilidade, maior autonomia, redução de custos e aumento da produtividade (7) (8). Todavia, sendo uma forma de trabalho que provavelmente veio para se estabelecer em várias entidades empregadoras, importa conhecer as suas desvantagens e os fatores de riscos psicossociais que lhe estão associados.
De acordo com o Guia Técnico nº3 da Direção Geral da Saúde, e tal como apresentado no quadro 1, os fatores psicossociais podem dividir-se em quatro categorias principais: natureza, conteúdo e carga de trabalho; condições, organização e tempo de trabalho; contextos sócio relacionais do trabalho; relação trabalho/vida familiar, social e cultural (9). De ressalvar, contudo, que, apesar desta categorização, os fatores psicossociais interagem entre si e com outros fatores (por exemplo, de natureza biológica, química e física).
CLASSIFICAÇÃO DOS FATORES DE RISCO PSICOSSOCIAIS | |
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DIMENSÕES | |
Natureza, conteúdo e carga de trabalho | Monotonia do trabalho |
Repetitividade das tarefas | |
Intensidade do ritmo de trabalho | |
Exigência do trabalho | |
Inadequação da autonomia ou controle sobre o trabalho | |
Inadequação de competências | |
Objetivos irrealistas | |
Condições, organização e tempo de trabalho | Condições inadequadas do ambiente de trabalho |
Falta de requisitos do equipamento de trabalho | |
Constrangimentos no tempo de trabalho | |
Turnos | |
Horário noturno | |
Contextos sócio relacionais do trabalho | Falta de suporte social |
Conflitos laborais | |
Relações de poder e liderança disruptivas | |
Relação trabalho/vida | Conflito “trabalho-família” |
Insegurança no emprego |
Natureza, conteúdo e carga de trabalho
O TT tem sido frequentemente associado a um maior número de horas e carga laboral (10) (11). Os funcionários referem uma dificuldade acrescida em estabelecer o tempo dedicado às funções laborais, acabando, muitas vezes, por prolongar o seu horário de forma a conseguirem combater a exigência e as obrigações impostas pelas entidades empregadoras (12). Predotova et al descrevem, durante a pandemia, um aumento de 41 a 60 horas semanais nos indivíduos em regime de TT quando comparados com os restantes (13). Está já descrito na literatura que o mesmo pode ser utilizado como forma de persuasão pelas entidades empregadoras de forma a diminuírem a relutância dos funcionários a uma maior sobrecarga horária e intensidade de trabalho (14).
O TT pode ainda trazer outros desafios para os trabalhadores, tais como a monotonia do trabalho e os objetivos irrealistas. A primeira deve-se sobretudo à repetitividade do mesmo e ao facto de, na maioria das vezes, ser realizado em contexto de isolamento social. O menor número de interações sociais nos teletrabalhadores pode potenciar essa sensação de monotonia (2). Allen et al referem que o TT se associa a uma maior dificuldade na comunicação entre funcionários e chefia, podendo traduzir-se em objetivos irrealistas (15).
A flexibilidade horária é, por outro lado, uma das suas principais vantagens. Os estudos existentes sugerem que a maior flexibilidade horária se traduz numa maior satisfação e capacidade de gestão de tempo dos funcionários e, consequentemente, no aumento da produtividade dos mesmos (8) (16) (17).
Condições, organização e tempo de trabalho
As condições inadequadas do ambiente e local de emprego são um dos principais fatores de risco psicossociais a ter em conta nos teletrabalhadores. Para além disso, a falta de mobiliário adequado, a postura inadequada e má iluminação foram descritos como alguns dos mais importantes fatores responsáveis por lesões musculoesqueléticas relacionadas com o trabalho (18).
No que concerne às más condições de iluminação, está já descrita uma maior fadiga visual nos indivíduos em funções remotas, decorrente da exposição diária à luz dos dispositivos eletrónicos (19).
Os teletrabalhadores que cumprem horário noturno apresentam maior dificuldade em manter um padrão de sono com qualidade e, consequentemente, maior prevalência de fadiga e sonolência durante o horário laboral quando exercem funções por turnos (20) (21).
Contextos sócio relacionais do trabalho
A ausência de suporte social associada ao maior isolamento decorrente do regime de TT é uma das principais desvantagens que lhe é reconhecida. Becerra-Astudillo et al concluíram que é essencial existir apoio social para garantir o bem-estar dos teletrabalhadores, uma vez que os mesmos referem maior capacidade de responder às exigências laborais quando amparados, quer pela família, quer pela entidade empregadora e pelos colegas de trabalho (22).
O TT pode afetar a dinâmica dos conflitos laborais, tanto de forma positiva como negativa. A ausência de competição entre funcionários por recursos materiais e pelo espaço físico estão descritas como duas das razões para uma melhor dinâmica entre colegas (9). Por outro lado, o TT pode ser potenciador de novos conflitos. Estudos recentes concluíram que pode aumentar os conflitos laborais entre os funcionários e as chefias, sobretudo quando existe ambiguidade nas expectativas, falta de suporte ou, então, supervisão inadequada (22) (23) (24). A falta de contacto face a face e a comunicação inadequada podem também associar-se a mais conflitos laborais (25).
Relação trabalho/vida pessoal
A literatura não é consensual no que concerne ao impacto do TT na relação entre o trabalho e a vida pessoal. Peiró et al referem que pode promover uma melhor relação, na medida em que a maior flexibilidade horária se associa a uma diminuição do stresse e a uma maior qualidade de vida dos indivíduos (23). O TT em regime de tempo inteiro está também relacionado com uma melhor conciliação dos compromissos familiares, sociais e laborais (26).
Contudo, os teletrabalhadores apresentam, muitas vezes, dificuldade em estabelecer limites claros entre o tempo dedicado ao trabalho e à família (14)(16). Associada a esta falta de tempo e espaço para as atividades pessoais e familiares, surge também uma necessidade de estar sempre disponível, mesmo que fora do habitual horário laboral, associando-se a um aumento do presenteísmo (27). Acresce também que os indivíduos com filhos menores são obrigados, por vezes, a interromper as suas tarefas de forma a cuidarem dos filhos e a prestarem-lhes auxílio - conflito trabalho/família (28).
Diversos efeitos na saúde podem ser desencadeados pela interação dinâmica entre os vários fatores de risco, bem como pela relação estabelecida entre a tarefa, o trabalhador e a empresa, destacando-se as reações de stresse, consequências psicológicas e sociais (ansiedade, depressão, burnout) e consequências fisiológicas e físicas (lesões músculo-esqueléticas, efeitos cardiovasculares e digestivos). A par com as consequências individuais, existem custos diretos e indiretos para as entidades empregadoras decorrentes dos danos psicossociais.
Perante a crescente popularidade do TT, tanto em regime de tempo parcial, como de tempo inteiro, e tendo em conta as vantagens e eficácia que lhe são reconhecidas, prevê-se que continue a ser uma opção para muitas empresas. Assim, torna-se imperativa a definição de estratégias de prevenção dos riscos psicossociais bem como a implementação de um modelo sustentável de modo a assegurar o bem-estar físico e psicológico dos trabalhadores.
As medidas preventivas tanto podem ter um caráter coletivo/transversal, como podem serem focadas num fator de risco específico ou ocorrência crítica. A construção e manutenção de um clima seguro, saudável e de confiança; o acompanhamento das situações de absentismo por parte do serviço de saúde do trabalho e a redução do estigma sobre a doença mental são alguns dos exemplos que podem ser aplicados (9). No que concerne às medidas específicas, estas devem: ter em conta a particularidade do que está a ser avaliado, privilegiando o enriquecimento das funções laborais, no caso do TT com formação específica para as competências tecnológicas; fomentar a diversificação e moderação do ritmo de trabalho, encontrando um ritmo e exigência adequados às capacidades individuais e vida pessoal, com estruturação de jornadas laborais que permitam uma boa gestão do tempo e respeitem o descanso e “direito a desligar”; dar a oportunidade de desenvolvimento e de progressão profissional, com a devida clareza de objetivos e promoção da autonomia (29). O bem-estar no local de emprego, o apoio, solidariedade, resiliência, justiça e sentimento de pertença e segurança devem ser privilegiados. Em relação ao TT e aos regimes que o acompanham acresce o dever da criação de um espaço de trabalho adequado, nomeadamente em casa do indivíduo.
DISCUSSÃO/CONCLUSÃO
Se, por um lado, o TT apresenta várias vantagens, como a flexibilidade e a melhor gestão de tempo e dinheiro, por outro, apresenta também apresenta múltiplos riscos psicossociais capazes de afetar de forma significativa a saúde mental e o bem-estar. O isolamento social, ansiedade, sobrecarga de trabalho, falta de equilíbrio entre vida profissional e pessoal e os conflitos trabalho-família são alguns dos seus principais riscos psicossociais. Revela-se crucial que as empresas, e em particular o médico do trabalho, seja capaz de reconhecer estes riscos e desenvolver medidas preventivas de forma a minimizar as suas consequências, garantindo assim um ambiente saudável no local de emprego. Importa, contudo, ressalvar que, na aplicação das diversas medidas deve ser, sempre, tida em conta a individualidade de cada trabalhador e do ambiente que o rodeia.