INTRODUÇÃO
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) a violência no local de trabalho é definida como incidentes físicos ou psicológicos, no qual os funcionários são abusados, ameaçados ou agredidos em circunstâncias relacionadas com o seu trabalho, incluindo o deslocamento de ida e volta para o trabalho, e envolvendo um desafio explícito ou implícito à sua segurança, bem-estar ou saúde (1). A violência no local de trabalho, nomeadamente nos estabelecimentos de saúde, tornou-se uma preocupação mundial, independentemente das caraterísticas económicas e culturais de cada país. O assunto tende a ser ocultado por profissionais e organizações por diversos motivos, como vergonha, dano à imagem ou até mesmo por desvalorização da matéria, sendo que o real número de incidentes pode ser bem maior do que a realidade conhecida. No Canadá e Estados Unidos da América os Enfermeiros são a segunda classe profissional com maior risco de violência no seu local de trabalho, seguindo-se aos polícias. No entanto, os dados podem ser muito mais alarmantes dado que a subnotificação é algo bastante conhecido, pois muitas vezes a violência é encarada pelos Enfermeiros como uma parte do seu trabalho (2). Trabalhar em instituições de saúde envolve situações de stress importantes, como ritmos de trabalho intensos, recursos humanos ou materiais insuficientes, relações hierárquicas rígidas, cumprimento rigoroso de protocolos, normas e rotinas, entre outras situações que tornam a relação difícil entre profissional, utentes e familiares (3).
Segundo a Administração de Segurança e Saúde Ocupacional (OSHA), a nível mundial, em 2014 os trabalhadores dos cuidados de saúde e da assistência social sofreram quatro vezes mais lesões devido à violência no local de trabalho comparativamente aos trabalhadores do setor privado em geral (4). Segundo dados da Direção Geral de Saúde (DGS), em 2020 foram registados em Portugal 825 casos de violência contra Profissionais de Saúde, sendo que em 2021 registaram-se 961. Até outubro de 2022 já teriam sido registados um total de 1347, o que corresponde a um aumento de cerca de 40% das notificações comparativamente com o ano anterior. Segundo a própria, este aumento deve-se, em parte, à formação dada aos profissionais para passarem a notificar as ocorrências. A maioria destas ocorrências no ano de 2022 foram registadas em profissionais Médicos (32%), 31% em Enfermeiros e 29% em Assistentes Técnicos. A violência psicológica (67%) é a que mais se evidencia nos episódios notificados, seguindo-se o assédio (14%) e por último a violência física (13%) (5). Relativamente aos Cuidados de Saúde Primários, um estudo português realizado pela Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiares de 2016-2017, verificou que 14% dos profissionais já sofreram violência física e que 77% das instituições teriam procedimentos para a abordagem à violência contra profissionais de saúde (6).
Nos Estados Unidos da América, segundo um estudo realizado ao longo de quatro anos, os Auxiliares de Enfermagem e os Enfermeiros são as categorias profissionais que mais foram vítimas de Acidentes de Trabalho (AT) por violência física contra eles. Em média, a taxa global de lesões por violência no local de trabalho entre os hospitais deste estudo aumentou 23% anualmente durante este período (7). Outro estudo na China, demonstrou que entre 2000 e 2020 ocorreram um total de 345 agressões em ambientes de saúde, cometidos maioritariamente pelos doentes e em 54 dos acidentes resultaram na morte do profissional de saúde, sendo que ao longo dos anos a tendência destes incidentes foi em crescendo (8). Estima-se que 50% dos profissionais de saúde sofram, pelo menos, um episódio de violência física ou psicológica por ano (9). A vigilância de saúde dos trabalhadores e a gestão do risco profissional é da responsabilidade dos Serviços de Segurança e Saúde no Trabalho, que devem ter como objetivo a minimização dos riscos profissionais e da melhoria contínua da qualidade do ambiente e das condições de trabalho (10).
OBJETIVOS
Caraterização dos AT decorridos entre 2018 e 2022 numa Unidade Local de Saúde e os AT decorridos no mesmo período, que resultaram de uma agressão física por parte dos Utentes a Profissionais de Saúde. Pretende-se determinar a sua distribuição anual, por sexo, idade, categoria profissional, serviço de saúde a que pertence e o seu impacto no número de dias de trabalho perdidos, comparativamente aos restantes AT verificados no mesmo período, mas que tiveram outra causa que não a agressão física.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo de coorte retrospetivo que incluiu todos os AT de uma Unidade Local de Saúde portuguesa no período de janeiro de 2018 a dezembro de 2022, assim como todos os AT ocorridos no mesmo período de tempo, mas no qual o motivo foi a ocorrência de uma agressão física por parte de utentes a profissionais de saúde.
Os dados foram obtidos através do software utilizado no Serviço de Saúde Ocupacional, UTILsst ®. Foram recolhidas informações sobre: número de acidentes, sexo, idade, categoria profissional, serviço a que o profissional pertence, localização (instalações de cuidados de saúde, domicílio do utente e no itinerário) e número de dias de trabalho perdidos. Todos os AT foram incluídos no estudo, mesmo aqueles que não resultaram em incapacidade temporária ou absoluta para o trabalho.
RESULTADOS
A instituição engloba um total de 3028 funcionários, sendo que 79% são do sexo feminino, com uma média de idades de 45 anos. Relativamente à categoria profissional, 36% são Enfermeiros, 22% Médicos, 21% Assistentes Operacionais, 13% Assistentes Técnicos, 4% Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica, bem como outros 4% para Técnicos Superiores. Ao longo de 5 anos, entre 2018 e 2022, houve um total de 572 AT registados na Instituição, sendo que 85% (N=484) foram no sexo feminino e 15% (N=88) foram do sexo masculino. Verificou-se uma média de idades de 47 anos. Do total de AT ocorridos, 42% foram verificados em Enfermeiros, 38% em Assistentes Operacionais, 8% em Assistentes Técnicos, 8% em Médicos, 3% em Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica e 1% em Técnicos Superiores. Ao longo destes cinco anos e devido aos AT, a instituição teve um total de 11540 dias de trabalho perdidos.
Partindo para a análise dos AT em que o motivo de ocorrência foi por violência física, ao longo destes cinco anos houve um total de 20 AT declarados. Este valor corresponde a 4% dos AT totais decorridos nesse período. Os 20 AT ocorreram num total de 14 profissionais, tendo havido um profissional que em cinco anos registou três agressões e quatro profissionais que tiveram duas agressões em cinco anos. Todos estes profissionais que tiveram mais que uma agressão pertenciam ao serviço de Psiquiatria e 70% (N=14) eram do sexo feminino. Verificou-se uma média de idades de 42 anos, um mínimo de 23 anos e um máximo de 62 anos. 75% (N=15) destes AT ocorreram no serviço de Psiquiatria, 14 deles no Internamento e 1 na Consulta Externa. Dos restantes, 10% (N=2) ocorreram no Internamento do serviço de Medicina Interna, outros 10% (N=2) nos Cuidados de Saúde Primários e apenas 5% (N=1) no Serviço de Urgência. Comparativamente com todos os AT na Instituição no mesmo período, os AT por violência física representam 4% dos AT no serviço de Psiquiatria, 12% no Serviço de Urgência, 19% nos Cuidados de Saúde Primários e 14% no serviço de Medicina Interna.
Analisando a distribuição dos AT por agressão segundo a categoria profissional, verificamos que 55% (N=11) dos AT foram em Assistentes Operacionais, 40% (N=8) em Enfermeiros e 5% (N=1) em Assistente Técnicos. As restantes categorias profissionais não registaram nenhuma agressão. Dentro do serviço de Psiquiatria, 60% (N=9) das agressões ocorreram em Assistentes Operacionais, maioritariamente do sexo masculino (56%), e os restantes 40% (N=6) em Enfermeiros, exclusivamente do sexo feminino. Quanto à distribuição do número de agressões ao longo dos cinco anos, verificamos uma tendência relativamente crescente ao longo do tempo (gráfico 1), com dois casos em 2018, um caso em 2019, seis casos em 2020, três casos em 2021 e oito casos em 2022.
Destes AT resultaram um total de 229 dias de trabalho perdidos. Destes, 221 correspondem a dias perdidos por profissionais pertencentes ao serviço de Psiquiatria. No total, 2% dos dias de trabalho perdidos na Instituição relativos a AT foram resultantes de uma agressão de Utente a Profissional de Saúde.
Relativamente às agressões ocorridas em trabalhadores dos Cuidados de Saúde Primários, uma delas ocorreu dentro das instalações enquanto a outra durante uma visita domiciliária.
DISCUSSÃO
A violência constitui-se um problema de saúde pública mundial, que deve ser reconhecido como uma questão de elevada importância nas unidades e nos cuidados de saúde, afetando quer os serviços prestados aos utentes, quer os profissionais e as organizações. Vários estudos mencionam que a violência decorre de um amplo conjunto de circunstâncias, das quais se destacam as condições de vida e de saúde da população, a acessibilidade aos cuidados e o atendimento e encaminhamento nos cuidados de saúde. Está relacionada com sentimentos de frustração, sofrimento moral vivido por quem sofre e por quem cuida e por fadiga e exaustão dos profissionais (11) (12) (13) (14).
O serviço de Psiquiatria é aquele que apresenta maior proporção de AT por agressões relativamente aos outros serviços. Os restantes serviços (Urgência, Medicina Interna e Cuidados de Saúde Primários) apresentam menor incidência deste tipo de AT comparativamente aos AT globais (Figura 3). Na sua maioria são mulheres, no entanto, comparativamente com os AT globais, a percentagem baixa dos 85% para os 70% de incidência no sexo feminino. Relativamente às categorias profissionais, tal como a literatura o refere, os Enfermeiros são razoavelmente afetados por violência física, no entanto, a classe profissional mais prevalente neste contexto foi a dos Assistentes Operacionais e não o pessoal Médico como o verificado em outros estudos. Tal facto pode ser justificado pela maioria destes AT terem ocorrido no internamento de Psiquiatria, sendo estas duas categorias profissionais aquelas que mais estão presentes e que têm contato mais próximo com os utentes internados. Na Figura 3 podemos observar a distribuição de AT por violência física e no geral, segundo categoria profissional. Estes dados também podem servir de suporte para a criação de medidas preventivas específicas para o serviço de Psiquiatria, como por exemplo o aumento do rácio de número de profissionais destas categorias por utente.
Relativamente aos episódios de violência física nos Cuidados de Saúde Primários, um ocorreu no domicílio do utente que agrediu o profissional, o que torna ainda mais imprevisível o cenário onde a violência ocorre, acrescentando mais variáveis ao tema, nomeadamente condições sociodemográficas. Como medida preventiva pode-se, por exemplo, ponderar que a realização de visitas domiciliárias sejam feitas sempre com dois elementos da equipa e nunca um profissional isolado.
Constatou-se, ainda, um número crescente de casos ao longo dos cinco anos, o que poderá demonstrar uma incidência crescente destes episódios nos últimos anos, mas que também poderá corresponder, em parte, a uma maior sensibilização dos profissionais à notificação. Houve, também, uma grande percentagem de profissionais que sofreram mais que um AT por violência física. Tal facto demonstra a presença do risco no local de trabalho para esses profissionais, mas também pode ser explicado pela sensibilização à notificação do AT e em contexto pós pandemia COVID-19, com fortes repercussões sobre a saúde mental dos profissionais de saúde. Este dado é um forte indicador da necessidade de criar e implementar medidas nos locais onde estes atos têm vindo a acontecer, nomeadamente o serviço de Psiquiatria que, pela tipologia de utentes é o serviço que mais verificou episódios de violência e que carece de uma abordagem particular tendo em conta o doente psiquiátrico.
Perante este cenário, é fundamental o planeamento e a implementação de intervenções que possam prevenir e reduzir a violência. São necessárias medidas multissetoriais, que promovam o diálogo e a mediação, que construam ações coletivas em sinergia com os diversos intervenientes, ou mesmo abordagens de organização do trabalho. Uma das estratégias que auxiliam a diminuição da violência nos ambientes de trabalho é o desenvolvimento da escuta ativa, que envolve estar atento às necessidades e compreender o contexto do que está a ser dito ou solicitado. Desta forma, poderá ser desenvolvida a empatia necessária que facilite a relação profissional-utente (15).
Os profissionais e utentes dos serviços de saúde estão sob influência da organização do trabalho nas instituições de saúde, que estão intrinsecamente relacionados com os modelos de gestão. Contudo, independentemente do modelo de organização dos serviços, algumas medidas podem ser adotadas por todas as instituições de saúde de forma a diminuir os episódios de violência, nomeadamente: monitorização e vigilância dos atos de violência; acolhimento às vítimas de violência no trabalho; criação de uma comissão interna contra a violência; treino em liderança e estruturação de serviços de vigilância e segurança institucional e de higiene e segurança no trabalho (16). É ainda importante salientar o elevado número de dias de trabalho perdidos por violência física contra profissionais de saúde, correspondendo a quase 2% das ausências por todo o tipo de AT na instituição, o que acarreta elevada perda de produtividade, desestabiliza a organização de trabalho do serviço, para além das grandes implicações psicológicas que estes episódios acarretam para o profissional.
CONCLUSÃO
Segundo a Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Trabalho, a violência no trabalho tem um impacto importante sobre a saúde e a produtividade dos trabalhadores, nomeadamente nos setores com grande proximidade com os utentes, como o setor da saúde. Refere também que a violência está associada a sobrecarga de trabalho, insuficiência de recursos e ambientes de trabalho com menor perceção de confiança e justiça. Assim, entende-se que a melhoria da qualidade dos serviços e dos cuidados de saúde está intimamente relacionada com a aplicação de estratégias de abordagem e prevenção da violência no local de trabalho (17).
Apesar dos desenvolvimentos no combate à violência, ela continua a existir nas relações humanas, nas comunidades e em contexto de prestação de cuidados de saúde. Trata-se de um problema que interessa, afeta e é da responsabilidade de todos o seu controlo. É necessário alertar para o problema e criar oportunidade de debate, pois a exposição à violência tem sido associada a problemas de saúde nos profissionais, como lesões físicas, alterações emocionais, distúrbios psiquiátricos, assim como influencia negativamente o desempenho dos trabalhadores e as suas dimensões sociais.
A Saúde Ocupacional deve encarar o problema da violência como um tema cada vez mais presente e com tendência a crescer, começando a criar e implementar estratégias de prevenção, mas também aplicar ferramentas de avaliação dos Riscos Psicossociais e prestar apoio à vítima, quer seja em contexto de AT, quer em contexto de violência verbal, pois ambas afetam negativamente a saúde do profissional, o seu desempenho e o ambiente interno das instituições de saúde, sendo tudo isto do interesse da Saúde Ocupacional.