INTRODUÇÃO
Define-se como doença profissional (DP) aquela que resulta diretamente das condições de trabalho e que constam da lista de DP. Pode ainda ser considerada DP a lesão corporal ou dano, perturbação funcional ou patologia, com origem direta da exposição a riscos laborais e respetivas condições de trabalho decorrentes do exercício da profissão e que não represente normal desgaste do organismo (1). A sua reparação, incluindo a reabilitação e reintegração no trabalho está prevista na lei n.º 98/2009 de 4 de setembro (2).
A lista onde estas estão definidas, encontra-se dividida em cinco capítulos distintos, sendo eles respetivamente patologias provocadas por agentes químicos, do aparelho respiratório, cutâneas ou outras, provocadas por agentes físicos e, por último, doenças infeciosas e parasitárias (3).
Segundo a Direcção-Geral da Saúde, em Portugal, é estimado que só uma pequena parte das DP seja participada. Os dados oficiais analisados e publicados periodicamente pelas entidades competentes são diminutos. A campanha “Diagnóstico e Participação da Doença Profissional” de 15 de outubro de 2015 teve como público-alvo os médicos em geral, com o objetivo de contribuir para o aumento da notificação de suspeita destas patologias pelo fomento de mais informação e sensibilização da classe médica para proceder ao preenchimento da “Participação Obrigatória” sempre que exista uma suspeita ou diagnóstico (4).
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) existem 160 milhões de novos casos de doenças “inerentes” ao trabalho e aproximadamente 8% das doenças do foro mental são atualmente atribuídos a riscos relacionados com o trabalho. Em Portugal estima-se que ocorram quatro a cinco mortes diárias por doença relacionada com o trabalho (5). Segundo a literatura, a incidência destas, aumenta com a idade, sendo, de forma geral, mais frequentemente diagnosticadas em indivíduos do sexo feminino. As patologias musculosqueléticas destacam-se por serem as mais certificadas (6) (7).
Embora os setores da indústria transformadora e da construção estejam, teoricamente, associados a maiores perigos para os trabalhadores, alguns relatórios nacionais de saúde ocupacional mostram uma incidência global de lesões no local de trabalho no setor da saúde superior aos de outros setores profissionais, como os citados (8). Os trabalhadores do setor da saúde representam 10% da mão-de-obra total da União Europeia, e uma proporção significativa dos quais trabalham em hospitais, estando estes expostos a diversos riscos, tais como os ergonómicos, físicos, biológicos e químicos, apresentando, assim, um maior risco para o desenvolvimento de doenças relacionadas com o trabalho, nomeadamente lesões musculosqueléticas, patologias infeciosas e perturbações psicológicas (9).
Deste modo, é fundamental a realização de estudos sobre a temática em questão, nomeadamente no setor de saúde, possibilitando assim o desenvolvimento de políticas preventivas eficazes, capazes de minimizar a sua ocorrência nos profissionais de saúde.
OBJETIVOS
Análise das DP participadas num Serviço de Saúde Ocupacional (SSO) de um hospital terciário português, relativamente ao tipo de patologia, distribuição anual, por sexo, idade e categoria profissional, distribuição de acordo com a modalidade de horário, resultado do processo de certificação e incapacidade atribuída.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo retrospetivo que incluiu todas as DP notificadas de um hospital terciário português no período de janeiro de 2011 a dezembro de 2022. Os dados foram obtidos através do software do SSO. Foram recolhidas informações sobre sexo, idade e categoria profissional, horário, patologia, resultado do processo de certificação e incapacidade atribuída.
RESULTADOS
Verificou-se a notificação de 203 DP, entre 2011 e 2022, sendo que a idade média foi de 47,1 anos (±10,6), entre os 21 e os 66 anos.
Observou-se que 2020 foi o ano com maior número, com um total de 71 DP notificadas, associado ao elevado número de casos de infeção por SARS-Cov-2, contrariamente, em 2012 não se registou qualquer participação. Seguindo a mesma tendência, 2020 foi o ano com um maior número de DP caracterizadas (Gráfico 1). Neste período de análise, mesmo excluindo os casos associados à pandemia, tem-se verificado um aumento gradual da participação de patologias relacionadas com o trabalho.
83,7% das notificações correspondem a mulheres. A proporção de indivíduos do sexo feminino (5,9%) com DP notificadas, continua a ser maior que nos homens (tabela 1).
Sexo | Número de DP | Total Funcionários | Proporção tendo em conta o sexo |
---|---|---|---|
Feminino | 170 | 2884 | 5,89% |
Masculino | 33 | 1110 | 2,97% |
Total | 203 | 3994 | 5,08% |
Verificou-se que 62,6% das DP participadas correspondem a trabalhadores com horário por turnos.
O grupo profissional com maior número de notificações é o dos assistentes operacionais (AO) (36,9%), seguido dos enfermeiros (24,6%) e médicos (20,7%). Já quando analisamos a prevalência das DP, observa-se que os Técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica (TSDT) (9,9%), são os mais afetados, seguindo-se os assistentes operacionais (7,4%) e os médicos (4,8%) (tabela 2).
Categoria | Número de DP | Total Funcionários | Proporção tendo em conta a categoria |
---|---|---|---|
Assistentes Operacionais | 75 | 1017 | 7,37% |
Assistentes Técnicos | 11 | 316 | 3,48% |
Enfermeiros | 50 | 1359 | 3,68% |
Médicos | 42 | 874 | 4,80% |
Téc. de Diagnóstico e Terapêutica | 23 | 233 | 9,89% |
As doenças mais participadas foram as infeciosas (53,2%), seguidas das musculosqueléticas (43,8%). Seguindo o mesmo padrão, as mais caraterizadas enquanto DP foram as infeciosas (72,7%) seguindo-se as musculosqueléticas (25,2%) (tabela 3).
Total de DP Participadas | % | Total de DP caracterizadas | % | Total DP caracterizada com IPP | % | |
---|---|---|---|---|---|---|
Infeciosas | 108 | 53,2% | 104 | 72,7% | 9 | 6,3% |
Musculosqueléticas | 89 | 43,8% | 36 | 25,2% | 13 | 9,1% |
Dermatológicas | 3 | 1,5% | 2 | 1,4% | 0 | 0,0% |
Respiratória | 2 | 1,0% | 1 | 0,7% | 1 | 0,7% |
Outra | 1 | 0,5% | 0 | 0,0% | 0 | 0,0% |
À data desta análise 70,4% das notificações encontravam-se caracterizadas, 9,9% não foram reconhecidas, 16,3% aguardavam resultado e em 3,4% tinha sido perdido o seguimento. Foi atribuída incapacidade permanente parcial (IPP) a 16% das caracterizadas. Das patologias reconhecidas, as musculosqueléticas foram as que mais geraram incapacidade (9,1%), seguindo-se as infeciosas (6,3%) e respiratórias (0,7%) (tabela 4).
Das DP que deram origem a IPP, a prevalência é maior nos TSDT (23,1%), seguindo-se os AO (22,9%) e no pessoal de enfermagem (15,8%).
DISCUSSÃO
As DP apresentaram uma distribuição crescente ao longo do período estudado, com um grande incremento em 2020, facto explicado pela pandemia causada pelo vírus SARS-COV-2. Até então as patologias mais participadas eram as musculosqueléticas, estando de acordo a literatura (10). Importa refletir que, provavelmente, o aumento deste número não se deva somente aos fatores de risco inerentes ao setor, mas também à maior procura do Médico do Trabalho e pela diminuição do desconhecimento geral da possibilidade da participação de patologias de outros foros como DP. A distribuição por sexo, idade e modalidade de horário está de acordo com a distribuição da população laboral do Hospital.
Quando analisamos por categoria profissional, em número absoluto, à semelhança com o corroborado pela literatura, o maior número de notificações de DP ocorreu nos AO, seguindo-se os enfermeiros e os médicos. No entanto, quando analisamos a sua prevalência dentro de cada grupo profissional, a categoria com maior prevalência de DP participadas é a dos TSDT, seguido da dos AO, médicos e enfermeiros. Isto explica-se sobretudo devido à natureza das funções exercidas, que conduzem ao aparecimento de patologias musculosqueléticas, principalmente nos TSDT, AO e enfermeiros (correspondente a 43,8% das DP notificadas) e também, transversal a todas as categorias profissionais, a exposição a doentes infetados com SARS-COV-2 (integradas nas DP infeciosas com uma taxa de notificação de 53,2%) no período em estudo (11). Facto este apoiado por alguns autores na literatura (12) (13). O mesmo pode explicar os valores encontrados quando analisamos as DP que originaram IPP nos trabalhadores, sendo estes os grupos onde se verifica uma maior prevalência de incapacidade permanente.
Importa referir que na categoria dos TSDT incluem-se os fisioterapeutas, técnicos de análises clínicas, terapeutas ocupacionais, entre outros que prestam cuidados de reabilitação e auxílio no diagnóstico de patologias, e que o Centro Hospitalar em estudo é um dos poucos que integra na sua estrutura um centro de reabilitação, existindo por isso um número significativo destes profissionais na organização. Estes prestam cuidados e trabalham diretamente com doentes com mobilidade muito reduzida, desde pediátricos a geriátricos, estando por isso mais expostos aos riscos físicos, e consequentemente, mais suscetíveis de desenvolverem DP do foro musculosquelético.
Seguindo o mesmo padrão observado nas doenças participadas, as mais caracterizadas foram as infeciosas seguindo-se as musculosqueléticas. De referir, que o processo de caracterização das patologias infeciosas por SARS-Cov-2 nos profissionais de saúde passou a ser um processo menos moroso, pois, consequentemente à alteração ao Orçamento de Estado de 2020, em que foi aditado o artigo 262-B à Lei 2/2020, de 31 de março, os profissionais de saúde estavam isentos de efetuar qualquer prova que a doença SARS-COV-2 era consequência direta da atividade exercida, acedendo de forma mais célere aos direitos previstos no regime jurídico de reparação das mesmas (14).
A ausência de participações em 2012 deveu-se à ausência de Médico do Trabalho no SSO nesse ano. Neste momento o serviço de SSO já não está dependente de apenas um Médico do Trabalho, prevendo-se que este facto não volte a ocorrer.
Este estudo apresenta algumas limitações. Seria interessante verificar quais são as principais patologias musculosqueléticas diagnosticadas e procurar estabelecer uma relação com a categoria profissional, mas por limitação do software não foi possível realizar esta análise. A perda de seguimento de algumas DP, não se conseguindo determinar o seu ponto de situação é outra limitação que o SSO tenta neste momento ultrapassar, procurando obter informações junto dos trabalhadores. Por último, o fenómeno da Pandemia COVID-19, que levou a um aumento drástico dos casos de DP do foro infecioso e, consequentemente, a um maior absentismo, quer por doença, quer por isolamento profilático, afetou certamente o impacto por das doenças profissionais de outros foros.
CONCLUSÃO
Conhecer o impacto dos riscos profissionais na saúde dos trabalhadores é importante para definir as prioridades das medidas preventivas e atenuantes e monitorizar o seu sucesso.
Sendo a Instituição em estudo da área da prestação de cuidados de saúde, historicamente com parcos recursos humanos na área da Saúde Ocupacional, ao longo dos últimos anos foi dado mais ênfase à proteção contra o risco biológico, em estreita colaboração com a Unidade Local do Programa de Prevenção e Controlo de Infeção e Resistência aos Antimicrobianos (UL-PPCIRA), em detrimento de outros tipos de risco, nomeadamente os riscos físicos e psicossociais, potenciadores de lesões musculosqueléticas. Neste sentido, o SSO encontra-se a desenvolver e implementar um conjunto de medidas para a sua prevenção, já que se excluirmos os anos de pandemia, estas apresentam-se, em larga medida, como as DP mais participadas e com impacto funcional para o trabalhador. Assim, encontram-se já em curso ações de formação em matéria de ergonomia, para os trabalhadores do Centro Hospitalar, não só do ponto de vista teórico, mas também simulando cenários com casos práticos. Está ainda a ser criada uma parceria com a Medicina Física e de Reabilitação, para o desenvolvimento de programas de ginástica laboral adaptados às diferentes categorias profissionais, de modo que todos sejam abrangidos. Também a colaboração do SSO com os Serviços de Obras e Instalações, e de Equipamentos e Eletromedicina, responsáveis pela restruturação dos espaços físicos e aquisição de equipamentos de trabalho respetivamente, será uma medida que se espera ter um forte impacto em matéria de prevenção de DP.
Deste modo, para além de permitir conhecer melhor as empresas neste âmbito, este tipo de estudos, que serão realizados mais frequentemente, e em maior detalhe para cada um dos tipos de riscos presentes na instituição, são também importantes ferramentas de avaliação das medidas implementadas. A consulta aos trabalhadores sobre questões relacionadas com a Saúde e Segurança no trabalho, obrigatória por lei, é também uma importante ferramenta para avaliação dos programas de prevenção instituídos.
Em suma, a análise destes dados é de extrema importância nas organizações, pois esta permite conhecer melhor a realidade nestas matérias e, consequentemente podem definir-se estratégias de atuação, alterar métodos de trabalho, efetuar vigilância de saúde direcionada aos riscos a que o trabalhador está exposto, proporcionando assim ambientes de trabalho mais saudáveis, melhorando a sua qualidade de vida e produtividade.