ENQUADRAMENTO
As pneumoconioses configuram um grupo de doenças pulmonares provocadas pela inalação de partículas orgânicas e inorgânicas, poeiras minerais e gases tóxicos. Estes elementos causam sensibilização e inflamação do parênquima pulmonar, com destruição estrutural e afetação da função, que muitas vezes culmina em fibrose e, em alguns casos, carcinogénese (1)(2).
A exposição a estes elementos decorre geralmente em contexto ocupacional, principalmente nos setores metalúrgicos, indústria de construção civil, mecânica automóvel e/ou mineração, pelo que se consideram doenças ocupacionais (3). A maioria desenvolve-se após décadas de exposição, mas em alguns casos é suficiente um período de contacto curto e intenso para desencadear a doença. O tempo de exposição, a quantidade e tipo de material inalado, a sensibilidade individual e o uso de proteção adequada são fatores que podem influenciar a gravidade. Algumas destas doenças podem melhorar ou até resolver com a suspensão da exposição, contudo, outras podem manter-se e até evoluir, mesmo frenando a exposição (4).
Estas patologias podem ser assintomáticas durante anos, ou manifestar-se de forma ligeira e transitória, ou ainda apresentar uma evolução crónica com deterioração pulmonar progressiva, com necessidade de tratamento de última linha, como o transplante pulmonar. Para o diagnóstico, é fundamental uma história clínica detalhada, incluindo a análise exaustiva da exposição ocupacional e ambiental. Os meios complementares de diagnóstico (principalmente de imagem) podem ajudar a confirmar o quadro, dispensando muitas vezes o diagnóstico definitivo com biópsia (2)(4). A gestão passa essencialmente pela prevenção da exposição, sendo necessárias a sensibilização e educação para a saúde do trabalho, bem como a gestão do local de exposição e implementação de medidas de proteção coletivas e individuais (3)(5).
A silicose, uma das principais doenças pulmonares ocupacionais, é causada pela inalação de dióxido de silício cristalino (6). O quartzo é o tipo mais comum de sílica cristalina e é o principal componente de rochas duras, como granito, ardósia e arenito. É uma doença frequente em indústrias de pedra, de areia e de mineração, entre outras, onde muitos dos profissionais têm evidência radiográfica de silicose, independentemente da sintomatologia (7). A silicose pode ser dividida, consoante o tempo de aparecimento dos sintomas e de acordo com a evolução, em aguda, acelerada ou crónica (6)(8). A aguda associa-se geralmente ao contacto com altas concentrações de sílica, desenvolvendo-se sintomas como tosse, perda de peso, fadiga e dor pleurítica, semanas a anos após exposição. A crónica, incluindo silicose simples e fibrose maciça progressiva (FMP), surge em média 20 anos após uma exposição geralmente prolongada e as apresentações variam desde achados radiográficos assintomáticos até tosse crónica produtiva, dispneia de esforço e insuficiência respiratória progressivas. Já a silicose acelerada representa um intermédio entre as anteriores, sendo que se desenvolve dentro de 5 a 10 anos após exposição inicial a níveis elevados de sílica, mas com evolução para cronicidade e maior risco de desenvolvimento de FMP do que a forma aguda (8)(9).
O diagnóstico desta entidade, na maioria dos casos, faz-se perante uma história de exposição típica a silício, associada à presença de opacidades consolidativas nodulares difusas na radiografia torácica ou na tomografia torácica de alta resolução (TC-AR)- na silicose simples com opacidades pequenas nos lobos superiores, na forma de FMP com opacidades maiores e na ausência de outro diagnóstico com maior probabilidade de ser responsável por estas alterações. Quando não é possível realizar o diagnóstico com estes três critérios, é necessária a realização de uma biópsia pulmonar de confirmação (9)(10).
A silicose é geralmente uma doença progressiva, muitas vezes com evolução para fibrose maciça e perda irreversível da função pulmonar, não existindo nenhum tratamento eficaz (6). A prevenção e evicção de exposição à sílica é fundamental, sendo pela utilização de proteção respiratória individual adequada no trabalho ou pela mudança de ocupação. O tratamento é essencialmente de suporte sintomático, passando por cessação tabágica, broncodilatação, vacinação (contra influenza e pneumococos) e oxigenoterapia quando indicado. Em alguns casos, pode ser utilizada corticoterapia sistémica, reconhecendo-se melhoria estatística, mas não clinicamente, significativa no volume pulmonar e capacidade de difusão do monóxido de carbono (DLCO). Na doença terminal poderá ser ponderada a realização de transplante pulmonar. Este figura como a única alternativa curativa da doença, sendo fulcral em doentes com limitada esperança de vida (8)(9). Em Portugal, o transplante pulmonar é uma possibilidade real, existindo um Centro de Referência no Hospital de Santa Marta (11).
A Alveolite alérgica extrínseca (AAE), ou Pneumonite de hipersensibilidade, é uma doença pulmonar intersticial causada por inalação repetitiva e sensibilização a agentes alergénicos, como poeiras agrícolas, bioaerossóis de microrganismos ou espécies químicas reativas, que levam a uma reação imunológica no parênquima pulmonar, num hospedeiro suscetível (12). Pode ser uma forma de pneumoconiose (trabalhadores agrícolas, hortícolas, pecuários leiteiros, com exposição a sistemas de ventilação ou reservatórios de água, entre outros), mas a exposição ambiental doméstica tem também uma elevada preponderância na exposição a sensibilizantes. A imunopatogénese da AAE varia de acordo com a suscetibilidade do indivíduo, o antigénio causal, a frequência e intensidade da exposição e a duração da doença (13).
Sintomaticamente, manifesta-se mais agudamente com febre, tosse e toracalgia (mimetizando por vezes um quadro vírico agudo), enquanto mais cronicamente carateriza-se por dispneia progressiva, tosse produtiva, fadiga e perda ponderal. O quadro pode manifestar-se de horas a dias após a exposição, até meses a anos, podendo até existir vários episódios recorrentes (13)(14). O diagnóstico de AAE pode ser difícil, pela ausência de características específicas que a diferenciam de outras doenças pulmonares, principalmente as intersticiais. Este baseia-se geralmente na apresentação e evolução clínica, na história de exposição a alergénios, e nos achados típicos na TC-AR “opacidades em vidro despolido irregulares e nódulos centrolobulares mal definidos”, contribuindo o lavado broncoalveolar (LBA) para esclarecimento (10)(15).
Existem casos de AAE aguda com sintomas leves e mínima alteração da função pulmonar, cuja evicção do antigénio é geralmente suficiente para a resolução do quadro. Em casos subagudos ou mais sintomáticos, com algum atingimento pulmonar funcional ou estrutural, para além da suspensão da exposição, pode ser necessário um ciclo de corticoterapia, de forma a encurtar os sintomas. Em casos mais graves ou crónicos, em que se verifica fibrose pulmonar persistente, podem ser necessárias terapêuticas mais avançadas, como imunossupressão (por exemplo, azatioprina e micofenolato de mofetil) ou até transplante pulmonar (15)(16). O tratamento de suporte, com cessação do tabagismo, vacinação contra a gripe sazonal e pneumocócica, reabilitação pulmonar e oxigénio suplementar, pode também ter um papel na doença avançada, quando persiste sintomatologia apesar da evicção ao alergénio (17).
A incidência de AAE pode ser reduzida diminuindo a exposição aos agentes causadores, sendo para isso necessária a redução da exposição ao alergénio em causa, como, por exemplo, através da educação do doente para o uso de equipamentos de proteção individual, a manutenção adequada dos sistemas de ventilação, entre outros. O prognóstico pode ser muito variável: por vezes ocorre uma boa evolução, mesmo mantendo-se a exposição ao antigénio, enquanto noutras vezes a sintomatologia e dano pulmonar prevalece e evolui mesmo após suspensão da exposição (18).
DESCRIÇÃO DO CASO
Mulher de 46 anos, com antecedentes pessoais de hipertensão arterial, dislipidemia e Diabetes Mellitus tipo 2, devidamente medicada e vigiada, com bom controlo das patologias. Sem antecedentes de hábitos tabágicos ou consumo de álcool. Trabalhava como operária numa fábrica de corte de pedra, essencialmente quartzo, desde 1987 (há 25 anos), sem utilização de proteção respiratória individual adequada. Em casa fazia criação de periquitos.
Recorreu a consulta programada no seu Médico de Família (MF) em novembro de 2012, por dispneia de esforço de agravamento progressivo com um ano de evolução, sem outra sintomatologia. Nesse contexto, foi solicitada avaliação imagiológica com radiografia torácica, que evidenciou um infiltrado intersticial de padrão reticulo-micronodular bilateral difuso, com predomínio hilar. Atendendo a este achado, a utente foi referenciada para consulta hospitalar de Pneumologia, para avaliação e estudo complementar, e iniciou corticoterapia inalada (budesonida 400 mcg/dia), com alívio parcial da sintomatologia.
Na primeira consulta hospitalar, foi adicionada corticoterapia sistémica (prednisolona 30 mg/dia) à inalada e foram requeridos meios complementares de diagnóstico (MCDTs) para melhor caraterização das lesões, tendo ainda a doente indicação para suspender a atividade laboral até esclarecimento etiológico.
Regressou à consulta em fevereiro de 2013, para reavaliação e conhecimento do resultado dos MCDTs realizados. As provas funcionais respiratórias (PFR) demonstraram discretas alterações ao nível das pequenas vias aéreas com diminuição da DLCO (62%) e foram evidentes as alterações sugestivas de pneumoconiose (silicose) na TC-AR, tais como “várias adenomegalias no mediastino; várias opacidades retráteis nos lobos superiores sugestivas de fibrose; anomalia intersticial de padrão micronodular com distribuição centrilobular” [Imagem 1]. Foi ainda realizado um estudo de populações linfocitárias no LBA, que revelou o diagnóstico de AAE. Pela melhoria clínica com a terapêutica instituída, foi possibilitado o regresso à atividade laboral (para as mesmas tarefas), desde que garantida a utilização de proteção respiratória adequada, o uso de broncodilatador e corticoterapia oral, bem como manutenção da vigilância. Foi ainda realizada a participação de doença profissional e dada indicação para afastamento das aves domésticas, à qual a doente aderiu.
Em um ano de atividade laboral, mesmo com uso de proteção respiratória, verificou-se uma deterioração progressiva, com TC-AR a evidenciar “agravamento notório das alterações previamente existentes com alterações fibróticas em ambos os lobos superiores” [Imagem 2]. Por esse motivo, teve nova indicação para suspender a atividade laboral (deixando efetivamente o trabalho após parecer positivo da avaliação por parte do centro nacional de proteção contra riscos profissionais- doença profissional) e foi alterado o corticoide inalado para propionato de fluticasona 500mcg, tentando-se ainda o desmame do corticoide oral.
Nos anos seguintes, mesmo com o afastamento do local de trabalho, mantendo o acompanhamento adequado no seu MF e pneumologista assistente, e sob reabilitação respiratória em ambulatório, verificou-se um agravamento progressivo, quer clínico (com dispneia para mínimos esforços, tosse recorrente, pieira, astenia, anorexia e emagrecimento, com PFR a mostrarem já uma alteração ventilatória restritiva grave), quer imagiológico (TC-AR “conglomerados fibróticos em ambos os lobos superiores e ambos os inferiores, compatíveis com fibrose maciça progressiva no contexto de silicose/áreas de ligeiro aumento difuso da densidade parenquimatosa com aspeto em vidro despolido”) [Imagem 3], existindo a necessidade de retomar corticoterapia oral prolongada e de integrar um programa de oxigenoterapia domiciliária de longa duração. A doente foi, entretanto, proposta para transplante pulmonar, em 2016, tendo sido convocada várias vezes, mas sem realização efetiva do mesmo.
Ao longo destes anos, foi notória uma deterioração clínica e imagiologia gradativa, com inúmeras intercorrências respiratórias, muitas com necessidade de internamento hospitalar. Uma das exacerbações culminou no falecimento da utente em julho de 2021.
DISCUSSÃO
Este é um caso de silicose crónica, associada a exposição ocupacional prolongada a sílica sob a forma de quartzo. A clínica sugestiva foi acompanhada de achados imagiológicos compatíveis, corroborando o diagnóstico já provável pela história laboral.
Não existindo tratamento específico para a silicose, foi determinada a evicção da exposição, com afastamento inicialmente provisório, e depois definitivo, do trabalho. Aquando da possibilidade temporária de regresso à atividade laboral, a doente manteve-se a desempenhar as mesmas funções, passando apenas a usar proteção respiratória (máscaras com filtro N95). Desconhecemos a atribuição de aptidão condicionada nesse momento ou a adoção de outras medidas de proteção individual ou coletiva, algo que poderia ter contribuído favoravelmente para o prognóstico. Após a certificação de doença profissional, a doente foi considerada inapta definitivamente para o trabalho, cessando toda a atividade laboral.
Apesar disso, tal como se sabe, quando estabelecido um processo pneumoconiótico crónico, principalmente com fibrose pulmonar, a suspensão da exposição não impede a progressão da doença, como pudemos verificar neste caso. Na doença terminal, surge como tratamento de última linha o transplante pulmonar. A decisão de referenciar esta doente para transplante surgiu 4 anos após o diagnóstico de silicose, atendendo ao curso agressivo e evolutivo do quadro. Esta foi convocada cinco vezes para o procedimento, contudo, este acabaria por não realizar por diversas vicissitudes, quer institucionais, quer individuais, realçando-se aqui o debilitado estado geral destes doentes, com recorrentes intercorrências infeciosas que adiam o processo. Também o acesso ao transplante não é fácil pela escassez de oportunidade, atendendo à falta de órgãos, à dificuldade na compatibilidade entre dador e recetor, de grupo sanguíneo e altura e à não viabilidade dos pulmões doados, sabendo-se efetivamente que 15% dos doentes em lista de espera não chegam a receber o órgão de que precisam, como aqui aconteceu (11).
Assim, a prevenção e o diagnóstico precoce figuram elementos-chave nas doenças pulmonares ocupacionais. O diagnóstico diferencial entre pneumoconioses e até com outras doenças respiratórias pode ser desafiante, atendendo à sintomatologia não específica, sendo de facto fulcral um estudo aprofundado da história ocupacional para reconhecimento do possível agente causal, coadjuvado por métodos de imagem (10). Por vezes, existe também sobreposição/sinergia destas entidades, tal como neste caso, dificultando a distinção do que possa ser atribuível a uma ou outra doença, sendo que ambas podem contribuir aditivamente para um quadro clínico mais grave e condicionar maior dificuldade no tratamento (19).
Aqui o diagnóstico de AAE foi realizado pelos achados do LBA e a história de exposição ambiental, atendendo à criação doméstica de periquitos. A clínica era sobreponível à da silicose, tratando-se de uma apresentação mais crónica e, tal como nessa, não existindo tratamento dirigido, foi privilegiada a evicção da exposição e terapêutica de suporte. A doente, para além de cumprir corticoterapia oral, respeitou a orientação de afastamento de aves domésticas, contudo, continuou a ocorrer deterioração pulmonar progressiva. Efetivamente, uma das entidades com pior prognóstico na AAE é a exposição a aves, pela maior concentração e a persistência de antigénios aviários no ambiente doméstico (18).
São ainda de ressalvar complicações e comorbilidades relacionadas com estas doenças, especialmente a associação entre silicose e o maior risco de tuberculose pulmonar ou outras infeções por micobactérias, e ainda a sua relação pouco esclarecida com doenças autoimunes (como com o lúpus eritematoso sistémico, esclerose sistémica, glomerulonefrite, artrite reumatóide, entre outros). Poderá até estar associado à cronicidade o desenvolvimento de cancro do pulmão ou doença pulmonar obstrutiva crónica, pelo que é necessário vigiar global e longitudinalmente estes doentes (20)(21).
Sabendo que o afastamento pós-exposição poderá não ser suficiente para o controlo da doença, tanto na silicose, como na AAE, e noutras pneumoconioses, a pedra basilar passa por evitar a exposição a partículas de risco, tal implicando a educação e sensibilização do trabalhador e das empresas para os riscos e para a necessidade de prevenção e a otimização das condições de trabalho- individualmente, com medidas de higiene pessoal e uso adequado de proteção das vias respiratórias e equipamentos individuais (óculos, luvas, roupa, calçado); e coletivamente, com gestão da exposição e sistemas de vigilância e contenção de risco (com alteração do processo, redução das atividades suscetíveis de libertar poeiras, redução do tempo de exposição e permanência dos trabalhadores em locais de maior exposição, redução do número de trabalhadores expostos, bem como adequação dos sistemas de ventilação) (22)(23). É fundamental estar alerta para a obrigação de notificação destas doenças profissionais e ainda valorizar a necessidade de alteração do posto de trabalho ou até mesmo de atribuição de inaptidão definitiva para o trabalho, cabendo não só aos serviços de saúde ocupacional com carácter multidisciplinar, mas também ao MF direcionar e apoiar o doente neste processo (24).
CONCLUSÃO
É de extrema importância a vigilância apertada da saúde dos trabalhadores com exposições de risco. Apesar de competir em primeiro lugar à Saúde Ocupacional prevenir as doenças profissionais e promover proactivamente a saúde e qualidade de vida dos trabalhadores, cabe também ao MF avaliar o estado de saúde global dos utentes que acompanha, com abrangência biopsicossocial, o que inclui um acompanhamento da sua história ocupacional e a abordagem de possíveis condições associadas. O diagnóstico destas entidades quer-se o mais precocemente possível, sendo necessária grande suspeição por parte do clínico para identificação de agentes laborais como possíveis causadores de doença, mesmo perante ausência de sintomas ou queixas, mas assumindo o risco laboral per si, pelo que o MF deve estar sensibilizado para esta temática. O MF, pelo seu acompanhamento longitudinal durante toda a vida e gestão da multimorbilidade, tem um papel fulcral no seguimento destes utentes, promovendo estilos de vida e de trabalho saudáveis, realizando um diagnóstico precoce e inciso destas doenças, procedendo ao encaminhamento para avaliação mais especializada, e garantindo manutenção da vigilância para gestão de intercorrências e de comorbilidades, podendo assim melhorar o prognóstico e qualidade de vida dos seus utentes.