INTRODUÇÃO
As Adições dividem-se em duas categorias principais: Perturbações do Uso de Substâncias (PUS) e Comportamentos Aditivos ou Dependências Sem Substância. Tal demonstra que ambos os comportamentos ativam os sistemas de recompensa de maneira semelhante e aplica-se a todos os casos em que os sintomas causam um sofrimento ou prejuízo clinicamente marcante nas áreas social, ocupacional ou outras áreas importantes do funcionamento do indivíduo (1) (2).
As Perturbações do Uso de Substâncias incluem dez classes diferentes de drogas: álcool, cafeína, cannabis, alucinógenos, inalantes, opióides, sedativos, hipnóticos e ansiolíticos, estimulantes (substâncias do tipo anfetamina, cocaína e outras), tabaco e outras substâncias, ou substâncias desconhecidas. Os Comportamentos Aditivos ou Dependências Sem Substância incluem principalmente as perturbações do jogo ou jogo patológico, que se define por um padrão problemático, persistente e recorrente de jogo que causa uma disrupção clinicamente significativa na vida do indivíduo (1).
A característica principal das PUS é serem definidas por um conjunto de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos que indicam que o indivíduo continua a usar essa substância apesar dos significativos problemas desencadeados por ela. Em suma, o diagnóstico de uma PUS baseia-se num padrão patológico de comportamentos relacionados com o uso dessa mesma substância (1) (2) (3).
A Perturbação do Uso de Álcool (PUA) é um fator de risco para várias comorbilidades e para o aumento da mortalidade. O consumo excessivo de álcool pode resultar em danos a terceiros, como familiares, amigos, colegas de trabalho ou mesmo a desconhecidos. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), este consumo excessivo está associado a uma expectativa de vida mais baixa e leva a aproximadamente três milhões de mortes por ano, em todo o mundo (4) (5). Segundo o Factbook de 2010 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o maior número absoluto estimado de mortes por causas atribuíveis ao álcool ocorreu nas faixas etárias de 45 a 64 anos para ambos os sexos, o que representa uma parte importante da população em idade ativa. Na União Europeia (UE) na faixa etária dos 25 aos 59 anos, que representa a fase com maiores taxas de empregabilidade, o consumo de álcool é o principal fator de risco para problemas de saúde e morte prematura, quantificável em anos de vida ajustados por incapacidade (DALYs - disability-adjusted life years) (6) (7) (8).
Em Portugal, de acordo com o SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências), o Gabinete Governamental para Comportamentos Aditivos e Dependências, cerca de 45% de todos os pacientes admitidos com PUA para desintoxicação em 2020 estavam empregados (9). Ainda em Portugal, de acordo com um estudo realizado em 2017, verificou-se uma associação entre o consumo de bebidas alcoólicas e a ocorrência de acidentes de trabalho, para a população portuguesa em idade ativa (10).
O consumo de álcool pode afetar o humor, o desempenho cognitivo e psicomotor, entre outras capacidades, podendo interferir na esfera profissional e na capacidade de trabalho do indivíduo. De acordo com Frone, podemos dividir o consumo de álcool por trabalhadores em dois grupos. O primeiro grupo inclui trabalhadores cujo consumo é independente do contexto, referido como consumo geral de álcool. O segundo grupo inclui trabalhadores cujo consumo ocorre antes ou durante o turno de trabalho ou em contextos diretamente relacionados ao ambiente de trabalho, referido como consumo de álcool relacionado com o trabalho (7) (11).
Frone verificou que beber álcool fora do trabalho leva principalmente ao absentismo (não comparecer ao trabalho/faltar) ou a atrasos (chegar tarde ao trabalho). Por outro lado, o consumo de álcool no trabalho, definido como beber até duas horas antes do trabalho, durante as pausas ou durante o turno de trabalho, leva a saídas antecipadas do trabalho, aumento da sinistralidade e ao baixo desempenho laboral. No entanto, são necessários mais estudos para verificar o real impacto do consumo de álcool na capacidade de trabalho, identificando se leva a uma redução significativa da capacidade de trabalho (presenteísmo) ou, por exemplo, à total inexistência da mesma (11) (12) (13).
Estudos de diferentes países verificaram que algumas profissões estão associadas a um maior risco de alcoolismo entre os indivíduos do sexo masculino. Entre essas profissões, marinheiros, trabalhadores da construção, pessoal de bares, catering, restauração e outros serviços de lazer, tinham maior risco de alcoolismo e problemas relacionados com o álcool, apoiando a existência de uma associação entre fatores de risco profissionais e o consumo excessivo de álcool (14) (15).
A Patologia Dual (PD) refere-se a indivíduos que sofrem simultaneamente de uma Adição e de outra patologia psiquiátrica, é uma condição frequente e com significativo impacto na vida diária dos indivíduos e dos que os rodeiam. A PD pode estar também associada a múltiplas comorbilidades, diferentes adições e patologias psiquiátricas (16) (17).
Realizar o diagnóstico de PD é de primordial importância, pois, se subdiagnosticado, pode levar a um prognóstico desfavorável, com o aumento da gravidade e da persistência da doença mental e da adição, além da deterioração da condição clínica com a frequente falha dos tratamentos implementados, farmacológicos ou não farmacológicos. Estudos científicos demonstram as vantagens de uma abordagem e de um tratamento especializados para os pacientes com PD, devido à heterogeneidade destes. Isso implica que é necessário fornecer ferramentas adequadas e formação específica para os profissionais de saúde nesta área da Psiquiatria (16) (18).
Embora esteja estabelecido que a PD ou somente uma Adição possa ter um impacto significativo na vida familiar, social e profissional dos pacientes, ainda há informações muito limitadas na literatura sobre o impacto causado por estas patologias psiquiátricas especificamente na área ocupacional (6). Este estudo tem como objetivo avaliar o impacto da PD e das Adições na capacidade de trabalho dos indivíduos, se existe alguma relevância com o setor de atividade em que este se encontra ou encontrava aquando do diagnóstico e se existem diferenças na capacidade de trabalho entre os pacientes com diagnóstico de PD ou de Adições.
METODOLOGIA
Análise observacional retrospetiva de todos os pacientes admitidos para tratamento hospitalar na Unidade de Tratamento para Álcool e Novas Dependências do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa durante um período de seis meses, de 1 de novembro de 2021 a 30 de abril de 2022. Durante esse período, reuniu-se e analisaram-se dados sobre a idade, sexo, nível de educação, situação profissional e setor de atividade à admissão dos pacientes, bem como o diagnóstico principal à admissão e quaisquer outras comorbilidades psiquiátricas. Esta análise focou-se na capacidade de trabalho dos pacientes e no setor de atividade, comparando os doentes diagnosticados com uma Adição (perturbação relacionada com substâncias ou não, simples ou combinada com outras substâncias) e aqueles diagnosticados com Patologia Dual.
A capacidade trabalho dos indivíduos foi analisada pela vertente da situação profissional à admissão na Unidade, sendo considerada existente caso a pessoa esteja empregada, e dentro desta opção poderá estar em situação laboral ativa, ou seja, efetivamente a exercer a sua atividade, ou com incapacidade temporária para o trabalho, traduzida em forma de “Certificado de Incapacidade Temporária” para o trabalho por estado de doença (CIT) (19); foi considerada inexistente caso a pessoa esteja desempregada ou reformada (por invalidez ou não).
Definimos três setores de atividade, de acordo com o modelo mais comumente seguido na economia global: o primário, da extração de matérias-primas; o secundário, de manufatura e construção; e o terciário, que inclui as indústrias de serviços, responsáveis pela distribuição e vendas. Optou-se por não incluir o setor quaternário, também conhecido como setor do conhecimento, tendo em conta que ainda está em desenvolvimento e não está completamente estabelecido e definido na economia mundial em comparação com os restantes setores. Os países em desenvolvimento dependem principalmente do setor primário, enquanto que os países desenvolvidos dependem principalmente dos setores secundário e terciário (20) (21) (22). Para melhor se analisar a relevância dos setores de atividade, subdividimos em grupos de atividades com base nas atividades/profissões mais prevalentes. No setor primário, incluiu-se agricultura, pesca e silvicultura. No secundário, a construção, atividades industriais e confeção. No terciário, a engenharia, serviços financeiros, de vendas e comércio a retalho, serviços administrativos e de apoio, transportes, hotelaria, restauração e outros serviços de lazer; bem como atividades de saúde, educação e trabalho social.
Foi também realizada uma breve revisão da literatura do tema, com as questões do estudo: “Qual o impacto da Patologia Dual na capacidade de trabalho e o setor de atividade é relevante?". Como critérios de inclusão, consideraram-se estudos disponíveis em inglês e português, publicados sem limite de tempo até à data de pesquisa, com qualquer desenho metodológico, que abordassem dados que respondessem às questões em estudo. O formato textual de artigo científico, não constou uma obrigatoriedade, pelo que se incluíram, desde que contendo informação relevante, outros tipos de documentos. A pesquisa foi realizada durante o mês de abril e maio de 2023, com os termos “dual diagnosis”, “addiction disorder”, “alcohol use disorder”, “occupational health” e “activity sector”, em português e em inglês. Foram utilizadas como principais bases de dados a Pubmed, UpToDate, Clinical Key, Medscape, World Health Organization, Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional e a Direção Geral de Saúde. Face aos critérios de seleção, resultaram da pesquisa efetuada um total de 37 documentos para leitura integral e após análise dos mesmos consideraram-se os 26 mais pertinentes, citados e descritos na bibliografia.
RESULTADOS
Incluímos dados de 78 pacientes admitidos na Unidade de Tratamento para Álcool e Novas Dependências, com diagnóstico de Patologia Dual (PD) ou Adição. Destes, 59 eram do sexo masculino (76%) e 19 do sexo feminino (24%), com uma idade média de 51 anos, a mínima de 22 anos e a máxima de 86 anos. A faixa etária mais representada na amostra era a dos 40 aos 59 anos (59%). A maior parte (92%) foi admitida para tratamento hospitalar após admissão prévia no Serviço de Urgência, enquanto que os restantes (8%) foram admitidos diretamente da Consulta Externa de Psiquiatria, da subespecialidade de Alcoologia. A duração média do internamento foi de 17,3 dias; oito pacientes tiveram alta contra parecer médico, e três foram readmissões na Unidade.
Quanto aos dados sociodemográficos, 55% da amostra tinha estudado pelo menos até ao 9º ano e 19% tinha uma licenciatura ou mestrado. Face ao estado civil, 56% eram divorciados ou solteiros, ou seja, não tinham à admissão uma relação conjugal e 42% mantinha uma relação conjugal, seja casada ou em união de facto.
Considerando a situação profissional, 41% estava em situação de desemprego, 27% tinha uma situação laboral ativa e 15% estava de CIT (Tabela 1).
Quanto aos diagnósticos à admissão, a maior parte dos pacientes (92%) tinha como diagnóstico de admissão Perturbação do Uso de Álcool (PUA); quatro pacientes do sexo masculino (5%) foram admitidos por Perturbação do Uso de Cocaína (PUC); uma paciente do sexo feminino com Perturbação do Uso de Sedativos, Hipnóticos ou Ansiolíticos e um paciente do sexo masculino por Jogo Patológico. No entanto, estes seis últimos pacientes, tinham concomitantemente diagnóstico secundário de PUA.
Mais de metade da amostra (60%) foi diagnosticada com Patologia Dual. Destes, mais de três quartos (77%) tinham PUA e Perturbação Depressiva Major. Quanto ao sexo e PD, todas as pacientes do sexo feminino diagnosticadas com PD tinham Perturbação Depressiva Major (Tabela 2).
A outra parte da amostra (40%) foi diagnosticada com uma ou mais Adições, sem ser concomitantemente diagnosticada outra patologia psiquiátrica. Destes, 87% foram diagnosticados com uma única PUS, que foi o álcool (Tabela 2).
Não se verificaram diferenças significativas face ao desemprego e à manutenção do emprego (ativo ou CIT) em nenhum dos grupos (Tabela 1). Contudo, dos doentes com PD, 21% encontrava-se de CIT, em comparação com 6% dos doentes com Adições, sugerindo um maior impacto na manutenção da atividade laboral ativa nestes doentes (Tabela 2).
A amostra tem maior relevância no setor secundário e terciário em Portugal, com 29% dos pacientes a pertencer ao grupo de atividades da restauração, hotelaria, transportes e outros serviços de lazer. Quanto ao diagnóstico e ao grupo de atividade, dos pacientes com PD, 34% pertencia ao maior grupo representado, e dos pacientes diagnosticados com Adições, 26% pertencia ao grupo da construção (Tabela 3).
Quanto ao grupo de atividade e à situação profissional, 53% (n=15) dos pacientes cuja atividade era construção estavam desempregados (n=8) no momento da admissão. Uma percentagem (52%) semelhante de pacientes que pertencia ao grupo de restauração, hotelaria, transportes e outros serviços de lazer (n=23) estava igualmente no desemprego (n=12). Pelo contrário, a maioria (62%) dos pacientes que trabalhavam em saúde, educação e serviços sociais (n=13) estava empregada (n=8) no momento da admissão (Tabela 3).
DISCUSSÃO
De acordo com as pesquisas científicas, o diagnóstico de PD ou de Adições afeta principalmente indivíduos do sexo masculino com níveis de literacia inferior e provenientes de contextos socioeconómicos mais baixos. Podemos afirmar que qualquer um destes diagnósticos pode ter um impacto significativo na vida familiar, social e ocupacional dos pacientes. Entre todos os tipos de PUS, o álcool é a substância mais prevalente e mais amplamente representada (6) (23) (24).
Estes resultados mostram que o diagnóstico de PD pode ter um impacto significativo na capacidade de trabalho e sugerem que existem diferenças importantes entre os grupos de atividades profissionais em pacientes com PD e com Adições.
A Patologia Dual envolve mais comumente o diagnóstico de PUA e de Perturbação Depressiva, e em comparação com os restantes diagnósticos analisados e com a restante literatura, este parece ser o que tem o maior impacto na atividade profissional (25). Para além da anteriormente referida, a PUA aparece também frequentemente associada a Esquizofrenia e a Perturbação de Ansiedade Generalizada (26). Verificamos que é mais comum em atividades de restauração, hotelaria, transportes e outros serviços de lazer, sugerindo que existe uma associação com os fatores de risco profissionais a que estes trabalhadores podem estar expostos diariamente. O setor secundário e terciário são os mais representados e implicados na amostra, contudo, o facto de se tratar de uma Unidade localizada numa área geográfica urbana poderá ter relação, revelando-se também um fator limitante desta análise.
Para avaliar o verdadeiro impacto das Adições e da Patologia Psiquiátrica na atividade e capacidade de trabalho, são necessários estudos mais longos e abrangentes, com amostras maiores e mais diversificadas, bem como a análise de um maior número de variáveis. Isso incluiria padrões de consumo de substâncias, análise do local de trabalho com avaliações da exposição ocupacional, entre outros. Também é necessário avaliar se estes diagnósticos levam ao absentismo, presenteísmo, desemprego, CIT ou reforma por invalidez devido à incapacidade de manter toda e qualquer a capacidade de trabalho.
A Medicina do Trabalho e os Serviços de Saúde Ocupacional desempenham um papel ativo na triagem e promoção de medidas preventivas durante os exames de saúde periódicos e ocasionais, bem como no encaminhamento para a Consulta de Psiquiatria ou mesmo para os Centros de Atendimento de Toxicodependentes (CAT), de acordo com a necessidade (7). Este encaminhamento pode ser realizado pelo Médico do Trabalho, diretamente, por pedido de consulta interno, ou através de carta de recomendação ou relatório médico para o Médico Assistente do indivíduo. É importante dar mais ênfase à colheita de dados da história ocupacional dos trabalhadores devido ao impacto que a atividade profissional tem no dia a dia de cada indivíduo.
CONCLUSÃO
Devem ser implementados protocolos e programas formativos aos trabalhadores em todos os setores de atividade, tanto na área da Saúde Mental como das Adições. Mas deve ser um requisito prioritário nas atividades de restauração, hotelaria, transportes e outros serviços de lazer. Os resultados sugerem que existe impacto na capacidade de trabalho/situação profissional nos indivíduos diagnosticados com PD e que o setor de atividade parece ter relevância nesta matéria, contudo, são necessários mais estudos e mais robustos e direcionados para os setores de atividade com fatores de risco profissionais que podem contribuir para um maior consumo de substâncias.