INTRODUÇÃO
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) são registados, todos os anos, mais de 2,3 milhões de casos de cancro da mama, o que o torna o tipo cancro mais comum entre os adultos.
Em 95% dos países, o cancro da mama é a primeira ou segunda causa de morte por cancro no sexo feminino. No entanto, a sobrevivência a esta doença é amplamente desigual entre e dentro dos países, sendo que quase 80% das mortes por cancro da mama ocorrem em países de baixo e médio rendimento (1).
A etiologia do cancro da mama não é totalmente compreendida, conhecendo-se muitos fatores causais possíveis, embora ambíguos e mal definidos. No entanto, sabe-se que a sua patogénese é multifatorial, com fatores de risco que incluem predisposição genética, hereditariedade, fatores reprodutivos, ingestão de álcool, tabagismo, excesso de peso e terapêutica hormonal. A sua incidência também aumenta com a idade, estando também a idade mais avançada ao primeiro nascimento associado a uma maior incidência desta patologia (2) (3).
O aumento significativo nas taxas globais de cancro, especialmente em países mais industrializados, demonstra que o estilo de vida e os fatores ambientais ou ocupacionais também podem levar a um aumento dos casos desta doença. Assim, a associação entre esta patologia e fatores de risco ocupacionais é uma questão que tem vindo a ser estudada (3) (4).
Nos últimos anos, os desenvolvimentos tecnológicos permitiram um estudo mais aprofundado desta relação, estimando-se que 8 a 16% dos cancros estejam relacionados com exposições profissionais. Este fenómeno é causado pela presença de carcinogéneos no ambiente de trabalho, tais como fibras orgânicas e partículas de pó (amianto, sílica e pó de madeira), metais (chumbo, cádmio, cobalto, níquel), solventes (benzeno e tricloroetileno), óleos minerais (por exemplo, produtos petroquímicos e de combustão), produtos químicos reativos (etileno, formaldeído, cloreto de vinilo, inseticidas) e também fontes de exposição a radiação ionizante (RI) e não ionizante e supressão de melatonina em trabalhadores noturnos (3) (4).
A exposição à RI tem origem em várias fontes: radiação cósmica, radioatividade natural presente na crosta terrestre, nas máquinas de raios X, nos radioisótopos produzidos artificialmente ou na radiação atómica de armas e acidentes nucleares. Esta pode causar danos no DNA, tanto diretamente através de quebras nas cadeias de DNA, como indiretamente, interagindo com moléculas de água e gerando espécies reativas de oxigénio. Estes danos provocam perda de pontos de controlo na apoptose celular que fazem com que a célula se desenvolva indefinidamente, passando por mais etapas oncogénicas, o que pode resultar em neoplasias (5). Esta exposição pode ser em grandes doses, em explosões ou acidentes nucleares, ou quando se é submetido a tratamentos de radioterapia; ou em pequenas doses, como em exames de imagem tais como radiografias, mamografias ou tomografias computorizadas. Assim os profissionais de saúde, que trabalham diretamente na realização deste tipo de exames, estão também potencialmente expostos à RI, o que poderá ter implicações na sua saúde (2), sendo que hoje em dia esta exposição é mais e melhor controlada como resultado de uma regulamentação mais rigorosa e evolução tecnológica (5) (6).
Pretende-se, assim, a elaboração de uma revisão da literatura sobre o tema descrito, de forma a fazer uma atualização no conhecimento científico sobre a relação entre a exposição ocupacional à RI em trabalhadores da saúde e o desenvolvimento de cancro da mama.
METODOLOGIA
Em função da metodologia PICo, foram considerados:
- P (population): Trabalhadores da saúde com exposição a RI
- I (interest): Perceber a relação entre a exposição ocupacional a RI em trabalhadores da saúde e o desenvolvimento de cancro da mama
- C (context): Saúde e segurança ocupacionais.
Deste modo, a pergunta orientadora para a realização do presente artigo de revisão foi: “Qual a relação entre a exposição ocupacional a RI em trabalhadores da saúde e o desenvolvimento de cancro da mama?”.
A pesquisa foi realizada nos motores de busca PubMed e Science Direct. Para a concretizar foram definidas as palavras-chave e foi formulada a seguinte frase booleana utilizada na pesquisa das bases de dados: (((breast cancer) AND (healthcare workers)) AND (occupational exposure)) AND (ionizing radiation)).
Foram definidos os critérios de elegibilidade e exclusão, de forma a direcionar a pesquisa para dar resposta à pergunta estabelecida, nos quais foram admitidos artigos sem limitação temporal, dada a pouca pesquisa encontrada, apenas nas línguas portuguesa, inglesa e espanhola e com leitura integra disponível. Como critérios de exclusão, excluíram-se artigos que não se foquem em fatores de risco ocupacionais.
As seguintes etapas passaram pela análise do título e do resumo, tendo sido feita desta forma, uma seleção dos estudos encontrados e, de seguida, procedeu-se à análise do texto na íntegra.
Feita a pesquisa com a utilização da frase booleana já mencionada, foi possível aceder a um total de 264 trabalhos, dos quais 20 na Medline e 244 na Elsevier, sendo que só 30 preencheram os critérios de inclusão e de exclusão. Destes 30, foram excluídos, consoante o título e o resumo, todos aqueles que não abordavam o tema em estudo, o que perfez um total de oito artigos.
Dada a relevância na área, foi ainda realizada uma pesquisa na Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional, utilizando os termos de pesquisa “Cancro de mama” e “Radiação ionizante”, tendo sido selecionados dois artigos de revisão e um artigo resumo de trabalhos publicados noutro contexto, que visavam a temática da presente revisão bibliográfica.
Os artigos analisados podem ser consultados de forma mais sucinta na Tabela 1.
Autor | Ano | Caraterização Metodológica | Conclusões | População |
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Weiderpass et. al (10) | 1999 | Artigo Original | A exposição ocupacional à radiação ionizante pode estar associada a um risco acrescido de cancro da mama no sexo feminino. Mais estudos sobre a etiologia ambiental e ocupacional do cancro de mama são necessários para uma melhor compreensão desta relação. | 23.638 caso de cancro de mama em mulheres finlandesas entre 1971-1995 com exposição ocupacional a radiação ionizante. |
Lie et. al (13) | 2008 | Artigo Original | Não foi encontrada uma associação clara entre exposição a radiação ionizante e os cancros de mama, tiroide, ovário, ou leucemia, melanoma maligno ou outro cancro da pele. Foi encontrado um risco acrescido de cancro do pulmão nos subgrupos de enfermeiros expostos pela primeira vez após 1950. |
43 316 enfermeiros formados entre 1914 e 1984 |
Rajaraman et. al (11) | 2008 | Artigo Original | Em análises lineares de dose-resposta, descobriram que o risco de cancro da mama aumentou significativamente com o aumento da dose cumulativa de radiação ionizante ocupacional. Sugerem que variantes comuns nos genes de reparação da excisão de nucleótidos podem modificar a associação entre a exposição à radiação ocupacional e o risco de cancro da mama | 858 casos de cancro da mama em técnicos de radiologia americanos expostos a baixos níveis de radiação ionizante de etiologia ocupacional (1.083 controlos). |
Buitenhuis W et al (5) | 2013 | Artigo Original | Houve uma associação fraca, não estatisticamente significativa, entre o cancro da mama e a exposição ocupacional à radiação ionizante. O risco de desenvolver cancro de mama parece ser baixo com os níveis atuais de exposição ocupacional à radiação ionizante. | 1205 casos de cancro da mama diagnosticados entre os anos 2009 e 2011 (1789 controlos). |
Fenga C (8) | 2015 | Artigo de Revisão | Os estudos epidemiológicos e experimentais demonstraram que a exposição à radiação ionizante e não ionizante, o trabalho noturno, pesticidas, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e metais são fatores de risco para o desenvolvimento de cancro da mama. No entanto, os mecanismos pelos quais os fatores ocupacionais podem promover a iniciação e progressão do cancro da mama ainda não foram totalmente elucidados. |
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Santos M et al (6) | 2016 | Resumo de trabalhos divulgados noutro contexto | Existem profissões com maior risco no contexto das radiações ionizantes (pela intensidade e/ou frequência do contato), cujos danos para a saúde, graves e por vezes banalizados, podem ser atenuados através de medidas adequadas de apoio médico, organização do trabalho/procedimentos administrativos e/ou EPI adequados. | ------------------------ |
Santos M et al (7) | 2016 | Artigo de Revisão | Os profissionais de saúde estão expostos a inúmeros riscos/fatores de risco e, frequentemente, têm tendência a ignorá-los ou, pelo menos, menosprezá-los. A intensidade da radiação recebida pelo profissional varia com o tipo de equipamento médico utilizado, complexidade do procedimento, distância da fonte, tamanho do paciente, equipamento de proteção individual (EPI) utilizado ou barreiras móveis. |
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Preston et. al (12) | 2016 | Artigo Original | A exposição ocupacional a radiação ionizante está associada ao aumento do risco de desenvolvimento cancro de mama, sendo que doses mais elevadas foram associadas ao aumento da incidência da patologia. | 1922 casos de cancro de mama notificados entre 1983 e 2005 entre 66 915 técnicas de radiologia. |
Engel et. al (9) | 2018 | Artigo de Revisão | Dos trabalhos analisados alguns concluíram que uma duração mais longa num emprego em ambiente hospitalar exposto a radiação pode conferir um risco ligeiramente mais elevado, assim como verificaram que enfermeiros, cirurgiões ortopédicos e outros profissionais de saúde que começaram a trabalhar antes de 1940 tinham um risco duas a três vezes superior de desenvolver de cancro da mama. | ------------------------ |
Brito-Marcelino et. al (3) | 2020 | Artigo de Revisão | Conclui-se que há evidência significativa quanto à exposição a alguns produtos químicos, radiação ionizante e o regime de trabalho noturno, no entanto, a maior parte dos estudos identifica a dificuldade no estabelecimento da relação de causa/efeito, sendo necessários mais estudos sobre esse tema | ------------------------ |
Santos M et al (4) | 2023 | Artigo de Revisão | A maioria da bibliografia sobre o tema realça como etiologia laboral os turnos noturnos e/ou a exposição a luz durante os mesmos, ainda que não exista consenso total entre nexo de causalidade e/ou fisiopatologia. Também são mencionados de forma mais sumária os pesticidas, solventes e os produtos inseridos nos fumos das cozinhas (hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, aldeídos e aminas aromáticas policíclicas). | ------------------------ |
RESULTADOS
A exposição a fatores de risco ocupacionais tem sido consistentemente associada ao aumento do risco de cancro da mama, nomeadamente o trabalho noturno (4), a exposição a RI (6) (7) e não ionizante, o trabalho com alguns agentes químicos como pesticidas, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e metais, e ainda o stress laboral e o trabalho sedentário (3) (8) (9). A literatura atual não é, contudo, unânime quanto às caraterísticas clínicas e patológicas específicas do cancro de mama possivelmente ligado a contextos profissionais, como na exposição a RI, sendo que os mecanismos pelos quais os fatores ocupacionais podem promover a iniciação e progressão da doença ainda não foram completamente elucidados (8). Além disso, não existem biomarcadores moleculares que relacionem especificamente esta exposição com o cancro de mama (5). Importa ainda ressalvar que o desenvolvimento da patologia em questão pode ser influenciado por exposição a fatores ambientais, tais como o estilo de vida, nomeadamente a dieta, consumo de álcool e hábitos tabágicos, (2) uso de contracetivos orais, terapêutica de substituição hormonal e a idade de surgimento da menopausa, (10) estando a atividade física no local de trabalho associada à redução do seu risco (9).
Segundo alguns investigadores, a exposição ocupacional à RI é provavelmente mais relevante para o cancro de mama em idade pós-menopausa, uma vez que os cancros de mama em idades mais jovens, têm um maior componente genético, apresentando também menor duração de exposição e, consequentemente, menor dose cumulativa de RI. No entanto os autores ressalvam que são necessários mais estudos para melhor esclarecer esta relação (10).
Outros autores defendem que o subtipo de cancro de mama parece ter associação com a idade à data exposição, sendo que as mulheres com exposição a RI em idade pré-menopausa, parecem desenvolver mais frequentemente tumores mamários que apresentam recetores do tipo 2 do fator de crescimento epidérmico humano (HER2+), carecendo igualmente de estudos mais robustos para clarificação desta associação (5) (9).
Embora a maioria dos danos de DNA causados pela RI seja corrigida pela via de reparação da excisão de bases, certos tipos de danos de base múltipla só podem ser reparados através da via de reparação da excisão de nucleótidos, tendo sido demostrado por investigadores norte-americanos que variantes comuns nos genes de reparação da excisão de nucleótidos podem modificar a associação entre a exposição ocupacional à radiação e o risco de cancro da mama, mais concretamente que a variante alélica C do gene ERCC5 (XPG) rs17655 estava associada a um risco acrescido de cancro da mama em geral, podendo aumentar a suscetibilidade à doença em profissionais expostos a baixos níveis de RI (11).
Parece claro para a maioria dos autores a associação entre exposição a altas doses de RI e o desenvolvimento de cancro de mama, (3) (8) (9) (11) (12) e que o risco deste tipo de cancro aumenta significativamente com o aumento da dose cumulativa de radiação a que os trabalhadores são expostos no local de trabalho (11). Outros investigadores defendem também que uma exposição longa a doses mais baixas de RI pode conferir risco acrescido de doença (3) (9) (12), apresentando o trabalho em meio hospitalar como exemplo desse tipo de exposição. Verificaram que técnicos de radiologia e enfermeiros que começaram a trabalhar antes de 1950, altura em que as doses de exposição a RI eram bastante mais altas que as atuais, tinham um risco duas vezes superior de desenvolver a doença (3) (9) (10) (12). Está também relatado na literatura um risco quase três vezes superior para cirurgiões ortopédicos devido à exposição a elevados níveis de radiação durante os procedimentos (9). A Cardiologia de intervenção é outra área onde este fator de risco tem especial importância (7). Outros estudos encontraram um risco duas vezes superior entre médicos em geral e 40% de aumento do risco em profissionais de saúde globalmente (9).
Importa ressalvar que a intensidade da radiação recebida pelo profissional varia com o tipo de equipamento médico utilizado, complexidade do procedimento, distância da fonte, tamanho do paciente, equipamento de proteção individual (EPI) utilizado ou barreiras móveis, altamente eficazes (6) (7).
O aumento da regulação em Segurança e Saúde Ocupacionais e a evolução tecnológica originaram, nos últimos anos, mudanças nos equipamentos, nos procedimentos e nas medidas de proteção, reduzindo bastante os atuais níveis de exposição profissional à RI e, consequentemente, o risco de desenvolver cancro de mama por esta exposição (5) (6) (7) (9) (13).
DISCUSSÃO/CONCLUSÕES
Apesar de não existir consenso quanto às características clínicas e patológicas específicas do cancro de mama possivelmente ligado a contextos profissionais, a maioria da literatura revista defende que a exposição ocupacional à radiação RI é um importante fator de risco para o desenvolvimento desta patologia, principalmente em determinadas profissões do setor da saúde, como os técnicos de radiologia, enfermeiros, cirurgiões ortopédicos e cardiologistas de intervenção, sendo, contudo, esta relação influenciada por outras variáveis, como a duração e intensidade da exposição e a presença de outros fatores de risco ambientais, tais como o estilo de vida (dieta, consumo de álcool e hábitos tabágicos), características relacionadas com o trabalho (incluindo trabalho por turnos), e outras condições individuais (fatores genéticos, uso de contracetivos orais, terapêutica de substituição hormonal e a idade de surgimento da menopausa).
Importa contudo ressalvar que, nos últimos anos, o desenvolvimento de legislação na área da Segurança e Saúde no Trabalho e a evolução tecnológica originou mudanças nos equipamentos, nos procedimentos e nas medidas de proteção, reduzindo bastante os atuais níveis de exposição profissional à RI e, consequentemente, o risco de desenvolver a doença. No entanto, é ainda importante a realização de mais estudos sobre a temática, de forma a melhor esclarecer esta associação e a sua interação com os outros fatores já mencionados, assim como o desenvolvimento de biomarcadores moleculares que relacionem especificamente esta exposição com o cancro de mama.