INTRODUÇÃO
A dermatite de contacto é a causa mais frequente de doença cutânea ocupacional, representando mais de 90% da totalidade destas patologias. Esta resulta da exposição cutânea a uma substância, irritante ou alergénica, que induz uma reação inflamatória. Subdivide-se em dermatite de contacto alérgica (DCA) e em irritativa (DCI) (1) (2). A primeira resulta de uma reação imunológica de hipersensibilidade do tipo IV, após a exposição repetida a um alergénio, tipicamente manifestando-se um a três dias após a exposição. Após a sensibilização, a reação inflamatória pode surgir com exposição a quantidades muito reduzidas ao alergénio em causa. Já a DCI é causada pela agressão direta da pele por uma substância nociva quando aplicada por tempo e concentrações suficientes. Qualquer indivíduo pode desenvolver esta patologia, desde que exposto a uma quantidade mínima necessária de agente irritante durante um determinado período de tempo, tornando-se assim a dermatite de contacto ocupacional (DCO) mais comum e a mais prevalente em indivíduos sem atopia (2).
Para confirmação de DCA é necessário a realização de testes epicutâneos (TE) com objetivação do alergénio responsável. Nos TE a primeira leitura é efetuada 48 horas após a sua aplicação, estando recomendado que a segunda leitura seja efetuada às 72 horas e/ou 96 horas desde a sua aplicação. Cerca de 30% das leituras negativas às 48 horas tornam-se positivas às 96 horas, pelo que grande parte dos autores refere que esta é a altura ideal para a segunda leitura. Este aspeto revela-se ainda importante porque auxilia a determinar se a reação é irritativa, que é uma reação em decrescendo, diminuindo entre a primeira e segunda leitura, ou alérgica, que é uma reação em crescendo (2).
As profissões do setor da saúde, da indústria alimentar e de limpeza são as de maior risco de desenvolvimento de DCO, dada a manipulação regular e frequente de agentes químicos irritativos e sensibilizantes (2). O seguinte relato de caso trata-se da exposição a um profissional da saúde (enfermeiro) a um fármaco sensibilizante. A imunoterapia tópica com difenilciclopropenona/difenciprona (DPCP) é uma opção terapêutica na alopécia areata extensa ou refratária. O seu mecanismo de ação baseia-se no conceito de competição antigénica, induzindo a formação de linfócitos T CD8, que inibem a resposta imune perifolicular, permitindo o crescimento capilar. Inicialmente ocorre sensibilização ao alergénio sintético num período de aproximadamente uma a duas semanas, sendo posteriormente aplicada uma dose reduzida, que induzirá uma dermatite de contacto ligeira (3) (4) (5). A duração do tratamento pode variar entre três meses a um ano, dependendo da resposta individual (6). O potencial de sensibilização após exposição à DPCP por profissionais de saúde não está amplamente difundido, pelo que este caso pode ser de relevância para as instituições que a utilizam ou pretendem utilizar, de modo a protegerem os seus profissionais (6).
DESCRIÇÃO DO CASO CLÍNICO
Trata-se de uma mulher de 48 anos, enfermeira desde os 23 anos de idade, sem antecedentes pessoais de relevo, nomeadamente história de atopia, alergias alimentares e/ou medicamentosas, que solicitou exame ocasional de Medicina do Trabalho por um quadro de prurido e eritema maculopapular na região cervical e torácica anterior (área exposta, não protegida pelo fardamento) e face anterior dos antebraços (igualmente expostos), com dois meses de evolução. Referiu exacerbações do quadro aquando da realização da atividade profissional, particularmente durante a aplicação da imunoterapia tópica com DPCP nos doentes com alopécia areata, e melhoria nos períodos em que não realizava esta tarefa. A atividade era desenvolvida pela profissional uma vez por semana há cerca de um ano, referindo que o espaço físico utilizado para o tratamento era um gabinete de enfermagem da consulta externa de dermatologia, sem ventilação artificial ou natural, e que utilizava como equipamento de proteção individual (EPI) luvas de nitrilo durante a manipulação e aplicação do referido fármaco.
Ao exame objetivo, apresentava lesões maculopapulares eritematosas, na região cervical e anterior do tórax e na região anterior dos antebraços (Figura 1), não apresentado qualquer lesão noutras regiões do corpo, nomeadamente nas mãos.
Perante este quadro, foi instituído tratamento com corticosteroide tópico, anti-histamínico oral e emoliente e, dado o alto índice de suspeição sobre o agente causal foi recomendada a utilização de bata impermeável com mangas e luvas de nitrilo aquando da realização da aplicação do fármaco. Foi também referenciada à consulta de Dermatologia para realização de TE, tendo sido submetida à bateria standard do Grupo Português de Estudo das Dermites de Contacto (GPEDC), cujos resultados foram negativos às 72 horas e aos sete dias. Pelo facto de a história indiciar forte suspeição sobre a DPCP, a colaboradora foi testada para este composto, com resultado positivo na leitura das 72 horas. Desta forma foi realizado o diagnóstico de dermatite de contacto alérgica à DPCP e participada a doença profissional.
A trabalhadora foi novamente reavaliada em exame ocasional de Medicina do Trabalho referindo reaparecimento do quadro mesmo com o uso da bata impermeável. Desta forma foi novamente instituída terapêutica e recomendado em Ficha de Aptidão para o Trabalho (FAT) a não realização do procedimento em questão. Um mês após o afastamento da trabalhadora da tarefa de aplicação da DPCP a mesma reportou que não sofreu nenhuma exacerbação do quadro, mantendo assim o condicionalismo na FAT, uma vez que a tarefa em questão fazia parte das funções a desempenhar enquanto enfermeira do Serviço de Dermatologia.
Por fim, foi requerida colaboração ao Gabinete de Segurança no Trabalho, de modo que fosse realizada uma correta avaliação deste posto de trabalho e das condições do espaço para aplicação deste tipo de substâncias com potencial sensibilizante, nomeadamente no que concerne à sua ventilação e à melhor determinação dos EPI adequados à tarefa, com o intuito de prevenir o aparecimento de novos casos. Foi então determinada a realização do procedimento em gabinete com sistema de ventilação natural ou artificial, e definida a utilização de EPI como bata impermeável e luvas de nitrilo com a sua substituição frequente, tendo sido ainda ministrada formação sobre a correta utilização dos mesmos a todos os profissionais envolvidos na tarefa em questão, nomeadamente a forma de os descartar corretamente.
DISCUSSÃO/CONCLUSÃO
As dermatoses ocupacionais tratam-se de patologias com importantes repercussões na saúde física e mental dos trabalhadores, devendo apresentar especial atenção das equipas de Saúde Ocupacional. A realização de uma anamnese ocupacional, com foco no ambiente de trabalho e processo produtivo, aliada a um exame clínico rigoroso, é relevante para o diagnóstico e para o estabelecimento de uma correta relação entre a presente patologia e a exposição ocupacional (7).
Atendendo ao mecanismo de ação da DPCP é percetível que o efeito terapêutico do fármaco se tornou num efeito adverso no profissional que procedia à sua aplicação. A probabilidade de contacto com o alergénio e consequente desenvolvimento de sensibilização é exponenciada pela sua exposição constante e prolongada (2). Assim, o aparecimento mais tardio da DCA justifica-se pela acumulação da exposição. O facto de se verificarem exacerbações do quadro mesmo com a utilização de bata impermeável que cobria as zonas expostas, levanta a hipótese de que os EPI utilizados não eram totalmente impermeáveis para a substância em questão ou a possibilidade de estes não serem descartados de forma correta após o procedimento, existindo contacto de áreas contaminadas com a pele (6).
Este caso apresentado adquire especial relevo dado não ser causado pelas substâncias mais comumente relatadas por provocarem DCA nos profissionais de saúde, nomeadamente os componentes das borrachas, devido ao uso de luvas (tiurans, latex), seguido dos conservantes e surfactantes, presentes nos desinfetantes e sabões (como glutaraldeído, dietanolamina cocamida ou quaternium-15) (8).
Assim, a Saúde Ocupacional apresenta um papel fulcral na gestão da patologia alérgica ocupacional, devendo sempre ter disponível e avaliar as fichas técnicas e de segurança dos produtos utilizados, identificando o seu potencial alergénico, de modo a eliminá-los ou substituí-los, caso seja possível. Neste caso não foi possível, visto tratar-se de um agente terapêutico, com indicação e eficácia comprovada na alopécia areata. Quando assim é, deve então proceder-se à aplicação de medidas que visem a redução da exposição dos trabalhadores, como medidas de engenharia (nomeadamente as condições do espaço onde os procedimentos são realizados, tendo em conta a ventilação dos mesmos), medidas organizacionais (como a alteração da metodologia de trabalho, a redução do tempo de realização das tarefas, a rotatividade entre vários trabalhadores, a correta higienização dos espaços e/ou a formação aos trabalhadores). Por último, os EPI também devem ser definidos de acordo com as propriedades físico-químicas das substâncias utilizadas (7).
Deste modo, a patologia alérgica ocupacional apresenta-se como um grande desafio para as equipas de Saúde Ocupacional, sendo essencial um trabalho multidisciplinar para a sua correta gestão, devendo o foco ser a sua prevenção.