INTRODUÇÃO
As lesões músculo-esqueléticas ligadas ao trabalho são extremamente frequentes, multifatoriais e muitas decorrentes dos acidentes de trabalho. O Médico do Trabalho deve ter presente o mecanismo de produção do acidente, as lesões resultantes, os meios complementares de diagnóstico realizados, os tratamentos instituídos, a evolução previsível e as eventuais sequelas. Este conhecimento permitirá uma adequada intervenção para a reintegração e adaptação do trabalhador ao trabalho, sobretudo após um período de incapacidade para a atividade profissional. A rotura do rotuliano é uma lesão rara, com uma incidência de 0,68 por cada 100.000 pessoas na população geral (1). Associada frequentemente a trauma durante a prática desportiva, ocorre preferencialmente na realização de atividades físicas intensas como movimento de saltar ou impacto na queda. Neste artigo fazemos a descrição de um caso, menos comum, de lesão decorrente de acidente de trabalho. Pretendeu-se rever na literatura a existência de descrições de casos semelhantes e a identificação de fatores de risco ocupacionais para a rotura do rotuliano. Adicionalmente pretendeu-se verificar se está descrito na bibliografia sequelas de lesão que possam configurar limitações laborais.
DESCRIÇÃO DO CASO CLÍNICO
Doente de 37 anos, sexo masculino, médico veterinário. Sem antecedentes pessoais conhecidos. Negava toma de medicação crónica ou anabolizante. Recorre ao Serviço de Urgência por queda de escadas no local de trabalho com traumatismo do joelho direito, com hiperflexão. Descreve perda imediata de função do joelho associada a som que descreve como “pop” durante a queda. Clinicamente apresentava hemartrose com patela alta e insuficiência completa do aparelho extensor.
Na ecografia observava-se o tendão rotuliano espessado sobretudo na sua porção distal, heterogéneo com perda do padrão fibrilhar habitual, associando-se sinais de solução de continuidade deste tendão. Estes aspetos são sugestivos de rotura total do tendão rotuliano. Submetido a cirurgia no dia seguinte, para reconstrução do ligamento, sem intercorrências, constatando-se aspetos degenerativos do tendão e associação de rotura proximal e distal.
MÉTODOS
Para a discussão do caso clínico foi realizada a revisão de literatura não sistemática, recorrendo a base de dados de artigos PubMed, com as palavras-chave “Patellar tendon; knee injury; outcome; patellar tendon repair”. Foram incluídos dois artigos extra, pela sua relevância para o tema. Dos 56 artigos publicados como revisão sistemática e revisão clássica, entre 2002 e 2022, foram selecionados por leitura do resumo um total de 23 artigos. Os critérios de exclusão foram rutura bilateral do rotuliano, estudos que dirigidos exclusivamente a rutura do rotuliano e abordagens a novas técnicas cirúrgicas. Após leitura destas fontes bibliográficas foram usadas sete na discussão deste caso clínico. Em anexo coloca-se o fluxograma que norteou a seleção dos artigos para a discussão deste caso.
RESULTADOS/DISCUSSÃO
A rotura do tendão rotuliano é uma lesão incomum e incapacitante com maior incidência em homens com idade entre os 30 e os 40 anos, estando este trabalhador dentro desta faixa etária na altura do acidente (2). O mecanismo de lesão envolve um tendão enfraquecido submetido a uma elevada força de tensão, tal como descrito no caso clínico. Na etiologia do enfraquecimento do tendão, que leva posteriormente à sua rotura, está a degeneração crónica do tecido do tendão, por irritação persistente pelo microtrauma repetitivo (3). Não se encontra na bibliografia casos descritos desta lesão com incidência aumentada na profissão de médico veterinário. A relação entre esta doença e a exposição ocupacional também não é clara (4). No entanto, diferentes autores descrevem como condições predisponentes e fatores de risco para rotura do tendão rotuliano o uso de corticosteróides e fluoroquinas, Doença Renal Crónica, Diabetes mellitus, Doença Reumática, Doença de Lyme, Tendinose do Tendão Rotuleano e Lupus Eritematoso Sistémico (1) (5) (6). Um dos aspetos descritos durante a cirurgia de reparação do tendão deste médico veterinário foi a visualização de um tendão heterogéneo e espessado compatível com a existência de tendinopatia antecedente à lesão, o que, por si só, poderá justificar a rotura proximal e distal do caso apresentado. Na associação com a tendinopatia do tendão patelar, o microtrauma repetitivo é uma das principais causas de tendinopatia patelar, definida como “patologia de uso excessivo”, que pode estar presente em profissões relacionadas com o desporto e também funções na construção civil que impliquem longos períodos sobre esta articulação, como assentar pavimentos (6) (7). A medicina veterinária, praticada em clínicas veterinárias e no campo, no caso de animais de grande porte implica que o profissional adote muitas vezes posturas em ângulos extremos dos membros inferiores e superiores e a permanência de joelhos na assistência clínica a animais ao nível do solo. Não podemos excluir completamente esta contribuição no caso apresentado.
Relativamente à fisiopatologia da lesão, o mecanismo de lesão mais comum é a sobrecarga tensional do aparelho extensor; a maioria das lesões ocorre na posição de flexão. Na posição fletida a um ângulo superior a 60 graus, a força de tensão sobre o tendão aumenta, sendo por isso mais frequente a ocorrência de roturas do tendão rotuliano (5). As roturas estão descritas mais frequentemente em situações nas quais os indivíduos estão a descer ou subir lanços de escadas, mudanças súbitas de direção, parar subitamente em corrida ou pousar após um salto. A análise do local onde decorreu o acidente permitiu identificar a inexistência de corrimão de apoio nas escadas onde ocorreu a queda, estrutura que poderia ter prevenido o movimento que originou o movimento de sobrecarga do joelho. A localização mais comum de rotura é a avulsão proximal do tendão do polo inferior da patela, numa lesão por si só já pouco frequente- a raridade do caso apresentado prende-se com a existência simultânea de rotura aguda proximal e distal do tendão rotuliano direito (1) (5).
O trabalhador foi observado no serviço de urgência com a apresentação descrita na bibliografia como mais frequente em casos de rotura aguda total do tendão rotuliano. No exame físico à inspeção descreveu-se a existência de sinais de trauma e hemartrose e documentou o sinal de patela alta, quando comparada com o membro não afetado, tipicamente descrito como patognomónico. O doente tinha dificuldade em manter o ortostatismo, apresenta tipicamente dor no bordo inferior da patela e comprometimento da função do aparelho extensor do joelho, sendo incapaz de manter a extensão passiva da articulação do joelho.
O diagnóstico foi confirmado com recurso a radiografia da articulação do joelho, que se se inseriu nos anexos. A ressonância magnética será a modalidade de imagem indicada para diferenciar entre rotura parcial ou total e determinar com precisão a localização, deteta também patologia adicional noutras estruturas ligamentares e cartilaginosas do joelho, presente em cerca de 30% dos casos (2). No caso apresentado, confirmou-se com recurso a este exame não existir qualquer lesão adicional nas estruturas do joelho direito. Alternativamente, a ecografia articular do joelho permite também a localização da rotura do tendão e a diferenciação entre lesões crónicas e agudas. Em anexo apresenta-se a ecografia articular do joelho direito, na qual era aparente o tendão espessado, sobretudo na sua porção distal, heterogéneo e com perda do padrão fibrilar habitual, associando-se sinais de solução de descontinuidade deste tendão, aspetos esses sugestivos de rotura total.
Nestes casos a intervenção cirúrgica é necessária para restaurar a funcionalidade do mecanismo extensor (2) (5). A reparação ou reconstrução do tendão geralmente dependerá da localização da rotura e se esta é decorrente de um processo agudo ou crónico. Diversas técnicas cirúrgicas e protocolos de reabilitação podem ser utilizados para tratar esta patologia com base no mecanismo e cronicidade da lesão, estando fora do âmbito deste trabalho abordar as diferentes opções de tratamento cirúrgico. Neste caso, conforme a imagem intraoperatória do joelho direito que se apresenta em anexo, a existência de uma rotura completa implicou a reparação cirúrgica com sutura e colocação de duas âncoras Synthes, reforço com fio PDS e ansa de descarga com fio PDS.
O retorno ao trabalho e a capacidade funcional do trabalhador após esta lesão está intimamente ligada ao seu prognóstico. Doentes submetidos a reparação cirúrgica rápida, como foi este caso, têm bom prognóstico. Vários estudos retrospetivos mostram altos níveis de satisfação do paciente e uma baixa taxa de complicações.
Roudet (2015), avaliou 38 doentes submetidos a reparação cirúrgica de rotura do tendão rotuliano utilizando a escala de Lysholm para sintomas do joelho. Destes, 92% tiveram pontuações superiores a Bom e 44% Excelente. Em 100% dos casos avaliados foi possível o retorno ao trabalho. Na avaliação a longo prazo (mais de um ano), 78% dos pacientes recuperaram a flexão do joelho e 100% a extensão (7).
As complicações e piores resultados estão associados a atraso do diagnóstico ou da reparação cirúrgica, estando descritas como complicações a infeção pós-cirúrgica, a re-rotura, a fraqueza residual do mecanismo extensor ou diminuição do ângulo de extensão do joelho, bem como a rigidez do joelho e atrofia muscular do quadricípite (1) (5).
No caso clínico apresentado, o profissional teve alta com uma incapacidade temporária para o trabalho de 20%; ao fim de quatro meses apresentava fraqueza do aparelho extensor do membro inferior direito, sem diminuição da amplitude de extensão e flexão do joelho e dor residual na carga do joelho direito. Na emissão da aptidão ficou condicionado a tarefas que implicam movimentos repetitivos de extensão e flexão do joelho, como subir escadas e agachamentos ou caminhar por longos percursos, bem como mobilização de cargas, como transporte de animais. Ao fim de um ano de fisioterapia, o profissional teve alta, sem desvalorização, tendo sido considerado Apto para a sua atividade profissional.
CONCLUSÕES
A profissão de médico veterinário implica a mobilização de animais de peso variável do nível do chão para marquesas de trabalho e igualmente a permanência de joelhos por longos períodos na assistência de animais ao nível do solo, pelo que seria interessante estudar de futuro, de forma quantitativa, este fator de risco e a sua eventual contribuição para a tendinopatia do tendão rotuliano. Um mecanismo extensor do joelho corretamente funcional é essencial para a deambulação e para um elevado número de atividades, como subir escadas. Quando existe comprometimento sequelar por esta lesão, o trabalhador fica funcionalmente severamente limitado. A medicina do trabalho tem um papel relevante na reintegração dos trabalhadores após em caso de acidente no local de trabalho. Conhecer a epidemiologia, identificar os mecanismos de lesão, tratamento e prognóstico desta patologia é importante, não só para atuar na prevenção de futuros acidentes de trabalho, mas também para adaptar o retorno do trabalhador ao seu posto de trabalho, sendo este um dos pilares da Medicina do Trabalho.