1. INTRODUÇÃO
A procura por uma lei geral sobre a causalidade de um resultado e a sua imputação a uma pessoa é um problema que intriga a ciência há muito tempo. No âmbito jurídico, desde o início do século XX, mesmo que de forma rudimentar, foi cindido o nexo que ligava a conduta ao resultado. Assim, surgiram os nexos causal e normativo: o primeiro seria aquele que analisava a conduta pelo ângulo ôntico, ligando-a ao resultado naturalístico; enquanto o segundo seria valorado no âmbito normativo, pois o resultado em sua concepção jurídica também pode ser avaliado. Nesse ínterim, destaca-se que a cisão do nexo causal e normativo foi aprimorada, sendo acolhida e (ainda) discutida no âmbito da doutrina do crime.
A fim de analisar, ontologicamente, o desdobramento fático e verificar a presença do nexo causal entre a conduta penalmente relevante e o resultado foram formuladas algumas teorias, contudo, nenhuma delas conseguiu apreender toda a complexidade do nexo causal e explicá-lo de forma conclusiva.
Também foram desenvolvidas teorias sobre a imputação objetiva, especialmente a proposta por Claus Roxin, a qual possui ampla receptividade jurídica na atualidade, constituindo-se numa pioneira formulação normativa do que seria uma imputação objetiva de um resultado a uma pessoa para fins de tipificação penal.
Nesse contexto, surge o Código Penal brasileiro de 1940, baseando-se na teoria da condição. Devidamente reformado em 1984, o diploma material recebeu influxos da teoria finalista, não passando imune à reforma o nexo causal.
Ante as diversas teorias da causalidade e de imputação objetiva, o presente artigo almeja avaliar as principais concepções teóricas sobre o tema. Para tanto, procede-se ao estudo da teoria da condição, da teoria da causalidade adequada e da teoria da relevância jurídica. Ademais, será averiguado se a teoria da imputação objetiva merece ser acolhida, além da análise particular da causalidade nos crimes omissivos. Finalmente, busca-se aferir quais concepções foram abrigadas pelo Código Penal brasileiro, fazendo uma análise criteriosa da legislação. O artigo tem como base a pesquisa bibliográfica e a metodologia é indutiva.
2. PRIMEIROS ANTECEDENTES: LARENZ E HONIG
Karl Larenz, ainda na época em que predominava o “dogma causal”, foi quem aplicou a teoria filosófica formulada por Hegel à relação causal, especialmente, no que tange à imputação objetiva3. Nesse contexto, foi Larenz quem tentou delimitar se a imputação seria um fato próprio do seu autor, ou se o episódio se trataria de um acontecimento puramente fortuito, o qual não deveria ser imputado a ninguém4. Isso significa que “o propósito primeiro do juízo de imputação nada mais é do que determinar se um fato é ou não obra de um sujeito”5.
A fim de aferir se determinado fato é ou não obra de uma pessoa, Larenz formulou o conceito de que o homem é um ser dotado de vontade, o qual em virtude de agir racionalmente, podem lhe ser imputadas as consequências que formam um todo com a ação6.
Divergindo de Hegel, Larenz adota o critério da previsibilidade objetiva das consequências da conduta para imputar um resultado. Isso porquanto, para Larenz, o homem é um ser racional capaz de prever objetivamente as consequências de seu comportamento. Dessarte, a objetividade do conceito de imputação permite englobar “além dos fatos conhecidos e queridos (fatos dolosos), aqueles que poderiam ter sido abarcados pela vontade do sujeito (fatos culposos)”7. Em suma, tratando-se de um fator teleológico, pode-se afirmar que “o fato é a realização da vontade; e a imputação, o juízo que relaciona o fato com a vontade”8.
De acordo com Roxin, “é possível afirmar que a teoria finalista da ação e a imputação objetiva tal como a conhecemos hoje são irmãs, ambas filhas da teoria da imputação de Larenz”9. A importância de tal teoria fez com que Honig a transpusesse, com acréscimos, para o Direito Penal.
Para Richard Honig, “o decisivo para o ordenamento jurídico não é a constatação de uma mera relação de causalidade, mas de uma relação jurídica especial entre a ação e o resultado”10. Dessa forma, evidenciou-se o surgimento do nexo normativo, axiológico, como consubstanciação dessa relação entre a ação e o resultado.
Diferentemente do civilista Larenz, Honig parte unicamente da Teoria Geral do Direito e considera relevante somente a ação típica11. Todavia, para ambos, existe
um juízo puramente objetivo sobre a relação teleológica que vincula comportamento e resultado. Examina-se não o conhecimento e a vontade atuais do autor, mas sim suas capacidades potenciais. Por isso se trata de uma imputação objetiva, já que esta não indica qual a relação psíquica existente entre o sujeito e o resultado a ele imputado12.
Segundo Prado e Carvalho, o único ponto de contato entre a teoria de Honig e a teoria de imputação objetiva formulada, posteriormente, por Roxin é no sentido de que “a relação entre ação e resultado não pode ser suficientemente descrita através da causalidade”13. Assim a diferenciação entre a causalidade (plano ontológico) e o nexo normativo (plano axiológico) é vislumbrada até os dias de hoje.
Contudo, há também profundas diferenças entre as teorias de Honig e Larenz e as modernas teorias, porquanto a imputação objetiva moderna segue critérios que ultrapassam a categoria pré-jurídica da finalidade objetiva. Nesse contexto, os critérios normativos adotados hodiernamente permitem resultados nos quais a “imputabilidade objetiva estaria fora de qualquer dúvida com base no critério da perseguibilidade objetiva do fim”14 sejam considerados como consequências não atribuídas a uma pessoa, de acordo com a nova teoria da imputação objetiva15.
Levando em consideração que até os dias atuais faz-se a distinção entre a causalidade (plano ontológico) e o nexo normativo (plano axiológico), analisaremos, por primeiro, as teorias causais e, posteriormente, a teoria da imputação objetiva proposta por Claus Roxin.
3. TEORIA DA CONDIÇÃO
Há divergência, na doutrina, quanto ao criador da teoria da equivalência dos antecedentes (teoria da condição), podendo-se citar como os seus primeiros escritores Maximilian Von Buri, Julius Glaser, Cristoph Carl Stübel e John Stuart Mill16. É sabido que todos eles colaboraram para a formulação da teoria, a qual surgiu no “auge do positivismo naturalista do final do século XIX”17.
Seguindo os ditames do positivismo, a ciência deve assumir dupla função, descritiva e causal-explicativa, e basear-se no método indutivo-experimental, evitando-se, assim, a formulação de considerações axiológicas ou teleológicas, porquanto os fins e os valores não estariam compreendidos nos limites da verdadeira ciência18. Nesse contexto, compreende-se que “a ação é mera causação de evento, provocada voluntariamente (impulso mecânico/inervação muscular), mas não conduzida pela vontade”19. Já o nexo causal é erigido como único critério de imputação de resultado20.
Nota-se que a orientação metodológica preconizadora da ação como mera causação de evento, reforçava a importância da causalidade a ponto de ser chamada de dogma causal, porquanto bastava a constatação da relação causal para fins de verificação da tipicidade do comportamento21. Diante da relevância relação causal, a conduta e o resultado apareciam somente como pressupostos da causalidade.
De acordo com a teoria da equivalência, “deve ser considerada causa toda condição de um resultado que não pode ser suprimida mentalmente sem que desapareça o resultado concreto”22. Dessarte, “utiliza-se o método de eliminação hipotética criado por Von Thyrén”23, isto é, deve ser considerada causa toda conditio sine qua non.
Conquanto acolhida pela doutrina mais tradicional, a teoria da condição sofre diversas críticas, “mormente pela amplitude conferida à escala causal, dando azo a um regresso infinito (...)”24. Outras críticas dizem respeito à causalidade nos crimes culposos, porque “exalçava-se essa dificuldade ao se tentar a vinculação da conduta do agente à existência do crime, ou ainda, quando havia infração a norma de cuidado pelas partes envolvidas no fato”25.
A fim de aperfeiçoamento da teoria da condição, “a doutrina se vale do princípio aventado por Engisch, da causalidade em sua manifestação concreta”26. De acordo com a tese de Engisch, “a determinação da causalidade deve se orientar pelo resultado tal como ele ocorreu, tendo em conta todos os fatores que intervieram em seu desenvolvimento”27. Todavia, ratifica Roxin que “esta fórmula tampoco sirve de ayuda para comprobar la causalidad real, porque no dice nada sobre la concurrencia del nexo conforme a las leyes, pero tiene la ventaja que no lo enmascara”28.
Analisando um caso prático, Puppe demonstra a insuficiência do método hipotético; vejamos:
A decisão do BGHSt 49,1 e ss, trata de dois médicos diretores de uma clínica psiquiátrica na qual se encontrava um paciente condenado por crimes sexuais e crimes de violência grave. Esse indivíduo extremamente perigoso e incapaz de ser tratado terapeuticamente, o qual, portanto, se encontrava ali por razões de segurança. Já duas vezes o paciente havia fugido da clínica, o que ele conseguiu fazer entortando as barras de uma janela fraca que se encontrava sob proteção de tombamento. Ambos os médicos, réus no processo, haviam permitido que o paciente saísse da clínica desacompanhado, ocasião que ele utilizou para matar duas senhoras de idade e praticar diversos estupros. O tribunal de primeira instância absolveu os dois médicos da acusação de homicídio culposo. Isso foi feito sob o argumento de que o paciente teria conseguido obter sua liberdade caso essa permissão de saída não tivesse lhe sido concedida. Com essa argumentação o tribunal de primeira instância utilizou exatamente o método para determinação e constatação da causalidade que é propagado pela doutrina majoritária na Alemanha e também pelo Superior Tribunal de Justiça da Alemanha (Bundesgerichtshof ou BGH). De acordo com esse método, um comportamento apenas é causal para um resultado quando ele não puder ser suprimido sem que o resultado deixe de ocorrer, ou, para expressar isso de uma maneira mais simples, quando esse comportamento seja uma condição necessária para a ocorrência desse resultado29.
O Bundesgerichtshof (BGH) reformou a decisão de primeiro grau, atribuindo a responsabilidade penal aos médicos, pois uma possibilidade hipotética de fuga violenta não seria apta a eliminar a causalidade dos réus pelo ocorrido30. Logo, também pode se aferir a insuficiência do critério da conditio sine qua non e, por conseguinte, a insatisfatoriedade da teoria da condição.
4. TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
Há consenso no sentido de que o fundador da teoria da causalidade adequada foi Johannes von Kries, professor de Fisiologia da Universidade de Freiburg. Essa teoria surgiu “em razão da necessidade de restrição da responsabilidade nos delitos qualificados pelo resultado no sistema alemão”31, mormente até a reforma penal alemã de 1953, a qual reconheceu a quebra do nexo causal quando se praticasse uma primeira conduta e, posteriormente, sem dolo ou culpa, viesse a ocorrer um resultado qualificador32. Assim, o critério da adequação permitiria excluir as condições que, imprevisivelmente e sem culpa do autor, provocaram o resultado mais grave33.
De acordo com Johannes von Kries, “causa é a condição mais adequada para produzir o resultado”34, fundando-se sua aplicação em um juízo de possibilidade ou de probabilidade à relação causal35. Em outras palavras, causa é “a condição que produza o resultado de modo previsível. As condições imprevisíveis do resultado não são causa em sentido jurídico”36.
A controvérsia mais envolvente em torno da teoria da causalidade adequada diz respeito sobre qual o ponto de vista deve ser realizado o juízo de adequação. Primeiramente, von Kries apontou que a análise deveria ser feita a partir da perspectiva do sujeito que atua (concepção subjetiva, portanto). Entretanto, após diversas críticas - mormente por confundir o problema de causalidade com a análise da culpabilidade - chegou-se à conclusão que deveria ser adotado um critério objetivo, qual seja, a prognose posterior objetiva37.
Além da prognose posterior objetiva, impende notar a necessidade de complementação da teoria da causalidade adequada, pois ela não indica “com base em quais conhecimentos deve ser feita a valoração do observador objetivo, isto é, com base nos conhecimentos do juiz, do agente ou de uma pessoa diligente”38. Para a doutrina majoritária, “o juiz deve se colocar durante o processo penal posterior ao fato, na posição de um observador ideal-abstrato presente no momento do prévio ao acontecimento e possuir os conhecimentos de um homem ‘inteligente’”39.
Ante a valoração do juiz sobre o acontecimento e o seu autor, percebe-se que a teoria da causalidade adequada busca “ estabelecer critério normativo para valorar quando uma relação de causalidade (constatada de acordo com a fórmula da teoria da equivalência) deve ser considerada relevante para o Direito Penal (grifos do autor) ”40. Ocorre que tal função é atribuída à teoria de uma imputação objetiva do resultado, e não a uma teoria da causalidade.
Ademais, Jakobs adita um caso em que um processo imprevisível pode ser imputado a uma pessoa. Colhe-se o exemplo:
Si un veneno común, en una persona que se droga con un medicamento sumamente raro, a causa de su constitución modificada a través de esa adicción, no surte efecto en el estómago - como suele - sino en el esófago (o no antes de los intestinos), a pesar de la extrema improbabilidad del curso causal concreto, no cabe aportar ninguna razón para no imputar el resultado; pues la consecuencia constituye la realización del peligro causado por el autor en las condiciones del caso concreto41.
Dessarte, conclui-se que a teoria da causalidade adequada possui o mérito de demonstrar a incompletude da teoria da condição e a complementar. Contudo, ratifica-se que essa teoria não conclui, de modo irrefutável, o que seria a causação de um evento.
5. TEORIA DA RELEVÂNCIA JURÍDICA
Proposta por Edmund Mezger, a teoria da relevância jurídica considera causa “apenas a condição que seja relevante para o direito”42. Em outras palavras, somente “será causa de um resultado a condição que se manifestar nos limites da norma proibitiva”43 , isto é, a relevância do nexo causal deve ser avaliada sob a perspectiva de uma exegese teleológica dos tipos penais44. Dessa forma, constata-se que “a responsabilidade deve ser aferida exclusivamente com base em critérios jurídico-penais, precisamente com consideração do sentido correspondente aos distintos tipos jurídico-penais ”45 (grifos do autor).
Considerando que a responsabilidade jurídico-penal não se reduz à questão da causalidade, percebe-se que a teoria da relevância propalou a ideia de se separar o conceito de causalidade daquele conceito de responsabilidade jurídico-penal, conhecido atualmente como imputação objetiva. Assim, segundo Mezger, para a constatação da causalidade, deve-se proceder à aplicação da fórmula da conditio sine qua non. Já para se aferir a responsabilidade jurídico-penal, deve-se olhar para o fim de proteção da norma e do respectivo tipo penal46.
Isso posto, percebe-se que o mérito de Mezger foi separar “o problema ontológico (causalidade) do problema normativo (relevância)”47, além de introduzir considerações teleológicas sobre os fins das normas. No entanto, a falha da sua teoria repousa no fato de considerar a teleologia das normas somente quanto à parte especial do Código, deixando de desenvolver uma concepção universal48.
Analisadas as principais teorias a respeito da causalidade, passaremos a analisar a imputação objetiva e o nexo normativo, a fim de, posteriormente, aferir a adoção dessas teorias pelo Código Penal brasileiro.
6. IMPUTAÇÃO NORMATIVA - TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA
Neste item, iremos nos restringir à análise da teoria da imputação objetiva proposta por Claus Roxin, mas lembramos que existem outros autores os quais se dedicam ao estudo de idêntica teoria propondo novos critérios de sua aplicabilidade.
Impende notar que a teoria da imputação objetiva busca traçar critérios excludentes da imputação. Isso porque, levando em consideração a presunção de inocência, a qual tem como corolário o princípio da não responsabilidade, impõe-se a contenção do poder punitivo na constituição do injusto49. Ademais, “o critério positivo da responsabilidade só iria servir como uma confirmação da causalidade e não como limitativo da imputação”50.
No que concerne à teoria proposta por Roxin, é sabido que ela adota critérios normativos para a imputação, levando em consideração que o autor está imerso no funcionalismo penal. Assim, nota-se que, a fim de restar caracterizada a imputação objetiva, é necessária a produção de um risco para a ocorrência do resultado, da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico51. Nas palavras de Roxin,
Querendo o Direito penal proteger bens jurídicos contra ataques humanos, isto só será possível na medida em que o Direito penal proíba a criação de riscos não permitidos e, ademais, valore a infração na forma de lesão ao bem jurídico, como injusto penal. Portanto, ações típicas são sempre lesões de bens jurídicos na forma de realização de riscos não permitidos, criados pelos homens52.
Logo, percebe-se que deve ser feita uma ponderação estatal em dois níveis, quais sejam, a intervenção estatal e a liberdade civil. Assim, o “aplicador do Direito tampouco deve proteger os bens jurídicos de uma maneira absoluta, senão unicamente frente às lesões de riscos não permitidos”53. Nesse sentido, conclui Roxin não ser a causação do resultado ou a finalidade da ação humana a ideia central do injusto penal, mas sim a realização de um risco não permitido54, tendo em vista que a causalidade é somente uma “condição necessária, mas não suficiente, do injusto penal”55.
De acordo com a teoria da imputação objetiva, pode-se afirmar que “a imputação ao tipo objetivo pressupõe a realização de um perigo criado pelo autor e não coberto por um risco permitido dentro do alcance do tipo”56. Dessa asserção, sobressaem-se três critérios relevantes para a imputação, quais sejam, a criação de um risco não permitido, a realização de um risco não permitido e o alcance do tipo. Serão analisados tais critérios em itens separados.
6.1 A Criação de um Risco não Permitido
Há diversas hipóteses nas quais não é identificada a criação de um risco proibido. Analisaremos cada uma delas e faremos as críticas pertinentes.
A primeira hipótese diz respeito ao caso em que “o autor modifica um curso causal de maneira a diminuir o perigo já existente para a vítima, e, portanto, melhora a situação do objeto da ação”57. O exemplo citado por Roxin é de que, se uma pedra irá atingir a vítima e outra pessoa consegue desviá-la, de maneira a diminuir a lesão sofrida pela vítima, essa outra pessoa não responderá pela lesão58. O exame criterioso do caso pode levar à conclusão de se tratar de uma causa de justificação - tais como, a legítima defesa ou o estado de necessidade -, a qual poderia absorver o critério de diminuição do risco. Além disso, surge a dúvida de o autor poder evitar totalmente o resultado, caso em que deveria ele responder pelo ato que não evitou59.
A segunda hipótese envolve a situação em que o autor não aumenta o risco de lesão a um bem jurídico de modo juridicamente considerável60. Nessa questão, a dúvida que surge envolve aquilo que seria considerado um risco não considerável para o Direito.
A terceira proposição trata da exclusão da imputação quando “ o resultado tenha sido produzido por uma ação que não ultrapassou o limite do risco juridicamente permitido ”61 (grifos do autor), em que pese não haver consenso sobre o conceito de risco permitido para o direito62. Nesse diapasão, ressalta-se o caso em que o sobrinho, desejando a morte do tio, recomenda a este que viaje de avião e morra em virtude de um acaso, vindo a morte efetivamente ocorrer63. Nessa conjuntura, de acordo com Larrauri, está-se transladando os elementos do injusto culposo - quais sejam, previsibilidade objetiva e risco permitido - aos delitos dolosos, e tal aplicabilidade é amplamente controversa na doutrina64. Ademais, Gimbernat Ordeig sustenta que
o resultado típico causado por uma ação dolosa não é objetivamente imputável quando o comportamento externo é objetivamente correto; isso é assim porque, então, não existe um fato minimamente com desvalor ao qual se pode vincular um juízo de tipicidade um Direito penal que começa precisamente do fato para suas valorações e que, por isso, não pode se basear única e exclusivamente em intenções65.
6.2 A Realização de um Risco não Permitido
No critério da realização do risco não permitido, deve ser feita uma apreciação ex post sobre se o risco efetivamente incrementado pelo agente influi ou não no resultado66. Assim, a imputação será excluída, “ainda que o autor tenha criado um perigo para o bem jurídico protegido, (se) o resultado se produz, não como efeito da configuração desse perigo, senão somente em contexto casual com ele mesmo”67. O exemplo citado por Roxin é o da vítima de uma tentativa de homicídio que não morre no próprio atentado, mas sim em um incêndio no hospital68. Nessa situação, há um desvio essencial, sendo este critério um objetivo para a teoria da imputação. Ainda, nesse ponto adita Roxin que o conceito de essencialidade ainda precisa ser preenchido com algum conteúdo69, mas tal asserção não obsta a sua aplicabilidade a casos concretos.
Por sua vez, ressalva-se que deve ser imputado o “resultado se a ação tentada aumentou o perigo do curso causal subsequente de modo juridicamente relevante e, portanto, o resultado é uma realização adequada do perigo criado pela tentativa”70. Tal situação é exemplificada no caso em que uma pessoa quer jogar outra, a qual não sabe nadar, de uma ponte para que se afogue. Ocorre que vítima bate com o pescoço contra um pilar da ponte e vem a falecer. Nesse caso, haverá imputação do resultado à autora.
Distinto é o caso em que, segundo Roxin, resta excluída a imputação quando inexista a realização do risco não permitido71. O exemplo citado é o de que um fabricante - infringindo o regulamento - entrega material não desinfectado para manejo por quatro funcionárias que, em consequência da infecção, vêm a óbito. Posteriormente, constata-se que, ainda que o fabricante tivesse procedido conforme os regulamentos, não haveria sido eliminada a possibilidade de morte por infecção72. De acordo com Roxin, se for imputado o resultado, seria castigado por infração de um dever cujo cumprimento era inútil. A crítica feita à análise do Roxin diz respeito à lesão da norma de cuidado, a qual somente ocorre quando se excede ao risco permitido, não sendo esse o caso no exemplo oferecido73.
Ainda, os resultados fora do âmbito de proteção da norma excluirão a imputação74. Isso significa que, se o autor atuar fora dos limites autorizados e, com isso, produzir a morte da vítima, mas essa atuação, conforme posterior verificação, não se situar no âmbito de proteção da norma, não haverá imputação75.
Ademais, se uma conduta alternativa conforme o direito conduzir, com seguridade, ao mesmo resultado não há imputação, pois não se realizou a superação do risco permitido no curso real do acontecimento.
6.3 O Alcance do Tipo
Ainda que realizado um perigo não permitido, o seu autor pode não ser responsabilizado se a vítima se expõe conscientemente ao perigo. Isso ocorre em razão do princípio da autorresponsabilidade, o qual cuida da autocolocação e da heterocolocação em perigo.
A autocolocação em perigo pode ser conceituada como a colocação da vítima em risco por sua própria conta, ainda que seja convencida por outrem a fazê-lo76.
Já a heterocolocação em perigo pode ser compreendida a partir da situação em que “alguém coloca um terceiro em perigo; este, no entanto, se expõe ao perigo criado plenamente consciente do risco”77.
Em casos práticos, pode ser aferida a distinção entre os institutos levando em consideração de quem parte o perigo que resulta diretamente no resultado. Nas palavras de Roxin:
Afinal, decisivo não é quem tem o domínio do fato - que em relação à realização do tipo nenhum dos participantes possui - mas de quem parte a colocação em perigo que resulta diretamente no resultado. Partindo essa colocação da vítima - que, por exemplo, injeta em si mesma a dose fatal de heroína ou pilota sua própria motocicleta em uma corrida ilegal -, existirá uma autocolocação em perigo e a contribuição de terceiros permanecerá em todos os casos impune. Partindo essa ação decorrente do pacto, por outro lado, de alguém diverso da vítima, que apenas se expõe conscientemente em perigo, existirá uma heterocolocação em perigo consentida e esta deverá ser tratada a partir de suas próprias regras (...)78.
Feitas essas considerações sobre a teoria da imputação objetiva, cabe analisar o Código Penal brasileiro para verificar quais as concepções teóricas foram acolhidas pelo nosso diploma material. Mas antes, porém, vamos tratar de um problema específico relacionado à causalidade nos crimes omissivos.
7. A CAUSALIDADE NOS DELITOS OMISSIVOS
Questão relevante diz respeito à possibilidade de se averiguar a causalidade nas infrações omissivas. Nesse ínterim, sabe-se que os delitos omissivos podem ser subdivididos em crimes omissivos próprios e impróprios, os quais possuem consequência diferente no âmbito da causalidade.
Nos delitos omissivos próprios (puros), não há resultado ou este não é necessário para a consumação do crime - isto é, cuidam-se de delitos de mera conduta, mais precisamente, de mera inatividade. Ante a ausência de resultado naturalístico, não há que cogitar de nexo causal ontológico. Logo, prejudicada a análise da causalidade nos delitos omissivos puros79.
No âmbito dos delitos omissivos impróprios (impuros), afere-se a existência de resultado naturalístico e, portanto, relevante analisar o nexo causal da omissão para o resultado80. Diante do resultado naturalístico e uma omissão para se chegar nele, a doutrina chama esses crimes de delitos comissivos por omissão, os quais passaremos a analisar somente no que tange ao nexo causal (causalidade), mas ressaltando que se lhes aplicam as teorias da imputação objetiva também (nexo normativo).
As primeiras concepções sobre a omissão remontam o positivismo. De acordo com essa concepção teórica, a omissão poderia ser considerada uma ação interna que o omitente pratica para reprimir seus impulsos de executar a ação que poderia ter evitado o resultado81. Contudo, tal conceito recebeu críticas e não pode ser aceito, porquanto
la acción interna de reprimir el omitente impropio su impulse, de intervenir para evitar el resultado no se traduce en un movimiento corporal -sino solo en un acto meramente espiritual-, y, por consiguiente, tampoco en una causalidad mecánica; y, en segundo lugar, que en la omisión impropia cometida con imprudencia inconsciente, y dado que el autor ni se representa la situación de peligro ni, consiguientemente, el resultado lesivo82.
Devidamente aceito que a omissão não é uma forma de conter uma ação mental, procura-se uma nova forma de conceituar a omissão. Todavia, atualmente, não há consenso doutrinário sobre a conduta omissiva. Ousamos dizer que, para o Direito, a omissão torna-se relevante quando há um comportamento passivo ou um não fazer aquilo que deveria ser feito83. Assim, evidencia-se, desde já, que a conduta omissiva relevante para o Direito é um conceito valorativo e normativo, além de ontológico.
Ainda, há divergência quanto à existência de um nexo causal nos crimes omissivos impuros. Para uma parte da doutrina, a omissão e o resultado podem estar unidos por uma relação de causalidade, não uma causalidade mecânica, mas sim como uma categoria de pensamento. Já em outras doutrinas, não há uma relação de causalidade, pois a omissão se caracteriza por ser um não movimento, o qual não pode produzir modificação alguma no mundo exterior84. Em suma, a última vertente adota o conceito de causa efficiens, segundo a qual, na omissão, “não há uma força que produza efeitos no mundo fenomênico”85 e, portanto, inexiste “relação de causalidade entre a omissão e um determinado acontecimento que lhe é posterior”86.
Diante da possibilidade de empregar as principais teorias da causalidade (teoria da condição e teoria da causalidade adequada) para explicar o nexo causal nos crimes omissivos, acolhemos a proposta de que há um nexo causal entre o resultado e a omissão. Além disso, concordamos com a doutrina que questiona “a assertiva de que a omissão não integra a realidade e que, por conseguinte, não se coaduna com a causalidade compreendida com a categoria do ser”87, pois é plenamente possível falar, por exemplo, que a omissão em regar uma planta causa-lhe a morte, isso numa concepção ôntica88. Considerando a tomada de posição em favor da existência de um nexo causal, calha buscar uma teoria para explicá-lo.
Uma primeira concepção adota a teoria da sine qua non no plano da causalidade dos delitos omissivos impróprios. Contudo, deve ser observado que a teoria da condição provoca novamente um regresso ao infinito, além de não ser possível estabelecer com certeza se a ação (que não foi tomada) teria evitado o resultado.
Uma segunda vertente aponta a teoria da evitabilidade como apta a delinear a causalidade nos delitos omissivos impróprios. Dessarte, aduz que a consequência da conduta poderia ser imputada ao omitente quando a ação omitida tivesse impedido o resultado, variando a exigência do grau de probabilidade (certeza, quase certeza, muito provável) para a atribuição do resultado89. Nesse diapasão, ressalta-se que o “critério de acréscimo mental da conduta omitida é inútil, a exemplo do que se dá com o critério hipotético de eliminação nos crimes comissivos”90.
Uma terceira hipótese, conhecida como teoria da diminuição do risco, aponta que somente seria apreciável juridicamente uma omissão de ação devida quando a conduta omissiva tenha eliminado ou diminuído as possibilidades de salvação do bem jurídico. As críticas a essas teorias dizem respeito à violação do princípio do in dubio pro reo - o qual “seria violado apenas se a evitabilidade do resultado fosse um pressuposto do tipo objetivo que devesse ser comprovado no processo”91, bem como à responsabilidade por delito consumado quando, em uma análise posterior, não se causou a intensificação de lesão a bem jurídico92.
Ainda, Puppe propõe uma quarta solução, a saber, a omissão somente poderá ser considerada causa de um resultado quando a interrupção do curso causal lesivo era efetivamente possível para o agente. Nesse sentido, na visão de Puppe, colhe-se um exemplo em que o curso causal poderia ter sido interrompido:
Um mecânico montou os freios de um automóvel de forma errônea ou se omitiu de renovar as pastilhas completamente gastas durante a inspeção, tornando os freios ineficazes. Numa situação crítica, o motorista não pisa no freio e ocorre séria colisão. Se o mecânico ou o motorista são responsáveis pelo acidente, é algo controverso. Pode-se considerar tanto a montagem equivocada (ou a omissão de renovar as pastilhas dos freios) como a omissão de frear na situação crítica como uma causação através da não iniciação de um curso salvador. Todavia, quando o condutor do veículo deixou de pisar no freio, os pressupostos para a interrupção do curso causal da colisão não estavam mais preenchidos. Por essa razão, o mecânico, sozinho, é causal em relação ao acidente93.
Outrossim, leciona Roxin que a teoria da imputação objetiva cria, também, uma dogmática do ilícito culposo completamente nova, mormente quando cuida do princípio da confiança94. Nesse contexto, ressalta-se que “os antigos critérios do delito culposo são ainda utilizados de modo irregular, simultaneamente às regras da imputação objetiva (...), não ficando esclarecida a relação entre eles”95. Assim, conclui o penalista alemão ser a imputação da culpa determinada exclusivamente pelos critérios estipulados pela teoria da imputação objetiva96.
Enfim, nos delitos omissivos, a ciência jurídica ainda presencia a incerteza sobre a causalidade, bem como sobre o conceito da omissão. Enquanto, nos crimes comissivos, existe um maior desenvolvimento teórico, sem que haja, porém, uma teoria conclusiva.
8. O CÓDIGO PENAL BRASILEIRO
O Código Penal brasileiro, em sua parte geral, adotou a teoria finalista da ação ao tratar da maior parte dos institutos. Para o finalismo, a causalidade é somente um componente da ação, isto é, “toda acción es un poner en movimiento la causalidad; por eso, la causalidad es sólo un elemento de toda acción y no plantea problemas en la mayoría de los tipos penales”97. Nesse contexto, a ação final relaciona-se tanto com a esfera ontológica quanto com a valorativa, não podendo cindir seus momentos objetivos dos subjetivos98. Entretanto, percebe-se que, concernentemente à causalidade, o Código Penal brasileiro não aderiu à corrente finalista, pois ao cuidar da relação causal e do nexo normativo no art. 13, adotou a teoria da condição e da causalidade adequada. Analisemos o art. 13, in verbis:
Relação de causalidade (Redação dada pela Lei 7.209, de 11.7.1984)
Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. (Redação dada pela Lei 7.209, de 11.7.1984)
Superveniência de causa independente (Incluído pela Lei 7.209, de 11.7.1984)
§ 1º A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou. (Incluído pela Lei 7.209, de 11.7.1984)
Relevância da omissão (Incluído pela Lei 7.209, de 11.7.1984)
§ 2º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: (Incluído pela Lei 7.209, de 11.7.1984)
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (Incluído pela Lei 7.209, de 11.7.1984)
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; (Incluído pela Lei 7.209, de 11.7.1984)
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. (Incluído pela Lei 7.209, de 11.7.1984)99
Em uma análise perfunctória, poderia parecer que o artigo, em seu caput, primeira parte, refere-se ao resultado naturalístico. No entanto, tal conclusão não nos parece a mais acertada, porque a Exposição de Motivos do Projeto do Código Penal de 1940, no ponto 13, já destacava que “com o vocábulo ‘resultado’, o citado artigo designa o efeito da ação ou omissão criminosa, isto é, o dano efetivo ou potencial, a lesão ou perigo de lesão de um bem ou interesse penalmente tutelado ”100. Nesse contexto, percebe-se que o legislador se referiu ao resultado em sua perspectiva jurídica101, de forma que o resultado jurídico deverá estar presente na totalidade dos crimes.
Ainda, embora a doutrina mais tradicional insista em dizer que o Código Penal adotou a teoria da equivalência dos antecedentes, o art. 13, § 1º, do referido diploma já deixa evidente a insatisfação dessa teoria para analisar todos os casos, porquanto já elenca exceções, as quais se aproximam de teorias valorativas aptas a distinguir, dentre as causas de um resultado, aquelas dotadas de relevo para o direito penal102. Nas palavras de D’Ávila:
Haveria, pois, uma dimensão normativa a ser verificada no juízo de causalidade, a fazer dele não tanto uma simples verificação da imbricação causal entre fatores, mas, em realidade, um efetivo juízo de imputação, tendo como ponto de partida (e apenas como ponto de partida) a conditio sine qua non. Constatação essa que se mostra mais saliente quando se tem em conta hipóteses de concorrência de causas e, em particular, o quanto disposto no § 1º do art. 13.
Por outro lado, em relação às concausas, a teoria da condição mostra-se insuficiente, senão, vejamos.
No que tange às concausas absolutamente independentes, sejam elas pré-existentes, simultâneas ou supervenientes, elas são resolvidas pela teoria da equivalência dos antecedentes, por meio da eliminação hipotética103. Dessarte, aplica-se o art. 13, caput, do Código Penal para a sua resolução, ocasionando, para Cunha, que “o comportamento paralelo será sempre punido na forma tentada”104 e, para Bitencourt, a exclusão da causalidade da conduta105.
Concernentemente às concausas relativamente independentes, a solução é diversa. Quando elas forem preexistentes ou concomitantes, haverá a responsabilização penal individual dos autores da conduta106, porquanto, consoante o método da eliminação hipotética, o resultado só teria acontecido com a conduta de ambos participantes.
Já acerca da concausa relativamente independente superveniente, o Código Penal adotou a teoria da causalidade adequada (art. 13, § 1º, Código Penal), pois se considera “causa a pessoa, fato ou circunstância que, além de praticar um antecedente indispensável à produção do resultado, realize uma atividade adequada à sua concretização”107. E mais, relevante averiguar se o evento é previsível ou imprevisível para avaliar se a causa efetiva do resultado sai (ou não) da linha de desdobramento causal. Explica-se.
Na hipótese em que a causa relativamente independente superveniente por si só produziu o resultado, há um evento imprevisível que sai do desdobramento causal e, por conseguinte, “exclui-se a imputação do resultado em relação ao agente responsável pela primeira causa concorrente”108. Por exemplo, “A” atira em “B” que morre no hospital em decorrência de incêndio que assolou o local109. Nesse caso, “A” responderia por tentativa de homicídio (se o dolo for necandi).
Por sua vez, se cuidar de hipótese em que a causa relativamente independente superveniente produz, mas não por si só, o resultado, há a mesma linha de desdobramento causal e, consequentemente, se trata de evento previsível, o qual deve recair na responsabilidade penal do autor. Por exemplo, “A” atira em “B” que é levado ao hospital e morre por conta de erro médico. “A” responderá por homicídio consumado, consoante a teoria da causalidade adequada110.
Impende notar a crítica formulada por D’Ávila, dizendo não ser aceitável
em termos dogmáticos e metodológicos, conferir soluções jurídicas diversas a fatos materialmente idênticos. Preexistência, concomitância e superveniência são apenas indicativos do momento em que se dá a concorrência (...) em termos de imbricação causal, não há qualquer diferença entre eles. São todos eles hipóteses de denominada relativa independência, a reivindicar o exato mesmo tratamento dogmático. Não há, pois, como escapar à aplicação analógica do § 1º do art. 13. E, não fosse assim, também por via do princípio da culpabilidade, expresso na exigência mínima de previsibilidade da concorrência causal, encontraríamos igual solução111.
Nota-se também a insuficiência da teoria da condição e da causalidade adequada, as quais são complementadas pela doutrina com a exigência de resultado previsível ou mesmo do elemento subjetivo do tipo, porquanto é reconhecida a possibilidade de regresso ao infinito.
Finalmente, o caput do art. 13 do Código Penal prevê que a omissão pode ser considerada causa de um resultado. Nessa matéria, a doutrina divide a omissão em própria e imprópria.
A omissão própria, quando preveja um resultado naturalístico relevante, deverá, conforme a teoria da condição prevista no caput do art. 13, ser submetida ao juízo hipotético de acréscimo, isto é, “se o agente não tivesse se omitido, ou seja, se houvesse prestado socorro o resultado ainda assim teria ocorrido?”112. Nesse ínterim, percebe-se que a doutrina brasileira, ainda arraigada na teoria da condição, reproduz a resposta insatisfatória dessa teoria, a qual pode ocasionar o regresso ao infinito ou mesmo a ausência de resposta sobre a evitabilidade do resultado por absoluta incerteza fática ou científica; tampouco, há resposta sobre o grau de evitabilidade da conduta: certeza, quase certeza, provável. Enfim, na omissão própria há um vazio legislativo e doutrinário.
Já quanto a omissão imprópria, essa é encontrada no § 2º, do art. 13, Código Penal, por meio das figuras do garante e do dever de salvamento. Assim, “o requisito fundamental para que haja omissão imprópria, é o dever de impedir a ocorrência do resultado típico”113. O dever de impedimento previsto nas duas primeiras alíneas do § 2º, art. 13, do Código Penal, refere-se a uma situação em que o omitente não produziu um risco, mas sim possui, por lei ou contrato, dever de proteger o bem jurídico. Enquanto, a última alínea do art. 13, § 2º, Código Penal, envolve a ingerência, porquanto o omitente produz um risco em razão do qual surge “o dever de evitar o resultado danoso, quando possível a interrupção do nexo causal”114.
Para Bitencourt, deveria ser formulado o mesmo juízo hipotético de eliminação e evitabilidade115, o qual como já vimos é insuficiente. Todavia, encontramos resposta divergente na doutrina no que diz respeito à hipótese de ingerência.
Conforme Bottini, a ingerência resultaria em uma imputação do resultado, devido à criação de um risco por meio de uma ação antecedente. Assim, o criador do risco faz surgir um dever de controle e/ou um dever de salvamento116. Prossegue o referido autor afirmando que “o dever de controle impõe ao agente a manutenção do risco inicial nos patamares permitidos definidos pelas normas institucionais, pelas regras técnicas profissionais e pelo dever geral de cautela”117. Em contrapartida, a sua omissão em “manter o risco dentro destes parâmetros ou de restituí-lo a estes níveis implica a responsabilidade pelo resultado a título de omissão imprópria”118. Já o dever de salvamento, “cujo descumprimento permite que o resultado seja imputado a título de omissão desde que o risco originalmente criado seja não permitido”119. Por outro lado, a “criação de riscos permitidos não enseja a responsabilidade por omissão imprópria no contexto de salvamento”120.
Finalmente, Bottini destaca, in verbis,
que o reconhecimento do descumprimento dos deveres de controle e de salvamento apenas indicam objetivamente a possibilidade de imputar o resultado ao omitente. A imputação integral ainda exigirá a constatação de que a omissão seja condição negativa do resultado e que este esteja dentro do âmbito de abrangência da norma de cuidado violada, elementos não abordados no presente artigo, mas que devem ser levados em consideração na construção da tipicidade da ingerência121.
Percebe-se que, no entender de Bottini, é plenamente aplicável a teoria da imputação objetiva aos delitos omissivos impróprios por ingerência -com os devidos acréscimos do dever de controle e de salvamento. Orientação que conta com nossa concordância, porquanto atenua os efeitos da aplicação da teoria da condição, acrescentando a análise do nexo normativo.
9. CONCLUSÃO
A procura por uma lei geral da causalidade e da imputação ainda continua sendo um tema atual, porquanto as concepções teóricas existentes não conseguem explicar a complexidade ontológica e axiológica que envolve a ação e o resultado.
Por mais que seja cindida a relação entre causa e resultado em nexo causal e nexo normativo, ainda não se chegou a teorias irrefutáveis. Isso tendo em vista que as concepções teóricas causais explicam parcialmente aquilo que se entende como condição necessária para determinado fato. Ademais, as teorias da imputação objetiva, mormente a reapresentada por Claus Roxin, repete alguns critérios da dogmática penal, além de, principalmente, aprofundar a aferição de um nexo normativo, seu maior mérito.
No âmbito dos crimes omissivos, a doutrina está começando a teorizar a matéria. Entretanto, ainda estamos longe de uma explicação convincente sobre o nexo causal, pois ainda se debate a existência desse nexo nos crimes omissivos.
No âmbito do direito brasileiro, o Código Penal agasalhou a teoria da condição e, excepcionalmente, a teoria da causalidade adequada.
Em conclusão, diante da imprecisão das diversas teorias, inclusive das adotadas pelo Código Penal brasileiro, faz-se imprescindível a análise casuística cuidadosa amparada pela doutrina jurídico-penal contemporânea, a fim de se chegar a uma melhor solução acerca da causalidade e da imputação objetiva.