Sumário: 1. Introdução; 2. Considerações gerais sobre a IA e o direito; 3. A proposta de Bayern de se usar a LLC para de facto conferir personalidade à IA; 4. Da criação da sociedade limitada ao código civil de 2002: uma visão contratualista; 5. EIRELI e sociedades unipessoais: o caminho para uma visão institucionalista; 6. Um diálogo com a proposta de Bayern; 7. Conclusão; 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O avanço tecnológico das últimas décadas não encontra precedentes. Sendo o direito um espelho da sociedade, ainda que o seu reflexo se projete de uma forma um tanto distorcida, é inegável que a revolução tecnológica, de alguma forma, impacta nas estruturas jurídicas. O uso crescente de Inteligência Artificial (IA), tanto na vida diária da população quanto nas transações comerciais é, provavelmente, o ponto crucial desse processo.
Dado que a inteligência artificial significa a capacidade de uma máquina de mimetizar a racionalidade de um ser humano3, cria-se uma profunda controvérsia, moral e jurídica, sobre qual deve ou não ser o seu status legal.
Este artigo se dedica a analisar essa questão jurídica. Partindo do pressuposto de que o debate ético e os debates jurídicos nos âmbitos do direito público e do direito privado ainda não estão suficientemente amadurecidos, o presente estudo cinge-se à análise de um problema bem circunscrito: da perspectiva do direito brasileiro, pode a IA, de alguma forma, atuar juridicamente, sem que seja necessária uma reforma legislativa?
Na sequência, apresenta-se o caminho para uma possível resposta, aventando-se a hipótese de que a estrutura jurídica da sociedade limitada poderia ser adequada para esse fim.
2. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A IA E O DIREITO
Antes de se pensar nas implicações jurídicas do advento da IA, é necessário compreender o seu conceito, a fim de evitar, usando a metáfora de Cervantes, que enfrentemos moinhos de vento como se fossem gigantes. Segundo Yunhe Pan, o conceito clássico de IA foi estabelecido há mais de sessenta anos atrás, em 1956, em uma conferência no Dartmouth College (EUA). Nessa conferência, compareceram os mais renomados estudiosos da Teoria da Informação à época, como J. McCarthy, M. L. Minsky, H. Simon, A. Newell e C. E. Shannon. De acordo com esses estudiosos, a IA podia ser definida como “a habilidade de uma máquina compreender, pensar e aprender de forma similar aos seres humanos”4.
Desde aquela conferência, houve muitas mudanças. Após a empolgação inicial sobre as discussões lá enfrentadas, os estudos sobre o tema não causaram o impacto esperado, pelo menos não até o início do século XXI. A massificação da internet viabilizou a quantidade de dados necessária para o aprendizado autônomo de máquina pelo intercruzamento de dados em rede5. Conforme descrito por Yunhe Pan, a IA, ao interagir com o big data, tornou-se a “IA 2.0”. Sob esse prisma, a IA ainda pode ser conceituada como “a habilidade de uma máquina compreender, pensar e aprender de forma similar aos seres humanos”, mas, agora, ela é qualificada e potencializada pela infinitude de dados e possibilidades de uma realidade hiperconectada6.
Em uma perspectiva mais analítica, Gabriel Hallevy identifica os atributos necessários para que uma entidade possa ser considerada inteligente. Para este autor, existem cinco atributos a serem listados: comunicação, conhecimento interno, conhecimento externo, comportamento direcionado a determinados objetivos e criatividade. Hallevy explica o significado desses atributos em seu texto The Criminal Liability of Artificial Intelligence Entities - from Science Fiction to Legal Social Control7. Sintetizando as ideias centrais do autor, uma IA pode ser compreendida como uma máquina que, especialmente por meio do big data, pode comunicar, conhecer a si mesma, conhecer o mundo, perseguir objetivos e criar, comportando-se, em certa medida, como um ser humano.
Uma perspectiva muito semelhante a esta foi utilizada pelo Parlamento Europeu, ao instar a Comissão de Regras de Direito Civil em Robótica a elaborar um conceito comum de IA. Para tanto, o Parlamento Europeu estabeleceu as seguintes diretrizes, a fim de orientar os trabalhos da Comissão, definindo, como inteligências artificiais, os dispositivos que: “a) adquiram autonomia por meio de sensores e/ou pela troca de dados com o ambiente, interconectividade, intercâmbio e a análise desses dados; b) apresentem autoaprendizado por meio de experiência e de interações; c) detenham um suporte físico mínimo; d) adaptem seu comportamento e ações ao ambiente; e) não representem vida em sentido biológico”8.
Estando explicitado o ponto de partida teórico, nota-se que, hoje em dia, a IA é uma realidade factível. Com efeito, inovações tecnológicas dotadas de um ou mais desses atributos estão presentes na internet das coisas, em carros autônomos, em sistemas de diagnóstico médico, no mercado de ações, em drones, mapas, redes sociais, dentre outros9. O que, alguns anos atrás, era considerado excentricidade, mais adequado à ficção científica, hoje é perceptível em cada detalhe da vida quotidiana, é algo comum. Essas inovações tecnológicas trazem algumas questões que não podem ser ignoradas pelos juristas (acadêmicos ou práticos). A multiplicação de seus usos no dia a dia dos negócios, sobretudo do mercado, impõe novos desafios ao direito.
Para ilustrar a variedade dos problemas jurídicos referentes ao uso da IA, vale contar algumas histórias. Em 1981, no Japão, um trabalhador de uma indústria de motocicletas foi morto por um robô inteligente, que considerou que o homem era uma ameaça à sua missão. Em 2015, um trabalhador alemão foi morto em circunstâncias semelhantes em uma linha de produção de motores elétricos. A razão do comportamento violento desses dispositivos permanece desconhecida. Em 2016, um veículo semiautônomo se envolveu em um acidente fatal, embora a investigação não tenha concluído que o sistema de IA foi o responsável pela tragédia. No mesmo ano, na Califórnia, um robô-segurança, em um shopping center, acidentalmente, atropelou uma criança pequena, ferindo-a levemente10. Como visto, preocupações jurídicas sobre a IA não são mais um inverossímil romance de Asimov.
Visando a endereçar esse problema, especialmente no que tange aos danos causados pelo funcionamento de dispositivos inteligentes (responsabilidade civil), o Parlamento Europeu, recentemente, recomendou à Comissão de Regras de Direito Civil sobre Robótica estudar a concessão de personalidade jurídica a certos tipos de IA11. A proposição de criar um tipo sui juris de e-person, entretanto, levanta uma série de implicações éticas, que foram severamente criticadas por alguns estudiosos. Para eles, as recomendações são um passo grande demais para resolver o que eles consideram, até o momento, questões jurídicas menores12.
3. A PROPOSTA DE BAYERN DE SE USAR A LLC PARA DE FACTO CONFERIR PERSONALIDADE À IA
Enquanto as diretivas europeias tendem a resolver problemas de responsabilidade, criando uma nova hipótese de personalidade jurídica, a e-person, outra forma de lidar com o problema, com menos controvérsias éticas, pode ser considerada: utilizar o direito societário para, de facto, conferir poderes à IA para agir juridicamente. Essa é, exatamente, a proposta do Prof. Shawn Bayern, conforme expressado no artigo intitulado The Implications of Modern Business-Entity Law for the Regulation of Autonomous Systems, publicado, em 2015, na Stanford Technology Law Review13.
Bayern inicia sua análise esclarecendo que, no direito norte-americano, a IA, formalmente, é despida de personalidade jurídica. A despeito disso, o autor destaca que é inegável que mecanismos artificialmente inteligentes são capazes de tomar decisões, desempenhar ações e daí em diante. Nessa linha de pensamento, considerar a IA uma pessoa jurídica não estaria no âmbito da (im)possibilidade física, mas seria apenas uma questão de reconhecimento jurídico.
O fato de o direito norte-americano não atribuir, expressamente, personalidade jurídica à IA não implicaria, entretanto, na concepção de referido autor, que entidades que tomem decisões de forma autônoma não possam, de facto, operar juridicamente de uma forma similar às pessoas jurídicas de natureza societária. Isso faria sentido, pelo menos no âmbito do direito privado. Um dispositivo dotado de inteligência artificial poderia, na prática, por sua própria decisão (e, dentro do que se pode conceber, por sua própria “vontade”), fazer promessas, aceitar propostas e, nesse processo, adquirir propriedade. Seria necessário apenas um receptáculo jurídico para encapsulá-lo. Esse é um papel que, na visão de dito autor, poderia ser desempenhado por uma sociedade. Especificando melhor, no direito societário norte-americano, uma Limited Liability Company (LLC) poderia ser utilizada para esse propósito.
Esclareça-se que o direito societário norte-americano era tradicionalmente estrito, em termos jurídicos. Entretanto, em finais do século XX, o panorama legal mudou. O Uniform Limited Liability Company Act (ULLCA), editado pela primeira vez em 1994, congregou provisões concernentes à LLC de diferentes estados norte-americanos. Em 2006, outro esforço foi feito, visando a uniformizar os diferentes direitos estaduais, no intuito de tornar as regulações das LLC mais flexíveis14. Essa nova versão foi denominada Revised Uniform Limited Liability Company Act (RULLCA) e seus últimos ajustes foram feitos em 2013.
Para evitar mal-entendidos, é importante destacar que os Uniform Acts não são leis stricto sensu, mas modelos de uniformização desenhados por uma comissão de juristas notórios, a fim de inspirar as legislaturas estaduais a endossá-los15. Nos Estados Unidos, diferentemente do Brasil, onde uma lei federal regula, de maneira uniforme, a sociedade limitada, a legislação societária é de competência estadual. No que se refere ao RULLCA, até meados de 2021, ele havia sido incorporado por apenas 21 dos 50 estados americanos. Contudo, a vantagem dos modelos de LLC do RULLCA indica para uma rápida expansão para os demais estados16. É, por isso, que, para fins de direito comparado, utilizar o RULLCA como padrão comparativo para as regulações das LLC, nos Estados Unidos, é mais acurado do que adotar a legislação específica de um determinado estado norte-americano.
Essencialmente, há dois documentos relativos à formação da LLC. O primeiro deles é o “certificado de organização” ou “artigos de organização” (certificate of organization ou articles of organization). Trata-se do documento fundante de uma LLC. Ele inclui cláusulas obrigatórias para a sua formação, de acordo com a legislação estadual. O segundo deles é o “acordo de operação” (operating agreement), que é o “contrato fundacional entre os membros da entidade”17. Trata-se de documento de natureza contratual. Por esse modelo, os membros da entidade são livres para customizar os termos da LLC. Mais do que isso, a flexibilidade do acordo de operação no RULLCA torna, inclusive, possível para os membros, determinar que todos os aspectos funcionais de uma LLC poderiam ser realizados por uma IA. Essa, pelo menos, é a compreensão de Bayern.
O próprio autor reconhece que, em um primeiro momento, seria preciso um ser humano ou uma pessoa jurídica reconhecida para protocolar os termos fundacionais e desenhar o acordo de operação. Mas, desse momento em diante, estando a LLC juridicamente constituída, o membro fundador poderia se retirar da sociedade e, com a tradução das previsões do acordo operacional para linguagem algorítmica, a IA poderia continuar operando a LLC de forma autônoma.
Bayern sustenta, com base nas disposições da lei uniforme norte-americana sobre a LLC, que a IA poderia ser “encapsulada” pelo dito tipo societário, de acordo com os seguintes procedimentos:
(1) um membro individual cria uma LLC administrada por um único membro, protocolando a papelada necessária junto ao Estado; (2) o indivíduo (...) cria um acordo operacional para governar a conduta da LLC; (3) o acordo operacional especifica que a LLC vai agir conforme determinado pelo sistema autônomo (...) (4) o indivíduo transfere a propriedade de qualquer aparato físico do sistema autônomo para a LLC; (5) o membro único retira-se da LLC, deixando-a sem nenhum membro18.
Bayern conclui, então, que, após essas medidas serem tomadas, “o resultado é, potencialmente, uma LLC perpétua - uma nova pessoa jurídica - que não requer intervenção constante de qualquer pessoa preexistente a fim de manter seu status”19. Para o autor, a previsão do §701 (a)(3) do RULLCA20, que determina que se uma LLC ficar sem membros pelo lapso de 90 dias ela deverá ser extinta, não é um obstáculo a essa proposição. Essa regra, segundo o autor, não é cogente, tratando-se apenas de uma norma dispositiva a ser usada caso o acordo operacional seja silente no que se refere ao período que a LLC pode operar sem membros. Ex positis, Bayern sustenta que nenhum dispositivo positivado no RULLCA é um impeditivo ao uso de uma LLC como um receptáculo para a IA atuar juridicamente.
A vantagem da proposta de Bayern é a de que ela não demanda nenhuma reforma legislativa na perspectiva do direito societário norte-americano. Como é sabido, o processo legislativo envolve muitas etapas que, em regra, são cumpridas em uma marcha lenta e os resultados nem sempre são efetivos. Ademais, o reconhecimento de e-personalidades por uma lei, conforme as diretrizes europeias, necessariamente torna o problema mais complexo do que ele precisa ser. Conferir personalidade jurídica significa não apenas possibilitar a titularidade de propriedade privada, a habilidade de fazer acordos e de ser responsável pelos próprios atos, mas também traz questões éticas, atinentes a direitos fundamentais e considerações de direito público.
Nesse momento incipiente, limitar a discussão sobre a IA ao direito societário, sem conferir, imediatamente, personalidade jurídica a essas entidades, deixa o debate ético, constitucional e de direito público para um momento posterior, oportunidade em que, espera-se, essas questões poderão ser melhor abordadas.
Tal proposição estratégica se espalhou para além das fronteiras do debate jurídico americano. Em 2017, o próprio Shawn Bayern e outros acadêmicos europeus, financiados pela Universidade St. Gallen, na Suíça, desenvolveram um estudo sobre a compatibilidade dessa estratégia para os ordenamentos jurídicos alemão, suíço e britânico. As conclusões desse grupo de trabalho foram publicadas em um artigo intitulado Company Law and Autonomous Systems: A Blueprint for Lawyers, Entrepreneurs, and Regulators, pela Hastings Science and Technology Law Journal21. Conforme se infere do aludido artigo, nenhum dos ordenamentos jurídicos investigados detém uma entidade jurídica com a mesma flexibilidade da LLC americana, ainda que boas perspectivas tenham sido identificadas na sociedade limitada alemã, a GmbH (Gesellschaft mit beschränkter Haftung), na sociedade de responsabilidade limitada britânica, a LLP (Limited Liability Partnership) e, em menor grau, na fundação suíça (Stifung).
Se esse esforço de adaptar a proposta de Bayern a diferentes sistemas jurídicos foi, de certa forma, frutífero, é possível cogitar de um esforço semelhante no que concerne ao direito brasileiro. Seria a proposta de referido autor também compatível com o direito societário no Brasil? A propósito, incentivar o estudo da compatibilidade da proposta de Bayern com outros sistemas jurídicos foi exatamente o objetivo desse seu último trabalho:
(...) o paper lança um modelo sugerindo como as leis existentes podem prover ferramentas regulatórias inesperadas para sistemas autônomos e explorar algumas consequências jurídicas dessa possibilidade. Nós sugerimos que essas considerações possam incentivar outros a considerar as disposições relevantes de suas próprias leis nacionais com a visão de alocar “espaços” jurídicos similares para que sistemas autônomos possam “habitar”22.
Nos tópicos seguintes, a aplicação (ou não) da proposta de Bayern ao direito brasileiro será examinada. Para tanto, a sociedade limitada brasileira, a LTDA, será tomada como a referência de disposição relevante.
4. DA CRIAÇÃO DA SOCIEDADE LIMITADA AO CÓDIGO CIVIL DE 2002: UMA VISÃO CONTRATUALISTA
Como os Estados Unidos, o Brasil tem seu próprio tipo de LLC como entidade societária. Trata-se da chamada “sociedade limitada” (LTDA). Na verdade, a sociedade limitada brasileira detém uma tradição mais antiga e mais bem consolidada em comparação à LLC do direito societário norte-americano. Se, nos EUA, a LLC é um produto do final do século XX, o Brasil, inspirado no direito alemão, incorporou a figura da sociedade limitada há mais de um século, com a edição do Decreto 3.708/1919. O Decreto regulou as chamadas sociedades por quotas de responsabilidade limitada, no Brasil, por mais de oitenta anos, até a entrada em vigor do Código Civil de 2002, no ano de 200323.
O Decreto 3.708 foi uma resposta às necessidades dos pequenos e médios comerciantes (mais flexibilidade, menos burocracia e limitação de responsabilidade para todos os sócios). A principal característica da sociedade limitada brasileira é a sua flexibilidade. Seu ato constitutivo é uma declaração de vontade que permite aos sócios a liberdade de contratar um com o outro quaisquer termos que eles considerem mais adequados aos seus negócios, desde que esses termos não colidam com regramentos cogentes da lei.
Vê-se, aqui, algumas similitudes entre a LLC norte-americana, tal como estabelecida pelo RULLCA, e a tradicional sociedade limitada brasileira. Dito isso, sendo possível, de acordo com Bayern, que o acordo operacional possibilite, a uma LLC norte-americana, “encapsular” a IA, de modo que esta possa, autonomamente, agir no mundo jurídico, poderia o contrato da sociedade limitada brasileira fazer o mesmo?
As similitudes entre a LLC norte-americana e a sociedade limitada brasileira, no que concerne à flexibilidade, parece indicar para uma resposta positiva. Entretanto, uma opinião segura sobre a matéria depende de uma análise mais aprofundada de seu regramento, no âmbito do Código Civil brasileiro e de sua interpretação jurídica.
A propósito, a principal dificuldade no que se refere ao uso da sociedade limitada para encapsular a IA é a admissão, ou não, de uma sociedade sem sócios no direito brasileiro. Com efeito, o Código Civil brasileiro não se refere a uma sociedade sem sócios. O regramento legal da sociedade limitada abarca a interação dos sócios entre si e a relação deles com a sociedade. De acordo com o art. 981 do Código Civil, a sociedade é definida como contrato, um acordo celebrado entre duas ou mais pessoas que, reciprocamente, comprometem-se a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de uma atividade econômica e a repartir os resultados. Portanto, a sociedade limitada, sob as regras do Código Civil, é tradicionalmente encarada sob a perspectiva de um contrato24. Ainda que a associação da sociedade limitada com uma visão contratualista é parti pris no direito societário brasileiro, tendo, inclusive, seu ato constitutivo recebido o nome de “contrato”, desde a edição do Decreto 3.708/1919, a teorização sobre o contratualismo, no direito societário, tal como ele é hoje conhecido no Brasil, foi importada da doutrina italiana de meados do século XX25.
Foi devido, principalmente, à influência de Tullio Ascarelli, que as teorias contratualistas foram disseminadas no Brasil26. Ascarelli27 desenvolveu o conceito de contrato plurilateral, o qual consigna um comportamento cooperativo entre as partes, no intuito de alcançar um objetivo comum28.
A visão contratualista da sociedade limitada brasileira pode ser inferida não apenas da referência ao art. 981, mas também de outras previsões do Código Civil. Por exemplo, o art. 1.052 limita a responsabilidade dos sócios à integralização das quotas subscritas. Contudo, todos os sócios são solidariamente responsáveis pela integralização de todo o capital social. O art. 1.053, de igual modo, determina que as normas da sociedade simples, a qual detém estrutura contratual por excelência, são subsidiariamente aplicáveis à sociedade limitada. Em razão disso, o art. 991 do Código Civil, que disciplina a constituição da sociedade simples aplica-se à sociedade limitada, estabelecendo que “a sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público”.
Os artigos subsequentes ao art. 1.053 do Código Civil versam sobre as quotas sociais, sobre a administração da sociedade, assembleias e reuniões, sobre a dissolução parcial e, finalmente, sobre as causas de sua extinção. No que se refere às causas de dissolução total, vale notar que, até recentemente, a ausência de pluralidade de sócios era considerada uma causa de extinção da sociedade limitada, de acordo com o revogado art. 1.033, inc. IV, do Código Civil. Esse item, expressamente, determinava que: “dissolve-se a sociedade quando ocorrer: (...) IV - a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias”. Contudo, com a introdução da sociedade limitada unipessoal, a ser abordada mais adiante, tal dispositivo deixou de ser aplicável ao tipo societário em comento. Posteriormente, com a promulgação da Lei 14.195/2021, referido inc. do art. 1.033 foi, inclusive, revogado expressamente.
Considerando todas essas previsões, ao menos na criação e na regulação inicial da sociedade limitada, pelo Código Civil, a visão contratualista desse tipo societário foi endossada pelo sistema jurídico brasileiro. Nessa perspectiva, pensar na sociedade limitada sem sócios seria uma contraditio in terminis. No entanto, ao menos em uma circunstância hipotética, essa situação poderia se configurar.
Supondo-se que todos os sócios de uma sociedade limitada venham a falecer (em um acidente aéreo, por exemplo) e que a sociedade seja gerida por um administrador não sócio, os negócios sociais prosseguiriam com dito administrador.
Diante desse contexto, será que seriam válidos os atos praticados pelo dito administrador, após a morte dos sócios? A sociedade deveria ser imediatamente dissolvida?
É certo que, de acordo com o direito sucessório brasileiro, todos os bens e direitos do falecido transmitem-se aos herdeiros de forma imediata (art. 1.784 do Código Civil). Entretanto, ainda que se admita que os direitos patrimoniais relativos às quotas dos sócios da sociedade limitada são imediatamente passados aos herdeiros, o atributo de ser um sócio não é automaticamente transmitido. É necessário, para tanto, uma alteração do contrato social.
Ainda que a situação acima possa ser considerada insólita, ela pode realmente ocorrer. Contudo, não há qualquer norma expressa, no direito brasileiro, que cuide desse problema prático.
A visão contratualista não oferece uma solução satisfatória. Entretanto, o cenário jurídico começou a mudar em 2011, com a introdução da empresa individual de responsabilidade limitada, a EIRELI. Isso significou um passo importante na direção de uma visão institucionalista do direito societário. Diante desse novo cenário, uma sociedade sem sócios é mais palpável.
5. EIRELI E SOCIEDADES UNIPESSOAIS: O CAMINHO PARA UMA VISÃO INSTITUCIONALISTA
A visão institucionalista do direito societário foi desenvolvida em reação ao que Ascarelli denominou de “abordagem tradicional” de uma visão contratualista. As ideias institucionalistas deram seus primeiros frutos na Alemanha, durante o período entre guerras. As preocupações acerca da trágica crise econômica, que acabou por fomentar a catástrofe nazista, deixaram os juristas da época sensíveis à importância das sociedades, não apenas como uma ferramenta de desenvolvimento privado, mas também como um ativo fundamental à estabilidade econômica do país. Nesse sentido, a relevância das sociedades, para muito além de um mero contrato (um acordo entre as partes), foi enfaticamente destacada pela doutrina29.
Os contornos da visão institucionalista foram bem sintetizados e difundidos pelo jurista e sociólogo francês, Maurice Hauriou. Sendo um dos principais nomes do direito público francês, Hauriou escreveu um ensaio sobre as instituições corporativas, que impactou, profundamente, no debate sobre o direito societário. O ensaio em questão influenciou, inclusive, juristas brasileiros, como Fran Martins30. Hauriou definiu três elementos da instituição corporativa:
Já sabemos que são três os elementos de qualquer instituição corporativa: 1) a ideia de uma obra a ser realizada por um grupo social; 2) o poder organizado para a realização dessa ideia; 3) as manifestações comunitárias que se produzem no grupo social em relação à ideia e à sua realização31.
A visão institucionalista, como teorizada pelos juristas alemães e por Hauriou, destacava o papel social da corporação. A importância de uma sociedade, como a sociedade limitada ou a LLC, por exemplo, estende-se para além dos interesses e mesmo da presença de seus sócios. Ela está, precisamente, no papel social que essas entidades desempenham, criando riquezas, gerando empregos, incentivando a inovação, e daí em diante.
No direito brasileiro, Calixto Salomão Filho, desde há muito defende, com amplas repercussões, que a atual compreensão do direito societário no Brasil não deve se restringir a uma visão puramente contratualista. Para o autor, na legislação brasileira, a despeito das primeiras impressões deixadas pelo Código Civil, uma sociedade é mais do que a soma de seus membros.
Salomão Filho propõe, em seu conhecido trabalho, que o direito societário deve abandonar sua visão contratualista originária. Seria injusto reduzir a perspectiva do autor a um institucionalismo estrito, como o desenvolvido na Alemanha, que via a corporação apenas como uma ferramenta social32. Com efeito, o autor refere-se à sua teoria como sendo “organizacional” e, não, propriamente “institucionalista”. Entretanto, em que pese a visão contemporânea de Salomão Filho ser capaz de evitar críticas comuns endereçadas ao institucionalismo clássico, as premissas de sua teoria são muito semelhantes ao institucionalismo. O próprio autor o reconhece, ao afirmar que: “a teoria organizativa, quando bem aplicada, não é um retorno ao individualismo dos contratualistas, mas sim um passo avante em relação ao institucionalismo na defesa do interesse público”33.
Essa observação não é uma crítica ao trabalho do autor. Pelo contrário, a visão institucionalista, na perspectiva contemporânea sustentada por Salomão Filho pode ser uma ferramenta poderosa para resolver questões jurídicas sérias concernentes ao direito societário, tal como o uso da sociedade limitada como um receptáculo jurídico da IA.
No direito brasileiro, o caminho para uma visão institucionalista começou a ser trilhado de forma mais significativa em 2011, com a introdução de uma pessoa jurídica constituída por um único membro: a EIRELI. Embora essa pessoa jurídica não seja definida como uma sociedade, ela se encontra no meio do caminho entre essa estrutura jurídica (a sociedade) e um empresário individual, distanciando-se de uma abordagem contratualista.
A EIRELI foi incorporada no art. 980-A do Código Civil, pela Lei 12.441/2011. Sua formulação doutrinária é profundamente controversa34. Embora não seja uma sociedade, essa entidade jurídica, titularizada por uma única pessoa (natural ou jurídica), é regulada, na omissão do art. 980-A do Código Civil, pelas regras da sociedade limitada. Portanto, a responsabilidade do titular é limitada. Tal limitação de responsabilidade foi reforçada pelo §7º de tal dispositivo, introduzido em 2019, o qual dispõe que “Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada”. Entretanto, diferentemente da sociedade limitada, a EIRELI requer, para sua constituição, um capital social mínimo de 100 (cem) salários-mínimos.
Após a EIRELI, vieram as sociedades unipessoais de advocacia. Essa modalidade de sociedade de advogados foi incorporada, ao Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994), pela Lei 13.247/2016, com o objetivo de autorizar advogados autônomos a criarem, individualmente, uma pessoa jurídica para o exercício de suas atividades. No que tange às sociedades unipessoais de advocacia, a legislação considerou essas entidades como um tipo societário, dando um passo adiante na direção de uma visão institucionalista.
É impossível uma pessoa celebrar um contrato consigo mesma. Todavia, uma única pessoa pode criar uma EIRELI ou mesmo constituir uma sociedade unipessoal de advocacia. Logo, essas entidades se afastam da visão contratualista e a admissão delas pela lei representa uma quebra na perspectiva contratualista do direito societário.
Essa mudança de paradigma foi acelerada com a aceitação da sociedade limitada unipessoal. Tal possibilidade foi incorporada, ao ordenamento jurídico brasileiro, pela Lei 13.874/2019, que introduziu dois parágrafos ao art. 1.052 do Código Civil35. Isso representou a adoção de um elemento da visão institucionalista, dado que é impensável, na perspectiva contratualista, a fundação de uma sociedade com um único sócio.
A sociedade limitada unipessoal tornou-se incompatível com o disposto art. 1.033, inc. IV, do Código Civil, o qual, conforme mencionado acima, considerava a ausência de pluralidade de sócios uma causa de extinção compulsória da sociedade. Portanto, a criação da sociedade limitada unipessoal implicou na ab-rogação tácita de referido artigo no que se refere às sociedades limitadas. Essa ab-rogação tácita tornou-se definitiva, a partir da promulgação da Lei 14.195/2021, a qual expressamente revogou o art. 1.033, inc. IV, do Código Civil. A revogação da única disposição legislativa que determinava a extinção da sociedade em caso de perda da pluralidade de sócios (e o zero é, obviamente, uma situação de ausência de pluralidade) torna possível conceder à IA, ao menos em tese, um “receptáculo legal” para exercer suas atividades, com base no direito brasileiro.
E mais: partindo dessa visão institucionalista da sociedade limitada, é possível concebê-la, ao menos em tese, até mesmo desprovida de sócios, para preservar a função social que ela desempenha. A esse respeito, são válidos os ensinamentos de Calixto Salomão Filho:
Uma vez vista a sociedade como organização e não como uma pluralidade de sócios é bastante evidente como tanto a sociedade unipessoal como a sociedade sem sócio são admissíveis. Aliás, é nessas estruturas que o contrato que dá vida à sociedade adquire seu valor organizativo puro, ou seja, passa a ter como objeto exclusivamente estruturar um feixe de contratos36.
Portanto, de acordo com essa visão institucionalista contemporânea do direito societário, é factível aceitar, em teoria, a existência de uma IA encapsulada por uma sociedade limitada, que continuará exercendo a atividade econômica, a despeito da ausência de sócios.
6. UM DIÁLOGO COM A PROPOSTA DE BAYERN
Embora a existência de sociedades sem sócios seja teoricamente admissível no direito societário brasileiro, algumas dificuldades no que se refere à proposição de Shawn Bayern para “encapsular” a IA, com o emprego da sociedade limitada, persistem. Até o momento, a única hipótese concebida de uma sociedade sem sócios envolve a morte de todos os sócios. Portanto, se a única possibilidade de um sistema autônomo operar sozinho uma sociedade limitada é diante do evento da morte dos sócios (considerando que todos são pessoas naturais), a proposição é praticamente inefetiva, dada a baixa possibilidade de sua ocorrência.
A questão que se coloca é: seria possível aplicar a proposição de Bayern em outras situações, nas quais todos os sócios se retirariam da sociedade? Extraordinariamente, o procedimento para fazê-lo foi proposto há muito tempo, por João Eunápio Borges, um destacado estudioso do direito societário, Professor Titular de Direito Comercial na Universidade Federal de Minas Gerais. Em 1967, o autor destacava a possibilidade de uma sociedade ver-se sem nenhum membro. Veja-se:
(...) embora correndo o risco de escandalizar a muitos, dou convictamente um passo a mais no caminho da institucionalização da sociedade por quotas de responsabilidade limitada; entre nós ela poderá existir ocasionalmente, não apenas com sócio único. Mas sem qualquer sócio... Podendo ela adquirir as próprias quotas, nos têrmos do art. 8º do Decreto n. 3.708, quotas que ela pode conservar em carteira para ulterior cessão ou revenda, não existe juridicamente, nenhuma impossibilidade na ocorrência de tal fenômeno: uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada que, havendo adquirido, com estrita observância de todas as formalidades legais, a totalidade de suas quotas transformou-se em uma sociedade sem sócios37.
Naquela época, João Eunápio Borges já defendia a compreensão institucionalista do direito societário, baseada nas teorias alemãs de meados do século XX. De acordo com o autor, a relevância da continuidade do negócio justificava a manutenção da sociedade, mesmo se ela contasse com um só sócio, ou mesmo se não tivesse sócio algum38.
A hipótese desenhada por João Eunápio Borges sobre como uma sociedade limitada poderia se livrar de todos os seus sócios, pela aquisição de todas as suas quotas, é distinta no direito societário contemporâneo. No passado, o art. 8º do Decreto 3.708/1919, expressamente, autorizava uma sociedade limitada a adquirir suas próprias quotas. Entretanto, o Código Civil de 2002, que revogou, tacitamente, o Decreto 3.708/1919, não trouxe qualquer dispositivo legal semelhante.
A lacuna no Código Civil suscitou algumas dúvidas sobre a possibilidade de a sociedade limitada ser sócia de si mesma, negociando suas próprias quotas. Na IV Jornada de Direito Civil, opinou-se, conforme o Enunciado 391, que “a sociedade limitada pode adquirir suas próprias quotas, observadas as condições estabelecidas na Lei das Sociedades por Ações”39. O Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), por sua vez, inicialmente recusava a ideia de uma sociedade limitada adquirindo suas próprias quotas, conforme a Instrução Normativa 10/201340. Em 2017, entretanto, o DREI mudou de opinião, editando a Instrução Normativa 38/201741. Nessa Instrução, no item 3.2.6.1, admitiu-se que a sociedade limitada adquira suas próprias quotas, desde que o seu contrato social disponha que aquela sociedade limitada será supletivamente regida pelas normas da Sociedade Anônima, dispostas na Lei 6.404/1976. A Instrução Normativa 81/202042 (BRASIL, 2020), ora em vigor, manteve esse entendimento.
Aceitando que a sociedade limitada poderá adquirir suas próprias quotas, torna-se possível adaptar a proposta da Shawn Bayern ao panorama jurídico brasileiro.
Essa possibilidade foi reforçada pela ausência de uma regra demandando a presença de sócios como um requerimento de validade da sociedade após a sua criação. Na verdade, a existência de um ou mais sócios apenas é requisitada para a constituição da sociedade limitada, mas não para a sua manutenção daí em diante.
A doutrina do direito privado brasileiro, influenciada pelo jurista Pontes de Miranda, usualmente, ao aludir aos negócios jurídicos, tais como a constituição de uma sociedade, menciona três planos: existência, validade e eficácia43. Sob essa perspectiva, uma sociedade limitada depende de sócios apenas para ser constituída. Após a sua constituição, tal sociedade pode exercitar suas atividades autonomamente, com eficácia jurídica.
Adicionalmente, o direito societário brasileiro está enfrentando um movimento no sentido de maior liberdade econômica. A Lei 13.874/2019, conhecida como “Lei da Liberdade Econômica”, propõe a redução da intervenção estatal em assuntos privados. Nessa linha, um de seus princípios é o da subsidiariedade e excepcionalidade da intervenção estatal no exercício da atividade econômica (art. 2º, inc. III). A autonomia da vontade das partes desempenha um papel importante. Em negócios empresariais, a autonomia das partes prevalece sobre as normas de direito empresarial, salvo em matérias de ordem pública (art. 3º, inc. VIII)44.
Considerando essa tendência e a ausência de uma norma de ordem pública proibindo a manutenção de uma sociedade sem sócios ou proibindo a sociedade de ser sócia de si mesma, a aplicação da teoria de Bayern no Brasil torna-se mais tangível.
Há apenas uma regra no direito societário brasileiro que parece apresentar um certo obstáculo a um máximo potencial de atuação jurídica da IA. O art. 1.060 do Código Civil determina que o administrador de uma sociedade limitada deve ser uma “pessoa” (sócia ou não). Além disso, o art. 997 do Código, aplicável à sociedade limitada, requer que a sociedade seja administrada por uma “pessoa natural”. Existe certa controvérsia sobre esse tema, especialmente porque, em algumas situações, como na insolvência, a sociedade pode ser administrada por uma pessoa jurídica. A posição atual do DREI, na Instrução Normativa n. 81/2020, é a de que uma sociedade limitada não pode ser administrada por uma pessoa jurídica. Mas, seja como for, o requerimento de que uma pessoa natural seja responsável pela administração da sociedade limitada, ainda que essa pessoa não seja sócia, representa substancial restrição à autonomia da IA em uma sociedade, haja vista que ela não poderá administrá-la.
Por outro lado, esse obstáculo resolve um problema jurídico crucial: a responsabilidade45. Ordinariamente, a responsabilidade pelos atos da IA será imputada à sociedade limitada que a encapsula. Como os seus comandos serão juridicamente desempenhados em nome da sociedade limitada, a sociedade será responsável por quaisquer danos, contratuais ou delituais, que possam ocorrer em diversas condições.
Entretanto, é inegável que, em alguns casos, abusos podem ocorrer e medidas devem ser tomadas para evitar que danos injustos sigam sem compensação. Nesse contexto, a existência de um administrador pessoa física pode resolver o problema de responsabilidade.
Em consonância com o art. 50 do Código Civil, com a redação dada pela Lei 13.874/2019, em caso de abuso da personalidade jurídica, a responsabilidade por atos ilícitos pode se estender ao patrimônio pessoal do administrador.
Então, ainda que a sociedade não tenha nenhum sócio, sendo operada por um sistema autônomo, qualquer dano que outrem pode sofrer em razão de atos ilícitos será passível de compensação, pela sociedade, ordinariamente, ou pelo administrador, em caso de abusos de personalidade jurídica.
Essas previsões (art. 1.060 e art. 50 do Código Civil) podem ser consideradas uma medida de segurança. Trata-se da bem conhecida estratégia do human-in-the-loop (humano no ciclo). Noutras palavras, ainda que se reconheça a autonomia da IA, em algum momento, um ser humano intervém para evitar danos adicionais.
7. CONCLUSÃO
Conforme demonstrado, ante os avanços experimentados, o emprego de inovações tecnológicas dotadas de um ou mais dos atributos da IA tem crescido e coloca novos desafios ao direito.
A fim de dar resposta a esses desafios, especialmente no campo da responsabilidade civil, na Europa, as discussões sobre a IA estão se desenvolvendo no sentido de conferir personalidade jurídica a essas entidades, criando um tipo de e-personalidade. Entretanto, essa estratégia suscita problemas no campo da ética, dos direitos fundamentais e do direito público como um todo.
Nesse contexto, a proposta de Shawn Bayern surge como uma alternativa à solução europeia. O autor sugere o uso da LCC norte-americana para encapsular sistemas autônomos, permitindo que eles atuem juridicamente através dessa entidade jurídica, sem a necessidade de uma reforma legislativa.
Partindo desse prisma, a proposta de Bayern é analisada na perspectiva do direito societário brasileiro, no que se refere à sociedade limitada. As reformas legislativas mais recentes nesse campo, especialmente a criação da sociedade limitada unipessoal, demonstram um movimento no sentido de abandonar a visão contratualista do direito societário em direção a uma perspectiva institucionalista. Nesse novo paradigma, é possível, ao menos em teoria, o diálogo entre a proposta de Bayern e a legislação brasileira, tendo em vista que o elemento central necessário a autorizar que a IA atue juridicamente encapsulada por uma sociedade limitada é a possibilidade de o ordenamento jurídico admitir a operabilidade de uma sociedade sem sócios.
A título de conclusão, a sociedade limitada brasileira oferece a sistemas autônomos a oportunidade de se tornarem, nas palavras de Bayern, “sua própria instrumentalidade” para operar sob a legislação existente. Na verdade, não há qualquer impedimento legal à adoção da tese de Bayern ao direito societário brasileiro. Com efeito, sendo possível que uma sociedade limitada seja criada e, posteriormente, fique sem sócios (falecimento ou aquisição de todas as quotas sociais pela própria sociedade), cria-se o receptáculo jurídico da IA.
Embora a aplicação dessa tese, ao direito brasileiro, seja, por ora, apenas conceitual, projeta-se que, em futuro próximo, estruturas de IA “encapsuladas” por sociedade limitada serão observáveis na realidade jurídica.
Esse ponto de vista, certamente, não é livre de críticas. Em 2018, Lynn LoPucki, Professora da UCLA, publicou um artigo denominado Algorithmic Entities, na Washington University Law Review, chamando atenção para os perigos que a criação de sociedades tocadas por IA poderiam representar para a humanidade, dada a dificuldade de controle governamental, a propensão dessas estruturas para delinquir e a impossibilidade de prevenção por meio de incentivos46.
Essas críticas são válidas e, ainda que indiquem caminhos para adaptações de lege ferenda, elas não refutam a correção jurídica da proposta de Bayern. O pano de fundo ideológico dessas críticas demonstra muito do temor apocalíptico que sempre surge contra todo e qualquer tipo de inovação.
Alguns respingos desse medo já são observados em projetos de lei recentes que estão sendo processados no Senado Federal (projetos n. 5691/2019 e 5051/2019). Esses projetos estabelecem, como princípios da IA, a incorporação gradual, a supervisão humana constante e mesmo a sua natureza subsidiária em relação à vontade humana em processos de tomada de decisão. Essas propostas de lei foram severamente criticadas por Daniel Becker, Isabela Ferrari e Bernardo Araújo47 como exemplos perfeitos de “leis de medo”, identificadas por Cass Sustein como normas editadas apressadamente, a fim de confortar os temores da população.
No fim das contas, a evolução revela-se inevitável e todo esse medo apocalíptico representa nada mais do que uma angústia sem razão de ser. Como dito por Yuval Noah Harari, em Sapiens:
Salvo se alguma catástrofe nuclear ou ecológica intervenha, assim caminha a história, o caminhar do desenvolvimento tecnológico em breve levará à substituição do Homo Sapiens por seres completamente diferentes que possuem não apenas físicos diferentes, mas também mundos cognitivos e emocionais muito diversos48.
Por que renegar a realidade? É “ingênuo imaginar que nós possamos simplesmente apertar o freio e parar os projetos científicos que estão evoluindo o Homo Sapiens para um tipo diferente de ser”49.