Sumário: 1. Introdução. 2. A intergovernabilidade do modelo e as soberanias nacionais do MERCOSUL. 3. Redefinindo a estrutura do MERCOSUL: a alternativa da supranacionalidade. 4. Conclusão. 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Após trinta anos da criação do MERCOSUL, comemorados em 26 de março de 2021, forças endógenas e exógenas interagentes, a enlear negativamente os países-parceiros já de um bom tempo, continuam a toldar os horizontes de uma promissora perspectiva de construção daquilo que poderia e ainda pode ser o segundo mercado comum do planeta.
Como novo ingrediente a contribuir com a quase estagnação do processo integratório, desde 2020 o mundo foi surpreendido com um dos maiores flagelos dos últimos tempos, a COVID 19 (SARS-CoV-2), declarada como pandemia pela OMS em 11 de março daquele ano, e que persiste em sucessivas ondas e novas variantes, mesmo com o surgimento de vacinas emergenciais. A crise sanitária e econômica causada pela pandemia de COVID-19 aprofundou a desigualdade social e o desemprego que já existia na América Latina e no Caribe, passando a exigir uma atuação coordenada dos países da região para a devida e urgente superação2. No que diz respeito ao MERCOSUL, a trágica adversidade pandêmica faz ressurgir com mais força o debate acerca de novos critérios para a continuidade do agrupamento intergovernamental.
No terreno integracionista, se já não bastasse o imbróglio vivenciado entre a União Europeia e o MERCOSUL desde 1999, por conta de um acordo interblocos que, embora assinado em 2019, ainda está longe de ser ratificado3, os Estados Partes da experiência mercosulista estão acendendo agora uma nova crise intrabloco, ante as ameaças do Uruguai de romper com a regra que proíbe os parceiros de firmarem acordos comerciais unilaterais, proferidas pelo presidente Luis Lacalle Pou no último encontro da Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul e Estados Associados, realizada em modo virtual, no dia 08.07.2021. A posição uruguaia, que não é nova e conta com a simpatia de setores governamentais do Brasil e do Paraguai, se efetivada, romperá de vez com a já instável e incompleta união aduaneira vigente no bloco, que tem na exigência de decisões consensuais as definições da Tarifa Externa Comum4.
Malgrado essa questão tenha permanecido indefinida ao longo de 2021, prevê-se que o bloco do cone sul americano manterá de pé os seus objetivos centrais, posto que ele ainda é considerado como forte instrumento de aportes comerciais e sociais entre os parceiros, notadamente em tempos de crise mundial do multilateralismo, na qual a saída estratégica para os países - notadamente aqueles de pouco ou relativo desenvolvimento - consiste em investir no regionalismo e dele fazer degrau para alavancar melhor estatura, desempenho e expansão de oportunidades no cenário internacional. Essa circunstância, aliás, aumenta o peso e a importância daquela pretendida composição comercial com a União Europeia.
Ora, é crível que o MERCOSUL continua sendo um experimento que tem proporcionado plausíveis resultados econômicos e sociais, mas também é inegável que se lhe reconheçam a necessidade - até ao curto prazo - de ajustes e aperfeiçoamentos. Aliás, já passou da hora a efetivação daquilo que seus sócios-fundadores assentaram no art. 47 do Protocolo de Ouro Preto (POP), a saber: “Os Estados Partes convocarão, quando julgarem oportuno, conferência diplomática com o objetivo de revisar a estrutura institucional do Mercosul estabelecida pelo presente Protocolo, assim como as atribuições específicas de cada um de seus órgãos.” 5
Diante de tais circunstâncias, têm-se que as grandes preocupações atuais a respeito do MERCOSUL cingem-se a rever e admitir uma estrutura institucional mais adequada para a sua continuidade nos tempos presentes e quais os eventuais obstáculos à sua implementação, o que envolve maturidade decisória e mesmo ousadia relativas a aplicar alterações na sua composição orgânica, bem assim no conjunto dos instrumentos e princípios jurídicos até agora admitidos no modelo - mormente acerca do sistema de resolução de conflitos -, contrapondo-se aqui a estratégia cautelosa do institucionalismo governamental (marcado por passos lentos e excessivos controles/intervenções estatais), diante da proposta, a cujo respeito insisto há mais de duas décadas, do institucionalismo supranacional, com ênfase no papel soberano de instâncias e agentes independentes da burocracia estatólatra e seus interesses localizados.
Assim posto, tendo em vista essa realidade, ora contextualizada, cabe perquirir: 1. A opção regional, com forte influência brasileira, que vem sendo mantida desde 1995 - 6, por um processo integracionista sem partilhamento de soberanias, com órgãos deliberativos de extremado caráter intergovernamental e uma sistemática de solução de controvérsias de cunho extrajudicial, por si só será capaz de evitar um conjecturado fracasso do agrupamento e/ou gestar uma necessária ordem comunitária no interior do bloco mercosulista?; 2. O projetado mercado comum intrabloco, consoante previsto no art. 1º do Tratado de Assunção, poderá ser alcançado sem a adoção de órgãos decisórios e tampouco de uma instância jurisdicional dotados do critério da supranacionalidade, e, mesmo, sem garantir-se a primazia de um Direito Comunitário sobre os respectivos ordenamentos jurídicos nacionais, tal qual se verificou no espaço comunitário europeu (Comunidade Europeia)?; e, 3. As ordens jurídicas internas dos países-membros do MERCOSUL, particularmente do Brasil, representam um fator impeditivo da modelagem de uma integração comunitária na experiência há trinta anos vivenciada no cone sul americano?
Buscar responder os questionamentos retro provocados, decorrentes daquelas atuais e já apontadas circunstâncias em curso no empreendimento mercosulista, tinge o pano de fundo deste texto, inclusive contemplando certas implicações que não se apartam do debate desse relevante tema. Metodologicamente, recorreu-se, tanto quanto possível, à uma pesquisa qualitativa, dedutiva e comparativa, relacionando decisões intergovernamentais ou diplomas internacionais recentes com a legislação mercosulista consagrada, além do emprego interdisciplinar quanto à análise do momento crítico pelo qual passa o MERCOSUL, bem assim da indispensável comparação entre o modelo assunceno e o tipo de integração de cunho comunitário da União Europeia, para se concluir pela indispensabilidade de valer-se do instituto da supranacionalidade em toda a estrutura orgânica do bloco latino-americano, mormente no âmago do mecanismo de solução de conflitos - com a proposta de criação de um tribunal judicial supranacional.
Neste ponto, dá-se ênfase à ideia de que tal medida não deva se limitar a uma revisão simplista, conservadora e paliativa, do processo em andamento. A alteração, de há muito reivindicada, para melhor funcionalidade do modelo e respeitabilidade mútua de suas regras, não deve se reduzir à mera perfumaria jurídico-administrativa e se deter em modesta visão reformista - que é o que parece emergir, aliás, do conteúdo da Dec. CMC n. 01/21, firmada em Montevidéu, na data de 27.07.2021, com relação à estrutura oficial do MERCOSUL (reestruturação do ISM, do IPPDH e de órgãos com orçamento próprio).
Aliás, para que um esperado e estimulado avanço se torne realidade, em mantidos os compromissos emanados do Tratado de Assunção (26.03.1991) e o ideário fixado pelo art. 4º, § único, da Constituição Brasileira, o bloco mercosulista 7 terá de dar solução cabal e adequada, inclusive, à efetivação de livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos (capital e trabalho), em conjunto com a coordenação de políticas macroeconômicas e harmonização legislativa, etapas que deveriam ter sido atingidas hipoteticamente ao término do processo de convergência da tarifa externa comum (TEC), inicialmente imaginada para meados da primeira década do século XXI. Uma estimativa que, pelas circunstâncias sub-regionais, pode estar sendo cada vez mais relegada ao exercício de futurologia, caso não sejam empalmadas como oportunas e indispensáveis ao bem-estar das populações de seus países-membros, e, por estas, reivindicadas junto aos respectivos governos.
Observe-se, aliás, que consoante ao que dispõe o Tratado de Assunção (TA), sobre o qual se edifica o MERCOSUL, a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai, founding fathers desse empreendimento, que já envolve a Bolívia, o Chile, o Peru, a Colômbia, o Equador, a Guiana e o Suriname (enquanto associados)8, deverão concretizar, quando do término do processo de convergência da TEC, a etapa idealisticamente esperada para o avanço do modelo, que vem a ser o “mercado comum”. Essa é uma meta mais ousada, até agora só alcançada pela União Europeia, e que subentende, muito mais que o aperfeiçoamento instrumental da integração econômica, fortes ingredientes políticos e sociais no âmbito do processo9. Do que se depreende que a dimensão comunitária do bloco ainda está a ser feita, o que vem inclusive exigindo dos estudiosos do Direito a definição dos remédios mais eficazes nessa direção.
Neste ponto, cabe indagar, dentre outros aspectos, se é possível a implementação de um mercado comum (previsão última para o MERCOSUL) sem a existência de um órgão jurisdicional dotado de supranacionalidade, com o primado de um direito supranacional, a exemplo do espaço integrado europeu; ou mesmo se a manutenção de ordenamentos jurídicos nacionais centrados na visão tradicionalista de uma soberania “indivisível” ou “absoluta” pode ser fator impeditivo à continuidade do bloco mercosulista e sua conformação em uma verdadeira “comunidade latino-americana de nações” (art. 4º - § 1º, da Constituição Brasileira - CF 88).
Buscar responder, ainda que sucintamente, a tais questões é o escopo maior deste ensaio, cujo tratamento, por certo, não escapa de certas características polêmicas que permeiam a matéria.
2. A INTERGOVERNABILIDADE DO MODELO E AS SOBERANIAS NACIONAIS DO MERCOSUL
Já avançando duas décadas no novo milênio, o MERCOSUL encontra-se numa encruzilhada existencial: ou opta pelo salto de qualidade que seu tratado constitutivo anuncia e que os novos tempos estão a exigir, adotando instituições comunitárias de tipo supranacional, ou teima em continuar atrelado às fórmulas obsoletas da intergovernabilidade e da soberania intangível - que se mostraram insuficientes e decepcionantes nos casos da ALALC e da ALADI10. Em outras palavras, o desafio do MERCOSUL, em nome de sua evolução política e projeção econômica num mundo universalizado, refere-se à transição para uma ordem jurídica comunitária, que a maior parte dos estudiosos do tema entende deva inspirar-se, principalmente, no protótipo integracionista europeu e até mesmo na versão inicial do grupo andino11.
Observe-se, porém, que não obstante uma certa aceitação, em tese, da construção comunitária por parte de vários setores da elite dirigente dos países-membros - como a cessão de soberania em certas áreas, a delegação ou transferência de determinados poderes, a limitação voluntária da vontade soberana dos Estados, a convergência e coordenação das políticas macroeconômicas, a harmonização do direito -, na prática muito pouco se avançou em termos de internacionalização efetiva das economias ou de uma ativa e reverenciada interdependência entre os parceiros da sub-região. Na verdade, não só não temos um ordenamento jurídico comunitário no MERCOSUL, como sequer estamos pertos de contarmos ao menos com a harmonização legislativa compromissada pelos Estados signatários do Tratado de Assunção.
Isso nos remete, aqui, a uma breve ilustração. É justamente a natureza intergovernamental, caracterizadora do processo mercosulista, o ingrediente que permite se afirmar que as normas dele emergidas não constituem propriamente uma jurisdição supranacional. Para que assim fosse, tal qual ocorre na União Europeia, seria necessário contar com órgãos autônomos (distintos da representação dos Estados-Partes) e com as atribuições de competência apropriadas ao papel que se convencionou dotá-los, além da eficácia direta das normas no direito interno.
Ao que tudo indica, em que pese o retorno econômico já proporcionado e a concordância geral de que a soberania nacional deve ser amenizada ou diminuída à medida que se implanta o mercado comum, o entrave básico a uma vivência comunitária neste pedaço do globo consiste na visão estrábica, reacionária até, dos países do bloco quanto ao tema da soberania, e, consequentemente (mais para o Brasil e Uruguai), das incompatibilidades presentes nos textos constitucionais em face dos princípios e mecanismos comunitários - e seus naturais efeitos na formação da normativa mercosulista. Aliás, somente na medida em que os direitos nacionais - especialmente os estampados nas respectivas Constituições - possibilitarem a integração plena, acima do cooperativismo tão ao agrado dos “mercocratas”, é que nascerá a Comunidade que alavancará o desenvolvimento dos povos envolvidos.
Outra é, porém, a realidade, pois as Constituições dos quatro países fundadores do bloco, mais particularmente as do Brasil e do Uruguai, representam fator de engessamento do iter integracionista. Ambiguamente, algumas delas fazem referência expressa à soberania estatal e, ao mesmo tempo, à participação do Estado em processos de cooperação ou de integração. Todas consagram o controle constitucional das leis e encerram uma intricada modalidade de manifestação da vontade estatal para com as obrigações internacionais, com o acréscimo de que duas delas (as do Brasil e do Uruguai) não fazem qualquer menção ao mecanismo da supranacionalidade ou ao monismo 12 internacional.
Nesse particular, assinale-se, alguns autores consideram acertada a opção momentânea dos parceiros por estruturas do tipo intergovernamental (sob a regra da unanimidade nas decisões), sem necessidade por ora de se recorrer à fórmula europeia (mesmo que mitigada), considerando que enquanto não houver ainda a livre circulação de pessoas (físicas e jurídicas) e de serviços, e tampouco a implantação definitiva da TEC, os demais objetivos podem ser alcançados através da coordenação de medidas administrativas e da harmonização setorizada das legislações individuais.
Mas se esquecem, entretanto, de que em uma organização dotada de instituições exclusivamente intergovernamentais, como é o caso do MERCOSUL, o processo de produção do direito equipara-se ao Direito Internacional clássico, com as conhecidas dificuldades operacionais quando do confronto de suas normas com as regras da ordem interna, conforme veremos adiante. Além disso, a mera integração econômica, objetivo maior do bloco, exige a harmonização progressiva das legislações nacionais, com vistas a um direito específico intrabloco e com interpretação uniforme nas matérias afetas aos propósitos maiores - e, acima de tudo, uma jurisdição supranacional. E, convenhamos, o passo primário, que é a harmonização legislativa, tem merecido muito discurso e pouca prática no processo integrador de origem platina13.
Acerca desse tema observe-se que a Comunidade Europeia encontrou a melhor fórmula para efetivar a harmonização do conjunto legislativo dos Estados-membros. O art. 189 do Tratado constitutivo (1957) criou um instrumento normativo para obrigar aqueles países (atualmente são 2714) a atingir tal resultado comum: a diretiva15, um ato legislativo que gera uma obrigação de resultado, pois o Estado destinatário deve executar a conduta normativa, no prazo estipulado, de modo a obter a compatibilização legal.
Por seu turno, o art. 1º do diploma criador do experimento mercosulista (o Tratado de Assunção), menciona o compromisso das Partes em harmonizar suas legislações nas áreas pertinentes, mas não criou nenhum mecanismo para tanto. Logo, eventuais decisões do órgão superior do MERCOSUL (o Conselho do Mercado Comum - CMC) somente podem ser aplicadas nos respectivos países quando cada um deles as tiver aprovado e introduzido (recepcionado) em seu ordenamento jurídico. E, observando-se mais especificamente o caso brasileiro, verifica-se que o país mantém-se às voltas com o dualismo - mais para monismo moderado ou mitigado 16 - em matéria de eficácia das normas internacionais, inclusive quanto aos tratados, situação que leva o Brasil a adotar a norma externa numa hierarquia deveras comprometedora - em se pensando na integração e, mesmo, no respeito às convenções internacionais -, ao colocá-las em situação de igualdade com a norma interna ordinária, a qual, inclusive, pode ser derrogada por legislação local mais recente17.
Por outro lado, o Protocolo de Ouro Preto (POP - 17.12.1994), enquanto marco do sistema organizacional do fenômeno MERCOSUL, impõe por meio do seu art. 38 18 uma obrigação de recepção, pois os Estados Partes assumem a responsabilidade pela adoção das medidas necessárias para assegurar, em seus respectivos territórios, o cumprimento das normas emanadas dos órgãos mercosulistas que tenham capacidade decisória (CMC, GMC e CCM). Há, ainda, todo um ritual burocrático à cargo da Secretaria Administrativa do MERCOSUL, que, após aguardar a informação de que os quatro países executaram as medidas necessárias para a validade interna das normas integracionistas, deve comunicar os fatos a cada um dos governos-partes, condição sine qua non - decorrido ainda um prazo de 30 dias - para que elas passem a vigorar em toda a sub-região (POP - art. 40).
Contudo, no caso de um Estado descumprir a obrigação da internalização é bastante provável que tais normas permaneçam inaplicáveis ou tenham a aplicação postergada, o que implicará em morosidade e retardamento na formação do mercado comum. E esse tipo de atitude não ensejará qualquer sanção ao Estado violador, em que pese o descumprimento desse tipo de obrigação (da incorporação ao direito interno) consistir em fato ilícito internacional. Aliás, as controvérsias estatais nesse campo se enquadram num processo complexo, que exige a regra do consenso entre os parceiros, inclusive do infrator. Se não houver solução satisfatória com tal expediente, resta o recurso à arbitragem, o que, de resto, os Estados pouco têm utilizado - e no caso do MERCOSUL com mais razão, porque a inobservância do laudo pode ocasionar apenas a adoção de medidas compensatórias temporárias, de eficácia pouco provável19.
Como se sabe, esse método de produção jurídica mercosulista - decisões do Conselho, resoluções do Grupo e diretrizes da Comissão de Comércio - gera normas de efeito obrigatório para os Estados Partes, mas não propicia a criação de atos com efeito propriamente normativo. Os atos dos órgãos decisórios do MERCOSUL estão sujeitos ao processo de recepção por parte dos seus países-membros para que se tornem preceitos legais integrantes dos respectivos ordenamentos jurídicos, o que é regulado pelo direito interno de cada país e pelo POP. Como exceção à regra, prescinde-se da recepção na hipótese em que a norma de que se cogita já esteja disciplinada na jurisdição local. Em síntese, o art. 42 do POP 20 estabelece: a) uma simples obrigação de meios, posto que a obrigatoriedade das normas reside na sua implementação, que será imediata apenas se preexistirem os instrumentos e competências adequados no ordenamento de cada Estado; b) um processo de produção de normas jurídicas sem autonomia, pois as regras criadas pelos órgãos decisórios, inegavelmente internacionais, precisam ser convertidas em direito interno (com a exceção citada) pelos mecanismos estabelecidos nas Constituições dos Estados-membros, como qualquer tratado.
Extremamente pertinente, neste ponto, o correto posicionamento de Pedro Dallari: “Na estrutura atual do MERCOSUL, as deliberações emanadas de suas instâncias não se constituem, por si só, em normas jurídicas em sentido estrito, mas sim, em determinações políticas que vinculam os Estados-Partes à promoção de adequações nos respectivos ordenamentos jurídicos internos”21.
Tal circunstância, decorrente da opção dos Estados signatários do Tratado de Assunção (TA), de não transferir nenhuma parcela de suas competências legislativas para um ou mais órgãos do mercado comum em formação, seguramente tolhe (em conteúdo e prazo) a harmonização das legislações do bloco. O que nos leva a concordar com Werter Faria quando assevera:
“A ausência de qualquer grau de supranacionalidade para a constituição do MERCOSUL impede que a harmonização das legislações se processe mediante a adoção de normas completas, como as dos regulamentos das instituições da Comunidade Europeia, que se incorporam e aplicam nos ordenamentos nacionais independentemente de recepção, ou de normas que apenas necessitam de desenvolvimento pelos Estados-membros destinatários, como as diretivas. A natureza das normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL não coincide com a das produzidas pelo Conselho e pela Comissão da Comunidade Europeia, mas equivale à dos acordos internacionais”22.
Acontece que, prisioneiros da concepção dualista e não tendo captado - ou tendo propositalmente evitado - o alcance profundo e estruturalmente novo do processo de integração, os Estados Partes acreditaram resolver esses e outros problemas jurídicos por meio de soluções clássicas do Direito Internacional. Especificamente com relação às normas suscitadas pela entidade mercosulista, o método consagrado no POP possui inúmeras desvantagens, ante a ausência de princípios como da aplicabilidade direta e da primazia das normas supranacionais, principalmente em caso de conflito com a ordem interna, posto que as regras externas não prevalecem sobre o direito pátrio, podendo ser abolidas ou alteradas e, inclusive, receber interpretações diferentes pelos juízes e tribunais dos Estados associados.
Há que se ter em mente que tais soluções clássicas, dentre as quais o procedimento imposto pelo art. 42 do POP, se assentam no expediente inadequado da retenção da soberania dogmática a todo custo, quando no direito da integração se faz necessário admitir a possibilidade do desmembramento parcial da soberania. Isso, por extensão, significa dotar o MERCOSUL de uma estrutura institucional compatível com uma verdadeira integração, repassando-se certas competências e funções a autoridades ou órgãos supranacionais, um deles sendo o Tribunal de Justiça de caráter permanente23, bem como conformando-se os direitos internos (inclusive pela ação desse mesmo Tribunal) às finalidades últimas do modelo - o que importa, igualmente, em reverenciar-se um direito próprio do bloco econômico, o direito comunitário.
Um Tribunal de Justiça supranacional, ainda, nos moldes do Tribunal de Luxemburgo (TJCE), além de solucionar as divergências intrabloco, enquanto órgão de controle e legalidade dos atos coletivos, permite que os próprios particulares - sejam pessoas físicas ou jurídicas - possam dispor diretamente de meios jurídicos para invocar a tutela jurisdicional desse tribunal, ou mesmo das suas respectivas jurisdições nacionais. Essa edificação jurídica, aliás, extremamente intrínseca do direito comunitário e do apregoado conceito da supranacionalidade, tem o condão de prestigiar a sociedade civil, ao reconhecer os direitos do cidadão como sujeito ativo e passivo das normas comunitárias, o que possibilita a sua participação efetiva no processo de integração.
Essa apregoada alteração institucional, que grande parte dos doutrinadores entende deveria ter sido iniciada há um bom tempo, está a exigir dos parceiros assuncenos (fundadores ou associados) uma nova visão de soberania, reformas constitucionais pertinentes e o reaparelhamento funcional do modelo.
Via de regra, os acólitos da veterana concepção “estatólatra”24 do direito, especialmente se brasileiros, costumam justificar a “transitoriedade” do processo mercosulista apontando obstáculos de ordem constitucional, ao mesmo tempo em que exorcizam - qual sacrílega - a ideia da primazia do Direito Comunitário sobre a jurisdição interna. Eles preferem manter intocada a soberania estatal ao mesmo tempo em que afirmam querer a integração, uma tese tão falaciosa quanto a antiga cantilena de “tempo de maturação”, que apregoa não caber o aprofundamento da estrutura do MERCOSUL enquanto ele não se tornar um mercado comum.
Se realmente almejamos avanços qualitativos no processo de integração sub-regional então está na hora de modificarmos o modelo. O que implica, necessariamente, no reconhecimento de que a noção de soberania, de longa data, é oposta à clássica visão da indivisibilidade e inalienabilidade do poder soberano. Transita-se hoje, em tempos de globalização econômica alargada e de regionalismo aberto (e com este concordam os “mercocratas”), para a fronteira da soberania supranacional, síntese da delegação de outras soberanias. Nesse particular, valemo-nos dos ensinamentos de Celso de Albuquerque Mello quando leciona:
“Vivemos em um período de transição em que a soberania tem um conteúdo meramente formal. (...) Tem-se considerado que o Estado dotado de soberania continua a existir e o que ele delega aos organismos internacionais são apenas algumas competências. Enfim, a soberania não é mais indivisível”25.
Os novos tempos têm consolidado a visão internacionalista de que o império da lei limita a soberania, submetendo o Estado, em seu papel, à ação restritiva resultante das suas obrigações para com a sociedade internacional. Embora teoricamente ilimitada, a soberania, sendo um conceito jurídico, reconhece os limites inerentes a qualquer princípio legal. Do que se depreende que uma nova disposição normativa pode, assim, determinar novos limites, quer sejam eles ampliados ou diminuídos. Essa concepção de soberania, sim, enquanto conceito jurídico, sujeito a reformulações, e não mais um dogma político intocável, é que deve encimar os encaminhamentos tendentes a consolidar e aperfeiçoar uma integração econômica
Por meio dessas noções os países da Comunidade Europeia conformaram o que se chamou de soberania compartilhada ou coletiva. Naquele modelo, os Estados-membros limitaram seus próprios direitos soberanos em certas áreas e os transferiram para instituições comunitárias, sobre as quais não detêm controle direto. Considera-se que cada Estado-membro cede parte de sua soberania e liberdade de ação em áreas específicas sobre as quais não pode mais dispor individualmente, investindo tais direitos nos órgãos supranacionais, os quais têm competência para legislar ou gerenciar, e tão-somente, naquelas matérias vinculadas aos objetivos da Comunidade.
Desta forma, inexiste, como presumem os “mercocratas” e os “nacionalistas-reacionários”, uma supressão da soberania do Estado, mas existe sim, uma “limitação” consentida, posto que disposta através de tratados, permanecendo intocada a subordinação direta de cada país ao Direito Internacional26. E mais, no entendimento de muitos doutrinadores, o que se transfere não é a titularidade dos poderes, mas sim o exercício (temporário) de poderes determinados dos Estados Partes para a Comunidade27.
Fica patente, pois, que a integração não atenta contra a essência do conceito de soberania, mas apenas contra a sua versão primeva, a serviço de um nacionalismo xenófobo e belígero, onde se corre o risco de erigir o Estado como um fim em si mesmo, quando deve-se constituir em instrumento para assegurar o interesse nacional e o bem-comum dos cidadãos. Desde que empregada como meio, e não como fim, “pode-se conceber sem restrições intelectuais a mutação do conceito de soberania do Estado e a adaptação desta às necessidades de espaço supranacional, economicamente homogêneo e juridicamente integrado”, sinaliza Paulo Borba Casella28.
Essa fórmula da restrição do exercício da soberania estatal e sua cessão a órgãos supraestatais, que dispõem de poderes superiores e de um direito próprio para levar avante os objetivos da integração, configurando o exaltado princípio da supranacionalidade vigente na União Europeia - e perseguido nos seus primórdios pelo Pacto Andino -, não poderiam ser efetivadas a não ser que reconhecidas pelos Estados parceiros da empreitada. É essa a condição básica em que se apoia o direito comunitário.
3. REDEFININDO A ESTRUTURA DO MERCOSUL: A ALTERNATIVA DA SUPRANACIONALIDADE
A adoção do paradigma da supranacionalidade no MERCOSUL, por implicar em privilegiar-se a norma externa em detrimento da “soberania nacional”, não é uma tarefa fácil, inclusive porque o tema está em muito atrelado à vontade política dos governos dos Estados Partes, estampada na opção pela intergovernabilidade do processo, da qual os parceiros até agora não abriram mão.
Estamos diante de uma situação de estrangulamento do regime, pois os mecanismos de que dispomos, inegável reflexo de nossa ordem jurídica interna, seguem sendo mecanismos de um processo de cooperação, inadequados e prejudiciais ao alcance do patamar anunciado pelo TA. Neste sentido, basta ver a impossibilidade de se chegar à implantação de uma verdadeira união aduaneira (ou simplesmente à adoção total da Tarifa Externa Comum) sem meios mais ágeis e autônomos de tomada de decisões e sem instrumentos para assegurar o cumprimento eficaz das obrigações dos Estados.
Tal dificuldade é amplamente constatável no histórico do processo, sendo despiciendo detalhar-se, aqui, certas manifestações presidenciais assumidas na recente Cúpula dos Chefes de Estado (do Mercosul e Associados), de 08.07.2021, procurando reduzir a imprescindível modernização do MERCOSUL às retrógradas medidas de “revisão da tarifa externa comum” e da “flexibilidade para negociações comerciais extrazona”, o que implica em rompimento unilateral com a regra do consenso. Posições contestadas, aliás, pelo presidente argentino Alberto Ángel Fernández, que defendeu a cláusula de consenso nas negociações comerciais como sendo a “coluna vertebral” do bloco. Mesmo a poderosa Confederação Nacional da Indústria (CNI), que tem mostrado divergências com algumas regras previstas para a organização - por exemplo, a convergência de políticas macroeconômicas -, emitiu nota29 exigindo mais diálogo entre os sócios fundadores e destacando a importância da unidade interna, para concluir que a integração precisa de melhorias, “mas continua sendo a que mais proporciona resultados econômicos e sociais para o Brasil”30.
Até agora, a organização mantém inalterada sua essência e suas ferramentas de ação, alheia aos relatórios, por exemplo, da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), que ainda em 1995, analisando a evolução dos processos de integração regional, já alertava para anomalias no plano institucional do MERCOSUL, para concluir “pela necessidade de adotar mecanismos mais adequados de solução de controvérsias, assim como de harmonização de políticas econômicas”31.
Se a Argentina e o Paraguai já estão aptos, constitucionalmente, ao upgrade que os adeptos da integração esperam do modelo, o mesmo não se pode dizer do Brasil e do Uruguai, cujas Cartas Fundamentais não permitem que os órgãos da jurisdição nacional se submetam a um tribunal supranacional. A esse respeito, o professor LUIZ OLAVO BAPTISTA, um dos mentores da atual sistemática de superação de conflitos no bloco de origem platina, adverte para os obstáculos jurídicos nessa direção, ao menos do ponto de vista da Constituição Brasileira, concluindo que: “A criação do Tribunal do MERCOSUL implicará a modificação das Constituições dos quatro países. Será preciso que eles admitam a existência de um órgão judicial supranacional, que predomine sobre a estrutura dos respectivos Poderes Judiciários”32.
A correção de rumo nesse particular, em se cotejando o modelo europeu com a experiência americana, talvez resida na ideia de acrescentar-se ao Capítulo III da nossa Carta Magna, referente ao Poder Judiciário (arts. 92 a 126), a sujeição de suas decisões à jurisdição comunitária em matérias pertinentes à integração mercosulista. Uma outra fórmula, que sói apresentar-se ao debate, consistiria na aprovação de norma constitucional explícita autorizando a cessão de competências ao organismo comunitário, acompanhado de permissivo para a incorporação imediata e direta, na ordem nacional, das normas internacionais ali gestadas. E, a partir daí, por arremate, caberia introduzir-se na Carta mais um artigo, determinando subordinação a tal comando autorizatório dos dispositivos que venham a afrontar ou impedir a sua exata aplicação.
Afora a questão interna brasileira, e mesmo a dos demais parceiros, há que se reconhecer, também como ponto crucial, que se faz imperioso reaparelhar o MERCOSUL para que, dispondo de instrumental adequado, permita a consecução, pelo menos, da sua última finalidade contratada - a efetivação do mercado comum.
Ora, se essa tarefa se impõe, e se despontam tantas dificuldades para mudanças progressistas a curto prazo, caberia fosse inserida desde já na agenda oficial da organização mercosulista a análise técnica dos problemas básicos que precisariam ser equacionados para a aceitação de instituições e posturas de cunho supranacional a que esteja submetida a jurisdição brasileira.
Com a convicção de que o caminho seguro para o fortalecimento e respeitabilidade do MERCOSUL só se pavimentará com a formalização de um Tribunal de Justiça ao qual se reconheça supranacionalidade, não se faz despiciendo refletir acerca das seguintes questões33:
a) No que diz respeito à correlação de uma jurisdição supranacional com o direito pátrio vale ressaltar o exemplo da União Europeia, que teve a sabedoria de estabelecer inequívoca “hierarquia” entre o Tribunal das Comunidades e as instâncias judiciais dos Estados-membros, em cujo arcabouço a Corte de Luxemburgo está impedida de decidir sobre a validade ou interpretação do direito interno e os Tribunais nacionais não podem se manifestar em assuntos de Direito Comunitário.
b) No que tange à inter-relação de vários órgãos comunitários - incluído aí o Tribunal supranacional -, tem-se que a estrutura institucional do MERCOSUL não contempla qualquer instância jurídica que colabore com os demais órgãos na elaboração de normas comuns ao bloco, capaz de verificar se tais decisões se harmonizam com os tratados constitutivos (tal qual na UE) e, igualmente, fazer o controle da legalidade de todas as regras emanadas de tais instituições - papel que apenas um Tribunal, dotado de autonomia e superioridade técnica, tem o condão de realizar.
c) Ante a opção jurisprudencial de sobrepor leis ordinárias aos tratados (mesmo já ratificados), registre-se que ao se estruturar uma instância judicial supranacional no MERCOSUL, evidentemente, as jurisdições nacionais deverão sofrer limitações no seu poder de declarar a inconstitucionalidade da norma comunitária.
Naturalmente, essas e outras questões só poderão ser consideradas, no bojo do Tribunal de Justiça do MERCOSUL e do próprio consórcio integracionista, se ousarmos algumas mudanças internas no Brasil. E a reforma da Constituição, efetivamente, é o caminho mais rápido para concretarmos a integração pelo critério da supranacionalidade, mas não é o único. Vale recordar que em alguns países europeus, em vez de se remendar a Carta Maior, a judicatura simplesmente adaptou a sua interpretação da ordem jurídica à realidade comunitária. O professor AMI BARAV34, da Universidade de Paris I, assim resume as diferentes formas jurídicas com que os países europeus forjaram a integração comunitária:
“Membership in a supranational Community entails constitutional adaptation in various Member States. In some States, transfer of sovereign rights to an international organization was allowed by the Constitution. In others, a special clause had to be introduced to this effect. Several national constitutions have always acknowledged the supremacy of international law. Others required a constitutional amendmend, and in some cases supremacy of Community law has simply been recognised the national courts”. (sem grifo no original)35
Em falta com o processo de integração, porque desatualizados com relação ao Direito Internacional Público, desinteressados com a política externa e perplexos em relação a temas básicos de Direito Internacional em suas relações com a soberania e o direito interno: esse é o perfil que se atribui a considerável parcela dos setores que mais podem influenciar o futuro do MERCOSUL, desde o Legislativo até mesmo a comunidade jurídica! Nessa conjuntura, têm-se encarado o MERCOSUL como algo cujo êxito se está conseguindo sem nenhuma codificação. E costumamos jogar à classe política a exclusiva responsabilidade pelos déficits sociais do país ou pelos grilhões que impedem a evolução do modelo assunceno, quando muitas vezes se pode atribuir parcela de culpa aos operadores jurídicos. Assim pensa o Ministro REZEK quando pontua que “na cabeça, por exemplo, dos juízes brasileiros, até agora nada mudou”36, para ilustrar que a via judicial é alternativa das mais relevantes para a construção do mercado comum que se almeja.
Em seu escorreito raciocínio, REZEK demonstra que a frenética capacidade legiferante dos parlamentares, em países como o Brasil, torna a lei “absolutamente incontrolável na sua quantidade, a ordem jurídica brasileira tem um tamanho que nenhum jurista brasileiro sabe exatamente avaliar”. Tão grande e, ao mesmo tempo, tão desorganizada, essa ordem jurídica é um cenário fecundo de ambiguidades. E ao interpretá-la, o juiz repassa muito da sua própria ideologia, de suas convicções e de sua noção de mundo. E isto, continua ele, “é ainda mais verdadeiro no que se refere às normas de direito internacional. Por isso, a questão de saber se evoluiremos mais depressa ou menos depressa na promoção da autêntica integração comunitária, depende de saber como se construirá, a curto prazo, a maioria ideológica dos principais Tribunais brasileiros a respeito da integração”37.
E isso é verdadeiro, muito embora os descuidos, as omissões e os entraves legislativos, porque existe na Constituição pátria uma norma, lá no início, inalterada pela revisão de 199438, mas que diz, com todas as letras, que o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural” com os demais países latino-americanos. Ora, sendo possível creditar seriedade ao constituinte de 1988, na medida em que se queira tomar com retidão e objetividade o discurso inicial da Carta brasileira, encontraremos ali, para tranquilizar qualquer consciência de magistrado, a norma que manda favorecer a integração econômica - que é uma expressão com um profundo e bem acabado sentido técnico. A questão é saber até que ponto os juízes estão conferindo ou ainda conferirão importância e credibilidade ao parágrafo único do art. 4º na hora de confrontá-lo com os vazios ou deficiências constitucionais em matéria de progresso do Direito Internacional e do processo integrador que já vai para a quarta década. E, também, em que medida e com que empenho os demais operadores do direito atuarão nesse rumo e contribuirão à urdidura do direito comunitário?!
Na realidade, a estrutura orgânica presente no MERCOSUL, mais do que intergovernamental, é deficitária e débil, tanto pela precariedade técnica de seus parâmetros normativos, quanto pela absoluta exclusividade de participação dos Poderes Executivos nacionais nos órgãos decisórios, além de manter procedimento refratário à criação de um Tribunal Judicial permanente39. Para ambas as situações bastaria lançar-se mão - com ousadia e seriedade de propósito - da possibilidade de revisão prevista no art. 44 do Protocolo de Ouro Preto (1994)40, a começar pela confecção de um calendário de médio prazo para a atribuição de níveis de supranacionalidade, seja no âmbito executivo ou jurisdicional.
Tenha-se em mente a importância da entronização de medidas jurídicas precisas e órgão jurisdicional adequado41, tanto para alargar os horizontes da integração e dar efetiva proteção e interpretação uniforme ao direito, quanto para conter o grau de discricionariedade exercido pelo Poder Executivo, principalmente porque sabemos que o MERCOSUL tem sido alimentado ou contido pela vontade política dos seus governos, calcado naturalmente em objetivos econômicos e ao sabor das discrepâncias governamentais. E isso pressupõe, num contexto latino-americano marcado pela instabilidade e insegurança políticas, ampliado pelas turbulências e restrições econômicas, um enorme risco de eventual retrocesso - quiçá, mesmo, o abandono do processo integracionista!
4. CONCLUSÃO
Apesar dos pesares, contrariando ceticismos, incongruências internas e mesmo adversidades externas, o MERCOSUL pode estar enfraquecido, talvez cambaleante, mas ainda respira e está de pé. Passados trinta anos de seu lançamento, o MERCOSUL, seja como realidade regional ou mesmo como ideia estratégica, mantêm sua força, sua vigência e uma boa base de sustentação. Apresenta, porém, notórias deficiências, seja como processo e respectiva estrutura jurídico-funcional, seja como imagem, suscitando dúvidas em termos de poder de barganha, atração de investidores para todos os sócios e até de identidade cultural. Inegável, por outro lado, o saldo acumulado no campo da consolidação democrática e na recusa de novas aventuras autocráticas, na obtenção de expressivos resultados econômicos em vários períodos, assim como na operacionalização de uma autóctone diplomacia integracionista.
Irrefutável, também, a capacidade positiva do bloco em incrementar o comércio sub-regional, de perceber a realidade intrabloco e as mudanças do contexto internacional, de projetar-se como nunca no cenário latino-americano - o que se depreende da adesão e/ou da aproximação buscada por vários países do continente americano e mesmo fora dele, por vislumbrarem importância e oportunidades no MERCOSUL42. Razões essas que, por si só, já justificam a existência da agremiação integracionista e a credenciam a melhores tempos.
Por fim, há que se registrar que a configuração institucional definitiva do MERCOSUL, para além do período de convergência da tarifa externa comum (TEC)43, terá de decidir entre os caminhos da cooperação ou da integração - diferentes quanto a resultado final e resposta aos imperativos da globalização que se espraia - e, consequentemente, entre intergovernabilidade e supranacionalidade.
O sucesso ou esvaziamento do modelo passa por esses conceitos, leitura que mais se aclara diante dos vários desentendimentos entre Argentina e Brasil, e/ou entre estes e os dois parceiros menores44, clamando pela necessidade de redefinirem e harmonizarem seus projetos nacionais, desenvolverem mecanismos e regras padronizadoras do comportamento dos atores governamentais e privados, bem como de agregarem à atual estrutura intergovernamental do MERCOSUL alguns ingredientes e princípios análogos aos que ajudaram a fazer a diferença no contexto integrado europeu - dentre eles, a instalação de um tribunal fixo e independente dos governos, enquanto órgão jurisdicional competente para o controle da legalidade dos atos e da interpretação das normas regionais, visando assegurar a coerência do sistema jurídico comum (ou comunitário) e dar segurança social ao bloco mercosulista.
Afinal, se o mercado comum for de fato a opção qualitativa do bloco MERCOSUL, torna-se indispensável a figura do tribunal supranacional para estruturá-lo juridicamente e impor limites aos vislumbres e/ou delírios políticos governamentais. Espera-se que sobre a realidade circunstancial intrabloco, após o desaceleramento do processo mercosulista nos últimos tempos, soprem ventos mais lúcidos, capazes de estreitar melhor os laços políticos interestatais, impor estrita observância às normas integracionistas entre as Partes, cimentar a solidariedade e a participação de suas populações, além de inspirar medidas mais avançadas com relação ao quadro institucional desse consórcio assunceno - onde não deve faltar a formatação de um direito comunitário, nele inserida a ampla garantia dos direitos humanos e sociais, sem o que a integração não atenderá ao seu verdadeiro e elevado sentido!