Sumário: 1. Introdução. 2. Responsabilidade política e responsabilidade jurídica. 3. Sustentabilidade como bem jurídico tutelado pelas normas de responsabilidade em face da gestão econômico-financeira. 4. Responsabilidade orçamentário-financeira: de manifestação da responsabilidade política à responsabilidade jurídica. 5. Responsabilidade política pela má gestão econômico-financeira. 6. Crime de responsabilidade pela má gestão econômico-financeira. 7. Responsabilidade pela gestão econômico-financeira na Islândia. 8. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Já há algumas décadas não há como uma sociedade politicamente organizada garantir recursos públicos necessários para realização adequada de seus fins, sem uma boa gestão econômico-financeira. E mais recentemente, tem-se constatado um cenário de crise econômico-financeira em muitos países, onde estão sendo implementadas soluções drásticas para conter o déficit das contas públicas, em especial a elevação de tributos e o corte significativo de despesas e de investimentos, que, na maioria das vezes, afetam direitos sociais já conquistados pelos cidadãos.
Por isso mesmo é relevante e atual a necessidade de se investigar como se efetiva a responsabilidade dos governantes pela gestão econômico-financeira, e precisar o arsenal jurídico que prescreve a Constituição para a apuração das condutas dos governantes que contribuíram ou deram causa à situação de penúria econômico-financeira.
Pretende-se, neste trabalho, responder questões que se colocam nesta área, notadamente acerca da tessitura jurídica da responsabilidade dos governantes pela gestão econômico-financeira, se é uma nova categoria jurídico-constitucional (responsabilidade econômico-financeira), se é uma manifestação da responsabilidade política ou se é espécie da responsabilidade jurídica (penal, cível etc.) e em que se diferencia da responsabilidade (clássica) orçamentária.
Será crucial examinar se a ampla liberdade que os governantes têm na tomada de medidas econômico-financeiras implica uma irresponsabilidade integral por desastre na gestão econômico-financeira, ou se as normas constitucionais preveem parâmetros suficientemente densos para a responsabilização do governante em situação de crise.
Propõe-se examinar esta temática utilizando metodologia lógico-dedutiva, essencialmente em face da Constituição do Brasil e de Portugal, com pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, sem olvidarmos em trazer à tona experiências, doutrinas e teorias de outros ordenamentos sobre a responsabilidade dos governantes pela gestão econômico-financeira, como a italiana sobre a responsabilidade política, a francesa sobre a responsabilidade financeira e a islandesa sobre o processo de responsabilização do ex-Primeiro-Ministro Geir Haarde.
RESPONSABILIDADE POLÍTICA E RESPONSABILIDADE JURÍDICA
A responsabilidade dos governantes foi inicialmente concretizada por uma modalidade criminal (individual), passando para uma responsabilidade política (coletiva), e, quando no século XX entrou em crise a responsabilidade política, houve um retorno à responsabilidade criminal (individual) dos governantes2.
A responsabilidade política do governo perante o Parlamento surgiu no direito inglês, durante o século XVIII, quando, na ausência da moção de censura, os mecanismos de responsabilidade criminal eram constantemente utilizados para fins políticos, levando o Primeiro-Ministro a pedir demissão com receio de ser criminalmente responsabilizado, o que provocava a queda de todo o gabinete. Essa responsabilidade do governo, em regime de base parlamentarista, perante o Parlamento, é o que constitui a essência da concepção clássica de responsabilidade política (ou responsabilidade institucional parlamentar).
A responsabilidade política nasceu, assim, imbricada com a responsabilidade jurídica. Discutia-se, nessa época, se ela era um gênero autônomo de responsabilidade ou uma espécie da responsabilidade jurídica ao lado das demais espécies, como a penal e a civil.
As diversas teses acerca da diferenciação entre responsabilidade política e responsabilidade jurídica podem ser, basicamente, agrupadas em dois grupos: confucionistas e diferenciadoras.
As teses confusionistas são as de Benjamin Constant, de Maurice Hauriou e de Carré de Malberg.
Benjamin Constant3, precursor teórico da responsabilidade dos ministros, distingue os atos privados dos realizados no exercício das funções, subdividindo-se estes últimos em atos ilegais e atos legais mal praticados (seja por negligência, seja por erro). Os atos ilegais estão submetidos à responsabilidade jurídico-comum, ao passo que os atos legais mal praticados, embora tenham natureza político-ministerial, devem estar submetidos à responsabilização penal. Pode-se imaginar, à primeira vista, que essa caracterização dos atos legais mal praticados é contraditória, mas é justificada pelo fato de as Constituições francesas até então (1791, 1793 e 1814) não terem previsto a responsabilidade política do governo perante o Parlamento4. O propósito de Benjamin Constant foi introduzir um controle sobre a atividade governamental, que, no caso, foi do tipo jurídico-penal.
Já Maurice Hauriou5 considera que a responsabilidade por crimes praticados pelos governantes no exercício das funções, embora siga um processo criminal, trata na essência de uma responsabilidade política. Sustenta que os crimes cometidos no exercício das funções têm natureza política, razão pela qual a dicotomia entre responsabilidade político-parlamentar e responsabilidade penal (jurídica) não se justifica.
Para Carré de Malberg6, a responsabilidade política e responsabilidade penal confundem-se apenas parcialmente, especificamente no ponto em que ele considera que a responsabilidade penal tem objetivo também político. Mas, por outro lado, distingue o tipo de responsabilidade de acordo com o órgão que irá efetuar o julgamento (se o órgão for político, a responsabilidade é política; se o órgão for tribunal, a responsabilidade é criminal).
Em síntese, as teses confusionistas propunham que alguns atos de cunho político fossem apurados sob o manto da responsabilidade jurídica (penal), o que é explicado pelo fato de não haver à época reconhecimento constitucional da responsabilidade política. Pode-se considerar, em última instância, que era um aproveitamento político da persecução criminal, ao pressionar os ministros a se demitirem7.
As teses diferenciadoras, por sua vez, ressaltam a natureza circunstancial da confusão entre as duas responsabilidades, motivada apenas pela fragilidade do sistema repressivo, o que daria ensejo à politização da justiça penal. Sustentam, então, nítida distinção entre uma responsabilidade e outra. Para essas correntes, os atos legais, porém mal executados (nos termos da qualificação de Benjamin Constant) estariam no âmbito da responsabilidade política.
Rescigno8, por exemplo, sustenta que a responsabilidade política é ditada inteiramente por razões políticas e que se estende até onde se alcança o poder político. E embora possa se enquadrar no conceito geral de responsabilidade, afirma que a responsabilidade política é distinta da responsabilidade jurídica. Benedita Urbano9 considera que o objeto e o tipo de juízo que se faz na apuração da responsabilidade política são diferenciados daqueles da responsabilidade jurídica, o que justifica a distinção. No que tange ao objeto, apenas na responsabilidade política o sujeito passivo pode ser responsabilizado por meras intenções ou por fatos alheios. No que concerne ao tipo de juízo, a reconhecida liberdade de ação política imporia uma margem também de liberdade de juízo da responsabilidade política. Benedita Urbano10 conclui que não se pode concluir que a responsabilidade política é gênero ou espécie da responsabilidade jurídica, mas que a responsabilidade política não é responsabilidade totalmente extrajurídica.
Gomes Canotilho e Vital Moreira11 assentam que não há uma dicotomia entre responsabilidade jurídica e responsabilidade política, acrescentando que a responsabilidade política é também uma responsabilidade juridicamente conformada, seja porque opera por instituições jurídicas com competência para o controle, seja por suas formas exteriorizadas dos atos sancionatórios (censura, demissão, veto etc.). Gomes Canotilho12, em obra individual, sustenta que a responsabilidade política é um “mecanismo jurídico-constitucional que incide sobre o desvalor jurídico e político-constitucional dos actos dos titulares do poder político”.
Em síntese, a responsabilidade política do governo perante o Parlamento não é inteiramente política, nem inteiramente jurídica. Obviamente a predominância é de elementos políticos. Ou seja, é eminentemente política (o juízo exercido é político), mas possui caracteres jurídicos (por exemplo, os procedimentos para sua efetivação). A prevalência do regime (político ou jurídico) não deixa de ser um critério válido e útil para formatação constitucional de cada uma destas responsabilidades e suas interconexões.
O surgimento da responsabilidade política ocorre, no regime parlamentarista inglês, com o uso da responsabilização criminal de ministros para fins políticos, daí porque está atrelada à demissão do governo.
Embora haja na doutrina algumas dissidências, bem resgatadas por Ségur13, como, por exemplo, considerar como “perda de poder”, os autores convergem para caracterizar a responsabilidade política como mecanismos para efetivação de sanção de “demissão do governante”, após perda da confiança dos membros do Parlamento.
Ségur14 enumera três caracteres para configuração de autêntica responsabilidade política: 1) a iniciativa do procedimento não deve ser voluntária, e deve ser atribuída a uma instância exterior ao agente; 2) uma clara manifestação de vontade; 3) uma sanção revocatória.
Além dessa responsabilidade política na concepção clássica (responsabilidade política institucional parlamentar), Rescigno15 sustenta a existência de uma responsabilidade política difusa, a qual, nas palavras do autor, é uma responsabilidade “fugaz e fluída”, e consubstancia no poder genérico de crítica à atuação do governo, notadamente através da opinião pública.
Ainda segundo Rescigno16, uma leitura mais atenta à realidade política sugere uma outra espécie de responsabilidade política, que seria a relativa à pressão exercida pelos meios de comunicação. Rescigno17 comenta que passou a ser importante este terceiro tipo a partir da constatação atual de que um político adquire ou perde poder e influência não pelos movimentos de opinião pública, mas pelo o que é publicado em jornais, rádio, televisão, pois esses movimentos ou são coletados e amplificados pela mídia ou permanecem impotentes. Cuida-se da responsabilidade política institucional livre. Modona18 inclui nessa responsabilidade as críticas efetuadas por personalidades políticas de expressão, associadas a uma propagação destas críticas pela mídia com intuito deliberado de deslegitimar o governo.
Como salienta Benedita Urbano19, a responsabilidade política tem características peculiares. Não se baseia necessariamente em condutas ilícitas, mas “no caráter errôneo ou no total fracasso da decisão política”. A responsabilidade política pauta-se por critérios de oportunidade e não de legalidade. A responsabilidade política tem o objetivo não de reparar eventual dano, mas sim de promover a remoção de um governante de suas funções.
Importante registrar que a responsabilidade política não dispõe apenas de instrumentos efetivos de destituição do cargo (instrumentos fortes). Conforme recorda Modona20, a responsabilidade política não é caracterizada por um sistema sancionatório preciso. Há, assim, vários outros instrumentos (fracos), inclusive na França, que apuram, institucionalmente, a responsabilidade do governante, sem que seja aplicada sanção de remoção, como é o caso das convocações dos Ministros para esclarecimentos no Parlamento. A propósito, Gomes Canotilho21 entende que as duas espécies de convocação do Primeiro-Ministro pelo Presidente da República (art. 201/1-c da Constituição da República Portuguesa - CRP), bem como a demissão voluntária do Primeiro-Ministro por desacordo com o Presidente da República traduzem-se em efetivação de responsabilidade política.
Importante registrar ainda outra modalidade de responsabilidade política, consistente no processo eleitoral no final dos mandatos, especialmente quando o governante se candidata à reeleição22.
Em síntese, a responsabilidade política possui as seguintes modalidades:1) responsabilidade política institucional-formal (em sentido estrito), onde se impõe a remoção do cargo através dos procedimentos previstos na Constituição; 2) responsabilidade política difusa, correspondendo às pressões exercidas pela opinião popular; 3) responsabilidade política institucional-livre (ou em sentido amplo), correspondendo à pressão que a mídia exerce a partir da crítica da opinião pública; 4) responsabilidade eleitoral apurada no final do mandato do governante.
É evidente que a moção de censura não se aplica no regime presidencialista, mas resta saber se as demais modalidades de responsabilidade política são compatíveis com referido regime.
A responsabilidade política, embora tenha surgido com o parlamentarismo, pode ser aplicada em outros sistemas de governos23, e também não se restringe a titulares de mandatos políticos.
O resultado da responsabilização política do governante, no regime presidencialista, não será tão efetivo e preventivo quanto no regime de base parlamentarista, onde pode ocorrer a remoção do governo. Contudo, há mecanismos no regime presidencialista que concretizam, de certa forma, a responsabilidade política.
Na esteira da corrente italiana da responsabilidade política, não há dúvida de que no regime presidencialista a responsabilidade política institucional livre e a responsabilidade política difusa têm grande expressão. Mas não somente estas duas.
Vislumbra-se ainda responsabilidade política efetivada pelos cidadãos no período eleitoral, ao não eleger determinado governante que se apresenta para uma reeleição. Este tipo de responsabilidade tem, inclusive, mais característica de uma responsabilidade política institucional formal que responsabilidade política institucional livre24.
Durante o mandato, realmente, os instrumentos que o regime presidencialista dispõe para responsabilidade política não têm muita eficácia. Pode-se dizer até que nos países que adotam a separação rígida de poderes, como nos Estados Unidos da América, não há mecanismo de responsabilização política institucional durante o cumprimento do mandato.
No Brasil, há alguns mecanismos que efetivam a responsabilidade política durante o mandado. Voltam-se não diretamente ao Presidente da República, mas a seus principais auxiliares. Contudo, é evidente que a fiscalização do Poder Legislativo sobre as atividades dos Ministros configura também responsabilidade do próprio Presidente da República, por ser o gestor maior e primeiro das políticas públicas desenvolvidas em cada ministério.
O primeiro deles é a convocação dos Ministros por qualquer Comissão da Câmara dos Deputados ou do Senado para prestar pessoalmente informações sobre assunto previamente determinado (art. 50, caput, da Constituição brasileira - CF/1988). Com a Emenda Constitucional de Revisão n. 2/1994, estendeu-se essa prerrogativa do Poder Legislativo para os titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República. Isto com finalidade de abranger alguns cargos com envergadura de ministro, mas que não tinham esta denominação.
O segundo instrumento são pedidos escritos de informações a Ministros de Estado encaminhados pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (§2º do art. 50).
Estes dois instrumentos concretizam a responsabilidade política dos Ministros, bem como do próprio Chefe do Executivo, como chefe supremo da Administração Pública. Não infirma esta conclusão o fato de a inobservância desta convocação e do pedido de informação gerar “crime de responsabilidade”, conforme expressamente previsto no art. 50 da CF/1988, pois a apuração de “crime de responsabilidade”, disciplinada pela Lei 1.079/50, conhecido como processo de impeachment, tem natureza política25.
SUSTENTABILIDADE COMO BEM JURÍDICO TUTELADO PELAS NORMAS DE RESPONSABILIDADE EM FACE DA GESTÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA
Adentrando na caracterização da responsabilidade pela gestão-financeira, para depois enquadrá-la em alguma dimensão já existente ou, se for o caso, verificar se seria vertente nova, faz-se necessário, em primeiro lugar, avaliar que bem jurídico é tutelado pelas normas de responsabilidade pela gestão econômica financeira.
As normas de responsabilidade pela gestão econômico-financeira objetivam tutelar o bem jurídico da sustentabilidade, na sua terceira dimensão (sustentabilidade econômica).
Cabe rememorar, com Wolfgang Kahl26, o princípio da sustentabilidade possui três pilares: a sustentabilidade ambiental, a sustentabilidade econômica e a sustentabilidade social. A ambiental foi, sem dúvida, a dimensão da sustentabilidade que recebeu, de início, as maiores preocupações da doutrina jurídica e acolhimento legislativo e constitucional; ao passo que as duas outras dimensões (a econômica e a social) foram sendo desenvolvidas em termos de dogmática jurídico-constitucional paralelamente e com forte conexão com a doutrina ambiental27.
Com as crises econômico-financeiras que se sucederam a partir da década de 1990, a dimensão econômica da sustentabilidade ganhou maior corpo. De fato, o impacto da gestão econômico-financeira na execução das tarefas do Estado está cada vez mais acentuado, a ponto de se discutir se a eficácia da gestão econômico-financeira conforma alguns direitos sociais que dependem de recursos para sua implementação. Com efeito, o bom desempenho da economia em geral do país depende também do êxito das políticas públicas do Estado nos mais diversos setores da sociedade, não apenas da performance dos atores privados. Muitas economias naufragaram por conta do fracasso de um governo, seja na má fiscalização sobre atividades econômicas exercidas por particulares, seja na arrecadação e aplicação de seus próprios recursos (públicos). Começou-se, então, a dar destaque, dentro da sustentabilidade econômica, a uma sustentabilidade fiscal, tendo em vista que a saúde financeiro-fiscal do Estado passou a ser nota fundamental para se alcançar desenvolvimento econômico e social28.
O princípio da sustentabilidade é transversal, multidimensional e multipilar, como realçado por João Loureiro29. Não se concebe institucionalmente um Estado sem que estejam conciliadas as três dimensões da sustentabilidade. É princípio que possibilita a operacionalidade de vários princípios constitucionais. Por tudo isso, o princípio da sustentabilidade não é apenas elemento estrutural típico do Estado Constitucional, como vislumbrou Peter Häberle30, mas autêntico princípio estruturante do Estado Democrático de Direito, conforme desenvolveu Luciana Campos31. A sustentabilidade econômico-financeira, como bem jurídico-constitucional, deve ser protegida pelos sistemas jurídicos especializados, como, por exemplo, o sistema político, o sistema criminal e o sistema de controle financeiro.
Assentada a premissa de que a sustentabilidade é princípio estruturante do Estado de Direito, surge a questão de saber se uma crise na sustentabilidade econômico-financeira está regulada na Constituição como estado de necessidade e, tanto em caso positivo quanto negativo, quais os parâmetros para balizar e controlar os atos praticados sob a égide desta crise. Nesse ponto, Bezerra32 se debruçou sobre o tema e concluiu que, sem adoção expressa de um estado de exceção econômica, a solução cabível no direito brasileiro é o controle a posteriori, através da implementação dos mecanismos de responsabilidade, seja político, seja jurídico. Assim, necessário examinarmos quais modalidades de responsabilidade podem ser acionadas em caso de uma má gestão econômico-financeira.
RESPONSABILIDADE ORÇAMENTÁRIO-FINANCEIRA: DE MANIFESTAÇÃO DA RESPONSABILIDADE POLÍTICA À RESPONSABILIDADE JURÍDICA
A responsabilidade orçamentária, segundo Rueda33, é a responsabilidade do governo perante o Parlamento “pelo fato do Orçamento do Estado”, é uma manifestação do princípio da responsabilidade política, que permite ao representante do povo, dentro do regime democrático, verificar se a confiança investida no governo está ou não está bem depositada.
A responsabilidade orçamentária começou sendo apurada exclusivamente pelo Parlamento, evoluindo para criação de um órgão técnico (Tribunal de Contas ou Auditoria Geral) para auxiliar o Parlamento nessa tarefa. Com a implementação deste órgão técnico, seja em estatuto constitucional, seja legal, foi-lhe atribuída, além da tarefa de auxiliar o Parlamento na avaliação das contas do governo, a competência de decidir sobre o dispêndio de recursos públicos pelos gestores públicos, sem necessidade, neste último caso, de submissão de sua decisão ao Parlamento.
A Lei Constitucional francesa 724/2008, que versou sobre a modernização das instituições da 5ª República, criou o art. 47-2 da Constituição de 1958, prescrevendo que a Corte de Contas (como é denominado o Tribunal de Contas) auxiliará o Parlamento quanto ao controle da ação do governo e auxiliará o Parlamento e o governo no controle da execução das leis de finanças e da aplicação das leis de financiamentos da seguridade social e auxiliará também na avaliação das políticas públicas. Note-se que, conforme art. 24 da Constituição francesa, o Parlamento controla a ação do governo e avalia as políticas públicas. Com a referida Lei Constitucional, a Corte de Contas francesa passou a ter assento constitucional, antes constava apenas nas leis de organização judiciária e leis financeiras. De qualquer forma, restou ao Código de Jurisdição Financeira a missão de densificar os parâmetros constitucionais desta tarefa de auxiliar o Parlamento no controle da ação do governo. Assim, de acordo com o Código de Jurisdição Financeira (art. L132-1), a Corte de Contas emite uma declaração geral de conformidade entre a conta geral do Estado, a cargo do Primeiro-Ministro, e as contas individuais dos contadores públicos, a qual é anexada ao projeto de lei de règlement financier. Segundo o art. L131-1 e L131-2 do Código de Jurisdição Financeira, a Corte de Contas julga as contas dos contadores públicos (aqueles funcionários cuja atribuição é a elaboração de contas) e dos funcionários declarados pela Corte de Contas como contadores de fato (aqueles que exercem de fato a gestão da contabilidade).
No Brasil, conforme a CF/1988, ao Tribunal de Contas da União (TCU) compete apreciar, através de parecer prévio, as contas anuais prestadas pelo Presidente da República, e julgar as contas dos gestores públicos. Em relação às contas anuais (é dizer a conta geral) da União, o TCU envia seu parecer prévio ao Congresso Nacional, o qual tem a competência constitucional de julgar as contas do Presidente da República (art. 49, IX, CF/1988). No âmbito estadual, ocorre o mesmo procedimento, tendo os Tribunais de Contas a missão de auxiliar o Legislativo Estadual no controle externo e o julgamento das contas do Chefe do Executivo (arts. 25 e 31, CF/1988). O julgamento das contas dos demais gestores públicos tem natureza administrativa, visto que o Tribunal de Contas no Brasil, ao contrário de Portugal e França, não é órgão do sistema judicial, e, portanto, fica ressalvada a possibilidade de revisão do julgamento do TCU pela Justiça Federal.
Em Portugal, conforme art. 214 da CRP/1976, o Tribunal de Contas é órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas, competindo-lhe dar parecer sobre a Conta Geral do Estado, incluindo a da segurança social, dar parecer sobre as contas das Regiões Autônomas dos Açores e da Madeira; e efetivar a responsabilidade por infrações financeiras. Convém assinalar que Portugal já experimentou modelos em que o Tribunal de Contas estava vinculado ao governo ou ao Parlamento. Desde a atual Constituição portuguesa (CRP/1976), o Tribunal de Contas é órgão de soberania do sistema judicial. Quanto ao parecer sobre a Conta Geral do Estado e das Regiões Autônomas, “o Tribunal de Contas deverá emitir um juízo sobre a legalidade e correcção financeira das operações examinadas e uma pronúncia sobre a economia, eficiência e eficácia da gestão e fiabilidade dos respectivos sistemas de controlo interno”34. A Assembleia da República, que faz a fiscalização política da execução orçamentária, não está vinculada ao parecer do Tribunal de Contas35. Importa registrar que Guilherme Martins36 sustenta que o Tribunal de Contas não tem o monopólio do julgamento da responsabilidade financeira, na execução e no controle das contas, porque há vários atos com efeitos financeiros que não estão submetidos a sua jurisdição, mas sim ao Parlamento, ao Governo e à Jurisdição Administrativa, chegando a propor a concentração da responsabilidade financeira nesse tribunal.
Da análise da configuração constitucional da responsabilidade financeira nestes três países resulta nítido que há duas responsabilidades, bem distintas, no âmbito do controle das contas públicas: 1) uma responsabilidade orçamentário-financeira do governo (no parlamentarismo) e do chefe do Executivo (presidencialismo) perante o Parlamento (que é auxiliado pelo Tribunal de Contas, que emite um parecer) em razão da execução da Conta Geral do Estado; 2) uma responsabilidade orçamentário-financeira de todos gestores públicos que realizam despesas públicas, que corresponde a uma responsabilidade jurídica, a cargo do Tribunal de Contas, e que não é levado à apreciação do Parlamento.
Nem sempre estas duas dimensões são captadas. Rueda37, por exemplo, afirma que é muito difícil definir a responsabilidade orçamentária, a qual está na interface das esferas política e administrativa, é dizer situa-se entre a responsabilidade política e a responsabilidade administrativa. A propósito, Guilherme Martins38 afirma que responsabilidade financeira é uma figura sui generis, resultante da conjugação dos controles administrativos, político e jurisdicional.
Na realidade, uma vez visualizadas estas duas responsabilidades, o enquadramento de uma e de outra fica simples. A responsabilidade do governo (no parlamentarismo) e do chefe do Executivo (presidencialismo) perante o Parlamento (que é auxiliado pelo Tribunal de Contas, que emite um parecer técnico) em razão da execução da Conta Geral do Estado é uma autêntica responsabilidade política institucional39. A responsabilidade orçamentário-financeira de todos gestores públicos que realizam despesas públicas, a cargo do Tribunal de Contas, é uma responsabilidade jurídica. Assim, percebe-se o porquê de Rueda40 considerar a responsabilidade apurada no controle interno e no externo (por meio do Tribunal de Contas) uma responsabilidade administrativa, não uma responsabilidade orçamentária: o autor apenas designa como responsabilidade orçamentária a responsabilidade perante o Parlamento, ou seja, a responsabilidade política.
A responsabilidade política nesta dimensão orçamentário-financeira (julgamento da conta geral do Estado) não evoluiu muito desde sua criação. Já a responsabilidade jurídica, neste componente orçamentário-financeiro, tem evoluído para um controle que vai muito além da mera legalidade.
A responsabilidade orçamentário-financeira, em sua origem e até bem pouco tempo (por volta da década de 1980), ficava restrita à avaliação dos aspectos de legalidade e de formalidade do ato (visão clássica), não adentrava em nenhum aspecto meritório, como a economicidade. Os instrumentos utilizados para apurar a responsabilidade orçamentária eram a auditoria contábil-financeira (saber da exatidão das contas) e a auditoria de conformidade (que inclui a análise da conformidade com a legislação e procedimentos).
A propósito, em Portugal, na redação original da CRP, antes das revisões constitucionais, discutiu-se se o Tribunal de Contas, como apontado por Canotilho e Moreira41 “poderia apreciar também a racionalidade financeira ou justificação econômica (“economicidade”) das despesas, tendo o TC considerado que a fiscalização da legalidade não comportava este entendimento (AcTC n. 461/87)”.
A responsabilidade orçamentário-financeira (clássica) ficava atrelada ao momento do julgamento das contas, ou seja, somente no julgamento das contas que se apurava a responsabilidade financeira42, não havia procedimentos diversos do procedimento de julgamento de contas, não havia procedimento específico para apuração de responsabilidade por infração às normas financeiras.
Atualmente, a responsabilidade orçamentária tem um papel de garante do respeito aos princípios de boa administração financeira. Daí por que a doutrina e o legislador têm preferido a expressão responsabilidade financeira, sinalizando que esta espécie de responsabilidade vai além de meros controles contábil-orçamentários.
Rueda43 menciona que a complexidade crescente dos mecanismos de gestão financeira do Estado diminuiu a relevância das formas tradicionais da responsabilidade (política), em prol de um aumento dos controles administrativos, que se fundam numa abordagem gerencial e de noção de regulação. Mas isto ocorre em grande medida por causa dos próprios parlamentares, que poderiam, mas não o fazem, utilizar os resultados do controle financeira a cargo do órgão auxiliar (controle administrativo para Rueda) como fundamento para a efetivação da responsabilidade política na vertente orçamentário-financeira do governo ou do chefe do Executivo.
A responsabilidade jurídico-orçamentário-financeira evoluiu sob dois aspectos essenciais: 1) criação de mecanismos de apuração de responsabilidade financeira desatrelados dos procedimentos de julgamento de contas; 2) ampliação do âmbito do controle, passando a abranger agentes outros além dos responsáveis por lei pela contabilidade e ordenação de despesas, bem como alguns aspectos que tangenciam com o mérito do ato, tocados que são por princípios constitucionais (economicidade, eficiência, sustentabilidade).
A separação da responsabilidade política (na dimensão orçamentário-financeira) da responsabilidade jurídica (na dimensão orçamentário-financeira) ocasionou, num primeiro momento, a impossibilidade de apuração da responsabilidade dos governantes no âmbito da responsabilidade jurídica, a cargo do órgão auxiliar do Parlamento, porque eles já responderiam no controle político. Os Tribunais de Contas restringiam-se a julgar as contas dos profissionais públicos de contabilidade (aqueles funcionários cuja atribuição é a elaboração de contas) e dos ordenadores de despesas. Como os governantes delegavam (e delegam) estas atribuições a seus auxiliares e subordinados, pouco respondiam quanto a este aspecto. A partir da constatação de que os auxiliares e contadores, muitas vezes, executam atos por ordem dos governantes, passou-se a apurar a responsabilidade dos agentes públicos os políticos que exerciam de fato a gestão da contabilidade. Em Portugal, convém relembrar que, em razão de a Conta Geral do Estado não ser objeto de julgamento pelo Tribunal de Contas, os membros do governo estavam sujeitos, no âmbito do Tribunal de Contas, apenas na hipótese de “responsabilidade por intromissão excessiva na gestão de entidades públicas com violação de regras da superintendência ou da tutela e, assim, serem (por virtude de tal ‘assunção de gestão), responsabilizados como ‘agentes de facto’”44. Na França, o art. L131-2 do Código de Jurisdição Financeira refere ao julgamento, pela Corte de Contas, dos funcionários declarados como contadores de fato (aqueles que exercem de fato a gestão da contabilidade). No Brasil, desde a promulgação da Constituição brasileira de 1988, qualquer pessoa que utilize, arrecade, guarde, gerencie, administre ou que seja responsável por dinheiros, bens ou valores públicos está sujeito à fiscalização financeira do Tribunal de Contas (arts. 70 e 71).
Quanto ao objeto, percebe-se que ele tem sido ampliado, passando a abranger agentes outros além dos responsáveis por lei pela contabilidade e ordenação de despesas, bem como alguns aspectos que tangenciam o mérito do ato, tocados que são por princípios constitucionais (economicidade, eficiência, sustentabilidade). A evolução da responsabilidade financeira se encaixa perfeitamente na escala de responsabilidade preconizada por Stewart45: 1) responsabilidade por ofensa ao princípio da legalidade; 2) responsabilidade pelos procedimentos administrativos implementados; 3) responsabilidade pela performance da ação mesma; 4) responsabilidade pelo programa; 5) responsabilidade pela política.
No direito europeu, o regulamento financeiro de 2001 estabelece vários princípios para o orçamento europeu, entre os quais o princípio da boa gestão financeira, que impõe que a gestão financeira seja executada com economia, eficiência e eficácia46. Segundo Canotilho e Moreira47, o Tribunal de Contas exerce o “controle formal da legalidade” e o “controle material de boa gestão financeira” e de avaliação de prestações orientado por princípios como os da economicidade, oportunidade, eficácia, eficiência. Acrescenta ainda que, no controle da boa gestão financeira, avaliam-se “os fins, os resultados e a execução do programa de despesas contido no orçamento do Estado”48. Na França, além do controle da execução das leis de finanças e da aplicação das leis de financiamentos da seguridade social, para qual a Corte de Contas não depende de provocação do Parlamento, existindo procedimentos específicos para este tipo de avaliação, há ainda a avaliação das políticas públicas, onde a Corte de Contas deverá ser demandada pelo Parlamento sobre determinada política pública, e deverá elaborar um relatório (art. L132-5 do Código de Jurisdição Financeiro). No Brasil (art. 71, IV, CF/1988), o Tribunal de Contas realiza, por iniciativa própria ou do Poder Legislativo, as denominadas auditorias operacionais, onde se examinam a economia (ou economicidade), eficiência e eficácia das políticas públicas implementadas pelo governo, nas diversas fases, programação, execução e supervisão. Na prática, as auditorias operacionais foram difundidas a partir de 1998, quando foi aprovado Manual de Auditoria de Desempenho do Tribunal de Contas da União49. A Lei Complementar 101/2000, que dispõe sobre responsabilidade da gestão fiscal, estabeleceu ainda que o Poder Legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas, fiscalizará o cumprimento de metas fixadas em lei de diretrizes orçamentárias, limites de despesa com pessoal, limites de dívidas públicas.
Há forte tendência em deixar a responsabilidade pelas políticas públicas (ou missões), executadas no âmbito do primeiro escalão do governo (Primeiro e demais Ministros) e do Executivo (Presidente e seus Ministros), para ser apurada no âmbito da responsabilidade política (perante o Parlamento ou Poder Legislativo). Já a responsabilidade pelos programas, que estão inseridos dentro de cada política pública, e executados por funcionários de segundo escalão (hierarquia inferior aos Ministros), a ser apurada pelo Tribunal de Contas.
Na França, foi exatamente o que se sucedeu com a LOLF (Lei Orgânica das Leis de Finanças, de agosto de 2001), que criou o programa como uma unidade de crédito no âmbito do orçamento (que até então inexista na contabilidade pública francesa, diferentemente da brasileira), a ser gerido em cada Ministério por funcionário indicado pelo Ministro, mediante aferição de objetivos e metas. A LOLF implementou, como esclarece Rueda (2007, p. 119 e 123), uma responsabilidade sobre a gestão financeira, bem diferente dos controles clássicos financeiros; é uma responsabilidade pelos programas, não pelas missões ou políticas públicas, sendo, como o próprio autor adverte, uma responsabilidade administrativa dos agentes subministeriais, que não podem ser responsabilizados politicamente pelo Parlamento (responsabilidade orçamentária para Rueda). No entanto, Rueda chega a defender uma responsabilidade política (orçamentária) dos encarregados dos programas, com base exclusivamente no art. 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Assim, na França, não se configurou uma responsabilidade jurídica na categoria orçamentário-financeira pela gestão no nível ministerial (é dizer no âmbito de política pública). Essa fica no âmbito da responsabilidade política. No Brasil, o Tribunal de Contas já analisa as políticas públicas por meio de auditorias operacionais, contudo, as decisões são menos efetivas que na França, visto que não passam de recomendação.
A responsabilidade jurídica na categoria orçamentário-financeira vai desde a análise isolada das despesas públicas realizada pelos encarregados por lei a uma apreciação da gestão financeira, sendo, neste último caso, verificado o respeito aos princípios constitucionais da economia (ou economicidade) e eficiência dos programas executados no âmbito de cada política pública.
A má-gestão econômico-financeira pode gerar, além da responsabilidade jurídica examinada neste tópico, responsabilidade política e criminal.
RESPONSABILIDADE POLÍTICA PELA MÁ GESTÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA
A má gestão econômico-financeira pode restar evidenciada pelos péssimos índices da economia geral, bem como pela desastrosa prestação de contas pelo governo ou pelo chefe do Executivo.
Na primeira hipótese, no que tange à responsabilidade política institucional, poderá ocorrer moção de censura, no regime de base parlamentar, ocasionando a demissão do governo; no regime presidencialista, os ministros poderão ser convocados para prestar esclarecimentos sobre as medidas tomadas e a serem tomadas. No regime presidencialista, mais efetiva é a responsabilidade institucional livre, através da pressão da mídia sobre diversos escândalos, que tem pautado inclusive muitas ações no âmbito parlamentar, como as próprias convocações dos ministros.
Na segunda hipótese, a desastrosa utilização dos recursos públicos pelo governo deve ser constatada no âmbito do julgamento da Conta Geral anual do Estado pelo Parlamento, com auxílio do Tribunal de Contas, cujo resultado seja a desaprovação da conta. A CRP é omissa quanto às consequências da reprovação da Conta Geral do Estado pela Assembleia da República. A Lei e o Regimento da Assembleia da República também são omissos50. Evidentemente, alguma providência deve ser tomada pela Assembleia da República. Pensamos que não há outra medida a não ser a moção de censura. Assim, no regime parlamentarista ou misto, a não aprovação das contas implicará uma moção de desconfiança. No regime presidencialista, não há, em regra, uma sanção efetiva no âmbito da responsabilidade política institucional (em matéria orçamentária) sobre a não aprovação das contas, mas poderá haver as duas outras espécies de responsabilidade política (a institucional livre e a difusa).
No Brasil, em particular, da desaprovação das contas decorre a inelegibilidade ao chefe do Executivo. A Constituição Federal, do § 3° ao § 8°, estabeleceu ela própria condições de elegibilidade e alguns casos de inelegibilidade. E no § 9° do art. 14, deixou para lei complementar estabelecer outros casos de inelegibilidade, o que foi realizado, em 1990, por meio da Lei Complementar n. 64, de 18 de maio. O art. 1º, inc. I, alínea “g”, da Lei das Inelegibilidades estipula como causa de inelegibilidade, para as eleições que se realizarem nos 5 (cinco) anos seguintes, a não aprovação das contas por irregularidade insanável. Em 2010, a Lei Complementar n. 135, conferiu nova redação a esta alínea, para limitar a inelegibilidade aos casos em que a irregularidade insanável decorreu de ato doloso de improbidade administrativa e ampliar o período da sanção para oito anos.
A inelegibilidade para o Presidente da República, Governadores e Prefeitos, onde o Tribunal de Contas emite apenas parecer à casa legislativa, somente ocorre com a reprovação da conta pelo Legislativo. Cuidando-se de chefe do Executivo, incluídos os Prefeitos, só a rejeição de suas contas pelo Legislativo - e não os pareceres ou decisões sobre atos específicos do Tribunal de Contas - é que pode gerar a inelegibilidade, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 132.747.
Note-se que esta sanção é política, porque o julgamento da Conta Geral anual do Estado é realizado pelo Legislativo, mediante juízo político. Não se confunde com a inelegibilidade resultante da rejeição das contas dos gestores abaixo do chefe do Executivo, cuja atribuição é do Tribunal de Contas, onde exerce juízo jurídico.
CRIME DE RESPONSABILIDADE PELA MÁ GESTÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA
Como vimos, a sustentabilidade econômico-financeira é princípio estruturante do Estado Constitucional51, ou seja, é um bem jurídico constitucional da mais alta relevância para o Estado Democrático de Direito. A ofensa grave a este bem jurídico-constitucional pode resultar em crime de responsabilidade, além da apuração da responsabilidade política por seus instrumentos próprios.
Em Portugal, o art. 117, n. 3, da CRP/1976 dispõe que a lei definirá os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos e respectivas sanções, podendo incluir a destituição de cargo ou a perda de mandato. A Lei 34/1987 (com as alterações procedidas pela Lei 108/2001, Lei 30/2008, Lei 41/2010 e Lei 4/2011) define os crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos (arts. 7º a 27), bem como considera também como crime de responsabilidade os crimes previstos na lei penal geral com referência expressa ao exercício de função pública ou os que mostrem terem sido praticados com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres (art. 2º).
O crime de responsabilidade de violação de normas de execução orçamental (art. 14) parece, numa primeira análise, o tipo que mais se amolda à má gestão econômico-financeira que afete de modo substancial a sustentabilidade do Estado. Contudo, o delito é bastante específico, limitando-se apenas a poucas condutas, tais como, contrariar encargos não permitidos por lei, autorizar pagamentos sem o visto do Tribunal de Contas legalmente exigido.
Convém ressaltar que é escassa a doutrina, assim como a jurisprudência, sobre tais crimes de responsabilidade orçamentária, talvez, como apontou Alfredo Sousa52, porque o bem jurídico tutelado (boa aplicação dos recursos públicos) “não tenha suficiente ressonância ética e social que impulsione o respectivo procedimento criminal” ou porque o sujeito passivo “desencadeia temor reverencial ou grande cautela nas instâncias legalmente encarregadas directa ou indirectamente daquele procedimento”.
Se não decorreu de nenhum ato específico do art. 14, a má gestão econômico-financeira que afeta de modo substancial a sustentabilidade do Estado pode configurar crime de responsabilidade na figura de atentado contra o Estado de Direito (art. 9), uma vez que corresponderia a uma tentativa, por ato não violento, de “destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias”.
No Brasil, a CF/1988 define alguns crimes de responsabilidade dos principais governantes, remetendo à lei a definição de outros casos: Presidente da República, art. 85; Governador de Estado, art. 60, XI, da ADCT; Prefeito Municipal, art. 29-A, § 2º e art. 60, XI, da ADCT; Presidente de Câmara Municipal, art. 29-A, § 3º; Ministro de Estado, art. 50; Presidente de Tribunal, art. 100, § 7º. Da mesma forma que em Portugal, caso a má gestão seja resultado do cometimento das condutas tipificadas no art. 10 ou no art. 11 da Lei 1.079/50, configurar-se-á, respectivamente, crime de responsabilidade contra a lei orçamentária ou crime contra a guarda e legal emprego do dinheiro público. A lei brasileira era também muito tímida na tipificação de condutas deste delito, constando apenas quatro condutas no art. 10: não apresentar ao Congresso Nacional a proposta do orçamento da República dentro dos primeiros dois meses de cada sessão legislativa; exceder ou transportar, sem autorização legal, as verbas do orçamento; realizar o estorno de verbas; infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária. A Lei 10.028/2000, além de criar um capítulo específico de crime contra as finanças públicas no Código Penal, incluiu outras oito condutas no delito de responsabilidade contra a lei orçamentária, como, por exemplo, a deixar de reduzir o montante da dívida no prazo e nas condições legais. A não aprovação das contas pode implicar crime de responsabilidade contra a probidade na administração (art. 9, II, da Lei 1.079/50) e contra a lei orçamentária (art. 10 da Lei 1.079/50). Pode ainda configurar o crime de atentado contra a Constituição (art. 4º, caput, da Lei 1.079/50).
Importa salientar que é possível pela legislação uma fixação no juízo penal de uma indenização civil pelos danos causados. Nada impede que seja intentada ação de indenização cível contra o governante para reforço desta indenização, na hipótese de os danos serem superiores ao fixada na sentença penal.
Ao contrário do que ocorre em Portugal, onde a responsabilização por crime de responsabilidade tem natureza criminal, visto que já incide a responsabilidade política institucional parlamentar sobre os mesmos fatos;53 no Brasil, a apuração de crime de responsabilidade, disciplinada pela Lei 1.079/50, conhecido como impeachment, tem natureza política, sendo o critério de julgamento não o de legalidade (como na modalidade criminal), mas o de oportunidade tipificada54.
RESPONSABILIDADE PELA GESTÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA NA ISLÂNDIA
Importante caso de responsabilização de governante ocorreu na Islândia, onde a má gestão no âmbito do setor financeiro ocasionou dívida estratosférica, levando o país, efetivamente, à bancarrota.
Nesse país, ao contrário do Brasil e Portugal em que há alguns delitos específicos na seara econômico-financeira, a falta de tipo penal especializado não dificultou a responsabilização do governante. Enquadrou-se a conduta do ex-Primeiro-Ministro no crime de negligência grave no exercício das funções. Ao se considerar a regulação da atividade bancário-financeira como bem jurídico tutelado pela norma penal, deu-se concretude ao princípio da sustentabilidade.
Na esteira da crise financeira que se instalou nos mercados internacionais, o setor bancário e financeiro da Islândia, país com regime parlamentarista instalado desde o ano 930, entrou em colapso em outubro de 2008, quando estava à frente do governo Islandês o Primeiro-Ministro Geir Haarde. Em razão da má atuação fiscalizatória do Estado islandês55, desde a implementação da liberalização nos anos 9056, os bancos assumiram operações financeiras altamente arriscadas, superiores às suas próprias capacidades de pagamento, operações estas que, com a crise financeira internacional, provocaram uma dívida de enormes proporções, que correspondeu a 923% (novecentos e vinte e três por cento) do Produto Interno Bruto do país. Foi necessário que a Islândia assumisse a dívida dos três maiores bancos do país (Glitnir Bank hf, Kaupthing Bank hf, Landsbanki Íslands hf.) e obtivesse empréstimos junto a organismos internacionais (digo, do Fundo Monetário Internacional - FMI) para retirar o país da bancarrota.
O Parlamento (Althing), em 28 de setembro de 2011, acolhendo parcialmente o relatório da Comissão Parlamentar, decidiu, por 33 votos a 30, acusar, perante o Tribunal Superior de Justiça (Landsdómur), o ex-Primeiro-Ministro por ofensa ao art. 141 do Código Penal Geral (Lei 19/1940) c/c Lei de Responsabilidade Ministerial (Lei 4/1963), cuja sanção é prisão de até dois anos57. A Comissão Parlamentar concluiu pela necessidade de se apurar a responsabilidade também do Presidente do Banco Central e dos dirigentes dos bancos.
O Tribunal Superior de Justiça (Landsdómur) é um tribunal especial, único competente para julgamento de ministros e ex-ministros, cuja criação foi prevista em 1905, e até então não havia sido implantado. O tribunal é competente para apreciar condutas criminosas dos governantes. É composto por 15 membros: 5 (cinco) juízes da Suprema Corte, 1 (um) juiz que seja presidente de tribunal distrital, 1 (um) professor de direito constitucional e 8 (oito) pessoas escolhidas pelo Parlamento para mandato de seis anos. O presidente do Tribunal é o Presidente da Suprema Corte da Islândia.
No início de outubro de 2011, o Tribunal acolheu parcialmente a acusação contra o ex-Primeiro-Ministro, excluindo duas acusações e mantendo quatro acusações, estas relacionadas com a falência do banco Icesave.
Na Islândia, 93% (noventa e três por cento) dos islandeses, em referendo realizado em 6 de março de 2010, rejeitou legislação que previa acordo financeiro, com taxa de juros de 5,5% (cinco inteiros e cinco décimos por cento) e prazo de 15 anos, para indenizar os investidores estrangeiros lesados pela falência do banco islandês Icesave, subsidiária do Landsbanki, que correspondiam a 700 mil contas bancárias na Holanda e Inglaterra, totalizando 3,9 mil milhões de euros depositados. Em segundo referendo, em 09 de abril de 2011, 60% (sessenta por cento) da população rejeitou segunda proposta de acordo: escalonamento do pagamento da dívida até 2045, com uma taxa de juro de 3,3% (três inteiros e três décimos por cento) ao Reino Unido e de 3% (três por cento) no caso da Holanda. Não foi objeto do referendo a indenização a ser realizada com a venda dos ativos do Landbanski.
Em decorrência dos resultados destes referendos, foi proposta pelo partido de oposição moção de censura ao governo, a qual foi rejeitada por 32 votos contra, 30 a favor e uma abstenção. Vê-se, nitidamente, que o referendo serviu de instrumento para responsabilização política pela má gestão econômico-financeira, embora não tenha logrado êxito quanto à remoção do cargo.
CONCLUSÃO
A boa gestão econômico-financeira dos recursos não apenas é importante como é imprescindível para a existência viável de uma sociedade politicamente organizada. A boa gestão econômico-financeira é imperativo que decorre do princípio constitucional da sustentabilidade, que assume, ante a complexidade e volatilidade (riscos) da sociedade, a condição de princípio estruturante do Estado Constitucional.
Em contrapartida à dificuldade na elaboração das leis pelo Legislativo em determinadas matérias, especialmente quando possam decorrer efeitos prospectivos além da geração presente, e à consequente ampliação da margem de atuação do Executivo, dentro da separação de Poderes, a responsabilidade deve ser entendida como ampliação do controle externo do Legislativo sobre o executivo, mediante avaliações das políticas públicas, aí incluindo a gestão econômico-financeira, através de parâmetros de economicidade e legitimidade, parâmetros com tessitura constitucional, expressos, como na CF/1988 (art. 70), ou decorrentes dos princípios constitucionais da Administração Pública, notadamente o da eficiência, ou mesmo o da igualdade e proporcionalidade (art. 266/2, CRP).
Neste prisma, e voltando-se especificamente aos ordenamentos jurídicos português e brasileiro, foi possível constatar que a má gestão econômico-financeira, embora não constitua um mecanismo próprio de responsabilização, é apurada e sancionada por meio de diversas modalidades de responsabilidade: 1) os governantes poderão ser responsabilizados politicamente de forma efetiva e institucional no sistema parlamentarista ou misto, através dos mecanismos fortes (impõem remoção do cargo ou não continuidade), como moção de censura; 2) poderão ainda ser alvo de mecanismos fracos (exercem pressão política), como as convocações para esclarecimentos, no âmbito da responsabilidade política institucional-formal, tanto no sistema presidencialista como no sistema parlamentarista; 3) em qualquer regime de governo, os governantes são chamados a prestarem contas no âmbito da responsabilidade política institucional-livre e da responsabilidade política difusa, que são novas formas de responsabilidade política, mas que não são totalmente extrajurídicas; 4) ainda como responsabilidade política, o Governo (no parlamentarismo) e o chefe do Executivo (presidencialismo) perante o Parlamento (auxiliado pelo Tribunal de Contas) respondem pela má gestão que for evidenciada na execução da Conta Geral do Estado; 5) os gestores públicos de nível hierárquico inferior ao de Primeiro-Ministro ou Presidente respondem perante o Tribunal de Contas pelas despesas públicas mal realizadas (responsabilidade orçamentária-financeira); 6) a má-gestão financeira, em Portugal, pode caracterizar ainda crime de atentado contra a Constituição da República, apurado em procedimento criminal; 7) no Brasil, pode resultar em processo de impeachment, sem natureza criminal, por “crime de responsabilidade”, seja como atentado contra a Constituição, seja como atentado contra lei orçamentária (caso haja incumprimento específico de normas relativas à dívida fiscal), ou como atentado contra a probidade na administração (caso decorra de não aprovação das contas).