Sumário: 1.Introdução; 2.Os limites do federalismo brasileiro e a competência da união para editar normas gerais em matéria tributária; 2.1. Características do Federalismo brasileiro na Constituição de 1988; 2.2. As leis complementares, as normas gerais em matéria tributária e os limites da competência da União quanto aos efeitos para os entes subnacionais; 2.3. Análise da constitucionalidade da Lei Complementar 194/2022; 2.4. A natureza extrafiscal das Leis Complementares da União 194 e 192, de 2022; 2.5. A compensação das perdas de receitas para respeitar os princípios do federalismo e da autonomia dos entes subnacionais; 3. As decisões do supremo tribunal federal e a jurisprudência aplicável à lei complementar 194/2022; 4.Considerações finais; 5. Referências.
Summary: 1. Introduction; 2. The limits of brazilian federalism and the union’s competence to issue general tax rule; 2.1. Features of Brazilian federalism under the 1988 Constitution; 2.2. Complementary laws, general rules on tax matters and the limits of the Union's competence regarding the effects on the subnational entities; 2.3. Analysis of the constitutionality of Supplementary Law 194/2022; 2.4. The extra fiscal nature of Federal Supplementary Laws Nos. 194 and 192 of 2022; 2.5. The compensation of revenue losses to respect the principles of federalism and autonomy of the subnational entities; 3. The decisions of the federal supreme court and the jurisprudence applicable to supplementary law 194/2022; 4. Final considerations; 5. References.
1 INTRODUÇÃO
A Federação é o modelo de Estado adotado pelo Brasil desde que este deixou de ser Colônia de Portugal. Na Constituição de 1988, promulgada depois de longo período de ditadura militar, o modelo federativo foi mantido, porém, três entes federados foram criados (União-Governo Central, Estados e Municípios) com dois pilares fundamentais: político e financeiro.
A União compartilha o poder político com os entes subnacionais (Estados e Municípios) e todos mantêm sua autonomia. No âmbito financeiro, a descentralização implica competências bem definidas para a União e para os entes subnacionais, que devem ser entendidas como medidas de poder que se refletem não somente na atuação de cada ente, mas também no âmbito da receita e da despesa públicas para o cumprimento das obrigações assumidas. As obrigações dos entes subnacionais devem estar de acordo com as fontes de financiamento para seu cumprimento (BONAVIDES, 2003).
A maior fonte de financiamento do Estado são os tributos, tendo a Constituição de 1988 distribuído competências tributárias específicas para cada ente da federação, com centralização de competências para a União assim como de receitas tributárias. Para equalizar as competências tributárias e as obrigações financeiras, o constituinte adotou o federalismo cooperativo, pelo qual todos os entes devem cumprir obrigações isolada ou conjuntamente. A União deve realizar transferências obrigatórias e voluntárias de receitas para os entes subnacionais para a implementação de políticas públicas sociais.
Em razão do princípio federativo e da autonomia dos entes subnacionais, as competências tributárias específicas devem ser respeitadas por todos, não podendo a União interferir na competência tributária dos entes subnacionais.
O presente estudo analisa o princípio federativo, a competência da União para editar Leis Complementares contendo normas gerais em matéria tributária para tributos de competência dos entes subnacionais, os limites da atuação do governo central e a observância dos princípios e normas constitucionais. Pelo método dedutivo avalia os impactos da Lei Complementar 194/2022 nas finanças dos governos subnacionais e suas consequências para a desconstrução do pacto federativo. As alterações promovidas pela Lei Complementar 194/2022, com vigência imediata, reduzem a arrecadação das receitas tributárias de ICMS, de competência dos Estados, impedindo o cumprimento do planejamento contido nas Leis Orçamentárias em execução, agravando a situação financeira dos governos subnacionais.
A Lei Complementar 194/2022, ao estabelecer como essenciais algumas mercadorias tributadas pelos Estados (receitas partilhadas com Municípios), exigiu indiretamente automática redução das alíquotas praticadas, sem previsão de um tempo, ou vacância, para as adequações e sem a devida compensação pelas perdas de receitas.
Por meio de revisão bibliográfica e jurisprudencial, jurídica e econômica, o estudo analisa a legalidade, as competências, a observância ou violação dos princípios constitucionais e as consequências financeiras para os entes subnacionais das alterações legislativas promovidas pela União.
2 OS LIMITES DO FEDERALISMO BRASILEIRO E A COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA EDITAR NORMAS GERAIS EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA
2.1 Características do Federalismo Brasileiro na Constituição de 1988
Os países que adotam o modelo federal assumem duas formas: (i) Federalismo dual, em que o governo nacional (central) e os estaduais têm competências definidas, podendo estes atuar em coordenação, ou não, com o governo central. (ii) Federalismo cooperativo, no qual as competências são partilhadas e todos os níveis de decisão têm responsabilidades iguais, podendo atuar conjuntamente ou não. Estados Unidos e Brasil adotam o federalismo cooperativo. No entanto, ao contrário do Brasil, Estados Unidos adotam o modelo de autoridade sobreposta (CABRAL, 2018).
A influência do governo central difere entre os países que adotam o federalismo. Na Austrália, na Índia, no México e no Paquistão o governo central exerce forte influência sobre os demais entes. Essa influência é moderada na Alemanha, na Nigéria e nos Estados Unidos, e é fraca no Brasil, no Canadá e na Suíça. Há Estados federados com poucos elementos descentralizadores (políticos, administrativos e financeiros), muitas vezes menores dos que existem em Estados unitários, como ocorre na Índia e na Espanha (CABRAL, 2018).
No tocante ao federalismo político, as federações podem contar com diferentes unidades, sendo mais comum dois centros de poder: o federal (central) e o regional. Não é comum, como no Brasil, serem três unidades: União, Estados e Municípios, todos com autonomia. E, ainda, o Distrito Federal, que é um Estado, mas acumula também as competências dos Municípios que estão em seu território, além da Capital Federal - Brasília.
Quanto à distribuição de poderes entre os níveis de governo, podem ser exclusivos, concorrentes, partilhados e residuais. No tocante às áreas de atuação, podem ser próprias, exclusivas, partilhadas ou concorrentes. (CABRAL, 2018).
Nem sempre se diferenciam poderes partilhados e concorrenciais, como o faz Watts, que aponta uma diferença sutil entre eles. A concorrência implica que a atuação dos governos subnacionais pode suprir e dispensar a atuação do governo central. O governo central, nesse caso, até pode atuar, mas somente em casos cujo assunto tenha relevância federal. Essa interpretação está associada ao princípio da subsidiariedade. Os poderes partilhados são aqueles que devem ser executados por todos os entes da federação (WATTS, 2008).
O federalismo no Brasil não ocorreu como nos Estados Unidos, pela reunião de Estados independentes, ocorreu pela decisão do governo central. O Brasil passou de Estado Unitário para Estado Federal. Nas discussões da Assembleia Constituinte de 1988 o que se discutia era a instituição de um federalismo cooperativo, um Estado Social e Democrático de Direito, o restabelecimento do princípio da coordenação para garantir uma relação igualitária entre a União e as demais unidades federadas, a descentralização de competências e um Senado Federal que deveria resguardar os interesses dos Estados-membros ( CLÈVE, 2014 ).
No federalismo fiscal interessa analisar a descentralização, as competências dos entes públicos, que são as medidas de poder de cada órgão em relação a outros órgãos do Estado (SILVA, 2002). A matéria tributária é uma dessas parcelas de poder, porque é responsável pelas receitas do Estado, segundo as normas constitucionais e legais vigentes (LAPATZA, 2006), pela distribuição das receitas para garantir a autonomia dos entes federados e o cumprimento de suas obrigações.
A atuação do poder financeiro se dá em dois planos: o abstrato e o concreto. O abstrato ocorre para um conjunto de sujeitos indeterminados que recebem os benefícios, por meio de leis editadas pelo Poder Legislativo ou por normas da própria Administração Pública. O concreto se dá por meio das normas jurídicas que tratam das receitas, dos gastos públicos e da forma de cumprimento das normas jurídicas (LAPATZA, 2006).
O princípio da autonomia dos Estados-membros é ínsito ao Federalismo. O poder político-administrativo exige capacidade de autogoverno, autoadministração e competência legislativa. Os entes subnacionais na Federação são iguais ao governo central, não havendo entre os seus integrantes relação hierárquica ou de tutela.
Quanto à ampliação das competências dos Estados, poderia ter sido implementada por Lei Complementar como prevê o parágrafo único do art. 22 da Constituição Federal, que não foi utilizado até o momento: Parágrafo único: Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.
Podemos afirmar que na Constituição Federal de 1988 os Estados-membros foram prejudicados, porque suas competências não são expressas, são remanescentes, atualmente chamadas de competências comuns e concorrentes, enquanto a União e os Municípios têm competências expressas. Sendo assim, pouco resta ao constituinte estadual senão sua organização interna, sendo essa uma das distorções do federalismo brasileiro (CLÈVE, 2014).
A centralização de receitas na União e as reduzidas competências (medidas de poder) dos entes subnacionais não impede que os Estados e Municípios assumam obrigações que extrapolam suas receitas. Esse fato não decorre de uma decisão dos entes subnacionais, são determinações constitucionais que os obrigam a implementar políticas públicas sociais das áreas mais importantes do Estado, como educação, saúde, assistência social e segurança pública, dentre outras.
Embora os Estados tenham competências tributárias específicas para instituir e cobrar tributos para custear suas obrigações, tais recursos ainda são insuficientes para todas as despesas obrigatórias e contratuais. Esse fato os torna dependentes dos repasses do governo central para complementação das suas receitas públicas. O mesmo ocorre com os poderes locais (Municípios), que são ainda mais dependentes das transferências de receitas do governo central. O federalismo cooperativo exige, nesses casos, que sejam ampliadas as receitas dos entes subnacionais para manter o equilíbrio federativo, ou que a União assuma parte dessas obrigações, federalizando serviços públicos e suas despesas. O que não se admite são medidas e ações da União que acarretem perdas de receitas aos entes subnacionais.
De todo o exposto podemos concluir que as competências tributárias expressas na Constituição Federal são exercidas pelos entes subnacionais e as receitas delas decorrentes são fundamentais para o cumprimento das obrigações constitucionais e legais. Também podemos concluir que os Estados e Municípios não estão subordinados à União, todos os entes da Federação são independentes, o que é garantido pelas competências e pelos princípios federativo e da autonomia dos entes subnacionais. A União não pode interferir nas competências dos entes subnacionais e não pode retirar deles receitas públicas nem mesmo por Lei.
2.2 As Leis Complementares, as Normas Gerais em Matéria Tributária e os Limites da Competência da União Quanto aos Efeitos para os Entes Subnacionais
Apesar das competências legislativas expressas e residuais dos entes subnacionais nas áreas tributária e financeira, a União ainda tem competência para legislar sobre normas gerais em matéria tributária dos demais entes subnacionais.
Cabe à Lei Complementar tratar de normas gerais em matéria tributária, tendo ocorrido uma ampliação dos poderes do governo central na Constituição de 1988.
A maioria dos doutrinadores tributaristas brasileiros entende que, para não violar o princípio federativo, devemos entender por normas gerais somente aquelas que visam terminar com conflitos de competência entre as unidades federadas (ATALIBA, 1969) e as que visam regular limitações constitucionais ao poder de tributar (BORGES, 1975). Criticam também o Código Tributário Nacional (recepcionado pela Constituição Federal de 1988 como Lei Complementar) que teria exorbitado da permissão constitucional, pelo que entendem que suas normas só foram parcialmente recepcionadas quanto às matérias previstas no art. 146, III, a e b, da Constituição Federal (CARVALHO, 2005).
A Lei Complementar não pode ir além do que já prevê e permite a Constituição Federal (BALEEIRO, 1997), não podendo as normas gerais violar princípios ou normas constitucionais, porque o ordenamento jurídico deve ser interpretado de acordo com os valores constitucionais estabelecidos.
Dessa forma, embora a União tenha competência para editar normas gerais em matéria tributária, sua limitação está na observância da norma do art. 146 da Constituição Federal e dos princípios constitucionais do federalismo, da autonomia dos entes subnacionais, da segurança jurídica, da anterioridade, da competência tributária expressa e das demais normas constitucionais que expressam valores e obrigações, como é o caso do planejamento orçamentário para implementação das políticas públicas sociais e a necessidade de compensação pelas perdas de receitas em decorrência de alteração da tributação.
Isso posto, vamos analisar se a Lei Complementar 194, de 23 de julho de 2022, editada pela União, obedece aos ditames constitucionais e doutrinários expostos.
2.3 Análise da Constitucionalidade da Lei Complementar 194/2022
A Lei Complementar 194, de 23 de julho de 2022, passou a considerar como bens e serviços essenciais os relativos aos combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo, para fins de tributação do ICMS. Para esse intento, alterou o Código Tributário Nacional (Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966), a Lei Complementar 87, de 13 de setembro de 1996 (Lei Kandir), a Lei Complementar 192, de 11 de março de 2022 e a Lei Complementar 159, de 19 de maio de 2017.
A legislação analisada trata de normas gerais em matéria tributária, que limitam o poder de tributar. Ao considerar essenciais os combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo, exige indiretamente que as alíquotas do ICMS sejam menores do que as praticadas pelos Estados. Ainda que a União tenha competência para estabelecer normas gerais em matéria tributária, quanto à essencialidade de certos produtos e serviços que são tributados pelo ICMS, a análise na Lei Complementar 194/2022 demonstrará que extrapolou sua competência e os limites legais.
(a) A Lei Complementar 194/2022 foi editada pela União sem participação dos Estados, embora tenha natureza tributária e trate de normas gerais quanto ao ICMS (tributo estadual). Estabelece como essenciais os combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo. Tais produtos e serviços não eram considerados essenciais pelos Estados e, na ausência de Lei, havia liberdade na fixação das alíquotas de ICMS. A essencialidade dos produtos e serviços implica que devem ser tributados com alíquotas menores.
A referida LC 194/2022 tem vigência imediata, portanto, os Estados não poderiam manter alíquotas maiores que a alíquota geral. A vigência imediata da lei tributária não é comum, visto que a complexidade e as consequências da legislação exigem um tempo para conhecimento e adequações.
Por outro lado, a LC 194/2022 não apresenta estimativa do impacto orçamentário e financeiro das perdas de receitas dos Estados e não tem medidas de compensação que deveriam ser providenciadas imediatamente pela União, por força da vigência imediata da Lei.
Outro problema identificado pelos Estados é que a vigência imediata da Lei desconsiderou que há um planejamento anual e um Orçamento em execução, que quando foi elaborado em 2021 para vigência em 2022, considerou as receitas de ICMS com as alíquotas vigentes e não com as alíquotas que agora terão que ser reduzidas. Dessa forma, existem despesas públicas, obrigações contratuais, obras e serviços públicos (educação, saúde, assistência social e segurança pública), aquisições de materiais e medicamentos, que serão custeados com tais recursos tributários. A redução das receitas tributárias prejudicará o cumprimento do Orçamento, que é obrigatório, e poderá causar danos à população que é beneficiária dos serviços públicos estaduais.
Por essas razões é que a compensação pela União é indispensável para o cumprimento das obrigações constitucionais, legais e contratuais dos entes subnacionais (Estados e Municípios, porque as receitas do ICMS são compartilhadas). Não havendo tempo para as adequações e não havendo a devida compensação das perdas de receitas tributárias, a Lei Complementar editada pela União violou normas constitucionais e infraconstitucionais.
A LC 194/2022 viola a norma do art. 165 da Constituição Federal, que no § 2º exige que a lei orçamentária anual contemple as alterações na legislação tributária. Como a Lei Orçamentária é anual e elaborada no ano anterior ao de sua vigência, a lei tributária deve ter vacacio legis para garantir segurança jurídica e para que as alterações tributárias nela possam ser incluídas. O § 10 do art. 165 da Constituição Federal reforça o dever do gestor público de cumprir as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários para garantir que a sociedade receba os bens e serviços planejados. A redução de receitas tributárias no curso do exercício não permitirá o cumprimento do planejamento contido no Orçamento Público.
Da mesma forma, a LC 194/2022 não atende às normas financeiras da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) que no art. 4º, § 2º, V, exige demonstrativo da estimativa e compensação da renúncia de receita e da margem de expansão das despesas obrigatórias de caráter continuado, o que não foi providenciado pelo governo central. Ocorreu também o descumprimento do art. 12, quanto a previsão de receitas para o Orçamento, estimadas com base em normas técnicas e observando as renúncias de receitas. E a desconsideração do contido no art. 14, que exige para todas as renúncias de receitas a estimativa de impacto orçamentário e financeiro para o exercício a que se refere e para os dois seguintes, além da prova de que tal renúncia foi considerada na Lei Orçamentária Anual, o que igualmente a União não respeitou.
O planejamento, segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal, deve levar em conta as receitas que serão arrecadadas, as renúncias de receitas que serão concedidas e as compensações. Relatórios serão elaborados para controle do cumprimento das normas financeiras e tributárias. Nada disso foi providenciado pela União na LC 194/2022. Não há relatórios de impacto financeiro, não há compensação das perdas de receitas e continua a obrigação dos Estados de cumprir o planejamento contido em suas Leis Orçamentárias.
A União poderia ter compensado os Estados com parcelas maiores das receitas de tributos da sua competência, poderia ter perdoado as dívidas dos entes subnacionais, poderia ter compensado as perdas de receitas com transferências voluntárias.
A compensação exigida nas normas constitucionais e legais deve ser imediata, por meio de repasses de recursos financeiros, ou seja, por meio de transferências de receitas.
A União violou os princípios do federalismo, da autonomia dos entes subnacionais, da legalidade e da segurança jurídica.
(b) A vigência imediata da Lei Complementar 194/2022 viola os mesmos princípios já referidos e ainda o princípio da anterioridade, que exige que a Lei seja publicada com um tempo para vigência e eficácia. Esse período de vacância dos efeitos da lei é importante para as providências e alterações legislativas necessárias.
É raro o legislador editar Lei tributária com vigência imediata devido à complexidade da tributação e a exigência de tempo para as adequações, alterações legislativas, financeiras e orçamentárias. Leis precisam ser alteradas no Poder Legislativo, o planejamento precisa ser revisto, despesas poderão ser reduzidas ou excluídas, poderá ser necessário aumentar tributos e essas leis estão sujeitas ao princípio da anterioridade.
A Lei Complementar 194/2022 não prevê um tempo razoável para as adequações legislativas estaduais. Desconsidera que há um Orçamento em execução, contendo um planejamento que foi elaborado no exercício anterior (2021) e que deve ser cumprido, posto que é Lei.
As alterações da sistemática de tributação e a redução de alíquotas de ICMS, não podem ser feitas sem um amplo planejamento das despesas que são ou deveriam ser custeadas com as receitas que foram objeto de renúncia pela União. Provavelmente os Estados terão que aumentar as alíquotas de ICMS de outros produtos ou serviços, majorar as alíquotas de outros tributos de sua competência ou tomar outras providências para cumprir todas as suas obrigações constitucionais e legais. E tais alterações devem observar o princípio da anterioridade, obrigatório para leis tributárias e que a União não respeitou ao determinar vigência imediata da LC 194/2022.
Os combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo não eram considerados bens essenciais e, assim, as alíquotas do tributo estadual ICMS eram livremente aplicadas para que as receitas arrecadadas fossem suficientes para as despesas planejadas, que se referem a serviços públicos prestados à população.
É importante ressaltar que a vigência imediata da LC 194/2022 acarreta outras consequências. Nos termos do art. 24, § 4º da Constituição Federal, quando a União edita uma Lei Complementar com normas gerais em matéria tributária, com vigência imediata, as Leis Estaduais vigentes não podem mais dispor de outra forma sobre o tema, exigindo alterações imediatas. Nesse caso, é flagrante a violação do princípio da autonomia dos entes subnacionais.
(c) A Lei Complementar 194/2022 não se limitou a tratar apenas dos bens essenciais, tratou das alíquotas do tributo estadual e assim ocorreu violação do princípio da legalidade e invasão na competência dos Estados, porque as normas gerais em matéria tributária não podem dispor sobre alíquotas, matéria exclusiva dos entes subnacionais.
Indiretamente a Lei trata das alíquotas do ICMS, no parágrafo único, I do art. 1º (que insere o art. 18-A no CTN), da seguinte forma:
“I - é vedada a fixação de alíquotas sobre as operações referidas no caput deste artigo em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços”.
Segundo a doutrina, as normas gerais podem tratar de conflitos de competência entre as unidades federadas e regular limitações constitucionais ao poder de tributar. Não podem tratar de assuntos de competência específica dos entes subnacionais. Ainda que a Lei Complementar trate de normas gerais e pretenda estabelecer limitações tributárias, não pode violar princípios ou normas constitucionais.
As alíquotas do ICMS não podem ser tratadas em normas gerais de direito tributário, porque são específicas e de competência dos Estados.
Nesse ponto, a Lei Complementar 194/2022 é inconstitucional porque viola o princípio da legalidade, invade a competência dos entes subnacionais, fere o princípio federativo, a autonomia dos entes subnacionais e a segurança jurídica.
2.4 A Natureza Extrafiscal das Leis Complementares da União 194 e 192, de 2022
Antes da edição da Lei Complementar 194/2022 a União havia editado a Lei Complementar 192/2022 publicada em 11 de março de 2022, para alterar a sistemática do ICMS dos combustíveis, prevendo a cobrança de alíquota fixa por unidade de medida (alíquota ad rem), substituindo a alíquota ad valorem, que estabelecia um percentual sobre o preço médio dos combustíveis. Determinou que as novas alíquotas seriam definidas mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal (CONFAZ), devendo ser uniformes em todo o território nacional, podendo ser diferenciadas por produto. A Lei definiu a tributação monofásica do ICMS sobre gasolina, etanol anidro combustível, diesel, biodiesel e gás liquefeito de petróleo, inclusive o derivado de gás natural e reduzir a zero as alíquotas do PIS, da COFINS, do PIS-importação e da COFINS-importação sobre combustíveis.
Ambas as Leis Complementares da União (n. 192 e 194) tratam de ICMS e têm objetivo extrafiscal, porque visa conter o aumento dos preços dos combustíveis na venda ao consumidor final.
O objetivo principal da edição das normas já referidas não atende às exigências do art. 146 da Constituição Federal, porque as leis não visam dirimir conflitos de competência ou regular limitações constitucionais, têm objetivos macroeconômicos e outros que não estão ligados à tributação.
Se a União editasse as Leis sem a vigência imediata, com vacância, como é comum nas demais leis tributárias, os preços dos combustíveis, energia elétrica e comunicações não seriam imediatamente reduzidos.
Destarte, fica evidente a natureza extrafiscal das alterações legislativas, o que viola o art. 146, III, a e b, da Constituição Federal, extrapolando a competência da União para editar normas gerais em matéria tributária e limitações ao poder de tributar. Deliberadamente a União violou a autonomia dos entes subnacionais, porque com eles não discutiu as legislações que versam sobre o tributo estadual ICMS, e invadiu a competência estadual ao tratar de alíquotas do ICMS.
2.5 A Compensação das Perdas de Receitas para Respeitar os Princípios do Federalismo e da Autonomia dos Entes Subnacionais
Além da vigência imediata da Lei, a União não promoveu a devida e imediata compensação pelas perdas de receitas de ICMS que suportarão Estados e Municípios. O Governo Federal, ao sancionar a Lei Complementar 194/2022, vetou a compensação financeira aos Estados e assim inviabilizou a compensação pelas perdas de receitas. O veto foi parcialmente derrubado pelo Congresso Nacional em 14/07/2022.
O Congresso Nacional apenas restabeleceu a compensação financeira por meio do desconto de parcela da dívida pública refinanciada pela União e a compensação pela apropriação da parcela da União relativa à Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM). A regra da CFEM é direcionada para o ente federado que não tenha dívida pública administrada pela Secretaria do Tesouro Nacional ou com garantia da União, ou para aquele estado em que o saldo das dívidas administradas pela União não seja suficiente para compensar integralmente a perda de receita nos termos do §3 e do §4 do art. 3 da LC 194/2022.
Entretanto, não está claro na lei como serão feitas essas compensações. A compensação pelas perdas de receitas deveria ser direta e automática, por meio da transferência de recursos financeiros aos entes subnacionais.
Sobre as perdas de receitas dos Estados, o Ministro Alexandre de Moraes se manifestou na ACO 3586 do Maranhão, em 22/08/2022, aduzindo que
Conforme já assentado, é possível afirmar que a restrição à tributação estadual ocasionada pelas Leis Complementares192/2022e194/2022, de forma unilateral, sem consulta aos Estados, acarreta um profundo desequilíbrio na conta dos entes da federação, tornando excessivamente oneroso, ao menos nesse estágio, o cumprimento das obrigações contraídas nos contratos de financiamento que compõem a dívida pública dos entes subnacionais. Justificável, portanto, a pretendida intervenção judicial nos contratos para suspensão do pagamento das prestações deles originadas até que viabilize um mecanismo tendente ao restabelecimento do equilíbrio da base contratual, bem como da suspensão de todos os consectários legais, inclusive no que concerne à possibilidade de reavaliação, pela União, da Capacidade de Pagamento do Estado Autor. (…)
Enquanto a União não promover as compensações, os Estados têm o direito de não pagar as parcelas da dívida renegociada com a União, postergando tal obrigação até decisão final da ação judicial em trâmite.
A União poderia ter promovido alterações constitucionais e legais para aumentar os repasses que os entes subnacionais têm direito nas receitas do Imposto de Renda e IPI, atualmente de 50% (art. 159, I, CF). Poderia ter criado outros tributos ou contribuições para essa compensação (art. 154, I, CF), porque 20% (vinte por cento) dessas receitas já seriam dos entes subnacionais, sendo que a União poderia, ainda, destinar mais um percentual de suas receitas para a compensação. Poderia a União ter assumido obrigações dos entes subnacionais, como a educação, a saúde ou a segurança pública, federalizando tais serviços total ou parcialmente. Poderia ter ampliado os repasses para educação e saúde.
Concluímos que a falta de compensação direta e imediata das perdas de receitas dos Estados também configura inconstitucionalidade por violação dos princípios do federalismo, da autonomia dos entes subnacionais, da legalidade e da segurança jurídica.
3 AS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A JURISPRUDÊNCIA APLICÁVEL À LEI COMPLEMENTAR 194/2022
O Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário 714.139, de Santa Catarina, julgou inconstitucional a Lei de ICMS daquele Estado, em 18/12/2021, no tocante à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento) fixada para energia elétrica e comunicação, porque, sendo bens essenciais, não poderiam ter alíquotas maiores do que a alíquota geral, que no caso era de 17% (dezessete por cento). Os efeitos da decisão, no entanto, foram fixados a partir do exercício de 2024. Essa decisão acabou gerando o Tema 745, de repercussão geral.
Posteriormente, em Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a Lei do ICMS de Santa Catarina na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.117, na data de 27/06/2022.
“Ação direta de inconstitucionalidade. Direito tributário. ICMS. Lei do Estado de Santa Catarina. Seletividade. Alíquota do imposto incidente sobre energia elétrica e serviços de comunicação. Necessidade de observância da orientação firmada no julgamento do Tema 745. Modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
1. O Tribunal Pleno fixou a seguinte tese para o Tema 745: “Adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços”. Na mesma ocasião, foram modulados os efeitos da decisão. 2. São inconstitucionais as disposições questionadas na presente ação direta, por estabelecerem alíquota de ICMS sobre energia elétrica e serviços de comunicação mais elevada do que a incidente sobre as operações em geral. 3. Ação direta julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade das alíneas a e c do inc. II do art. 19 da Lei 10.297 do Estado de Santa Catarina, de 26 de dezembro de 1996. 4. Modulação dos efeitos da decisão, estipulando-se que ela produza efeitos a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvando-se as ações ajuizadas até 5/2/21.” (ADI 7117, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/06/2022, Public. 09-08-2022)
Nas decisões do STF existe um aparente conflito quanto ao momento de vigência da Lei Complementar 194/2022, se seria imediata ou a partir do exercício de 2024. O STF ao julgar inconstitucional a Lei do ICMS do Estado de Santa Catarina, em 18 de dezembro de 2021, e ao fixar o Tema 745 de repercussão geral, estabeleceu como prazo, o exercício de 2024, para que as alíquotas de ICMS dos produtos considerados essenciais fossem fixadas iguais ou abaixo da alíquota geral. A LC 194/2022 continua prevendo vigência imediata.
Ante o que foi demonstrado nos itens anteriores, concluímos que prevalece o entendimento do Supremo Tribunal Federal, firmado em 18 de dezembro de 2021 e em 27/06/2022 (no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.117/SC).
O Supremo Tribunal Federal fez o que o Governo Federal deveria ter feito, fixou a vigência da Lei tributária com tempo razoável para que as alterações sejam promovidas na Lei do ICMS e nas Leis Orçamentárias. Para produção dos estudos e relatórios de impacto, para aumento de tributos, se for necessário, e para que a União promova a compensação por transferências de receitas nas Leis Orçamentárias de 2023 e 2024.
Entretanto, os entes subnacionais, por força da vigência imediata da LC 194/2022, e ante a norma do art. 24 da Constituição Federal estão sendo forçados imediatamente a adotar as alíquotas gerais para os produtos e serviços enumerados como essenciais, o que irá comprometer as receitas públicas planejadas nos Orçamentos estaduais vigentes e em execução. Tais Leis Orçamentárias foram pelos Estados editadas segundo sua competência, que era plena, posto que na ocasião não havia Lei Federal sobre o assunto.
A LC 194/2022 está sendo questionada no STF, por meio da ADI 7195/DF, desde 30/06/2022, em especial no tocante aos dispositivos que declaram a essencialidade dos bens e serviços relacionados aos combustíveis, à energia elétrica, às comunicações e ao transporte coletivo. A ADI 7195/DF tem como autores os governadores dos Estados de Pernambuco, Maranhão, Paraíba, Piauí, Bahia, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Sergipe, Rio Grande do Norte, Alagoas, Ceará e Distrito Federal. A Relatora é a Ministra Rosa Weber e o feito tramita em regime de urgência devido às consequências que pode gerar nas finanças estaduais.
Os Estados autores da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7195 sustentam a inconstitucionalidade dos arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 7º, 8º, 9º e 10 da Lei Complementar 194/2022, alegam imposição de ônus excessivo e desproporcional aos entes federados estaduais e distrital, pela limitação indireta da alíquota máxima do ICMS aos bens classificados como essenciais pela norma. Argumentam, também, que os objetivos da norma estão relacionados ao controle dos preços dos itens de consumo e à técnica de intervenção na política macroeconômica inflacionária. Alegam que o objetivo da União não é fiscal, mas extrafiscal, o que viola os arts. 1º e 2º, que tratam do pacto federativo e da autonomia plena dos Estados-membros (CF, art. 18), mediante uniformização das alíquotas do ICMS por Lei Complementar.
Em 15/06/2022 o presidente da República ajuizou no STF ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 984), com pedido de liminar, com o objetivo de limitar a alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) incidente sobre combustíveis nos 26 estados e no Distrito Federal à prevista para as operações em geral. Consta nos autos que o “alto custo gerado por alíquotas excessivas” sobre um bem essencial estaria penalizando o consumidor final e ocasionando um estado de coisas inconstitucional.
O Relator da ADPF 984, Ministro Gilmar Mendes, iniciou procedimento de conciliação entre a União e os entes subnacionais. Os Estados apresentaram uma proposta de conciliação com 3 pontos: (i) A tributação do diesel de acordo com a média móvel dos últimos 60 meses, até 31/12/2022. (ii) A redução da alíquota de ICMS sobre energia, telecomunicações e transporte público apenas a partir de 2024 e (iii) A retirada da incidência imediata da TUST e TUSD da base de cálculo do ICMS, na energia elétrica, até a decisão final do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema. A União não concordou com os pedidos dos Estados e solicitou apenas o “monitoramento dos impactos efetivos das Leis Complementares 192/2022 e 194/2022, ao longo dos próximos meses até o final do 1º trimestre de 2023”.
O Ministro Gilmar Mendes, Relator da ADPF 984, destacou na ação que os Estados noticiaram a
“redução das verbas nas áreas de saúde e educação” e solicitaram a criação pela União de “mecanismos de compensação imediata, preservando-se os gastos médios nessas áreas até o julgamento colegiado do caso”.
Os Estados sustentam que as novas legislações resultarão no colapso do pacto federativo e que as finanças estaduais vêm sofrendo verdadeiros ataques federativos da União, o que viola os princípios da autonomia dos entes subnacionais e da segurança jurídica. Relataram os Estados que, dos estudos realizados, estimam que até o final de 2022 haverá redução de aproximadamente R$ 54 bilhões na arrecadação do ICMS. Para o ano de 2023, as perdas para os Estados podem chegar a R$ 124 bilhões. Os cálculos foram efetuados pelo COMSEFAZ.
No dia 02/12/2022 foi realizada a última Audiência de Conciliação e Mediação ADPF 984/ ADI 7191 (Combustíveis) no STF ficando definido que o acordo entre as partes será implementado em fases. No dia 14/12/2022 o Plenário do STF por unanimidade, homologou acordo firmado entre os estados, o Distrito Federal e a União acerca do ICMS sobre combustíveis. Coube a União encaminhar ao Congresso Nacional propostas de aperfeiçoamento legislativo da LC 194/2022 e da LC 192/2022. No que diz respeito à essencialidade, a comissão especial concordou a manutenção da essencialidade do diesel, do gás natural e do gás de cozinha (GLP), entretanto, não houve consenso sobre a essencialidade da gasolina. Os representantes dos estados e DF celebrarão convenio, em 30 dias, no âmbito do Confaz para dar tratamento uniforme ao tributo incidente sobre combustíveis, com exceção da gasolina. Para conferir segurança jurídica aos contribuintes de ICMS sobre combustíveis, os estados e o DF renunciaram expressamente à possibilidade de cobrar diferenças não pagas pelos contribuintes, pela desconformidade artificialmente criada pela média dos últimos 60 meses. Na mesma proporção, os estados não poderão ser levados a restituir eventuais valores cobrados a maior, desde o início dos efeitos da medida legal até 31 de dezembro de 2022.
Já em relação à energia elétrica, a comissão decidiu instituir grupo de trabalho para discutir, entre outros pontos, a incidência de ICMS sobre TUST e TUSD e os critérios de apuração da perda de arrecadação do ICMS.
O acordo político-jurídico realizado nos autos, aceito pelos entes federativos e homologado pelo Supremo Tribunal Federal, tem eficácia para todos e efeito vinculante. Neste sentido teve por objetivo conferir segurança jurídica a todos os agentes públicos envolvidos no processo de construção do consenso e aos contribuintes em geral. Ficou a cargo do STF a fiscalização do cumprimento dos termos do acordo como também a cargo dos entes federativos a criação dos grupos de trabalhos. Segundo o Ministro Gilmar Mendes a negociação buscou o fortalecimento da federação brasileira por meio da cooperação institucional entre seus integrantes, independentemente da ideologia e das vertentes político-partidárias.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei Complementar 194/2022 foi editada pela União, que tem competência para legislar sobre normas gerais em matéria tributária. No entanto, o governo central extrapolou de sua competência, descumprindo outras exigências constitucionais e legais. A finalidade da Lei ora analisada é extrafiscal, embora trate de normas gerais em matéria tributária, relativas ao ICMS, tributo estadual, para considerar essenciais os combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo.
A vigência imediata da Lei comprova o objetivo extrafiscal, visando a redução imediata dos preços de venda dessas mercadorias e serviços ao consumidor final, porque as leis tributárias exigem tempo de vacância para as providências administrativas, orçamentárias e alterações legislativas, o que não foi observado pela União.
Quanto ao objetivo extrafiscal da LC 194/2022, pode ser relacionado com a macroeconomia ou com interesses políticos, posto que a União tinha outras alternativas. O aumento dos preços dos combustíveis e do gás resultou da decisão de estabelecer paridade de preço internacional (com o dólar). Uma das consequências da privatização do setor de petróleo e gás foi o fechamento de Refinarias da Petrobrás, que passou a exportar petróleo bruto, inclusive para refino nos Estados Unidos e posterior importação da gasolina e óleo diesel a preços cotados em moeda estrangeira. Como o Brasil ainda tem o controle da Companhia, poderia o Presidente ter interferido para acabar com a paridade de preço internacional e para administrar os preços praticados ao consumidor final, como fizeram outros países na mesma situação.
Apesar de tratar de normas gerais e de limitações ao poder de tributar dos Estados, a finalidade extrafiscal indica descumprimento das normas constitucionais (art. 146, I a III) e não encontra amparo doutrinário.
Embora a União tenha competência para editar normas gerais em matéria tributária, tais normas devem versar apenas sobre conflitos de competência e limitações ao poder de tributar. Mesmo assim, a União deve respeitar os princípios constitucionais do federalismo, da autonomia dos entes subnacionais, da legalidade, da segurança jurídica, da anterioridade, da competência tributária expressa. Deve também respeitar as demais normas constitucionais que expressam valores e obrigações, e o contido na Lei Complementar 101/2000 e nas Leis Orçamentárias vigentes.
A Lei Complementar 194/2022, ao considerar essenciais produtos e serviços que antes eram comuns, exigiu redução das alíquotas praticadas pelos Estados, o que implica renúncia de receitas. A União não realizou estudos e relatórios de impacto orçamentário e financeiro das perdas de receitas dos Estados e não providenciou a imediata compensação por meio de transferências aos Estados, como determina o art. 14 da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).
A vigência imediata da LC 194/2022 invadiu a competência e a autonomia dos entes subnacionais porque, em decorrência dessa decisão, aplica-se o contido na norma do art. 24 da Constituição Federal, que determina que se a União editar Lei Complementar contendo normas gerais em matéria tributária, os entes subnacionais não poderão manter suas leis que estejam em desacordo com a nova legislação. Como as alíquotas praticadas pelos Estados eram livres e maiores do que alíquota geral, foram forçados a reduzi-las no curso da execução orçamentária, o que poderá exigir redução ou cortes de despesas planejadas nas áreas sociais da educação e saúde, que são as principais áreas de obrigação dos entes subnacionais.
Ocorreu violação da competência específica dos Estados porque a Lei Complementar 194/2022 tratou das alíquotas do ICMS, matéria que não é de competência da União, mas somente dos Estados consoante os arts. 155, II e 146 da Constituição Federal. A interferência da União na competência dos Estados indica que é necessário rever o pacto federativo, no tocante às obrigações dos entes subnacionais e ao financiamento para o seu cumprimento. Indica, também que o desequilíbrio federativo está insustentável.
A União centraliza as competências e as receitas tributárias, mas não assume todas as obrigações quanto à prestação de serviços públicos diretamente à população. Os Estados e Municípios prestam tais serviços públicos diretamente e, para isso, dependem das receitas públicas arrecadadas e das transferências de receitas da União. As receitas próprias dos entes subnacionais não são suficientes para o cumprimento de todas as suas obrigações constitucionais, legais e contratuais.
A União interfere na autonomia dos entes subnacionais, reduz receitas e não realiza as compensações. Edita normas de natureza tributária de competência dos Estados, sem a participação desses. Impõe prejuízos pela renúncia de receita com a sua legislação federal sem a imediata compensação financeira. Desconsidera que será a população que será afetada com as perdas das receitas, porque os serviços públicos sociais poderão ser prejudicados. As obrigações dos entes subnacionais poderão não ser cumpridas integralmente, os serviços poderão ser descontinuados, e como isso ocorre em áreas sensíveis como saúde e educação, as consequências poderão ser graves, para a presente e para as futuras gerações.
Concluímos que a União, com a edição da Lei Complementar 194/2022, sem a participação dos Estados, sem vacância da Lei e sem compensação das perdas de receitas aos entes subnacionais, violou normas constitucionais e infraconstitucionais.
A inconstitucionalidade da LC 194/2022 acontece pela violação dos princípios: federativo e da autonomia dos entes subnacionais (art. 1º e 18); da segurança jurídica e da legalidade (art. 150, I e III, a, b e c, e art. 151, III); e da competência federativa (art. 155, II e 146). Ocorreu também violação da responsabilidade na gestão fiscal que exige ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita (art. 1º, §1º da LC 101/2000).
O Supremo Tribunal Federal, ante o conflito federativo instaurado entre a União e os Estados, interveio por meio de audiência de conciliação entre as partes, na busca de solução para os problemas causados pelas referidas leis complementares. O resultado do acordo beneficia os Estados e o DF, tendo o STF concluído que houve violação do princípio federativo e dos demais princípios já expostos. Entretanto, os entes subnacionais levarão tempo para organizar suas finanças devido as consequências danosas da interferência da União nas suas receitas próprias.
A vigência imediata das Leis Complementares 192 e 194, ambas de 2022, denota desrespeito da União à autonomia dos entes subnacionais, desconsiderando que a redução das receitas tributárias sem planejamento e sem conhecimento de sua extensão, causará redução ou interrupção de serviços públicos sociais à população mais pobre, que utiliza e necessita do seu funcionamento ininterrupto.