Sumário: 1. Introdução; 2. Migrações Contemporâneas no Brasil e o Perfil da População Negra Migrante; 3. A herança colonial do racismo no Brasil e as marcas necropolíticas para os povos negros; 4. Os efeitos necropolíticos do racismo nas políticas migratórias brasileiras contemporâneas contra migrantes negros; 5. Considerações Finais; 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
As migrações contemporâneas reclamam a preocupação internacional diante do caráter multifacetado das razões que conduzem aos deslocamentos humanos. Em razão do compromisso global de proteção do direito humano de migrar, as nações devem cooperar para a concretização dos direitos sociais a todos os povos, sem distinção.
Na realidade brasileira, observa-se que os instrumentos normativos estão em consonância com os documentos e tratados internacionais, garantindo a proteção integral e irrestrita dos direitos humanos aos povos migrantes e refugiados, bem como a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao estabelecer a igualdade de direitos a todos os povos, consagra a necessidade de adoção de políticas públicas migratórias para integração dos migrantes no cenário brasileiro.
Ocorre que, ao nos depararmos com a análise dos dados dos fluxos migratórios brasileiros observamos que há uma distância significativa entre a teoria normativa e a realidade social enfrentada pelos migrantes e refugiados que se veem desprotegidos dos seus direitos a partir de políticas discrimintárias e excludentes pelos brasileiros. Sob essa égide, o perfil do migrante negro ganha destaque no que se refere ao alcance de necropolíticas discriminatórias, que evidenciam uma dupla marginalização dos povos como migrantes e como negros.
Ao se analisar o perfil da mulher negra migrante, os efeitos necropolíticos do racismo nas políticas migratórias se somam aos preconceitos patriarcais e machistas que assolam a realidade brasileira, fruto de uma herança colonial racista e misógina.
Nesse desiderato, o presente estudo tem por objetivo analisar o processo migratório brasileiro contemporâneo, com ênfase nos deslocamentos forçados da população negra, em especial das mulheres negras no Brasil, no intuito de verificar a sua relação com a necropolítica racial.
Para tanto, a presente pesquisa utilizou-se de uma revisão de literatura, com abordagem qualitativa, de natureza explicativa e aplicada, com o intuito de identificar as categorias normativas dos direitos migratórios contemporâneos, à luz da legislação pátria e internacional, a partir da análise documental dos dados migratórios brasileiros. Ademais, foram utilizadas como base de dados as plataformas SCieLo, Google Acadêmico e Scopus, sendo critérios de inclusão artigos científicos publicados nas línguas portuguesa, inglesa e espanhola, nos últimos trinta anos, envolvendo temas necropolítica, migração, racismo, mulheres negras, a partir das combinações dos descritores e operadores booleanos and/or.
Com efeito, a partir da pesquisa foi possível inferir que as migrações contemporâneas brasileiras são marcadas por fatores interseccionais que se relacionam e promovem entraves necropolíticos para a promoção da efetividade dos direitos sociais aos povos migrantes e refugiados. Nesse contexto, a interseccionalidade do racismo, gênero e da necropolítica conduzem ao processo de rememoração dos efeitos-escravização dos povos africanos em solo brasileiro, deixando como herança os efeitos necropolíticos do racismo na realidade social dos migrantes negros.
Ademais, a perspectiva de gênero evidencia que as mulheres negras migrantes ainda enfrentam os reflexos do machismo e da necropolítica racial misógena histórica como mais um elemento discriminatório que conduz ao verdadeiro entrave do acesso aos direitos sociais e a vida digna no Estado de Direito brasileiro.
2 MIGRAÇÕES CONTEMPORÂNEAS NO BRASIL E O PERFIL DA POPULAÇÃO NEGRA MIGRANTE
As migrações contemporâneas são marcadas pelo intenso fluxo de deslocamentos de populações entre territórios que reclamam a preocupação internacional para a promoção da efetividade da cidadania global. Nesse entendimento, as migrações contemporâneas apresentam-se como um dos principais debates do direito internacional para a promoção da cooperação entre as nações para compreender os fenômenos migratórios e, a partir disso, construir políticas migratórias integrativas e com respeito aos direitos humanos e a todos os povos.
Para compreender a importância do estudo das migrações contemporâneas nos remetemos ao estudo normativo e histórico dos direitos humanos, que, conforme enunciam Martínez e García3, os direitos humanos são categorias deônticas de afirmação de direitos para os povos, que foram conquistados ao longo das formações sociais. Em consonância esse entendimento, Tourinho4 afirma que o reconhecimento dos direitos humanos faz parte do processo de consolidação dos direitos basilares para a humanidade e para a sobrevivência dos povos nos dispositivos internacionais de proteção dos direitos humanos e na positivação de tais direitos nas Constituições das nações.
Nessa mesma linha de intelecção, Mozetic e Vilbert5 ponderam que a historicidade dos direitos humanos pela visão teórica jusnaturalista nos remete a concepção de direitos como categorias que não se perdem ao longo do tempo, mas se complementam a partir das transformações sociais. Por esse aspecto, a universalidade faz parte da construção dos direitos humanos, ultrapassando limites territoriais e estatuídos a todos os povos sem distinção.
Como leciona Dirley da Cunha Júnior6, os principais documentos internacionais que elevaram os direitos humanos a categoria normativa de proteção global foram a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, em 1776, documento que antecede a independência dos Estados da América, que enunciou a liberdade, a igualdade, a democracia e a soberania popular como instrumentos normativos essenciais para a humanidade; e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que decorreu da Revolução Francesa de 1789 e enunciou o marco do constitucionalismo com a elevação da liberdade, igualdade, fraternidade, legalidade como direitos humanos a todos os povos, devendo estes serem reproduzidos nas constituições das nações.
Nas lições de Piovesan7, o reconhecimento universal dos direitos humanos passa a ter notoriedade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que enunciou a cidadania global como um dever das nações para proteção dos direitos humanos a todos os povos. Após a superação da II Guerra Mundial e do reconhecimento das atrocidades perpetradas como a dizimação de populações, o referido documento internacional traz à baila a cooperação dos povos como direito humano a ser edificado pelas nações para evitar a eclosão de futuras guerras que coloquem em risco os direitos humanos e a humanidade.
A partir dessas ilações, a título de estudo da história dos direitos humanos, Vasak8 classificou os direitos humanos em categorias dimensionais com o intento de analisar o processo histórico de formação dos direitos humanos. Nas lições de Marmelstein9, os direitos de primeira dimensão foram classificados como aqueles reservados às garantias individuais, com a promoção da igualdade, da liberdade e do direito de propriedade, decorrentes da adoção do Estado Liberal Moderno. Já os direitos da segunda dimensão consagram os direitos sociais e econômicos decorrentes da Revolução Industrial. E a terceira dimensão enunciam os direitos da solidariedade, da paz e do meio ambiente, que reclamam a cooperação dos povos para proteção dos povos em todos os territórios.
Por essa égide, Tourinho10 salienta que o direito humano de migrar pode ser considerado como direito humano a partir do reconhecimento dos direitos da terceira dimensão, quando se observa a dimensão da solidariedade dos povos e da necessidade de reconhecimento da cidadania global, em que as nações devem cooperar para a promoção da paz humanitária.
Ainda em estudo das categorias das dimensões dos direitos humanos, Bonavides11 afirma que ainda é possível enunciar a existência da quarta e quinta dimensões dos direitos humanos a partir do estudo contemporâneo das sociedades. A quarta dimensão resguarda a tutela da universalização dos direitos humanos com a globalização, dando contornos ainda mais concretos para o reconhecimento do direito humano de migrar; já a quinta dimensão se preocupa em assegurar o direito à paz como compromisso e solidariedade dos países para promoção da segurança jurídica dos direitos humanos em qualquer território, como fruto da cidadania global.
Por esse aspecto, observa-se que o conceito normativo teórico da cidadania global categoriza a migração como um direito humano a ser efetivado pelas nações, uma vez que o acesso aos direitos essenciais à sobrevivência humana não pode ser negado ou obstruído a nenhum sujeito, devendo este ser acolhido de forma humanitária onde se encontrar.
Para compreender as migrações contemporâneas brasileiras insta consignar que o conceito de migrações carrega consigo um processo complexo e amplo de fluxos migratórios que envolvem uma variedade de motivos, condições sociais, políticas, ambientais. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas - ONU12 considerou que “o migrante é todo aquele que, ao ir para outro país, muda a sua residência habitual, com alguma duração, por implicar uma alteração de residência, e permitindo assim uma distinção entre migrações e outras formas de mobilidade”13.
No entanto, como enuncia Rodríguez14, as migrações em seu sentido amplo possem generalidades, histórias, motivações diversas que não podem ser estudadas com um único viés, a fim de evitar generalizações para as soluções das políticas migratórias. Na esteira dessas ilações, Tourinho, Sotero e Rodríguez15 enunciam que as migrações contemporâneas devem ser classificadas, para melhor compreender as diversas mobilidades humanas, a fim de direcionar com mais eficácia as políticas migratórias para cada situação analisada.
À guisa dessa linha de intelecção, Tourinho, Rodríguez e Sotero16 inferem que a principal diferenciação entre os processos migratórios deve ser a motivação dos deslocamentos humanos, classificando as migrações em voluntárias e forçadas ou involuntárias. As primeiras são definidas como um processo voluntário de deslocamento humano, em que há a presença apenas do sentimento subjetivo de mudança de local. Já as migrações forçadas ou involuntárias são motivadas não por escolha livre dos sujeitos, mas estes são forçados a saírem dos seus países de origem em razão da grave crise de violação dos direitos humanos que enfrentam, sendo o deslocamento um ato de sobrevivência dos sujeitos.
Nesse sentido, a Organização Internacional para as Migrações - OIM17 passou a diferenciar as migrações forçadas das voluntárias para direcionar as políticas assistenciais de recepção dos povos vulnerabilizados que buscam na mobilidade a representação de uma nova perspectiva de sobrevivência humana. Nesse sentido, o presente estudo buscou analisar o contexto das migrações forçadas a fim de discutir as políticas migratórias brasileiras aos povos negros que procuram o Brasil como refúgio.
Quando se analisa as migrações contemporâneas brasileiras à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 198818, observa-se que a legislação brasileira oferece a proteção integral dos direitos humanos e fundamentais a todos os povos em território brasileiro, oferecendo a solicitação de refúgio e reclamando a integração dos povos migrantes com a adoção de políticas migratórias, a partir da Lei 13.445/201719. No entanto, observa-se que há uma dissonância entre o conteúdo normativo migratório e a realidade vivenciada pelos migrantes no solo brasileiro, que são reféns de políticas discriminatórias que dificultam a efetividade plena dos direitos humanos aos povos refugiados.
Quando se analisa o perfil do migrante no Brasil, observa-se que as políticas discriminatórias ganham dimensões ainda mais deletérias com os efeitos necropolíticos do racismo estrutural, excluindo e marginalizando os povos negros migrantes em estrita intersecção entre racismo e migração. A população migrante e negra do país se vê diante de uma dupla vulnerabilidade social, marcada pela condição de ser migrante e de ser negro no Brasil.
Para compreender as amarras do racismo estrutural e seus efeitos necropolíticos nas políticas migratórias do país impende analisar o perfil geográfico da população migrante contemporânea que escolhe o Brasil como país de recepção. Segundo Sanchez-Alonso20, o processo histórico da migração moderna do Brasil perpassa pela rota de imigrantes que chegaram ao país em busca de novos empregos a partir da Revolução Industrial, a partir da libertação dos escravos e da campanha de atração de povos migrantes para ocupar os postos de trabalho mecanizados.
Já na contemporaneidade, o Brasil passou a ser considerado como um país atrativo para recepção de migrantes em razão da proteção normativa dos direitos humanos no texto constitucional brasileiro, que reconheceu a dimensão universal dos direitos humanos e, por consequência, atraiu povos vizinhos que passam por conflitos sociais, políticos e econômicos, como a Venezuela. Ademais, a língua portuguesa representou um atrativo para os povos africanos que também falam o português, facilitando a comunicação.
Nesse sentido, ao se analisar o perfil migrante no Brasil, o Alto Comissariado das Nações Unidas - ACNUR21, em 2016, apontou para a intensificação dos fluxos migratórios advindos da população da Venezuela, devido ao contexto de grave crise humanitária vivenciada no país. Em cotejo dos dados dos demais migrantes brasileiros, a ACNUR22 decodificou a recepção de migrantes advindos dos países da Colômbia, Síria, Angola e Congo, que são nações historicamente marcadas por disputas políticas, sociais e guerras civis, que enunciam o solapamento dos direitos humanos e ensejam as migrações forçadas. Conforme afirma Toaldo23, destaca-se que a presença de migrantes da Angola em grande percentual no Brasil se justifica também em razão da proximidade da língua, uma vez que no país se adota o português como língua oficial.
Ao se analisar os dados das solicitações de refúgio no Brasil até o ano de 2022, os relatórios elaborados pelo Observatório das Migrações Internacionais - OBMigra24 apontaram que o Brasil recebeu cerca de de 29 mil pessoas migrantes até 2021. Ainda em análise dos dados do OBMigra25, verifica-se que a Vezenuela permance sendo o país como maior número de migrantes deslocados para o Brasil, com 78,5% das solicitações de refúgio. Em seguida, observa-se o crescimento de migrantes de Angola, com 6,7% e Haiti com 2,7%. Importante destacar que, mesmo diante da crise pandêmica do COVID-19, as migrações contemporâneas no Brasil não perderam seu fluxo.
Em cotejo dos dados de migrantes apresentados pela ACNUR26 e pela OBMigra27, é possível inferir que as mulheres concentram cerca de 44,8% em 2022, em uma crescente histórica, tendo em vista que a rota de migrantes sempre foi categorizada por homens. Ao se analisar os relatórios da OBMigra28 de 2011 a 2021, houve um aumento significativo de mulheres, em especial de mulheres venezuelanas que, de 2011 a 2021 representou cerca de 69,3% dos deslocamentos forçados enquanto os homens caíram para 52,7%, em estrito processo da feminização das migrações, que antes passava despercebida pelos dados oficiais.
Nesse aspecto, em uma interseccionalidade entre os dados de migrantes e negros no Brasil, a OBMigra29 revela que o Brasil possui cerca de 150 mil haitianos e cerca de 75 mil africanos residem no país, que se autodeclaram negros. Nesse aspecto, a interseccionalidade entre o perfil negro das migrações não pode ser desconsiderado das políticas migratórias. Ademais, a análise da mulher negra apresenta-se como um marcador social ainda mais fragilizado em razão da condição de ser mulher e de ser migrante negra no país.
3 A HERANÇA COLONIAL DO RACISMO NO BRASIL E AS MARCAS NECROPOLÍTICAS PARA OS POVOS NEGROS
Para compreender os efeitos necropolíticos das políticas migratórias aos migrantes negros no Brasil é necessário compreender a herança colonial do racismo que se estruturou na sociedade brasileira. Segundo salienta Schwarcz30 o racismo brasileiro tem suas origens petrificadas na formação da sociedade brasileira que estruturou o racismo como política de segregação e dizimação dos povos negros para escravizá-los e objetificá-los como mercadorias humanas.
Nesse contexto, a compreensão da necropolítica brasileira requer um olhar histórico sob o passado cruel da escravidão moderna perpetrada na lógica do capitalismo colonial com os povos negros em solo brasileiro. Nesse aspecto, o reconhecimento da face necropolítica da formação do estado brasileiro é um mecanismo de rememorar o passado e recontar a história pelo olhar do colonizado, dando início ao processo transicional de recuperação das memórias dos povos negros e indígenas que foram silenciados com o apagamento identitário da construção social brasileira.
Conforme enuncia Holanda31, a escravidão moderna utilizou o critério do racismo como mecanismo de separação e distinção entre os povos aptos para a convivência social e aqueles que seriam descartados como objetos e mercadorias para serem explorados. A partir dessa leitura, tomamos por base a teoria da necropolítica de Mbembe32 que afirma que a escravidão perpetrou com o racismo uma política de morte e de extermínio dos povos negros, considerados indesejáveis e inapropriados para a vida da civilização da elite branca.
O racismo, segundo Mbembe33 passou a ser o instrumento da determinação da soberania dos povos brancos como justificativa para explorar os povos negros e utilizá-los como mercadoria lucrativa no período colonial. Por esse aspecto, a escravidão dos povos negros não foi apenas um comércio lucrativo da elite branca, mas o processo de apagamento identitário e humano dos povos negros, que foram reduzidos à coisificação e explorados como objetos.
Nesse contexto, as marcas do racismo são indeléveis e deletérias aos povos negros, uma vez que a necropolítica introduziu o processo de escravização dos corpos e de aflição das almas negras, que foram silenciadas e dizimadas pelo olhar do colonizador, que justificou a sua soberania sob o critério do racismo.
Sob essa égide, impende registrar que, conforme enuncia Fernandes34, o conceito do racismo foi um critério biopolítico de transformação do conceito de raça para categorização dos humanos em corpos desejáveis e corpos indesejáveis. Há de se compreender que o racismo atribuiu a diferenciação entre raças para despersonificar os corpos negros e justificar a posição de elite dos povos brancos. Nesse prisma, o racismo se apodera de um conceito biológico para inserir critérios políticos da elite branca para justificar as atrocidades humanas com a população negra.
Como enuncia Foucault35, ao transformar o conceito de raça para estruturar o racismo como critério de desigualdade entre povos, a biopolítica revela a face mais cruel do Estado, em que a soberania da elite colonial branca é autorizada a explorar e comercializar a população negra, em completo solapamento dos direitos humanos. Nesse ínterim, Agamben36 traz à baila a formação do estado de exceção na escravidão, que reconhece a importância dos direitos humanos para as classes dominantes, mas permite a excepcionalidade do direito à vida com dignidade, para manutenção da lógica capitalista colonial e extermínio da população negra. Vejamos:
A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta (sic) se mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída37.
Impende destacar que conforme afirma Hilário38, o Brasil foi palco de dois grandes massacres de povos escravizados. Em um primeiro momento, quando o território brasileiro foi invadido em 1500, os primeiros povos a serem dizimados foram os indígenas. Em um segundo momento, com a intensificação do comércio assassino e cruel dos escravos na rota da África, o Brasil passou a explorar as populações negras como mercadorias para sustentar a lógica do capitalismo moderno colonial. Nesse mesmo sentido pondera Mbembe39:
A escravidão e o sistema econômico da plantation por só configura um estado de exceção, e há a tripla perda do homem escravizado: de seu lar, do direito sobre seu corpo e de seu estatuto político, ou seja, ele se torna um morto-vivo. Nessa tríade, não há comunicação ou correspondência e concretiza-se sobre esse corpo o espetáculo da violência como protocolo de controle e disseminação do terror. Dissipou-se a humanidade para que ela se convertesse em propriedade, ou em uma “sombra personificada”, pois até mesmo sua expressão humana está inclusa na posse. O terror no apartheid promete “salvar” a população através do estado de exceção, pregando a esterilização sem consentimento e políticas de extermínio.
Nesse desiderato, Mbembe40 estabelece que a necropolítica possui suas raízes fundadas na escravidão moderna dos séculos XIV e XVI, a partir da colonização dos territórios africanos e americanos, por meio das determinações de vida e morte na esfera colonial.
A partir dessa conjectura, Mbembe41 afirma que a necropolítica teve suas origens no pensamento moderno do período colonial, mas não se encerra com o processo de abolição da escravidão nas Américas e na África. Ao revés disso, a necropolítica está abalizada nas sociedades contemporâneas, por meio dos efeitos simbólicos do racismo e da desigualdade sociorracial. Conforme orienta o filósofo camaronês42, a necropolítica se especializou na sociedade contemporânea e se solidifica com a ausência de mecanismos de reparação e superação da escravidão.
Diante dessa perspectiva, a necropolítica reformula as marcas das correntes da escravidão por meio dos efeitos nefastos do racismo enquanto estrutura social, que determina quem deve viver e quem deve morrer na realidade contemporânea. Sob essa ótica, a administração da vida e da morte dos sujeitos dependem da soberania das elites dominantes, que direcionam, de forma desigual, as políticas do Estado de assistência aos direitos sociais.
Em um giro contemporâneo, observa-se que apesar da abolição da escravidão ter sido formalmente reconhecida em 1888, os efeitos necropolíticos do racismo não foram abolidas da sociedade brasileira. Conforme afirma Nascimento43, a primeira marca necropolítica que se reproduz na realidade brasileira e evidencia a petrificação do racismo na estrutural social é o apagamento identitário da história dos povos escravizados em solo brasileiro. Ao invés de promover políticas de transição para o Estado de Direito e reparação às atrocidades perpetradas às populações negras, o Estado Brasileiro assumiu a necropolítica de esquecimento.
Segundo salienta Nascimento44, o Estado brasileiro construiu uma narrativa discursiva de benevolência da abolição da escravatura, como se os povos brancos tivessem se compadecido e resolvido encerrar a escravidão perpetrada por mais de trezentos anos por um ato de humanidade. Mas, conforme nos orienta Schwarcz45, ao se analisar o percurso histórico do processo abolicionista brasileiro, na verdade, verifica-se que a escravidão foi uma exigência das políticas internacionais, uma vez que o Brasil foi um dos últimos países a ainda manter o comércio escravo enquanto os países parceiros da economia brasileira já haviam abolido as práticas coloniais de escravização dos povos negros.
Outro processo necropolítico do racismo no Estado brasileiro foi a tentativa de criação do mito da democracia racial para tentar descortinar a história com falsas memórias a partir do apagamento das atrocidades humanas realizadas e sob a justificativa racista de que os povos brancos colonizaram os povos negros porque estes precisavam e desejam ser domesticados, voltando a colocar o negro como uma alegoria objetificada de exploração dos povos brancos. A exemplo desse processo necropolítico de criação de falsas memórias para justificar o Estado de Exceção que autorizou o massacre aos povos negros temos a obra do autor Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala. Vejamos:
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho de pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo46.
À guisa do processo necropolítico que o racismo estruturou na sociedade brasileira contemporânea a partir da abolição da escravidão foi a criminalização de práticas culturais de origem da matriz africana, como a capoeira que passou a ser crime no Código Penal do Império. Ademais, a categorização do perfil negro como sujeito perigoso e marginalizado, em estrita culpabilidade pela sua vulnerabilidade social, como a criação dos delitos de vadiagem e mendicância. Sob essa ótica, Tourinho, Soares, Sotero e Rodríguez47 asseveram que o próprio Estado que permitiu a escravização das populações negras e indígenas foi o mesmo Estado que perseguiu os povos libertos com a categorização do negro como criminoso.
Como ela (ralé de novos escravos) é estigmatizada e ninguém quer sequer chegar perto dela (...), a escola e a saúde, por exemplo, que se destinam a ela são aviltadas. A insegurança pública crônica, já que a ausência de oportunidades reais manda uma parte dessa classe para o crime - no homem a figura típica é o bandido, enquanto para a mulher é a prostituta -, decorre desse abandono. Afinal, existem aqueles entre os excluídos que não querem se identificar com o ‘pobre otário’ que trabalha por migalhas para ser ‘tapete de bacana’. Tudo, enfim, que identificamos com os grandes problemas brasileiros - como, além dos elencados acima, a ‘baixa produtividade’ do trabalhador brasileiro - tem relação com esse abandono [e violência estrutural, acrescente-se] secular48.
A partir das ilações expendidas acima, destacamos outro processo necropolítico do racismo decorrente da herança colonial brasileira, qual seja o processo de incentivo às migrações de brancos para o território brasileiro pós-abolicionista para ocupar os espaços de trabalho que seriam, a partir do processo abolicionista, remunerados, conforme se observa da leitura do Decreto nº 528 de 28 de junho de 1890, que determinou, no alvorecer da República, a completa interdição ao ingresso de negros como estrangeiros:
Art. 1º E' inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à acção criminal do seu pais, exceptuados os indígenas da Asia, ou da África que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admittidos de accordo com as condições que forem então estipuladas49.
Conforme salienta Góes50, os povos escravizados não foram reinseridos no mercado de trabalho e foram descartados da vida capitalista pós-abolicionista. Assim como também a própria inserção de estrangeiros no Brasil passou por um critério racializado, para proibir a entrada de negros para trabalharem nos empregos assalariados. Nesse contexto, Tourinho, Soares, Sotero e Rodríguez51 afirmam que a não reparação dos povos recém-libertos foi a pedra de toque para a marginalização desses povos, que passaram a ser vistos como incapazes para realizarem os serviços laborais remunerados e, por consequência, esquecidos de seus direitos reparatórios.
Nesse desiderato, o processo de migração voluntária brasileira se inicia sob os efeitos necropolíticos de discriminação e exclusão dos povos negros recém-libertos. O apagamento social do espaço do negro na construção da sociedade brasileira é o retrato de que o racismo ainda se manteve e se mantém como política sociorracial. Quando nos deparamos com o perfil da mulher negra recém-liberta, verifica-se que o espaço destinado a elas foi restrito ao trabalho doméstico como herança colonial e reflexo da herança da sociedade patriarcal e machista.
Segundo Carneiro52, a trajetória da mulher negra no período pós-colonial perpassa pelo processo de objetificação de seu corpo e silenciamento de seus direitos sociais, em uma subjugação feminina negra. Enquanto a mulher branca buscava conquistar o direito de liberdade de expressão, a mulher negra buscava, antes de tudo, o direito de existir na sociedade.
4 OS EFEITOS NECROPOLÍTICOS DO RACISMO NAS POLÍTICAS MIGRATÓRIAS BRASILEIRAS CONTEMPORÂNEAS CONTRA MIGRANTES NEGROS
Ao se analisar o processo de formação da necropolítica na realidade brasileira, observa-se que o racismo ainda se afigura como a pedra de toque da desigualdade social. A população negra brasileira representa a liderança dos grupos vulnerabilizados, em que os direitos sociais são precários, as moradias são irregulares e os espaços de emprego são desiguais. Segundo os dados do IBGE53, cerca de 13,6 milhões de pessoas vivem em favelas no Brasil, categorizados como zonas de esquecimento, com moradias irregulares e condições de vida precarizadas. Destaca-se que dessa população, 67% são negras, em uma evidente herança da necropolítica sociorracial. Ao se deparar com a realidade das mulheres negras, observa-se que 70% das pessoas negras que vivem em favelas são mulheres, decorrente da vulnerabilidade dupla de ser mulher e negra no Brasil.
Dentro dessa linha de intelecção, o Informativo das Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil do IBGE54 (2019), observou que a precariedade das condições de vida dos negros está consolidada no percentual de 75,2% da população mais pobre do país. Ainda nesse estudo, foi constatado que o rendimento per capita da população negra é 75% menor do que o rendimento da população branca. Em análise dos dados interseccionais da mulher negra, o IBGE55 verificou que a mulher branca recebe cerca de 70% a mais do que as mulheres negras nos mesmos cargos de trabalho.
Sob essa égide, verificamos que as necropolíticas representam verdadeiros entraves para a efetividade plena dos direitos humanos de forma igualitária aos povos negros, ainda que o Estado de Direito brasileiro esteja alicerçado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e assegure a igualdade de direitos a todos os povos sem distinção.
Ao se analisar a população migrante negra do país, observa-se que os efeitos necropolíticos alcançam as políticas migratórias de recepção das populações no território brasileiro. Segundo o OBMigra56, os migrantes negros que vieram do Haiti, Angola e do Congo enfrentaram mais dificuldade para encontrar emprego, sendo o único critério de diferenciação para os demais migrantes, o racismo como mola propulsora das necropolíticas sociorraciais.
Em cotejo dos dados apresentados pelo Relatório Anual do OBMigra57 verificou-se que os trabalhos formais de haitianos, angolanos e congloneses do período de 2011 a 2021 recuou de 38,8% para 27,8. Já os venezuelanos, no mesmo período, entre 2011 a 2021 passou de 0,6% para 28,6%. Tais dados demonstram que a receptividade com os povos brancos é maior do que com os povos negros. Observa-se que a própria ausência de dados quantitativos de diferenciação entre trabalhadores negros e brancos pelas pesquisas demonstram o processo necropolítico de apagamento social das marcas do racismo aos migrantes negros.
As análises das pesquisas qualitativas elaboradas pelo OBMigra58 e por Farias59 dão conta de que as marcas necropolíticas do racismo assombram a realidade dos migrantes, quando as condições de trabalho se apresentam insalubres quando comparadas com a mesma posição de brancos. Segundo Farias60, o Ministério Público do Trabalho apurou que, entre os anos de 2006 a 2021, cerca de 860 estrangeiros foram resgatados de trabalhos escravos contemporâneos no Brasil. Ainda segundo o referido órgão, os países de origem dos trabalhadores resgatados eram da Bolívia, Haiti e Paraguai, em evidente interseccionalidade com o critério da cor da pele.
A partir da análise do perfil do migrante negro, vítima das necropolíticas do Estado, a Organização das Nações Unidas apresentou o Relatório Situacional no Brasil de tráficos de pessoas em fluxos migratórios61, que demonstrou que as mulheres negras e crianças estão na rota maior da vulnerabilidade social dos migrantes no Brasil e estão mais propensos ao processo de tráfico de pessoas. Tal situação, segundo o referido relatório62 se evidencia diante da precarização das condições de vida, de trabalho e de sobrevivência humana.
Por esse aspecto, as políticas migratórias brasileiras não se distanciam das faces cruéis da necropolítica racista no Brasil, que decorrem de uma herança colonial que apregoou o racismo como instrumento abalizador de diferenciação social, determinando os corpos que devem viver e aqueles que devem morrer e sofrer as mazelas sociais.
Nesse desiderato, os efeitos necropolíticos do racismo afiguram-se como verdadeiros entraves para a concretização dos direitos sociais aos povos negros migrantes. Para mudança dessa conjuntura, é necessário que haja a consciência da população sobre o racismo e suas marcas sociais de exclusão e marginalização dos povos. Sob essa égide, a concretização dos direitos humanos para os povos migrantes, para os negros migrantes e para mulheres negras migrantes requer o desprendimento das práticas discriminatórias e racistas que amoldaram a sociedade contemporânea.
A ruptura com o passado colonial e a adoção de medidas de reparação aos povos negros é o início do caminho para se extrair as raízes amargas que a escravidão dos povos negros deixou para o presente e para as futuras gerações. Nesse aspecto, Ugarte63 assevera que os direitos humanos e os direitos sociais só serão plenamente alcançados pelas populações quando ocorrer a cultura humanística dos direitos humanos, sem distinção, libertando-se das amarras dos preconceitos com os povos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das ilações expendidas, verificamos que as migrações contemporâneas brasileiras carregam consigo as marcas indeléveis e deletérias da necropolítica brasileira nas políticas migratórias, tendo o racismo como elemento de diferenciação entre os migrantes, colocando à margem social o perfil negro das migrações.
As migrações contemporâneas das populações negras para o Brasil evidenciam uma dupla marginalização e vulnerabilidade dos povos que se deslocam, uma vez que estes, que já se encontram fragilizados pelo solapamento de direitos humanos nos seus países de origem, encontram no país receptor uma resistência social de acolhimento e concretização dos direitos sociais. Nesse desiderato, os povos negros são ainda mais discriminados nas políticas migratórias contemporâneas, pois ainda enfrentam, os efeitos necropolíticos do racismo na sua condição de migrante.
Observa-se que a intersecção do perfil migrante e negro exsurge as mazelas sociorraciais que ainda são latentes no Brasil. A realidade brasileira demonstra que os efeitos necropolíticos do racismo ainda são marcadores determinantes para o acolhimento e a exclusão de povos na sociedade. Tal conjuntura se infere dos dados dos relatórios migratórios apresentados e discutidos ao longo do texto que dão conta da ausência de políticas sociais efetivas de cumprimento dos direitos sociais aos povos migrantes e da potencialidade dessa marginalização aos povos negros migrantes.
Ao seu turno, as práticas discriminatórias aos povos negros migrantes são revestidas do necropoder que determina quem deve ser incluído socialmente e quem deve estar sujeito à exclusão sociorracial. Nessa relação o perfil negro migrante é revestido de duas violências históricas que se cruzam e que ainda não foram superadas pelo Estado Brasileiro, quais sejam os discursos de desqualificação do migrante como estranho e alheio à realidade social; e a propagação do racismo contra a população negra migrante. Destaca-se dessa relação as dificuldades ainda maiores para o acesso à trabalho, acesso à moradia e equiparação salarial para a população migrante negra do que a população migrante branca, em estrita efetivação da necropolítica brasileira.
Ao se analisar o perfil de vulnerabilidade das migrações contemporâneas, o perfil da mulher negra é ainda mais fragilizado, diante dos reforços do machismo e da sociedade patriarcal nas relações migratórias contemporâneas, que se somam ao racismo e a necropolítica como instrumentos de exclusão e marginalização das mulheres negras migrantes na realidade brasileira.
Nesse ínterim, em uma análise interseccional das vulnerabilidades apresentadas pelas populações migrantes, observa-se que o perfil da mulher negra é ainda mais excludente da sociedade brasileira, uma vez que, além da condição de migrante e negra, a condição de ser mulher revela que as marcas do machismo e da sociedade patriarcal se somam à realidade necropolítica racial.
Por essa égide, podemos inferir que a realidade normativa brasileira de proteção igualitária aos povos migrantes e refugiados no Brasil ainda se encontra muito distante da vivência social. As dificuldades enfrentadas pela população migrante e negra, em especial a mulher negra se revelam como verdadeiros entraves para a concretização dos direitos sociais aos povos migrantes, como se demonstrou com a dificuldade de moradia regular, de acesso a emprego e de remuneração salarial proporcional.
A insegurança da concretização dos direitos sociais aos povos migrantes negros, em especial ao perfil da mulher, revela que estamos longe de atingir a igualdade de direitos aos povos migrantes e a promoção da efetividade do direito humano de migrar com dignidade. Ao contrário disso, observa-se que as faces cruéis da necropolítica brasileira marcadas pelo racismo podem representar um verdadeiro entrave para a proteção integral dos migrantes negros.
Nesse contexto, é necessária uma ruptura com o passado colonial, a partir da construção coletiva de uma cultura humanista de respeito e integração dos direitos humanos, enfrentando as raízes do racismo sob o olhar da reparação histórica para que os negros possam ser efetivamente integrados na sociedade e a população migrante negra não se veja refém do estigma racial que assevera as dificuldades para adaptação e integração no solo brasileiro.