Sumário: 1. Introdução; 2. Atividade fomentadora do Estado e as debêntures incentivadas de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I); 3. O mercado de debêntures de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) após a edição da Lei Federal no 12.431/2011; 4. Análise de alguns resultados da Lei Federal no 12.431/2011 no período de 2011 e 2020 em relação às debêntures de PD&I. 5. Considerações Finais; 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como pano de fundo analisar a atuação fomentadora do Estado na economia em busca do desenvolvimento e, mais especificamente, de parte do instrumental jurídico fornecido pelo Direito Econômico para tanto, aqui representado pela forma jurídica para a construção de uma política pública de financiamento da produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) por meio das chamadas debêntures incentivadas.
Dada a interconexão entre o incremento da atividade de PD&I e o desenvolvimento nacional, faz-se relevante o estudo do papel que o Direito positivo desempenha no financiamento da construção de políticas públicas para o setor de inovação, já que este mercado depende de instrumentos jurídicos relacionados a uma demanda funcional para ser alavancado. Proporcionar um formato institucional adequado neste setor é, desta forma, essencial.
Dentre os fatores que envolvem a regulação da atividade financeira, o crédito, seja público ou privado, possui papel central e revela aspectos da ação estatal, motivo pelo qual o estudo do instrumental jurídico a ele relacionado dentro de determinada política pública evidencia o próprio sentido da atuação estatal, especialmente no setor de PD&I.
Apesar de, historicamente, a concessão de crédito no Brasil para este setor ter sido realizada diretamente e preponderantemente por meio do Estado, busca-se, atualmente, o incremento da participação do setor privado nesta área, especialmente do mercado de capitais, dada as conjecturas fiscais não muito positivas.
Não que o Estado deixe de exercer ainda importante papel. Ele continua a participar com financiamentos diretos ou até mesmo como garantidor final mesmo dentro do mercado de capitais. Todavia, a efetividade de outros instrumentos jurídicos que regulem o crédito privado se faz cada vez mais presente.
Neste sentido, o governo federal promulgou a Lei no 12.431/11 concedendo benefícios tributários para aplicações financeiras em instrumentos de mercado que têm por objetivo financiar investimentos em produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação. Um desses instrumentos de mercado seria a debênture simples, que adquire a denominação de debênture incentivada ou de infraestrutura quando enquadradas em projetos ligados a tal diploma normativo, cujos recursos visam ao financiamento pretendido considerados prioritários pelos ministérios pertinentes.
Desta forma, a descrição de parte do funding para o financiamento de PD&I, que envolva tanto a regulação da debênture incentivada, quanto alguns aspectos econômicos deste instrumento, principalmente do ambiente macroeconômico, torna-se relevante para análise da hipótese de efetividade da atividade fomentadora do Estado que contribua para o desenvolvimento da PD&I, especialmente pela possiblidade de efetuar a realocação de capital necessário a esta finalidade e que permanece disponível.
Constata-se que, apesar da Lei no 12.431/11 ter criado um regime tributário privilegiado para debêntures nas áreas de infraestrutura (IE) ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I), considerados prioritários, não se verificou a destinação de recursos em relação a estas últimas no período compreendido entre 2011 e 2020, os quais se destinaram, principalmente à manutenção e construção de estruturas físicas já existentes e refinanciamento do passivo das empresas emissoras.
Inúmeras questões vêm à tona a partir desta constatação: porque não foram emitidas muitas debêntures incentivadas para aplicação de recursos em PD&I, apenas em IE? Elas realmente possuem relevância para o desenvolvimento de PD&I? Este instrumento possui formato adequado para o desenvolvimento de PD&I? Quais seriam as possíveis falhas da atividade fomentadora do Estado por meio das debêntures incentivadas para o setor de PD&I? O aprimoramento de alguns pontos da Lei no 12.431/11 possibilitaria o incremento do objetivo da política de fomento para PD&I ou fatores externos, como a macroeconomia, seriam mais relevantes? Existe articulação entre as debêntures incentivadas criadas pela Lei no 12.431/11 e uma política pública de PD&I? É possível transferir ao mercado de capitais grande parcela do investimento de longo prazo para inovação apenas por meio da subvenção instituída pela Lei no 12.431/11? Caso a resposta seja positiva, porque a Lei no 12.431/11 não possibilitou isso? Caso a resposta seja negativa, quais outros instrumentos jurídicos são necessários para tanto?
Sem a pretensão do exaurimento de tais questões, o presente artigo buscará correlacioná-las por meio de uma descrição deste instrumento da atividade fomentadora do Estado e as possibilidades de sua utilização neste campo, bem como de alguns defeitos que o cercam, tanto com base na dogmática jurídica quanto em alguns dados empíricos, chegando-se, ao final, a algumas proposições possíveis dentro do curto espaço delimitado, o que pode ser útil para a realização de futuras pesquisas sobre o tema.
Após esta breve nota introdutória, o capítulo seguinte irá estabelecer a dogmática jurídica que envolve as debêntures incentivadas para PD&I criadas pela Lei no 12.431/2011 dentro do contexto da atividade fomentadora do Estado brasileiro. No capítulo terceiro, serão apresentados alguns dados relativos à quantidade de emissão destas debêntures desde sua criação até o presente momento e algumas características amplamente gerais, mas relevantes, do contexto brasileiro em relação ao financiamento de longo prazo para PD&I, como o ambiente macroeconômico e algumas necessidades do setor. Derradeiramente, utilizar-se-á uma metodologia que parte de uma perspectiva descritiva e indutiva, incorporando uma análise funcionalista do instrumento para avaliar sua efetividade frente às políticas públicas para inovação no Brasil, que permita a verificação de correlações entre as informações dos capítulos anteriores, o que possibilitará a realização de análises e permitirá o levantamento de algumas proposições úteis para a realização de pesquisas posteriores, claro, sem a presunção de estabelecer relações de causa e efeito. Por fim, chega-se a uma concisa conclusão consistente na eficácia das debêntures incentivadas no desenvolvimento da atividade fomentadora do Estado para PD&I, a qual, no entanto, não ocorre devidamente, principalmente por causa de fatores macroeconômicos e da política de inovação como um todo, que podem ser aperfeiçoadas2.
2 ATIVIDADE FOMENTADORA DO ESTADO E AS DEBÊNTURES INCENTIVADAS DE PRODUÇÃO ECONÔMICA INTENSIVA EM PESQUISA, DESENVOLVIMENTO E INOVAÇÃO (PD&I)
Preliminarmente, importante notar que as debêntures incentivadas são apenas um dos meios pelos quais o Estado exerce o fomento ao financiamento da pesquisa e inovação, conjugando-se meios públicos e privados. Cite-se também, como exemplo relevante, as fundações de apoio instituídas para a gerência, inclusive administrativa e financeira, de projetos de ensino, pesquisa, extensão, desenvolvimento institucional, científico e tecnológico e estímulo à inovação mediante a celebração de contratos e ou de convênios com as instituições federais de ensino superior e de ciência e tecnologia, existentes desde 1994, mas com formatação de 20133.
Isto posto, antes de adentrar especificamente na atividade de fomento estatal para o setor de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação criadas pela Lei no 12.431/2011, faz-se necessário estabelecer a dogmática que atinge tal instrumento jurídico, já que é ela a internalizadora desta figura no sistema jurídico e que permite sua instrumentalização em políticas públicas.
José Romeu Garcia do Amaral afirma que o conceito jurídico clássico de debênture está atrelado à teoria do mútuo, pois a considera como uma empréstimo efetuado entre uma pessoa jurídica de direito privado e um tomador, chamado de debenturista. A debenture seria um documento que comprova este empréstimo. Emitida a obrigação, cria-se uma relação de débito e crédito. Cabe aqui salientar que não se trata da captação de recursos por meio da emissão de ações, mas de instrumento de dívida, um titulo de renda fixa com resgate predeterminado. Isso não impede que as debêntures sejam conversíveis em ações4. A debênture, portanto, para muitos autores, cria uma relação bilateral decorrente de um contrato de mútuo. Para outros trata de uma relação unilateral, já que independeria da sua relação subjacente.
Posteriormente, a teoria geral dos títulos de crédito, juntamente com o artigo 52 da Lei das S/A, passou a considerar a debênture como um título de crédito, colocando-a como um mútuo especial dada suas peculiaridades, principalmente por existir fracionamento da dívida em partes iguais na própria escritura, distinguindo-se do mútuo simples em razão de sua emissão. Desta forma, possuiriam autonomia e literalidade, mas não independência e abstração, tendo como base um contrato de mútuo.
Atualmente, após o advento da Lei no 6.385/76 e do Código Civil, as debêntures deveriam melhor ser enquadradas na categoria de valores mobiliários, oriundos historicamente do conceito de títulos de crédito5. A diferenciação estaria no fato dos valores mobiliários não possuírem autonomia, literalidade e cartularidade, apenas conferindo ao seu titular um direito de crédito em face da sociedade emissora de acordo com o Recurso Especial n. 1321243-RJ (2012/0072888-9) do Superior Tribunal de Justiça6. A base do título, cabe lembrar, não necessariamente necessita ser um negócio jurídico bilateral, mas pode haver motivação em outros negócios jurídicos, como satisfação de serviços prestados e dividas anteriores7.
Portanto, atualmente, para diversos autores, a natureza jurídica das debêntures seria a de valor mobiliário, o que também é confirmado pela legislação, especialmente pela Lei no 4.728/65.
Valor mobiliário, por sua vez, seria o investimento oferecido ao público, onde o investidor não possui controle direto e onde a aplicação é feita em pecúnia, bens ou serviços, sempre com expectativa de lucro e desnecessária a emissão do título para materializar a relação obrigacional8. Ou, segundo o artigo 1o da Lei 10.198/01, constituem-se valores mobiliários, quando ofertados publicamente, os títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.
As debêntures se encaixam plenamente dentro deste conceito de valores mobiliários, seja por definição legal, seja pela sua própria natureza. Elas constituiriam um valor mobiliário representado por um título de dívida emitida em série, que atribui poderes ao seu titular que nela conste, e tem por função financiar a empresa por meio de diversos credores, além de ser livremente negociado em mercado. Alguns autores ainda afirmam que elas podem ser simples, conversíveis em ações ou permanentes9.
Teóricos costumam dividir as debêntures em quatro tipos: as com garantia real, as com garantia flutuante, onde o credor teria preferência sobre os credores quirografários, as debentures quirografárias e as subordinadas, que não conferem qualquer preferência. Todavia, esta classificação apenas se refere ao tipo de garantia que viria ligada à debênture, um direito acessório, não uma característica que lhe é intrínseca. Além disto, seriam nominativas ou escriturais, proibidas ao portador ou endossáveis de acordo com a Lei no 8.021/9010.
Em relação aos outros instrumentos jurídicos de financiamento externo empresarial, como o empréstimo bancário, o valor mobiliário se diferenciaria por possuir um conjunto de características, tais como a (i) contribuição para o investimento, (ii) tratar de um empreendimento comum (com gestão por terceiro, com ou sem participação do investidor), (iii) expectativa de lucro, (iv) ser um contrato de risco, (v) não possibilitar o controle do empreendimento pelo investidor, (vi) gerar direitos e obrigações para as partes envolvidas, com ou sem documento, (vii) e que o gestor dos recursos ligados ao empreendimento tenha expertise necessária para realizá-la11. Por sua vez, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) coloca também como características dos valores mobiliários: full disclosure, instrumentalidade para assegurar o controle do mercado, serialidade, circulabilidade e transferibilidade12.
Desta forma, a própria natureza jurídica da debênture, além de permitir o desenvolvimento de um mercado de títulos privados interno robusto, diminui a dependência empresarial do financiamento bancário, normalmente com taxas muito elevadas, o que é extremamente relevante em países como o Brasil, e reduz fontes de risco13. Estabilizando-se as expectativas e diminuindo a influência dos bancos, incentiva-se o financiamento de inovação e pesquisa, o que é essencial para o desenvolvimento.
Além disto, o valor mobiliário representado pela debênture incentivada imprime maior velocidade à obtenção de financiamento pelas empresas, importando na resolução de alguns desafios por elas enfrentados, tais como a imposição às instituições atuais pela inovação tecnológica, a partir da ruptura com arranjos de produção tradicionais em função de novas formas de desenvolvimento14.
Especificamente quanto a atividade de fomento estatal, Floriano de Azevedo Marques Neto afirma que os elementos do fomento podem ser estabelecidos desta forma: objeto (setores, atividade econômica e atores); agentes (que efetuarão os fins públicos visados); instrumentos para implementação e; contrapartidas que podem ser recebidas pelos agentes beneficiários. Importante distinção está entre os agentes do fomento, que receberão o benefício, e os destinatários do fomento (setores, atividades e atores), que são objeto da política de fomento. Ambos podem ser os mesmos, mas também podem ser diferentes15.
Os objetos do fomento se referem à delimitação do tipo de atividade econômica que podem receber o benefício, devendo estar inseridos em uma política pública, mas com ela não se confundindo, por ser um instrumento. Em ultima análise, a delimitação do objeto é uma decisão política.
Por sua vez, o agente do fomento sempre deve ser um ator privado capaz de promover a política pretendida.
Os instrumentos sempre dependem dos objetivos visados, podendo ser financeiros ou não, materiais ou não, humanos ou não, modulando-se a quantidade de acordo com a subsidiariedade e proporcionalidade da ação estatal. A transitoriedade não é uma característica da atividade fomentadora. A transferência de recursos orçamentários a fundo perdido podem se dirigir à oferta ou à demanda, sempre obedecendo a legislação orçamentária e à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), devendo constituir uma facilitação estatal para determinado ator ou setor. Outros instrumentos seriam a função extrafiscal do tributo e a participação estatal minoritária, sempre se levando em conta o grau de intervenção que se deseja. Importante notar que a concessão de privilégios fere em parte o principio da igualdade, devendo ser manejada proporcionalmente, como nas contratações públicas16.
A edição da Lei no 12.431/11, objetivando estimular o financiamento à infraestrutura e produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) por meio de debêntures, estabeleceu um regime tributário privilegiado destes instrumentos financeiros destinados ao financiamento do setor17.
Este regime se caracteriza por benefícios fiscais para a aquisição de títulos longos, de emissores privados não financeiros, por não residentes, e para detentores de debêntures de infraestrutura e buscaram incentivar a utilização destes instrumentos como forma de viabilizar a captação de recursos para o financiamento de investimentos e ampliar o acesso ao mercado de capitais18.
Assim, a Lei no 12.431/11 criou um novo tipo de debênture, por alguns chamado de debênture incentivada, que pode ser de IE ou PD&I e que possuem algumas características específicas, tais como emissão por Sociedade de Propósito Específico (SPE) constituída sob a forma de S/A para captar recursos para projetos ligados à infraestrutura ou produção, taxas de juros prefixadas, prazo médio superior a 4 anos, negociação em mercados regulamentados e destinação a projetos ligados à infraestrutura ou produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I). A característica mais marcante deste tipo de debênture, todavia, é o seu tratamento fiscal incentivado19.
Desta forma, este diploma legal nada mais fez do que criar um tipo de subvenção (isenção de imposto de renda ou diminuição da sua alíquota) ligada a um valor mobiliário para fomentar tanto o investimento em infraestrutura e P&D como o próprio mercado de capitais, ou seja, criou um tipo especifico de fomento estatal econômico. Todavia, esta lei realmente teria estabelecido uma atividade de fomento como a definida por Azevedo Marques?
Analisando mais este aspecto econômico da atividade de fomento desenvolvida pelo Estado, Ramón Parada assenta o foco em questões relacionadas à subvenção, que seria um tipo de fomento econômico, diferente do fomento social ou honorífico. A subvenção se distinguiria de outras ajudas econômicas por ser uma atribuição patrimonial a fundo perdido e em favor de um particular para o desenvolvimento de uma atividade específica. Sua natureza jurídica seria de uma ato administrativo, não se confundindo com um contrato. Além disto, sempre deve ser regido pelos princípios administrativos e pela concorrência, além do compartilhamento de riscos20.
Em âmbito nacional, a subvenção, segundo Regis Fernandes de Oliveira, seria o auxilio financeiro para ajudar entidades públicas ou particulares a desenvolver certas atividades, podendo adquirir caráter social ou econômico, segundo o parágrafo 3o do artigo 12 da lei 4.320/64. Inclusive, ela não poderia se destinar a criar vantagem indevida que não antedá ao interesse público21.
Conjugando-se esta forma de subvenção com a definição de Azevedo Marques teríamos em relação à lei das debêntures incentivadas: objeto como o setor de infraestrutura e produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação, além do mercado de capitais em si mesmo considerado; agentes como as empresas e os investidores que efetuarão os fins públicos visados no desenvolvimento do objeto; instrumentos para implementação consubstanciada nas subvenções ligadas às próprias debêntures e; a contrapartida, a qual seria, basicamente, o direcionamento de recursos aos projetos considerados prioritários. Desta forma, pode-se observar que as debêntures criadas pela lei são, claramente, instrumento de ação fomentadora do Estado.
Considerado isto, bem como algumas consequências que decorrem deste tipo de atividade, a Lei no 12.431/11 acabou criando um tipo de debênture, a incentivada, a qual poderia ser divida em duas com base na destinação dos recursos obtidos, a “debênture de infraestrutura” (artigo 2o, caput, primeira parte), a qual se destinaria a captar recurso para alocação em projetos de investimento em infraestrutura, e a “debênture de PD&I” (artigo 2o, caput, segunda parte) , voltada à pesquisa, desenvolvimento e inovação, onde ambas possuem rendimentos novos em relação às debêntures simples previstas da Lei das S/A, mais flexíveis, não fixas como nestas.
Este diploma, por sua vez, atribuiu isenção de imposto de renda ao investidor estrangeiro para qualquer projeto deste tipo. Ambas exigiriam requisitos adicionais à debênture simples, principalmente sua emissão por Sociedade de Proposito Específico (SPE), constituídos sob a forma de sociedade por ações, ligadas aos projetos de interesses do governo federal22. Além disto, mais rígido, este artigo estende o benefício de isenção às pessoas físicas residentes no país que adquirirem esse título. Constituiria isenção/redução do IR para debêntures, com (as mesmas) características específicas de prazo médio e remuneração e de emissão de SPE, constituída para implementar projetos de investimento, nas áreas de infraestrutura (IE) ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I), considerados prioritários (Lei nº 12.431/11, art. 2º - Redação dada pela Lei 12.844 -MP nº 601/12, Res. CMN nº 3.947/11 e Decreto n° 8.874, de 11/10/16, que revogou o Dec. nº 7.603, de 9/11/11).
Especificamente, regulamentação complementar prevista para as debêntures de SPE foi trazida pelo Decreto n° 8.874, de 11/10/16, que revogou o Dec. nº 7.603, de 9/11/11, que dispõe as condições para os projetos serem considerados prioritários, bem como os procedimentos aplicáveis à aprovação dos projetos e respectiva emissão das debêntures elegíveis ao benefício fiscal. De acordo com o Decreto, são considerados prioritários os projetos de investimento na área de infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação: aprovados pelo Ministério setorial responsável, mediante a edição por esse de Portaria Autorizativa; que visem processos tais como a implantação, ampliação, manutenção, recuperação, adequação ou modernização dos seguintes setores como Logística e transporte, Mobilidade urbana, Energia, Telecomunicações, Radiodifusão, Saneamento básico e Irrigação e; geridos e implementados por SPE constituída para esse fim.
Tendo-se estas informações em mente, alguns objetivos da Lei no 12.431/11 deve ser traçados, tais como, qual externalidade positiva e qual aperfeiçoamento jurídico por meio da debênture são buscados por esta ação fomentadora do Estado?
Pois bem, a emissão de debêntures é um dos instrumentos mais conhecidos para tornar mais atrativa as opções de financiamento. Como visto, elas nada mais são que títulos de dívidas privadas emitidas por empresas não financeiras e que conferem um direto de crédito ao investidor, ou seja, um valor mobiliário.
Constituindo uma das formas mais antigas de captação de recursos no Brasil, possui a vantagem da diminuição do custo médio de captação para a empresa em comparação à uma operação bancária, bem como o alongamento dos prazos. Na outra ponta, o comprador obtém uma boa alternativa na diversificação de seus investimentos, com melhores taxas de retornos se comparadas à títulos públicos tradicionais23.
Apesar da Lei das S/A e do Novo Mercado24 levarem ao avanço do mercado acionário, algumas barreiras previstas na própria Lei das S/A e a ineficiência do mercado securitário de dívida dificultavam a emissão em larga escala das debêntures, o que levou a um esforço conjunto entre o governo federal, entidades do mercado e CVM para tornar mais atrativos os investimentos em infraestrutura e P&D por meio de debêntures, culminando na Lei no 12.431/11, que buscou algumas mudanças, como a concessão de subvenções atreladas a contrapartidas, como o investimento em infraestrutura e projetos de PD&I considerados prioritários. Além disto, a emissão por SPE constituída sob a forma de S/A para captar recursos para projetos ligados à infraestrutura ou PD&I, taxas de juros prefixadas, prazo médio superior a 4 anos, negociação em mercados regulamentados, constituem o aperfeiçoamento jurídico da debênture considerado adequado ao objetivo pretendido com esta atividade de fomento.
Sob um aspecto mais amplo, ligado antes ao objeto desta política, a Lei no 12.431/11 procurou estabelecer algumas externalidades positivas como meta. Segundo a Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 517, de 30 de dezembro de 2010, convertida na Lei no 12.431/11, a criação das debêntures incentivadas se fez necessária para viabilizar a construção de um mercado privado de financiamento de longo prazo, já que perspectivas de crescimento econômico demandariam a construção de uma nova base de financiamento para os projetos de longo prazo, o que perpassaria pela maior participação da iniciativa privada como fonte complementar de funding.
Observou-se que tanto o governo quanto os bancos públicos, principalmente o BNDES, não conseguiriam continuar como promotores quase que exclusivos de financiamento de longo prazo, o que pode comprometer a sustentabilidade do crescimento perseguido. Em 2011, quase 90% da carteira de crédito com vencimento superior a cinco anos tinham como lastro linhas oriundas de bancos públicos, sendo que só o BNDES era responsável por quase sessenta e dois por cento dessa carteira, conforme a mesma Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 517, de 30 de dezembro de 2010.
Por outro lado, o mercado de capitais naquele ano, que poderia atuar como fonte de funding complementar, era inexpressivo, girando em torno de 2,5% a 3% do Produto Interno Bruto - PIB, e com um mercado de títulos de dívida eminentemente concentrado em operações de curto e médio prazo e indexadas a índices de juros de curtíssimo prazo, como os Depósito Interbancário - DI e a taxa do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC.
Desta forma, a Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 517, de 30 de dezembro de 2010, convertida na Lei no 12.431/11, conclui pela necessidade da adoção de medidas para incentivar o surgimento de um mercado de financiamento privado de longo prazo, incentivo este que não deve estar focado apenas no barateamento ou no fomento a novas emissões, mas também no desenvolvimento do mercado secundário de negociação de tais títulos, uma vez que a factibilidade de eventual venda dos títulos adquiridos no mercado secundário, ou mesmo a possibilidade de acompanhamento da precificação de tais títulos seria tão relevante quanto o mercado primário ligado apenas à rentabilidade dos títulos.
Assim, as externalidades buscadas seriam: fomento ao financiamento de longo prazo para infraestrutura e PD&I e fomento ao desenvolvimento de mercado de capitais para financiamento de longo prazo ligado a estes setores.
Interessante notar que nesta Exposição de Motivos há o argumento do custo-benefício desta política de fomento, que implica renúncia fiscal, ou seja, custo fiscal. Segundo este documento ele seria muito pequeno frente à mudança estrutural que se esperava com o eventual sucesso das medidas e a consequente alteração na estrutura de financiamento de longo prazo da economia, com a renúncia atingindo o montante, conforme estimativas da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, de aproximadamente R$ 972 milhões, a serem incorridos nos dois primeiros anos após sua adoção.
3 O MERCADO DE DEBÊNTURES DE PRODUÇÃO ECONÔMICA INTENSIVA EM PESQUISA, DESENVOLVIMENTO E INOVAÇÃO (PD&I) APÓS A EDIÇÃO DA LEI FEDERAL NO 12.431/2011
As externalidades buscadas pela Lei no 12.431/11 apenas poderiam ter sentido em um contexto econômico e social em determinado período do Brasil. Desta forma, o contexto macroeconômico em que as debêntures incentivadas foram criadas é de extrema importância para aferir a importância do instrumento.
Naquela data, a economia brasileira apresentava grande estabilidade fiscal e grande perspectivas de crescimento econômico, devido a generosos investimentos federais e de um governo comprometido com a estabilidade fiscal. Entretanto, a partir de 2013, o Brasil vivenciou exatamente o contrário, um período de instabilidade e alta volatilidade de capitais.
Desde 2013, a economia brasileira mergulhou em um período recessivo e de baixo dinamismo, sem contar o enxugamento de liquidez e elevação das taxas de juros, o que levou os investidores a serem mais cautelosos. Entretanto, mesmo nesse período, as emissões foram crescentes e consistentes ao longo do tempo.
Entre 2011 até janeiro de 2020, foram trezentas e dezenove emissões de debêntures de infraestrutura e PD&I. O volume total de debêntures de infraestrutura emitido no mesmo período foi de R$ 92,5 bilhões aproximadamente25.
Do ponto de vista dos investidores, levando-se em consideração dados de 2018 que não se modificaram quanto ao conteúdo no período posterior, 37,7% dos papeis emitidos estão no poder de investidores pessoas físicas, principalmente domésticos e que reconhecem os papeis como eficientes do ponto de vista fiscal e rentáveis - uma primeira comprovação da aceitação por parte do público em geral26. Fundos de investimentos (14,4%), grandes bancos de investimentos (10,5%), gestoras de recursos (assets) ou escritórios especializados em gestão de patrimônio de grandes investidores (wealth management and family offices) representam pouco dos papeis emitidos, não tendo sido este incentivo por eles bem interpretado.
Além disto, verificou-se uma situação de grande desequilíbrio fiscal no Brasil desde 2014, no qual os investimentos em infraestrutura estatais foram à míngua. Neste sentido, lembrando que a Lei no 12.431/11 permitiu em seu artigo 2o, § 1º-A, a emissão de debêntures incentivadas por concessionária, permissionária, autorizatária ou arrendatária, constituídas sob a forma de sociedade por ações, típicas entidades envolvidas em Parcerias público-privadas (PPP), e, considerando que este instrumento é imprescindível para fomentar o desenvolvimento da infraestrutura e de PD&I, as debêntures constituiriam uma forma de o Estado, carente de recursos, juntamente com o setor privado, realizar obras e pesquisas que não teria condições de realizar sozinho27.
Inclusive, utilizando-se de uma SPE criada entre uma ICT (Instituições Científicas e Tecnológicas, segundo artigo 2o da Lei no 10.973/2004) e a iniciativa privada, obtém-se vantagens oriundas do regime jurídico de direito privado que lhes será próprio, inclusive a emissão de debêntures incentivadas, possibilitando o adequado retorno financeiro a todos os instituidores e investidores28.
Portanto, as debêntures incentivadas tenderão a ganhar mais espaço, seja impulsionado devido ao investidor suportar maiores retornos em um cenário de baixas taxas de juros e isenção fiscal, seja por um Estado amplamente empenhado em controlar o déficit público. E, além disto, de forma descentralizada, pulverizada e oriunda de capital privado, mas com o enorme e ainda não totalmente explorado potencial de financiamento de longo prazo. Isto apenas depende de, novamente, um ambiente macroeconômico mais confiável e previsível.
Entretanto, deve-se ter em conta a realidade brasileira para tanto, que traz algumas particularidades quanto ao fomento à inovação em países em desenvolvimento.
Em artigo publicado por Luca Monte Silva e Patrícia Borba Vilar Guimarães acerca das políticas públicas para inovação no Brasil, algumas especificidades deste setor em relação ao fomento estatal foram analisadas de forma a considerar a situação de países em desenvolvimento, o que é útil para o que se pretende verificar no presente estudo29.
Segundo os autores, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) define inovação como a implementação de bens e serviços inteiramente novos para produtos já existentes, implementação de novos métodos organizacionais no ambiente de trabalho ou implementação de novos métodos de produção, incluindo mudanças no design do produto30.
Apenas para ressaltar, tomando-se como base a deifição anterior, nem sempre a inovação exige uma introdução de uma nova tecnologia com alto custo, o que poderia levar à falsa conclusão de que ambas são interedependentes. Segundo Dalton Ribeiro Brasil, a inovação nem sempre é disruptiva, podendo ser meramente incremental, fornecedendo algumas poucas melhorias ao que já existe31.
Desta forma, Luca Monte Silva e Patrícia Borba Vilar Guimarães estabeleceram o que seria uma taxa de inovação, a qual se relacionaria ao aumento da produtividade por meio de novas técnicas, basicamente, sendo que este foi o parâmetro por eles levado à cabo para a verificaçao da efetividade de uma política pública de fomento à inovação.
Empreendimentos ligados à inovação envolvem riscos, sendo um dependente do outro. Especialmente no setor, percebe-se que o risco é intrínseco ao desenvolvimento de uma “coisa nova”, que não foi criada ou desenvolvida por outra pessoa ou empresa e ainda não foi testada e implementada no mercado. Existe uma fronteira muito estreita entre falhar ante uma possibilidade física e técnica e ser bem sucedido em uma empreitada inteiramente nova. Assim, o risco que envolve esta atividade é muito maior do que em outros setores, como a produção industrial e comércio em geral. Além deste risco inerente à inovação, deve-se lembrar alguns outros ligados à infraestrutura pelo investidor privado, que com ele coexistem: (1) Riscos de Construção; (2) Riscos de Demanda e (3) Riscos de Financiamento32.
No caso de políticas públicas ligadas à ciência, tecnologia e inovação existiriam ainda três falhas de mercado33 que são relevantes: externalidades imprevisíveis, informação assimétrica, problemas estruturais do interesse público inerente à inovação. Estas são falhas sistêmicas que aumentam a possibilidade de falha em empreendimentos ligados à PD&I, que reduzem eficiência de determinada política34.
Dados os gigantescos riscos e as citadas falhas de mercado, países em desenvolvimento encontram mais dificuldades do que os países já desenvolvidos para estabelecer políticas eficientes de fomento à inovação, uma vez que, como dito, o ambiente macroeconômico e o ambiente empresarial também condiciona todo o processo. Nem todos os países possuem mercados que incentivam a inovação
Nos EUA, por exemplo, os empreendedores têm incentivo pra investir em P&D, capital disponível e redes de incubadoras que mitigam os efeitos das falhas de mercado, aumentando as chaves de sucesso de uma política.
Países como o Brasil, onde pequenas e médias empresas não possuem os mesmos incentivos e oportunidades, os investidores não encontram uma taxa de retorno adequado aos riscos que enfrentam35, o que desestimula políticas para o fomento em inovação ou, ao menos, as tornam muito mais dificultosas.
É bem verdade que, atualmente, estão sendo enveredados esforços para mitigar nacionalmente tais riscos e barreiras. A Lei Complementar no 182, de 1º de junho de 2021, neste sentido, instituiu o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador, a qual redefinindo conceitos, contribuiu para gerar segurança jurídica necessária à facilitação de investimentos e ao fomento à inovação. E, como se sabe, a atividades de uma startup possuem características voltadas à inovação, à escalabilidade, à repetibilidade, à flexibilidade e à rapidez. Todavia, ainda não existem dados suficientes que demonstrem o desenvolvimento do setor e a superação das dificuldades que lhe são impostas36.
Neste contexto de falhas de mercado e problemas estruturais, a introdução de políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação ganha relevância, o que desperta algumas questões relacionadas à própria necessidade de intervenção estatal no processo de inovação, que parece ser realmente necessária nestes contextos. O Estado precisa intervir para corrigir estas falhas, uma vez que o mercado sozinho não consegue fazer isto, principalmente devido à questões estruturais da própria economia37.
Constatada a necessidade de intervenção estatal, o envolvimento do setor privado neste tipo de financiamento é relevante no Brasil, especialmente dado à grande necessidade de volume investimento e devido a atual situação fiscal do país, que tolhe do governo capacidade de financiar plenamente este setor. Neste sentido, a Lei no 12.431/11 isentou de pagamento de imposto de renda o investidor pessoa física e o estrangeiro, que possuírem escopo nos títulos de infraestrutura ou PD&I.
Os efeitos gerados pela debênture incentivada criada por este diploma legal na realocação de capital disponível na economia, formando-se ou não um mercado de capitais para financiamento de longo prazo para pesquisa e inovação, elucida a instrumentalização pela qual o Estado brasileiro intervém necessariamente na economia por meio de regulação em busca do desenvolvimento no contexto do capitalismo contemporâneo, sempre se levando em consideração que não é possível compreender as instituições brasileiras sem a realização de uma leitura dentro de um quadro hierárquico do sistema mundial.
Este objetivo se mostra necessário na medida em que, considerando o desenvolvimento como um fenômeno histórico, a superação do subdesenvolvimento em países situados na periferia do sistema capitalista internacional hierarquizado demanda a necessidade de uma efetiva atuação estatal, já que ele também representa um fenômeno de dominação e, portanto, de natureza cultural, política e econômica38.
Desta forma, o incentivo de um mercado de capitais por meio de debêntures incentivadas realmente possui relevância para o desenvolvimento da PD&I, devendo a política pública de fomento por elas estruturadas ser conduzida pelo Estado.
Partindo-se desta premissa, impõe-se a verificação da atualidade do mercado de capitais no tocante à destinação de recursos para produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) por meio das debêntures incentivadas entre os anos de 2011 e 2020.
Com efeito, a análise da efetividade de determinada política pública pressupõe que sejam feitas comparações entre os objetivos por ela buscados antes e após sua implementação. Desta forma, como os objetivos da Lei no 12.431/11 são o fomento ao financiamento de longo prazo para infraestrutura e PD&I e o fomento ao desenvolvimento de mercado de capitais para financiamento de longo prazo, importante verificar em que estado eles se encontram atualmente.
Desde a promulgação da lei, em 2011, até janeiro de 2020, foram emitidas, conforme já afirmado, trezentas e dezenove de debêntures de infraestrutura e PD&I, com volume total de R$ 92,5 bilhões aproximadamente. Apesar de pouco representativas em relação ao estoque total de debêntures na Indústria, as debêntures incentivadas se destacam pela elevada liquidez no mercado secundário, representando um razoável volume negociado e um grande número de operações, conforme verificado entre março de 2014 e março de 201639 e ampliado até janeiro de 2018, padrão que se manteve até dezembro de 2019.
Uma das conclusões que se pode chegar, verificando estes dados, seria a de que o mercado nacional de debêntures cresceu razoavelmente nos últimos anos, apesar de abaixo do esperado, mas ainda apresenta características desfavoráveis ao investimento de longo prazo, como o baixo prazo dos ativos e a participação concentrada em agentes financeiros e em fundos de investimento40. No mercado secundário, nos 12 meses entre Janeiro de 2018 a Janeiro de 2020, a negociação de debêntures incentivadas foi superior a de debêntures simples, sendo 75,7% das primeiras, o que demonstra a efetividade do desenvolvimento deste mercado secundário, um dos objetivos da Lei no 12.431/1141.
Além disto, conforme aponta Fayga Czerniakowski Delbem, a introdução do benefício fiscal apenas para pessoas físicas e investidores estrangeiros gerou uma precificação das debentures por um spread inferior ao mínimo exigido por outros investidores não contemplados pela Lei 12.431/11, como os fundos de investimento, por exemplo. Assim, a demanda por estes títulos ficou restrita aos grupos beneficiados pela lei, restringindo a capacidade de financiamento e impedindo o pleno desenvolvimento do financiamento à infraestrutura e PD&I pelo mercado de capitais, sendo o impacto da introdução de benefício tributário negativo na formação do spread de crédito, distorcendo o spread de crédito das debêntures, com remuneração abaixo do mínimo aceitável dado o risco envolvido42.
Mais relevante ainda para o presente artigo é que entre 2011 e 2020 a grande maioria da destinação dos recursos obtidos com as debêntures incentivadas se voltaram ao investimento da infraestrutura física propriamente dita, especialmente na manutenção da estrutura já existente e no refinanciamento do passivo das empresas emissoras, nada indicando que houve injeção de capital em PD&I43. Ou seja, não houve destinação de valores para implementação de bens e serviços inteiramente novos para produtos já existentes, implementação de novos métodos organizacionais no ambiente de trabalho ou implementação de novos métodos de produção, incluindo mudanças no design do produto.
Mesmo verificando as Portarias que autorizam a emissão de debêntures para setores estratégicos, nenhuma se refere especificamente à produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação em 2017, ano significativo de emissões, padrão que se manteve até dezembro de 201944.
Desta maneira, pode-se concluir que o mercado de capitais para financiamento de longo prazo em PD&I não se desenvolveu conforme o desejado com a promulgação da Lei no12.431/11.
4 ANÁLISE DE ALGUNS RESULTADOS DA LEI NO 12.431/11 NO PERÍODO DE 2011 E 2020 EM RELAÇÃO ÀS DEBÊNTURES DE PD&I
Iniciando-se pela metodologia de análise, Norberto Bobbio entende por função promocional do Direito a ação que se desenvolve por ele por meio do instrumento das sanções positivas. Isto seria necessário principalmente em face de uma transição de um Estado garantista para um Estado dirigista, passando o Direito a ser um instrumento de direção social ao invés de controle social. Esta ideia não suplementa, mas complementa a noção de uma noção estruturalista do Direito, na qual a teoria geral seria antes orientada para a análise da estrutura do ordenamento jurídico, não o considerando como um subsistema que se posicionado ao lado de outros como o econômico, o social e o político, onde as normas teriam como escopo a coação por meio de sanções negativas. As medidas de desencorajamento desta análise são utilizadas com o objetivo de conservação social, enquanto que as medidas de encorajamento propostas por sanções positivas em uma visão funcionalista seriam utilizadas com o propósito de mudança social45.
Desta forma, acredita-se que existe a necessidade de se efetuar uma análise funcional para se avaliar a efetividade de determinada lei em um contexto que vá além da estrutura jurídica e busque mudança social, como o desenvolvimento de PD&I com vistas ao desenvolvimento. A lei, neste sentido, estabelece objetivos que se tornam realidade por meio de políticas públicas, bem como arranjos institucionais e ferramentas que podem ser utilizados nesta política, além de permitir o escrutínio público de metas.
A análise utilizará, ainda, a metodologia empregada por Luca Monte Silva e Patrícia Borba Vilar Guimarães acerca das políticas públicas para inovação no Brasil, que integra a visão funcionalista conforme afirmado.
Segundo os autores, os estágios que devem ser observados pelas políticas públicas seriam: (i) identificação do problema e sua relevância; (ii) estabelecimento de metas por meio de estudos e levantamento de dados; (iii) estabelecimento de um planejamento que considere os diversos atores envolvidos e o orçamento disponível; (iv) análise dos resultados e da efetividade da política46.
Ressalte-se que a fonte dos dados para análise da Lei no 12.431/11 e as debêntures de PD&I será, principalmente, o site da ANBIMA (Associação Brasileira das Entidades do Mercados Financeiro e de Capitais) e da Secretaria da Fazenda.
Utilizando-se tal metodologia, parte-se para a verificação das possíveis falhas da atividade fomentadora do Estado por meio das debêntures incentivadas para o setor de PD&I47.
Verificando-se os dados expostos no capítulo 3.3, pode-se chegar a uma primeira conclusão acerca do mercado de capitais de debêntures estimulado pela Lei no 12.431/11: não houve o seu desenvolvimento no tocante às debêntures incentivadas para o setor de PD&I. E, mesmo para as debêntures incentivadas para infraestrutura, apesar de verificado algum crescimento, este ficou aquém do desejado, o que frustrou expectativas em relação ao financiamento de longo prazo pelo setor privado48.
Um primeiro questionamento seria acerca do motivo desta baixa emissão e quais seriam as possíveis falhas da atividade fomentadora do Estado por meio das debêntures incentivadas para o setor de PD&I.
As falhas da atividade fomentadora do Estado para o setor por meio destes instrumentos estão ligadas, principalmente, à falta de integração da lei com uma perspectiva mais ampla de atuação fomentadora do Estado para inovação que considere, além de outros instrumentos jurídicos, fatores macroeconômicos, como os indicados no capítulo 3.1. Não seria a qualidade da lei em si, tampouco a necessária ação estatal, mas a execução do programa de fomento propriamente dito que causou as falhas.
Neste sentido, também existiriam algumas causas não jurídicas para tanto, como a deflagração da Operação Lava-Jato, a realização da Copa do Mundo e as eleições presidenciais de 2014, além de questões relacionadas à oferta e a demanda. Nestas últimas, que foram baixas, existiria ainda o problema da concentração de emissões por empresas “maduras” para financiar operações já existentes, o que afeta diretamente o setor de PD&I, caracterizado muito por pequenas e médias empresas49.
Somam-se a isto o momento fiscal restrito do país a partir de 2013 e o esgotamento dos recursos públicos via bancos de fomento, como o BNDES. Com a elevação do déficit primário do governo, os aportes do Tesouro Nacional no BNDES não se sustentaram mais, inclusive, porque o custo do financiamento concedido pelo BNDES, por ser subsidiado, amplia ainda mais o déficit fiscal.50 E, principalmente, a renúncia fiscal relacionada às debêntures agrava o quadro de estrangulamento fiscal. Esta, pelo menos, é uma possível análise.
Especificamente, constata-se a ausência do estabelecimento de metas bem definidas, uma precariedade do estabelecimento de um planejamento que considere os diversos atores envolvidos no mercado de capitais ligados à PD&I e o peso de cada um, já que o Estado ainda é o grande investidor do setor, e uma ausência de análise dos resultados e da efetividade da política pública de inovação.
Dentro desta constatação, pode-se ainda elencar algumas outras que lhe dão suporte.
Primeiro, não existe articulação entre os objetivos propostos para as debêntures incentivadas criadas pela Lei no 12.431/11 e uma política pública de PD&I.
Segundo, não é possível transferir ao mercado de capitais grande parcela do investimento de longo prazo para inovação apenas por meio da subvenção instituída pela Lei no 12.431/11 devido ao peso que a atuação direta estatal possui em países em desenvolvimento e aos riscos que envolvem PD&I51.
Terceiro, há superposição de incentivos (Lei de Inovação e outros instrumentos jurídicos) e de órgãos estatais com poder discricionário para autorizar emissão debêntures ligadas projetos considerados prioritários em PD&I.
Quarto, como as subvenções são discricionárias, quando da autorização de sua emissão, a atividade fomentadora do Estado não compensou sua interferência no mercado ao estabelecer privilégios para alguns atores, o que desestimulou empresas de menor porte que são responsáveis por investimentos em PD&I.
Quinto, considerando-se a subvenção uma relação jurídica bilateral com ampla discricionariedade estatal, a ausência de previsibilidade de ação do Estado oriunda de uma falta de uma política pública integrada para PD&I não permitiu previsibilidade de lucro para o agente privado no longo prazo.
Sexto, existe ainda um excessivo risco presente para o setor privado ligado ao mercado de capitais, principalmente em países em desenvolvimento como Brasil, que sofrem demasiadamente com a variação cambial de suas moedas.
Sétimo, quanto à macroeconomia, o incentivo não foi suficiente para suplantar outros meios de investimento no mercado de capitais, como os títulos da dívida pública (crowding out ao invés de crowding in).
Oitavo, a incerteza na própria regulamentação do mercado de capitais, com diversos normativos emitidos pela CVM que tornam excessivamente complexo o investimento em títulos privados, tornando ainda mais difícil os ligados à PD&I, que possuem mais riscos, especialmente para pequenas e médias empresas, as quais não possuem capital para suportar riscos de longo prazo e estão voltadas a este setor.
Nono, a falta de coordenação de uma política de inovação com a política de desenvolvimento industrial do país, o que desincentiva o investimento em inovação de empresas que emitem debêntures. Inclusive, sequer existe uma política industrial nacional.
Décimo, a limitação de transferência de tecnologia na política de inovação entre Estado e investidores, o que influi na atratividade de empresas emissoras de debêntures de PD&I.
Décimo primeiro, a falta de mão de obra qualificada no setor de inovação, o que torna o risco da atividade muito alto para investidores.
Décimo segundo, o sistema tributário complexo e sistema de reconhecimento de patentes lento, o que torna o sucesso de empresas emissoras de debêntures incerto e desincentiva a compra de títulos privados.
Décimo terceiro, a alta de controle dos resultados obtidos com esta política de fomento, principalmente na relação entre o quanto o Estado renunciou de receita e o quanto foi investido em inovação pelas empresas que emitiram as debêntures.
Percebe-se, além destes fatores, que uma das limitações que dificultou a maior emissão de debêntures estaria no estabelecimento de um planejamento que considerasse os diversos atores envolvidos. A Instrução CVM no 400/2003 permitiu a emissão ampla destes títulos apenas às companhias abertas, sendo que a maioria das empresas ligadas à infraestrutura e PD&I, no Brasil, serem de capital fechado. Ressalte-se que a Instrução CVM no 476/2009 fez uma exceção de oferta para 50 investidores qualificados e a compra dos títulos a apenas 20 investidores. Além disto, destacou-se a incipiente participação dos fundos de investimento neste mercado, já que a introdução do benefício fiscal apenas para pessoas físicas e investidores estrangeiros.
Mesmo para estes últimos, em corroboração com as falhas citadas, existiram alguns problemas que afastaram os investimentos. Segundo Delbem, seriam os seguintes: falha no marco regulatório brasileiro para estimular a entrada de capitais estrangeiros; questões tributárias como a incidência do Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF) sobre as operações de câmbio, sendo que suas alíquotas já se alteraram diversas vezes, aumentando a insegurança jurídica; volatilidade cambial; dificuldade de execução de títulos extrajudiciais e; a proteção ao acionista em recuperações judiciais52.
Enfim, conforme metodologia proposta, a política pública de fomento buscada pela Lei no 12.431/11: i) identificou parcialmente o problema, pois, apesar de constatar que existe a necessidade do desenvolvimento do setor de PD&I e sua relevância para o desenvolvimento, desconsiderou, ou sequer estimou, o impacto de fatores macroeconômicos previsíveis no financiamento de longo prazo para o setor de P&DI, bem como a especificidade deste setor, que envolve riscos maiores que outros; (ii) não estabeleceu metas por meio de estudos e levantamento de dados; (iii) não estabeleceu um planejamento que considerasse a relevância dos diversos atores envolvidos e o orçamento disponível; (iv) não houve uma análise dos resultados e da efetividade da política para que esta pudesse ser aperfeiçoada.
Portanto, as debêntures incentivadas criadas pela Lei no 12.431/11, apesar de possuírem um formato adequado para o desenvolvimento da PD&I, por serem valores mobiliários passíveis de garantia e volatilidade que o mercado de capitais exige para um setor com alto risco, careceram de articulação com uma política pública de PD&I adequada que lhes dessem suporte, principalmente que considerasse alguns fatores macroeconômicos, tais como o valor dos títulos da dívida pública, que competem com os títulos de dívida privada com juros subsidiados, a participação do BNDES no mercado e falta de suporte estatal para garantir um financiamento de longo prazo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O diagnóstico apontado no desenvolvimento do artigo não significa que as debêntures incentivadas para PD&I devam ser consideradas como instrumentos ineficientes para estimular o financiamento de longo prazo do setor. Pelo contrário. O maior problema se encontra na política pública para o setor como um todo.
A política pública de fomento à inovação deve ser considerada de forma integrada53, com coordenação dos diversos atores que dela participam, incluindo tanto elementos a ela externos, tais como fatores macroeconômicos e as necessidades específicas de países em desenvolvimento, especialmente os cambiais, quanto internos, tais como o aprimoramento de alguns pontos da Lei no 12.431/11, a exemplo da inclusão de mais agentes no papel de investidores ou emissores, a não superposição de benefícios ou a maior previsibilidade na discricionariedade de concessão de incentivos fiscais atrelados ao instrumento.
Isto possibilitaria o incremento do objetivo da política de fomento para PD&I, permitindo o estabelecimento de metas e a análise de resultados, extremamente relevantes para sua efetividade contínua.
Percebe-se que, mesmo em um período de elevada aversão ao risco e redução da viabilidade de muitos projetos, o mercado de capitais ligado às debêntures incentivadas vinculadas à infraestrutura vem apresentando taxas de volume de capital alocado crescentes. Isto é um indicativo de que as debêntures de PD&I também podem se tornar atrativas, caso sejam oferecidos outros instrumentos que mitiguem o maior risco ligado ao setor de inovação.
Neste sentido, a crise fiscal que levou à recessão no triênio de 2014-2016 explicou, se não de forma geral, mas em parte, a inviabilidade do Estado ser o único e total financiador de projetos de infraestrutura e de PD&I no país, o que, inclusive, já era pontado na exposição de motivos da Lei no 12.431/11. Ressalte-se apenas que os investimentos públicos diretos possuem papel fundamental no desenvolvimento do setor, atundo o agente privado de forma complementar.
Além disto, o regime jurídico criado pela Lei no 12.431/11 simplificou o processo de emissão de debêntures, possibilitando às empresas emissoras administrarem melhor os riscos de mercado, o que também gera impacto no mercado secundário. Isto, por sua vez, ampliou o espectro de agentes investidores, tornando tais títulos mais líquidos. Complementando esta ideia, os incentivos fiscais, ainda que temporários, possuem o condão de incentivar a geração de recursos para as empresas emissoras.
Portanto, as debêntures incentivadas de PD&I tenderão a ganhar mais espaço, caso corrigidos os erros de política pública setorial apontados, seja impulsionadas pelo investidor que procura por maiores retornos em um cenário de baixas taxas de juros e isenção fiscal, seja por um Estado preocupado em investir neste setor sem prejudicar demasiadamente metas fiscais.
Elas se mostraram como instrumento importante para a atividade fomentadora do Estado para PD&I, possuindo inúmeras possibilidades de utilização, que vão desde a diminuição do risco inerente ao financiamento de longo prazo deste setor, ao proporcionar maiores garantias e taxas de retorno, ao incentivo ao desenvolvimento do mercado de capitais em si mesmo considerado, o que pode ser uma boa alternativa na constituição de um funding para o financiamento do setor.