Sumário: 1. Introdução; 2. Método; 3. Resultados; 4. Discussão; 5. Considerações Finais; 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
No Brasil, especificamente na década de 2010 (Resolução Conselho Nacional de Justiça [CNJ] n. 175, maio de 2013), ocorreu a expansão e legitimação na esfera jurídica das diversas configurações familiares, ao considerar que as reivindicações sociais possibilitaram a abertura para o reconhecimento de direitos. Historicamente, o modelo de família é representado pela construção sociocultural da heteronormatividade, por outro lado, há necessidade de considerar os avanços referentes a diversidade das identidades de gênero e orientações sexuais que se refletem na contemporaneidade em conjugalidades. Um ponto positivo se refere aos seguintes termos que foram identificados por Machim (2016) na produção científica: “lesbian families”, “gays families”, “lesbian motherhood”, “same sex couples”, “lesbian and gay parening/parenthood”, “non tradicional families” e “homoafetividade”. Destaca-se que tais termos permitem compreender o universo das relações conjugais, embora, há necessidade de divulgar informações educativas na sociedade para promover conscientização, respeito e inclusão.
No que se refere às relações homoafetivas no Brasil, a decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo (RESOLUÇÃO CNJ n. 175, maio de 2013). Esta resolução proporciona às famílias homoafetivas todos os direitos concedidos aos demais casais, o que facilita a adoção de crianças e adolescentes, incluindo o nome do casal no registro de nascimento do filho (ANDRADE, GONÇALVES, & LELIS, 2017; BARBOSA, PINTO, & QUEIROZ., 2016; CERQUEIRA-SANTOS ET. AL., 2017; COITINHO FILHO, 2017; MACHIN, 2016; ROSA ET. AL., 2016).
A adoção é uma estratégia prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] (art 25 e art. 39 § 1): “medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa”, isto permite garantir o direito à convivência familiar quando esse retorno não é mais possível. A nova lei da adoção (12.010/2009) prevê que as reinserções das crianças e adolescentes sejam realizadas no período máximo de dois anos. A autorização para a adoção de crianças e adolescentes, independente da orientação sexual dos pretendentes, é concedida desde que os interessados apresentem os requisitos solicitados pela Lei 8.069/1990, artigo 42.
Ressalta-se que em nenhum momento a Constituição Federal da República proíbe a adoção de crianças por casais homoafetivos, ao considerar que a negatividade é algo que se mostra contra os princípios constitucionais já mencionados (BARBOSA, PINTO, & QUEIROZ, 2016; CERQUEIRA-SANTOS, SILVA, RODRIGUES, SANTOS, & ARAÚJO, 2017). O ECA indica que o aspecto relevante para a adoção é a aptidão do pretendente com as reais vantagens para o adotado. Portanto, a adoção homoparental diz respeito a modalidade na qual a pessoa é homossexual ou se encontra em uma relação conjugal homoafetiva (PATTERSON, 2006), ou ainda quando se trata de uma pessoa Lésbica, Gay, Bissexual, Transsexual, Queer (LGBTQ+). É o processo de aceitação voluntária da maternidade ou paternidade, independente da filiação adotiva ou biológica (LEVINZON, 2004).
Estudos brasileiros indicam as dificuldades e desigualdades apresentadas pelos setores jurídicos em relação às adoções por casais homoafetivos (COITINHO FILHO, 2017; OLIVEIRA & AMAZONAS, 2015), pelo fato de que os direitos desses casais ainda dependem da jurisprudência (CERQUEIRA-SANTOS, SILVA, RODRIGUES, SANTOS, & ARAÚJO, 2017) e requerem ‘regulamentação legal’, seja por meio das adoções ou demais situações para que possam ser solidificados na índole jurídica do país (ANDRADE, GONÇALVES, & LELIS, 2017). Apesar dos avanços ocorridos no Poder Judiciário, as questões relacionadas à homoafetividade, configurações familiares e movimento LGBTQ+ ainda circulam com pouca clareza durante os processos de adoção (COITINHO FILHO, 2017; OLIVEIRA & AMAZONAS, 2015). A visibilidade da adoção homoafetiva é considerada recente, porém, tem provocado discussões em diversos países (CERQUEIRA-SANTOS & BARBOSA, 2023).
Preconceitos em relação à adoção por casais homoafetivos têm sido relatados em inúmeros estudos (CERQUEIRA-SANTOS, SILVA, RODRIGUES, SANTOS, & ARAÚJO, 2017; DANTAS & FERREIRA, 2015; HOLANDA, 2015), sendo que o preconceito social é ainda maior quando se refere aos casais do gênero masculino, o que provavelmente está associado a falta de contato interpessoal com indivíduos homossexuais, por considerar que isso se reflete em informações equivocadas sobre cuidados e práticas parentais (CERQUEIRA-SANTOS, SILVA, RODRIGUES, SANTOS, & ARAÚJO, 2017; MACHIN, 2016; ROSA, MELO, BORIS & SANTOS 2016). Em geral, casais gays vivenciam processo diferenciado de adoção, muitas vezes com lentidão, além de estarem todo o tempo sob a obser vação avaliativa externa do ajustamento familiar (GOLOMBOK ET AL., 2014).
Os preconceitos sociais são inúmeros mesmo diante da inexistência de estudos sobre a incapacidade de pessoas do mesmo sexo desempenharem a maternidade ou paternidade ou sobre as consequências negativas para os adotados. Os preconceitos se referem às associações aos seguintes pontos: lacunas no estabelecimento de referência para o desenvolvimento da identidade de gênero das crianças adotadas, às influências da orientação sexual dos pares homoafetivos, à exposição dos filhos a problemas de desenvolvimento psicossocial, e até que serão vítimas de abuso sexual pelos pais adotivos (COSTA, CALDEIRA, FERNANDES, PEREIRA, & LEAL, 2012; OLIVEIRA & AMAZONAS, 2015). Ao analisar tais pontos, no que se refere às lacunas de figuras de referência, em outros contextos sociais (família extensa, escola, comunidade) a criança/adolescente encontrará outras pessoas para o estabelecimento da interação social, por exemplo, primos, primas, tios, tias, professores (homens e mulheres). Os estudos enfatizam que as relações entre pais/mães e filhos, a construção de vínculos, lar harmonioso e ambiente adequado são fundamentais para suprir as necessidades básicas dos adotados e independem da consanguinidade (HOLANDA, 2015; OLIVEIRA & AMAZONAS, 2015; UZIEL, 2007).
Os pais adotivos, independente da orientação sexual, exercem a paternagem por meio de vínculos buscando oferecer cuidado integral (DANTAS & FERREIRA, 2015). A adoção visa construir laços afetivos visando propiciar à criança e adolescente uma nova família (MACHIN, 2016). Verificou-se na produção científica que a população em geral percebe de maneira positiva a decisão do poder judiciário à adoção por casais homoafetivos, considerando que a adoção apresenta contribuições para o desenvolvimento da criança, de tal maneira que a adoção deve se pautar pelas características dos adotantes e não por sua orientação sexual (SANTOS, ARAÚJO, NEGREIROS, & CERQUEIRA-SANTOS, 2018).
Os casais homoafetivos que desejam o processo de adoção, apresentam, na maioria das vezes perfis diferenciados dos demais pretendentes habilitados. Eles tendem a optar por adoções tardias, crianças com necessidades especiais, entre outros perfis distintos (MACHIN, 2016). Nas famílias homoafetivas com filhos adotados, os pais ou mães estão atentos a todas as necessidades básicas dos filhos, e, apresentam vínculos afetivos (ROSA, BORIS, MELO, & SANTOS, 2016). Portanto, há contribuições das práticas parentais dos pais ou mães homoafetivas (MACHIN, 2016), ao considerar que se preocupam com a qualidade parental no desenvolvimento dos filhos entendendo que a parentalidade representa algo gratificante (ROSA, MELO, BORIS & SANTOS, 2016).
Apesar de avanços legais (casamento homoafetivo e possibilidade legal de adoção pelo casal do mesmo sexo), verifica-se escassez de estudos de acompanha mento de crianças adotadas por casais homoafetivos para verificar aspectos desenvolvimentais. Os poucos achados até o momento (GOLDBERG ET AL., 2012; PATTERSON, 2009) revelam não haver diferenças significativas em ajustamento psicológico ou com portamento sexual e de gênero quando comparadas com crianças em famílias heteroafetivas e homoa fetivas. Embora, crianças filhas de casais homoafetivos possam passar por mais situações de dificuldade em certas intera ções sociais, por exemplo, preconceito na escola, instituições e família extensa (GOLOMBOK ET AL., 2014).
Outros estu dos mostraram diferenças com resultados mais positivos para as famílias homoparentais, por exemplo, o estudo de GOLOMBOK ET AL. (2014) realizado no Reino Unido identificou maior bem-estar psicológico nesse grupo de crianças, por outro lado, crianças nas famílias heterossexuais apresentaram problemas externalizantes, o que foi relacionado com o estresse parental. MCCONNACHIE ET AL. (2021) ao realizar a comparação entre casais homoafetivos e heteroafetivos não encontraram diferenças no exercício da parentalidade e saúde mental dos filhos. Os pais adotivos, heteroafetivos ou homoafetivos, exercem a paternagem, amam e cuidam dos filhos de igual forma (DANTAS & FERREIRA, 2015). CERQUEIRA-SANTOS E BOURNE (2016) mencionam pequena diferença nos aspectos comportamentais e psicológicos de filhos criados por pais ou mães homossexuais, se comparados a pais e mães heterossexuais, com relatos de bem-estar e qualidade de vida nos filhos adotados por casais homoafetivos e sem diferenças em relação à identidade de gênero entre os dois grupos.
Alguns grupos sociais apresentam divergências referentes à opinião sobre a adoção de crianças/adolescentes por casais homoafetivos. COSTA, CALDEIRA, FERNANDES, PEREIRA e LEAL (2012) identificaram que o grupo de pessoas católicas avaliou negativamente o casal homoafetivo, isto se comparado ao grupo de pessoas sem religião. Em uma amostra de 104 universitários de Direito e de Psicologia buscou-se investigar as representações sociais da adoção de crianças por casais homoafetivos (ARAÚJO, CRUZ, SOUZA & CASTA NHA, 2007). O estudo mostrou que os participantes são contrários à adoção pelo fato de que a carência de referencial de ambos os gêneros representa algo prejudicial para o desenvolvimento saudável da criança. Universitários entrevistados por GATO, FONTAINE e CARNEIRO (2010) antecipavam maiores dificuldades sociais em crianças adotadas por pessoas homossexuais, assim como, uma maior probabilidade de se tornarem adultos homossexuais.
Dessa forma, diante dessas concepções é possível compreender que se trata de uma situação complexa que integra estigmas sociais e/ou equívocos, fundamentados em crenças religiosas e movimentos conservadores/patriarcais que se mostram resistentes as minorias de gênero, ou seja, a falta de informações repercute em preconceitos. Há necessidade de estudos científicos sobre a adoção entre casais homoafetivos e heteroafetivos, ao considerar que isso permite desenvolver avanços e discussões na sociedade, portanto, o compartilhamento de informações no ambiente jurídico pode minimizar situações de preconceito às pessoas que pretendem a adoção homoafetiva. O objetivo deste estudo foi compreender o processo de experiência de adoção entre casais homoafetivos e heteroafetivos.
2 MÉTODO4
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que utilizou a amostragem bola de neve.
Participantes
Participaram da pesquisa 64 pais e/ou mães, divididos em dois grupos: grupo de homoafetivos, composto por 38 pessoas - 19 casais: 9 casais de lésbicas e 10 de gays; e grupo de heterossexuais - 26 pessoas: 13 casais adotantes, 13 mães e 13 pais. Os participantes tinham 56 filhos(as) adotados. Foi estabelecido o seguinte critério de inclusão: tempo mínimo de 6 meses de adoção.
Instrumentos
Utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturado para a coleta dos dados. Buscou-se investigar as motivações para a adoção, os aspectos facilitadores e dificultadores do processo de adoção, as rotinas familiares antes e após a adoção, a relação com a escola e tarefas escolares e os preconceitos percebidos. Os aspectos sociodemográficos investigados foram: idade, profissão, número e idade dos filhos, tempo de adoção e tipo de adoção.
Aspectos éticos
O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética da Universidade Tuitui do Paraná e foi aprovado (Parecer 4.221.173 em 18 de agosto de 2020). Os pesquisadores entraram em contato por e-mail, WhatsApp ou telefone com os participantes para solicitar sua permissão e/ou participação na pesquisa. Aqueles que aceitavam participar recebiam por e-mail o TCLE, e, após assiná-los devolviam aos pesquisadores.
Procedimentos
Foi utilizada a amostragem conhecida por “Bola de Neve”, técnica utilizada para identificar indivíduos específicos por meio da rede de relacionamento dos pesquisadores e dos participantes (VINUTO, 2014). Tal rede de relacionamento correspondeu a Grupos de Apoio às Adoções, Grupo Dignidade, profissionais de diversas áreas de atuação, por exemplo, Psicologia, Direito, Engenharia, vendas, entre outros, além de familiares que apresentaram contato próximo com casais homoafetivos e heterossexuais com filhos adotivos por meio das diversas formas de adoção. Na sequência foi realizado o agendamento das entrevistas com o casal. Foram auxiliares de pesquisa quatro alunos do curso de graduação de Psicologia da Universidade que fizeram o trabalho de conclusão do curso sobre o mesmo tema. Estes alunos auxiliaram na busca de participantes, na coleta de dados, na transcrição e análise dos conteúdos das entrevistas. As entrevistas foram realizadas no modelo remoto por skype, zoom nas residências dos participantes e tiveram a duração de aproximadamente 1 hora. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas integralmente para análise.
Análise de dados
A análise categorial temática foi utilizada para identificar as palavras e/ou termos que se destacaram nas narrativas. O foco de análise foi a categorização fechada, ao considerar que no roteiro de entrevista foram apresentadas previamente as categorias de maneira explícita (motivações para a adoção, aspectos facilitadores e dificultadores do processo de adoção, as rotinas familiares antes e após a adoção, a relação com a escola e tarefas escolares, os preconceitos percebidos). Foram selecionadas frases representativas de cada categoria para comparação entre os dois grupos de casais adotantes (homoafetivos e heteroafetivos). Siglas fictícias foram utilizadas quando os casais se referiam aos nomes dos filhos, isto para preservar a privacidade e sigilo das informações. As informações do questionário sociodemográfico foram analisadas por meio de estatística descritiva (frequência, média e desvio-padrão).
3 RESULTADOS
A profissão mais citada entre os 38 participantes homoafetivos foi a de professor (a), encontrada em 53,8% dos participantes (14 professores e 2 pedagogas); entre os 26 casais heteroafetivos, apenas 3 professores, 5 aposentados, e os demais em diversas áreas de atuação, por exemplo, psicologia, fisioterapeuta, agricultor, funcionário público, vendedor, etc. A idade dos homoafetivos variou de 25 a 62 anos (média de 40,6; DP=10,65) e dos heteroafetivos de 27 a 66 anos (média 42; DP= 9,7). O tempo de relacionamento entre os homoafetivos variou de 1ano 2meses a 30 anos (média= 9,95; DP= 8,31) e entre os heteroafetivos de 5anos 1 mês a 30 anos (média 14,70; DP= 8,02).
Os filhos adotivos dos casais homoafetivos totalizaram 36 crianças/adolescentes (16 do sexo feminino e 20 do masculino), com idades entre 6 e 14 anos (Média= 8; DP= 4,14), sendo que apenas 13 casais adotaram mais de um filho. Os casais heteroafetivos adotaram 20 filhos, cujas idades variaram de 3 a 13 anos (Média=8,2; DP= 2,70), sendo oito do sexo feminino e doze do masculino, com apenas cinco casais que adotaram mais de um filho; cinco destes casais já tinham filhos biológicos.
A adoção dos 10 casais gays foi via sistema judicial. Entre os 9 casais de lésbicas, uma delas fez inseminação, 6 adotaram o(a) filho(a) da companheira e, apenas 2 utilizaram a adoção judicial. Todos os casais heteroafetivos adotaram via sistema judicial. A partir das entrevistas semiestruturadas foram analisadas as narrativas provenientes das categorias, assim, foi possível realizar as comparações identificando as aproximações e os distanciamentos.
Motivações para a adoção
Os casais gays e lésbicas que adotaram via sistema judicial percorreram um caminho de discussão e convencimento mútuo sobre a adoção. Após diálogo sobre a escolha do sexo e idade da criança/adolescente submeteram-se ao processo: “o meu companheiro queria ter um menino, mas eu queria ter menina, então eu convenci ele a ter meninas... ele só aceitou uma menina durante o nosso processo de habilitação”. À adoção ocorreu sem o processo judicial para seis casais femininos, quando uma delas apresentou interesse de contribuir na educação dos (as) filhos (as) das companheiras. Apenas um casal homoafetivo feminino utilizou a inseminação artificial para a geração de duas filhas: “a minha companheira já tinha uma filha... foi tranquilo, quando ficamos juntas ela estava grávida do nosso menino e eu acompanhei todo o processo de gestação e quando ele nasceu foi registrado em meu nome também.”. “tomei o cuidado de antes de frequentar a casa da minha companheira, é... de primeiro conhecer a filha dela... e esse laço foi sendo criado na medida que nós fomos nos conhecendo”;
Dez casais heteroafetivos apresentaram complicações na concepção natural e dificuldades na primeira gestação, o que impossibilitou gerar filhos. Relataram o desejo de formar uma família com filhos e perceberam na adoção a realização deste objetivo. Quatro casais consideravam uma possível ideia de adoção antes mesmo de conhecer seus parceiros, o que levou os companheiros a considerarem esta possibilidade de formar a prole: “a V. teve dificuldade em engravidar, e queríamos mais um filho, aí vimos a possibilidade de uma adoção”; “Tivemos dificuldade de engravidar, levamos 2 anos para amadurecer a ideia...”; “Eu sempre pensei em adotar...” “eu sempre quis ter filhos biológicos e adotados, com dezoitos anos fiz uma cirurgia e não posso ter filhos biológicos”. Destaca-se que os casais homoafetivos adotaram crianças com idade avançada (adoção tardia), ao contrário dos casais heteroafetivos que adotaram bebês e crianças pequenas.
Aspectos facilitadores e dificultadores do processo de adoção
Os casais homoafetivos que fizeram à adoção judicial conviveram com um processo demorado e burocrático, mas, perceberam que isso foi algo necessário. Sete casais não relataram pontos negativos. Outros identificaram necessidades de melhorias no acompanhamento processual e terapêutico. Mencionaram dificuldades de comunicação com profissionais do judiciário, falhas no sistema e frustrações em relação a mídia que não divulga a importância da adoção tardia. Em síntese, sugerem função mais ativa por parte do judiciário. Quatro deles relataram ausência de discriminação durante o processo.
Os casais que adotaram filhos(as) de suas companheiras relataram que o processo adaptativo foi tranquilo com respeito mútuo na educação das crianças: “O nosso processo de adoção foi burocrático por conta das documentações... mas não temos nenhum ponto negativo... tivemos apoio muito importante da equipe do Judiciário, sem preconceito por sermos homoafetivos”; “...a gente participou de reuniões para adoção, tinham outros casais homoafetivos lá também...”; “A primeira adoção foi bastante árdua porque era o primeiro casal homoafetivo que estava adotando, então todo foco estava ali, a psicóloga, assistente social...”; “foi muito cansativo, essa espera. Para saber se dava ou não essa habilitação, porque era um casal homoafetivo. Isso foi muito desgastante, porque enquanto casais heteroafetivos à adoção saía em três ou quatro meses, a nossa demorou mais de um ano.”; O sistema não está preparado para às adoções homoafetivas.”
A situação dos abrigos também foi relatada: “O poder judiciário poderia adotar uma busca mais ativa, O. L. F. ficava em um lar onde eram muitas crianças... um lar de freiras, seguiam bem os princípios, a ética, a religião, ...no abrigo do L ficavam o dia inteiro numa sala fechada, escura, vendo televisão, então sem perspectiva nenhuma sabe?”. Nos casais homoafetivos outro ponto também se referiu aos constrangimentos nos cursos de adoção, mas, não foram especificados.
Quatro casais heteroafetivos consideraram o processo ágil, visto que se tratava de adoção tardia, apenas um casal ressaltou a demora. Enfatizaram a importância do curso de adoção. Para dois casais a espera favorece também o amadurecimento e promove a união do casal para as mudanças necessárias. Consideraram importante fazer a diferença na vida de outras pessoas. Valorizaram também a importância dos procedimentos realizados durante o processo de adoção destacando que o papel do psicólogo é fundamental nas avaliações dos casais.
Seis casais mencionaram a demora recorrente durante todo o processo de adoção e suas possíveis consequências para os adotantes e adotados. Reclamaram sobre a falta de informações referentes a ‘fila’ de adoção e dificuldades visíveis dos abrigos, por exemplo, a falta de organização e respeito pelas crianças e adolescentes, ausência de roupas e brinquedos e o excesso de acolhidos em um único ambiente. E, por fim, a demora na nova certidão de nascimento: “...O processo foi bem rápido, bem dinâmico... e isso é bom para as crianças, porque as nossas já eram crianças de adoção tardia”; “Confesso que o processo em questão foi rápido... o curso também muito esclarecedor, um contato com a realidade”; “Eu acho que é muita falta de respeito mesmo, com os adotantes. Porque o que mais queremos é uma criança e o que mais tem é criança para a adoção. Infelizmente é muita demora...”; “a documentação ainda está com o nome antigo, e ele tem rejeição com o nome antigo, ele fica triste...”.
Rotina antes e após à adoção
Os casais homoafetivos que adotaram os filhos judicialmente ou por meio de inseminação artificial relataram mudanças em relação a vida antes dos filhos. Tais mudanças caracterizam as responsabilidades de pais ou mães diante da educação e criação dos filhos, ao considerar que as atividades de lazer são realizadas de acordo com a idade dos filhos. Entendem que a chegada do filho apresentou contribuições em suas vidas. Nas adoções unilaterais dos casais femininos, as maiores mudanças ocorridas foram relacionadas às mães adotantes que anteriormente tinham uma vida de solteira, com muita diversão, e, na maior parte, sem responsabilidades maternais: “chegava em casa todos os dias 11 horas da noite, final de semana envolvida, sem tempo para pensar em casa, família, filhos principalmente. Hoje levo e trago da escola, passei a ter responsabilidades que antes eu não tinha”; “Antes da adoção era tudo mais rápido. Agora não é tão rápido assim... Hoje, levamos em média 1h e 30 min para sair de casa... porque nós precisamos levar mais coisas... não conseguimos ver o nosso mundo sem elas”; “mudança de tudo, mudança de rotina, mudança de programa, de tudo.
Os casais heteroafetivos relembraram da época que realizavam passeios ao cinema e restaurantes, e como é diferente agora, pois, há o compromisso diante de seus filhos, aspecto que se refletiu na comunicação buscando evitar sobrecargas nas funções parentais. Os casais que tinham filhos antes da adoção relataram que mesmo sem uma mudança drástica em suas rotinas, houve uma nova demanda de atenção para o filho adotivo. Antes da adoção tinham mais compromissos com os seus trabalhos e interações frequentes com outros membros da família: “Antes íamos no cinema... Comíamos fora... Dormíamos até mais tarde... final de semana era tranquilo, ... mudou a rotina... Agora ele que faz a janta... sair a gente não consegue mais, especificamente de casal... Então precisamos organizar a logística de quando precisa ir ao médico... Então quando sai um, sai a família inteira, os 6...”; “...nosso ritmo de vida era diferente... A gente saía mais... a gente não era muito regrado em horários e nem na alimentação. Com a chegada dos meninos a gente modificou bastante isso... Tem que dar atenção, acompanhar eles na escola...”.
Relação com a escola e participação nas tarefas escolares
Cinco casais homoafetivos mencionaram problemas na escola: “A gente chegou a visitar uma escola pública aqui perto de casa e a pedagoga disse ‘não vai aceitar aqui não. Vários anos atrasados”; Não pela questão da homoafetividade, mas por causa da adoção mesmo”; “Nunca percebemos nada que pudesse deixar constrangidas”; “...tivemos problemas com a pedagoga, parece que ela não tem empatia... Hoje é tudo tranquilo”.
Os demais relataram bom convívio e satisfação com a escola dos filhos. Todos têm participação ativa na escola e nas tarefas escolares: “Eu vejo que é tranquilo, mas no fundinho a gente acha que sempre tem um preconceito. Mas as crianças não sofrem nenhum tipo de bullying. Com os professores e com a escola não vejo..., mas com a família dos outros alunos a gente sente assim um desconforto”. A maioria relatou que há necessidade de inclusão da família homoafetiva nas atividades e comemorações das escolas: “ano passado ela fez uma atividade na escola sobre as famílias, ‘em qual você se enquadra’, daí tinha várias famílias, tinha índios, negros... mas não tinha família com casal homoafetivo. A gente está direto na escola. Nós antes estávamos em uma escola que não era tão legal e transferimos ela de escola”;
Todos os casais relataram rotinas diversificadas e compromissos que envolviam atividades escolares/educacionais. Informaram que estão sempre atentos e presentes aos acontecimentos que envolvem a aprendizagem de seus filhos, por exemplo, pesquisas, dúvidas, tarefas, leituras e outras atividades, inclusive, com professora auxiliar em casa para os filhos. Eles dividiam o acompanhamento escolar de acordo com as habilidades de cada um.
Os casais heteroafetivos perceberam a equipe escolar atenciosa com eles e seus filhos resolvendo as dificuldades por meio do diálogo. As crianças apresentaram conflitos relacionados aos déficits de desenvolvimento. As dificuldades apresentadas nas escolas correspondiam aos preconceitos em relação à criança adotada. Este preconceito dificultou a adaptação, o processo de aprendizagem e a saúde emocional da criança/adolescente. Relataram insensibilidade por parte dos profissionais das instituições de ensino em relação à diversidade de configurações familiares e às mudanças jurídicas relacionadas aos nomes (antigos e atuais) das crianças adotadas.
Relataram a divisão de tarefas escolares, em alguns casos apenas um companheiro exerce essa função, pois, o outro não possui tempo suficiente, mas, em geral essa tarefa é realizada de forma mútua, visto que a maioria das crianças têm déficit escolar e necessitam de atenção devido às suas dificuldades:“...Todas às vezes nessa escola que eu fui, eu sempre fui bem tratada, super bem tranquila com todo mundo que eu falei”; “Quando nós fomos no colégio falei sobre todas as dificuldades do W. nos outros dois colégios..., ele é o melhor aluno da turma...”; “...Ele passou a sofrer preconceito, bullying porque tinha uma família nova, era adotado...”; “no dia da família que falaram que tinha todo tipo de família... família adotiva, e ficaram olhando para nós...”; “Única coisa ruim, no 1º e 2º aninho eram os trabalhinhos de ‘traga foto de quando era bebê’, ‘traga foto da barriga da sua mãe’, ‘como sua mãe escolheu o seu nome’... e como explicar para uma criança da idade do W.”.
Casais homoafetivos e o preconceito
Os casais mencionaram situações de preconceito social de pessoas da família extensa e da escola referentes à orientação sexual. Relataram o medo de parentes em relação a substituição das memórias do pai biológico, nos casos de adoção unilateral dos casais femininos. Perceberam preconceito em relação aos filhos serem adotivos: “Tivemos problemas em duas escolas... a segunda tivemos problemas em relação a documentação... Foi preenchido apenas o nome de um de nós na filiação e outro como responsável...; “Aqui não vai aceitar (pedagoga)”; “no início comigo foi, teve um certo desconforto, no primeiro mês... isso eles interpretaram assim que eu vim para apagar a memória do pai na vida da B.
Há relatos de preconceito em outros contextos sociais: “... a gente sofre muito preconceito... shopping, praia, parques aquáticos, na hora de fazer a documentação... como as meninas haviam acabado de chegar, em algumas situações como na praia, recolhemos as nossas coisas e fomos embora. Por outro lado, utilizam estratégias de enfrentamento: “costumamos não dar atenção ao preconceito...”; “...mas as famílias ‘normais’ devem entender que não é o contato com o filho que vai fazer ele ser homossexual...”.
Análise comparativa dos grupos
A análise comparativa entre os adotantes homoafetivos e heteroafetivos mostrou aproximações e distanciamentos nas categorias que forma analisadas (Tabela 1). As aproximações apareceram em relação às motivações, às dificuldades para obtenção dos novos registros de nascimento, à falta de acompanhamento psicológico pelo poder judiciário, à divisão nas tarefas escolares e em relação às mudanças na rotina após a chegada da criança. Os distanciamentos se referem à agilidade do processo de adoção (casais heteroafetivos), o preconceito vivenciado, especificamente da escola para adaptação dos filhos, ausência de apoio referente ao déficit de escolaridade e falta de calendários adequados para festejar Dia dos Pais/mães (casais homoafetivos).
Categorias | Homoafetivos | Heteroafetivos |
Motivações para a adoção | Construir uma família com a inserção de filhos adotivos, por via judicial (casais masculinos), inseminação (feminino) ou adoção do filho biológico da companheira (feminino). Adoção tardia | Construir uma família com filhos adotados por terem tido dificuldades em gerar filhos biológicos. Adoção de crianças pequenas |
Aspectos que facilitaram a adoção | O direito previsto em lei de adotar uma criança e construir uma família. | Agilidade no processo de adoção. Aproveitamento do curso de adoção. |
Aspectos que dificultaram a adoção. | Lentidão e burocracia no processo de adoção. Constrangimentos nos cursos de adoção. Dificuldades de comunicação com profissionais do poder judiciário. Ausência de visibilidade das adoções tardias. Condições ambientais dos abrigos. Demora na liberação da certidão negativa. | Demora na liberação da certidão negativa. Criticaram os horários inadequados para os encontros e visitas nas casas lares e dificuldade de adaptação das crianças, solicitando que o Judiciário acompanhe melhor o processo. Críticas às condições estruturais dos abrigos |
Rotina antes e após à adoção. | As mudanças se referiram a perda de lazer, maior compromisso com horários e atividades dos filhos, em casa e na escola. | As mudanças se referiram a perda de lazer, maior compromisso com horários e atividades dos filhos, em casa e na escola. |
Relação com a escola. | Relataram dificuldades de acompanhamento escolar, despreparo da escola para atender alunos com déficits de aprendizagem. Problemas com calendário escolar, especialmente Dia dos Pais e Mães. | Boa relação com a escola. Nenhum conflito social prejudicial aos filhos(as). Insensibilidade dos profissionais das escolas com a diversidade das configurações familiares e alterações dos nomes. |
Participação nas tarefas escolares | Auxílio com as tarefas escolares e participação em reuniões da escola foram relatados por todos. | Todos os casais mencionaram auxiliar os filhos nas atividades escolares, especialmente na época da pandemia. |
Preconceitos | Os preconceitos se referiram em primeiro momento aos membros da família extensiva, estes que aceitaram o novo casal após algum tempo. Casais femininos tiveram dificuldades iniciais de aceitação do ex-cônjuge e seus familiares. Na escola surgiram preconceitos em relação a cinco casais. | Não relatam de forma espontânea nos inquéritos sobre preconceitos, indicando potencial fundamentação histórica e cultural que privilegia a organização familiar heterossexual, mesmo nos casos de adoção, ainda que existam contradições inerentes à configuração familiar ‘tradicional’. |
4 DISCUSSÃO
Esse estudo investigou a experiência de adoção entre casais homoafetivos e heteroafetivos, o que permitiu apresentar as aproximações e distanciamentos provenientes das narrativas que foram analisadas. No que se refere às motivações para a adoção, ambos os casais (homoafetivos/heteroafetivos) demonstraram interesses comuns de construir uma família e oferecer cuidados à criança/adolescente. Por outro lado, os heteroafetivos já vivenciaram histórico de dificuldades para a geração de filhos biológicos, e, os homoafetivos se distinguem em alguns aspectos, por exemplo, os casais masculinos estavam interessados na adoção por via via judicial, já os casais femininos apresentaram disponibilidade para inseminação artificial ou adoção do filho(a) da companheira.
Os resultados desse estudo corroboram estudos anteriores, ao considerar que as motivações da adoção entre estes casais homoafetivos e heteroafetivos se referem ao desejo de ampliação da família decorrente das dificuldades da gestação de maneira tradicional, portanto, há interesses recíprocos de formar uma família, ter um filho e ajudar uma criança (ALVES & LYRA, 2016; ARAÚJO & FARO, 2017; GONDIM ET AL. 2008; SAMPAIO, MAGALHÃES, & MACHADO, 2020).
Destaca-se que as motivações para a adoção se refletem na construção de perfis diferenciados da criança desejada, por exemplo, a adoção tardia representou o principal caminho para os casais homoafetivos realizarem seu objetivo de construir uma família, o que confirma outro estudo (SAMPAIO, MAGALHÃES & FÉRES-CARNEIRO, 2018), mas, apenas um casal homoafetivo utilizou a inseminação artificial para gestar um bebê. Por outro lado, os casais heteroafetivos adotaram bebês, crianças pequenas, grupos de irmãos, o que mostra as inúmeras alternativas. Os pretendentes heteroafetivos à adoção não apresentam tendência para a adoção tardia, o que favorece a permanência de crianças em abrigos (SAMPAIO, MAGALHÃES, & MACHADO, 2020), geralmente, em função de mitos difundidos na sociedade de que a criança ou adolescente apresenta o ‘sangue ruim’ dos pais e a crença de que homens não são capazes de cuidar de um bebê.
Um aspecto positivo é que as intervenções de Grupos de Apoio à Adoção têm potencializado significativamente o aumento das adoções tardias (SAMPAIO, MAGALHÃES & FÉRES-CARNEIRO, 2018; SAMPAIO ET AL., 2020), o que pode futuramente despertar o interesse de casais heteroafetivos. Estas intervenções contribuem para o compartilhamento de motivações e angústias (MIRANDA, FIOROTT, GIACOMOZZI, & BOUSFIELD, 2020). A proposta de grupo de adoção é uma estratégia que permite a expressão de sentimentos e a discussão de temáticas específicas, por exemplo, expectativas versus realidade da adoção, espera pelo filho, mitos e medos sobre adoção, rotina e desenvolvimento infantil, percurso da adoção, devolução da adoção, amor, formação e rompimento de vínculos e/ou esclarecimentos de dúvidas (SILVA, MACHADO, SILBERFARB, MACHEMER, SANTOS, CHAVES, & FRIZZO, 2022).
Em relação aos aspectos que facilitaram e dificultaram a adoção, as aproximações nas narrativas dos dois grupos de casais se referem à demora para emissão do registro de nascimento da criança, e as condições ambientais dos abrigos com excesso de crianças e falta de brinquedos e roupas, o que representa um ponto relevante para que essas instituições possam desenvolver melhorias. Os casais homoafetivos destacaram a lentidão, as dificuldades de comunicação com profissionais do judiciário e os constrangimentos vivenciados nos cursos de apoio à adoção, mas, os heteroafetivos mostraram o contrário. Esse resultado mostra a necessidade de reformulações no processo de adoção visando tornar ágil para ambos os casais, independente de orientação sexual. Nesse sentido, há contribuições do acompanhamento psicológico para o casal e a criança por meio de informações educativas (ALVES, 2022), especificamente nas famílias homoafetivas, a intervenção psicológica será realizada com o objetivo de acolhimento às demandas que serão identificadas.
Outro aspecto se refere aos cursos de adoção a serem oferecidos com investimentos na preparação técnica dos profissionais envolvidos para evitar as desigualdades que foram identificadas nesse estudo. No Brasil, o sistema de justiça tem avançado nas decisões sobre a adoção de crianças por casais homoafetivos, entretanto, a operacionalização de estratégias técnicas no acolhimento e acompanhamento desses casais necessita de aprimoramentos. Destaca-se que nesta pesquisa não foi possível identificar as especificidades dos constrangimentos vivenciados pelos casais homoafetivos, assim, é provável que nestes cursos de adoção ocorram o compartilhamento de informações com ênfase na família tradicional com pouca abertura às famílias não tradicionais, porém, trata-se de algo a ser investigado.
Mesmo após a decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (2013) reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo, o que proporcionou às famílias homoafetivas os direitos previstos em lei, ainda se verificam obstáculos durante o processo de adoção. Os casais homoafetivos do estudo relataram demora no processo de adoção, falta de acompanhamento psicológico e atrasos na obtenção dos novos registros de nascimento, o que prejudicou a inserção dos filhos na escola. Relataram algumas situações de preconceito nas reuniões de grupos realizadas durante o processo de adoção, além de situações de exclusão nas escolas, por exemplo, nas celebrações do Dia dos Pais e das mães. Os casais heteroafetivos criticaram os horários inadequados para os encontros e visitas nas casas lares e os desafios vivenciados no período de adaptação das crianças, assim, esses casais recomendam ao Judiciário a realização de mudanças para promover melhorias no acompanhamento da adoção. Por outro lado, ao realizar a comparação entre grupos, as famílias homoafetivas apresentaram maiores obstáculos.
As inúmeras dificuldades enfrentadas pelos casais homoafetivos no decorrer do processo de adoção foram relatadas na produção científica no contexto Brasileiro (TEIXEIRA & LIMA, 2019; TOMBOLATO, MAIZA, & SANTOS, 2019; VASCONCELLOS, 2022; VIANA, LEITE, TORRES, MARTINS, BARBOSA, DINIZ, & RAMOS, 2022; RIBEIRO & GRANATO, 2021; RUIZ, BORGES, HUEB, TILIO, & SCORSOLINI-COMIN, 2019; SANTIAGO, SANTOS, LIMA, PAULI, & DIAS, 2020), por exemplo, preconceito vivenciado pelo casal numa visita a uma instituição de acolhimento (TOMBOLATO, MAIZA, & SANTOS, 2019).
Nos estudos de caso é possível compreender o processo vivencial por meio de detalhamentos da experiência (TOMBOLATO, MAIZA, & SANTOS, 2019; RIBEIRO & GRANATO, 2021; SANTIAGO, SANTOS, LIMA, PAULI, & DIAS, 2020). Há relato de um casal de mulheres que só conseguiu a adoção pelo fato de que a criança apresentava microcefalia e estava na instituição de acolhimento sem interessados (TOMBOLATO, MAIZA, & SANTOS, 2019). Em outro estudo de caso, o casal homoafetivo obteve a certidão de nascimento após cinco anos da adoção (SANTIAGO, SANTOS, LIMA, PAULI, & DIAS, 2020). Estudos internacionais mostram aspectos similares das dificuldades que são enfrentadas pelas pessoas LGBTQ+ para realizar a adoção de crianças (GOLDBERG, 2023; GOLDBERG, FROST, MIRANDA, & KAHN, 2019), com maiores dificuldades para pessoas bissexuais, trans, negras e com poucos recursos financeiros (GOLDBERG, 2023).
O cenário nacional e internacional mostra a complexidade da temática da adoção por pessoas LGBTQ+, dessa forma, parece viável compartilhar informações educativas nos diversos contextos sociais sobre identidade de gênero/orientação sexual. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça de reconhecimento da união homoafetiva permitiu a evolução de conceitos heteronormativos, ao considerar a pluralidade das noções de família (VECCHIATTI, 2020). Porém, trata-se de um processo gradual de mudanças que engloba os setores governamentais e a sociedade.
No que se refere à experiência de rotina antes e após a adoção, há aproximações nos relatos entre os dois grupos de casais, por exemplo, as perdas referentes ao lazer que anteriormente eram vivenciadas, mas, com a chegada das crianças os compromissos com as atividades domésticas e escolares se tornaram prioridade. Por outro lado, foi possível identificar aspectos positivos referentes a conjugalidade e parentalidade, ao considerar que os casais se mostraram receptivos para a divisão de tarefas e cuidados gerais destinados às crianças, ou seja, conseguiram identificar as mudanças na vida provenientes da chegada de uma criança, mas, realizaram ajustes para promover melhorias no relacionamento conjugal e nas práticas parentais.
Na produção científica, um estudo identificou maiores níveis de bem-estar, relação parental e ajustamento de crianças em famílias homoafetivas, quando comparados com crianças em famílias heteroafetivas (GOLOMBOK ET AL., 2014). Em um estudo com três casais homoafetivos, a conjugalidade foi relacionada aos modelos das figurais parentais, mas, a parentalidade se referiu aos comportamentos e práticas parentais construídas ao longo da vida (MATA & SCORSOLINI-COMIN, 2022). Altos índices de coparentalidade positiva foram identificados em famílias homoafetivas, pelo fato de que há divisão de tarefas, estabelecimento de diálogo e comprometimento com a atenção integral a conjugalidade (MATOS, BOSSARDI, SOUZA, PORTES, & MENEZES, 2019). Esses resultados apresentam congruência com a presente pesquisa, pelo fato de que foi possível identificar que as práticas parentais foram constituídas por meio de diálogos com o(a) parceiro(a), assim, ambos os grupos (homoafetivos/heteroafetivos) conseguiram organizar as tarefas domésticas e escolares buscando promover a conjugalidade.
E sobre as relações estabelecidas no ambiente escolar há distanciamentos nos relatos entre os dois grupos de casais, ao considerar que os homoafetivos perceberam a falta de preparação da escola, especificamente nos casos de alunos com déficits de aprendizagem. E outra reivindicação foi referente às datas comemorativas estabelecidas pela escola (dia das mães/pai), o que provavelmente mostra que estes não se percebiam incluídos. Porém, os casais heteroafetivos perceberam boa relação na escola, mas, afirmaram que a escola ainda precisa avançar buscando reconhecer a diversidade de configurações familiares. Um aspecto positivo entre os dois grupos se refere à participação nas tarefas escolares acompanhando as atividades escolares e reuniões. Na produção científica, famílias homoafetivas perceberam que a escola pode representar o local para o surgimento de preconceitos (RIBEIRO & GRANATO, 2021), com exceção de um estudo que mostrou boa relação com a escola (SANTIAGO ET AL., 2020).
Especificamente nos casais homoafetivos, os preconceitos representam uma realidade, os quais são provenientes de pessoas da família extensa e do ambiente escolar das crianças, o que também foi identificado por CERQUEIRA-SANTOS E BARBOSA (2023) nos diversos estudos que foram analisados. A resistência da sociedade dificulta o reconhecimento da adoção nas famílias homoparentais, assim, se faz necessária a divulgação de informações científicas para minimizar o preconceito (TEIXEIRA & LIMA, 2019). Essa resistência, proveniente do sistema patriarcal e político, também ocorre na equipe de educadores sociais nas instituições de acolhimento, dessa forma, há urgência de uma série de mudanças por parte da população para que a igualdade, liberdade e dignidade possibilite legitimar casais homoafetivos (VASCONCELLOS, 2022).
A família homoparental está exposta ao sofrimento decorrente do preconceito, portanto, pais e filhos enfrentam experiências singulares (RIBEIRO & GRANATO, 2021). Especificamente, há o compartilhamento de crenças sociais de que a identidade de gênero das crianças adotadas será influenciada pelos pais, o que não tem fundamento ou evidência. CERQUEIRA-SANTOS E BOURNE (2015) identificaram que há similaridades na construção e/ou desenvolvimento de aspectos de gênero de crianças adotadas por famílias homoafetivas e/ou heteroafetivas, portanto, independente da configuração familiar, os aspectos relevantes se referem às práticas parentais que constituem a parentalidade e a interação desenvolvida entre os cônjuges e filhos.
Os preconceitos referentes à identidade de gênero/orientação sexual e os desdobramentos nas configurações familiares que são constituídas apresentam repercussões no decorrer do processo da homoparentalidade adotiva (VIANA, LEITE, TORRES, MARTINS, BARBOSA, DINIZ & RAMOS, 2022), o que pode dificultar ou promover atrasos. Portanto, programas de intervenção para crianças adotadas são importantes para a investigação de aspectos psicossociais (MCGINNIS & WRIGHT, 2023), principalmente para crianças de famílias homoafetivas que estão expostas às situações de preconceito.
Diante dos resultados identificados neste estudo, é possível inferir que a vivência familiar pautada em vínculos, reciprocidade e divisão de tarefas - conjugalidades e parentalidades positivas - são fatores relevantes no desenvolvimento da criança, independente da estruturação do casal homoafetivo ou heteroafetivo. Ambos os casais mostraram o compromisso com a adoção baseado no interesse de oferecer cuidado integral, ao considerar os reflexos na conjugalidade. MCCONNACHIE ET AL. (2020) destacam que casais gays e lésbicas proporcionam parentalidade similar aos heteroafetivos, quando se trata da adaptação de crianças e adolescentes.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa identificou as aproximações e distanciamentos nas narrativas de casais homoafetivos e heteroafetivos referentes à adoção. Ambos os casais apresentaram o desejo de construir uma família com filhos, porém, as experiências se diferenciam em alguns aspectos. Pontos em comum: críticas à situação dos abrigos, demora na obtenção de documentos, mudanças na rotina, divisão de atividades domésticas, participação nas tarefas escolares e necessidade de as escolas apresentarem preparação para receber as crianças com dificuldades de aprendizagem.
Os casais homoafetivos preferem adoção tardia e os heteroafetivos adotam crianças pequenas. Maiores dificuldades foram apresentadas para realizar a adoção homoafetiva, por exemplo, constrangimentos nos cursos de apoio à adoção, na escola da criança e em diferentes contextos sociais. Há dificuldades ainda presentes nos processos de adoção por casais homoafetivos e a necessidade de o poder judiciário oferecer acompanhamento aos adotantes, além de fiscalizar melhor os abrigos para que as crianças na espera para adoção sejam atendidas de forma apropriada. Outro fator relevante foi a demora na liberação de certidões definitivas das crianças e adolescentes adotados, o que repercute em desconforto, principalmente no ambiente escolar.
Duas limitações para a realização deste estudo se destacaram. A primeira diz respeito à seleção de casais homoafetivos com filhos adotados. Esta é uma população pequena e de difícil acesso. As dificuldades foram agravadas em função da segunda limitação da pesquisa: a pandemia. Os participantes ficaram com os filhos em casa para atividades escolares remotas, o que dificultou a disponibilidade de horários para as entrevistas. Mesmo assim, a participação de casais para esta pesquisa ultrapassou o número de participantes, se comparado às outras pesquisas nacionais (ALVES, & LYRA, 2016; DANTAS & FERREIRA, 2015; MACHIN, 2016; MATOS, BOSSARDI, SOUZA, PORTES & MENEZES, 2019; ROSA, MELO, BORIS & SANTOS, 2016; SAMPAIO, MAGALHÃES & CARNEIRO, 2018).
Recomenda-se para pesquisas futuras o foco nos déficits de aprendizagem iniciais das crianças e adolescentes adotados buscando compará-los após um período de convivência com a nova família. Sugere-se realizar levantamento do preconceito ocorrido nas escolas, de maneira específica nas instituições públicas sobre crianças adotadas. Aparentemente, estas instituições estão despreparadas para exercer sua função de acolhimento e educação desta população. Importante também avaliar os estilos parentais dos casais homoafetivos e compará-los com os casais heterossexuais adotantes, e com casais que tem filhos biológicos. Esta comparação, com uma amostra representativa de todos os segmentos, poderá esclarecer várias questões que estão sendo discutidas no judiciário a respeito da adoção homoafetiva.
O poder judiciário e as escolas são instituições essenciais para a inserção de crianças/adolescentes em famílias adotivas. As escolas devem estar preparadas para receber crianças e adolescentes adotados com déficits de aprendizagem oriundos de instituições de acolhimento, isto para adaptar seus calendários e atividades, especialmente Dia dos Pais e Mães, para filhos de casais homoafetivos. As adoções tardias oferecem uma alternativa para legitimar dignidade às crianças e adolescentes acolhidos, assim, recomenda-se atualização no âmbito das políticas públicas para promover direcionamentos visando atender a esta demanda. Os resultados desta pesquisa podem auxiliar os profissionais que atuam no judiciário com o propósito de implementar melhorias no processo de adoção, por exemplo, priorizar a agilidade na emissão de documentos e a construção de programas de intervenção com orientações gerais nas fases pré e pós-adoção.