Sumário: 1. Introdução. 2. Inteligência humana vs. inteligência artificial: a importância da preservação dos valores humanos. 3. Impacto da inteligência artificial no mundo do trabalho. 4. Impacto da inteligência artificial no processo do trabalho. 5. Proteção em face da automação. 6. Considerações finais. 7. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O surgimento de novas tecnologias tem suscitado calorosos debates não apenas sobre o futuro do trabalho, mas também sobre o destino do direito do trabalho e do direito processual do trabalho.
As inovações tecnológicas - que incluem aprendizado de máquinas, robótica, veículos automatizados, dentre outros - tanto podem representar vantagens aos trabalhadores, que teriam mais tempo de dedicação à família, lazer, saúde, cultura, espiritualidade etc., como podem significar desvantagens no mercado de trabalho, se levarmos em conta o potencial que as máquinas possuem de substituir os seres humanos em suas atividades remuneradas.
Por que uma empresa pagaria pelo trabalho humano se conseguisse obter os mesmos resultados com a utilização de máquinas, que não reclamam, não descansam e não geram encargos financeiros?
Este artigo visa a investigar os impactos das novas tecnologias nas relações laborais e, como consequência, a repercussão desta nova realidade no direito do trabalho e nos procedimentos judiciais trabalhistas. Para tanto, serão analisados desde os desafios éticos a serem superados até as possibilidades de aprimoramento e eficácia do sistema jurídico de proteção ao trabalho em face da automação. O acesso à justiça também será objeto de estudo, já que o Poder Judiciário Brasileiro é altamente tecnológico, o que - em tese - poderia alijar do sistema jurídico pessoas desprovidas de letramento digital.
Neste contexto, enfrentar o analfabetismo digital é um passo significativo para a inclusão social e econômica, numa sociedade cada vez mais conectada e informatizada.
Como garantir que os cidadãos estejam qualificados para as novas profissões que surgem a partir da informatização se muitos não têm acesso a computadores, smartphones, pacotes de dados, internet? Sem acesso a estes mecanismos, como a pessoa será capaz de aprender a lidar com estas novas formas de labor? Estes são os dilemas que serão estudados neste artigo.
Quanto à metodologia, o artigo utilizará - de forma híbrida - o método exploratório e o método explicativo. O primeiro, será utilizado para identificar os temas menos conhecidos e compreendidos dentro da temática da inteligência artificial e, para tanto, será utilizada a pesquisa bibliográfica, legislativa e jurisprudencial. Após ter uma compreensão preliminar do tema, será aplicado o método explicativo para análise das variáveis identificadas e responder aos questionamentos postos no parágrafo supra.
2 INTELIGÊNCIA HUMANA X INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: A IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO DOS VALORES HUMANOS
A inteligência humana pode ser definida como a capacidade que as pessoas têm de compreender, entender, aprender, resolver novos problemas e conflitos e de adaptar-se a novas situações2.
A inteligência artificial, por sua vez, é tida como um ramo da ciência da computação que busca dotar máquinas e computadores de capacidade cognitiva semelhante ou superior à dos seres humanos, para que possam operar de maneira lógica e autônoma.
Stuart Russel e Peter Norvig destacam que, além desta capacidade cognitiva igual ou superior à humana, a inteligência artificial deve buscar o melhor resultado dentre os possíveis sem desviar-se da ideia de “fazer a coisa certa” em prol das pessoas:
Um agente é simplesmente algo que age (a palavra agente vem do latim agere, que significa “fazer”). Certamente todos os programas de computador realizam alguma coisa, mas espera-se que um agente computacional faça mais: opere autonomamente, perceba seu ambiente, persista por um período de tempo prolongado, adapte-se a mudanças e seja capaz de criar e perseguir metas. Um agente racional é aquele que age para alcançar o melhor resultado ou, quando há incerteza, o melhor resultado esperado3.
A preocupação de “não se desviar de fazer a coisa certa” deve-se ao fato de a inteligência artificial não ter discernimento próprio para saber quando a ordem que lhe foi dada é ou não prejudicial ao ser humano. Não se trata de transformar as máquinas em seres conscientes, mas de minimizar possíveis efeitos colaterais não benéficos da informática sobre os humanos. Por ora, a inteligência artificial não tem sentimentos, empatia ou explicabilidade, por isso, ainda que não intencionalmente, por vezes, as máquinas podem prejudicar pessoas.
Por isso, como preconiza Nick Bostrom4, se algum dia construirmos cérebros artificiais capazes de superar o cérebro humano em inteligência geral devemos dotá-la da capacidade de proteger os valores da humanidade.
Vou além, penso que, muito embora ainda não tenhamos uma superinteligência, com o advento da linguagem natural generativa e da autoML5, a tecnologia tornou-se capaz de criar e treinar outras formas de inteligências artificias (inclusive mais potentes que a original)6. Isso já é realidade. Já existe, por exemplo, inteligência artificial capaz de “ler” os sentimentos humanos e dar respostas “empáticas” a fim de induzi-los à compra de mercadorias7. Portanto, devemos nos preocupar em estabelecer limites éticos e valores pétreos8, como a dignidade da pessoa humana9, em nossas interações digitais o quanto antes.
Devanildo de Amorim Souza alerta para esta situação quando vaticina que:
(...) tanto a proteção de dados pessoais quanto a evolução tecnológica devem manter o respeito a condição humana - honrando o valor supremo da dignidade da pessoa humana, expressamente estabelecido no artigo 1°, III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, sempre orientadas a promover a igualdade e o bem-estar social. Qualquer restrição aos direitos e garantias fundamentais deve ser considerada como uma medida excepcional, sendo admissível somente em situações de gravidade ou urgência excepcionais que, de acordo com os preceitos legais, justifiquem a limitação desses direitos10.
Há décadas a inteligência artificial está no nosso dia a dia, e desde que o PLN (processamento de linguagem natural) foi colocado à disposição do mercado, em dezembro de 2022, é perceptível a imensa velocidade com que tem impactado tudo em nossa volta. Não é à toa que muitos dizem que as redes neurais de linguagem natural são disruptivas e que darão um novo rumo à vida humana. Até então achávamos que apenas as atividades repetitivas, periculosas, insalubres e rudimentares seriam substituídas pela tecnologia. Porém, de uma hora para outra, roteiristas de séries de streaming foram trocados por máquinas. Os próprios cientistas de computação, em futuro breve, podem ser obsoletos, pois como a própria inteligência artificial cria e treina a si mesma, é possível reduzir drasticamente a necessidade de profissionais da computação. Até músicas, obras de arte e livros podem ser criados por máquinas.
Para Nick Bostrom11, o treinamento de máquinas poderia chegar a um estágio tão avançado que os processos cognitivos utilizados poderiam estar extremamente acima da compreensão humana. E quem pode garantir que estas inteligências artificiais teriam como prioridade os melhores interesses para os seres humanos?
Max Tegmark12 adverte que os perigos são visíveis. De imediato há a capacidade de a inteligência artificial gerar vídeos deepfake e produzir desinformação em massa. A longo prazo ele vê risco existencial representado por tecnologias superinteligentes que estejam fora do controle humano.
Diante de tamanhos riscos, surge a necessidade de incutir na criação e treinamento de máquinas (machine learning e deep learning) princípios éticos e regras de direitos fundamentais da pessoa humana. Dessa forma, ao menos na teoria, na hora de replicar a aprendizagem ou de criar novas IA’s estes ensinamentos basilares se perpetuariam.
Há situações reais nas quais a inteligência artificial burlou o comando humano e continuou a discriminar mulheres num processo seletivo13.
Bostrom14 alerta que a imputação de valores por meio de fórmulas estatísticas e matemáticas não é tarefa de solução fácil, especialmente pelo fato de que o que motiva as pessoas a seguirem um patamar de valores éticos é justamente a interação empática com outros seres humanos, o espírito de solidariedade e o medo de serem socialmente rejeitadas, preocupações ainda inexistentes nas máquinas.
3 IMPACTO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO MUNDO DO TRABALHO
A consolidação e o lançamento para o público da inteligência artificial com processamento de linguagem natural (ChatGPT pela OpenAI, Bing-GPT da Microsoft, Bard da Google, Sonic, Midjourney etc) causou furor e inquietação entre os usuários. Referidas ferramentas são capazes de auxiliar os seres humanos em pesquisas, traduções, respostas escritas e orais, desenhos etc. O fato é que, se estas múltiplas habilidades não têm o condão de eliminar todos os postos de trabalho, têm a propensão de reduzi-los.
Em relatório elaborado pelo Goldman Sachs15 no início do ano de 2023 projeta que a implantação de tecnologias de inteligência artificial poderia levar à obsolescência de aproximadamente 300 milhões de empregos em tempo integral. Cerca de 46% das atividades administrativas e 44% das profissões jurídicas estariam suscetíveis à automatização, enquanto setores como construção e manutenção apresentariam percentuais significativamente menores, 6% e 4% respectivamente16.
A grande disrupção ocorrida pelo advento pelo processamento de linguagem natural17 está no fato de até mesmo a atividade mais complexa e intelectualizada pode - atualmente - ser elaborada por máquinas. Portanto, o ser humano fica com uma gama mais restrita de opções laborativas.
As chamadas “novas profissões”, tais como designers digitais, elaboradores de conteúdo digital para redes sociais, análise de tendência de design gráfico já foram em larga escala substituídas pelas redes neurais de linguagem natural com o intuito de aumentar a produtividade e reduzir gastos18.
A médio prazo, nem mesmo atividades como motoristas de aplicativo estarão à disposição aos seres humanos, pois os carros autônomos já são realidade em várias partes do mundo19.
Em 2021, ao escrever sobre as perspectivas do trabalho após a pandemia da COVID-19, entendíamos que haveria uma migração de trabalhos analógicos para atividades que demandassem conhecimento altamente informatizado. Dizíamos:
Segundo o Fórum Econômico Mundial de setembro de 2020, em 2025, a participação de trabalhadores e máquinas no mercado de trabalho estará estatisticamente empatada, incumbindo aos seres humanos 53% das atividades laborativas, contra 47% dos trabalhos para as máquinas. No Brasil, estarão em ascensão profissões ligadas à tecnologia da informação e comunicação, tais como especialista em inteligência artificial, analistas e cientistas de dados, especialistas em internet das coisas, especialistas em transformação digital, especialistas em big data, especialistas em marketing digital e estratégia, especialistas em processos de automação e inteligência emocional. Por outro lado, estariam em declínio, serviços ligados à escrituração e folha de pagamento, processamento de dados, à linha de montagem nas fábricas, mecânicos de máquinas e secretários-executivos20.
Ocorre que a partir de dezembro de 2022, com o GPT (generative pre-trained transformer), tudo mudou. E o que tem se desenhado é uma perda maior de empregos que demandam grande conhecimento de informática, porque são estas as atividades que estão sendo substituídas por máquinas. É neste sentido que se entende que referida tecnologia (GPT) rompeu com o curso normal da evolução do trabalho humano. Não é apenas o trabalho repetitivo que está em risco, o labor intelectual e o de gestão também estão ameaçados. Não haverá migração para trabalhos melhores. Sobrarão as atividades residuais, de menor complexidade e, consequentemente, de menor remuneração.
4 IMPACTO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO PROCESSO DO TRABALHO
Na esfera processual, há alguns anos o CNJ tem implantado sistemas inteligentes para separação de processos, atuação em demandas repetitivas e cálculos.
Sem dúvidas a tecnologia pode auxiliar em tarefas que não exijam tomadas de decisões, mas também no âmbito do Poder Judiciário percebe-se uma gradativa substituição da mão de obra humana por ferramentas tecnológicas. Os servidores que se aposentam não são repostos e, dia após dia, novas soluções informáticas buscam fazer frente ao excesso de demandas.
Há, no Poder Judiciário Brasileiro, um entusiasmo com a tecnologia e com a utilização de inteligência artificial no dia a dia do trabalho das unidades judiciárias e dos tribunais e esta empolgação se justifica: os algoritmos são capazes de fazer em segundos, atividades que os seres humanos levam horas ou dias. Essa possibilidade de entregar uma prestação jurisdicional célere e de desafogar os gargalos existentes na Justiça, anima a cúpula que busca configurar seus órgãos para lidar com essa nova realidade21.
É certo que a utilização de ferramentas digitais facilita o trabalho humano e traz maior celeridade à prestação jurisdicional. Porém, deve-se cuidar para que estas urgências não desviem a atividade jurisdicional de seu foco principal: propiciar aos jurisdicionados a pacificação social com justiça. A União Europeia, com o intuito de manter o ser humano no centro das atenções dos profissionais da área jurídica, editou em 2018, a Carta Ética sobre o Uso da Inteligência Artificial no Poder Judiciário22.
Tal documento estabelece princípios basilares a serem utilizados nos sistemas judiciais, tais como o respeito aos direitos fundamentais, a não discriminação, qualidade e segurança na gestão de dados, bem como o controle dos dados pelo usuário. Tais princípios, por possuírem natureza genérica, têm servido de inspiração para a legislação de várias localidades do mundo.
A Carta Ética aponta, ainda, para a necessidade de uma abordagem cibernética que envolva desde os criadores dos algoritmos até os usuários finais. Recomenda, também, o desenvolvimento de novas disciplinas humanísticas para assegurar que a inteligência artificial seja um vetor de desenvolvimento positivo para a pessoa humana.
No que tange às aplicações práticas, a carta destaca a utilidade de ferramentas de deep learning na construção de sistemas de busca jurisprudencial, na elaboração de cálculos creditícios e na facilitação do acesso à informação jurídica por meio de chatbots.
No entanto, a utilização dessas tecnologias não deve usurpar o papel do julgador humano, cuja capacidade para a análise qualitativa, empática e contextualizada dos casos é insubstituível.
A carta ética para o Poder Judiciário refere-se, também, à chamada “justiça preditiva”. Ela é ao mesmo tempo um instrumento capaz de aumentar a eficiência judicial e de, paradoxalmente, expor as pessoas a riscos significativos com a reprodução de vieses algorítmicos. Além disso, tem potencial de trazer estigmas aos magistrados e magistradas que podem vir a ser hostilizados por suas decisões. Legislações recentes em países como a França e a Espanha abordam esses dilemas e impõem, limitações à utilização de inteligência artificial no contexto judicial para preservar a independência e a dignidade da função judicante23. O art. 33 da Lei de Reforma da Justiça Francesa - Lei 2019-222, 23/03/2019 - estabeleceu limites à utilização de ferramentas de inteligência artificial para ranqueamento de juízes.
Na contramão dos cuidados fixados pela União Europeia, a Estônia é um dos primeiros países do mundo a apresentar laboratório de inovações tecnológicas no campo do Poder Judiciário, com a introdução do “juiz robô” para casos de menor complexidade.
Todavia, essa inovação suscita questões éticas importantes relacionadas à ausência de atributos humanos na tomada de decisões judiciais. Julgar não é apenas friamente enquadrar (ou não) os fatos narrados em uma norma jurídica vigente. Requer análise da justiça da decisão. A interpretação gramatical (a única possível a um robô) nunca foi a única e melhor interpretação possível para os casos concretos. Ademais, o robô não explica como chegou àquele resultado, o que infringe o princípio constitucional da fundamentação das decisões (fundamentadas todas as decisões, diz o art. 63, inc. IX, da CF).
A inteligência artificial representa uma ferramenta com grande potencial para aprimorar a eficiência do sistema judiciário. No entanto, seu uso deve ser criterioso e eticamente responsável, de modo a preservar os princípios fundamentais do Estado de Direito e a dignidade da função judicante.
No Brasil, o CNJ editou a Resolução 332/2020, segundo a qual a inteligência artificial, no âmbito do Poder Judiciário, visa a promover o bem-estar dos jurisdicionados, a prestação equitativa da jurisdição e o não aviltamento da pessoa humana como alicerce. Frisa que o emprego de modelos de IA deve primar pela segurança jurídica e igualdade de tratamento em casos análogos.
Ademais, o CNJ tem implementado a Justiça 4.0, o Juízo 100% Digital, o balcão virtual, a PDPJ, a citação digital e outros mecanismos de utilização da tecnologia no aperfeiçoamento da entrega da prestação jurisdicional, todos com o intuito de facilitar o acesso à justiça.
E mais, para aqueles que não possuem nenhuma condição de usar a tecnologia para estar em Juízo, porque - dentre outras privações - não possuem acesso digital, há o POP RUA JUD, um programa de Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas Interseccionalidades.
A Resolução 425/2021 assegura o amplo acesso à justiça às pessoas em situação de rua, de forma célere e simplificada, a fim de contribuir para superação das barreiras decorrentes das múltiplas vulnerabilidades econômica e social, bem como da sua situação de precariedade e/ou ausência habitacional.
Como se vê, há um grande esforço do Poder Judiciário Pátrio em manter o pleno acesso à justiça e limitar a inteligência artificial às atividades não diretamente judicantes.
5 PROTEÇÃO EM FACE DA AUTOMAÇÃO
A Constituição da República/1988 fixou como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria das condições de trabalho, a proteção em face da automação, nos termos da lei (art. 7º, inciso XXVII).
Ocorre que, após décadas de sua promulgação, o referido dispositivo constitucional ainda não foi regulamentado. Diante destas circunstâncias foi ajuizada, em 2022, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 73 que visa a obrigar o Poder Legislativo a cumprir com suas obrigações e editar, em prazo razoável, lei federal que confira efetividade ao direito de proteção em face da automação.
Entretanto a Advocacia Geral da União manifestou-se contrariamente aos termos da petição inicial porque entende que a questão merece amplos debates entre os atores envolvidos.
Neste sentido, a Advocacia Geral da União apresentou parecer no qual pugnou pela improcedência do pedido formulado na ADO 73. Em suas palavras:
(...) Além disso, como bem pontuado na manifestação do Senado Federal, regulamentar a proteção do trabalho em face da automação envolve o desafio das constantes e rápidas evoluções tecnológicas, tornando curial evitar que a normatização do tema se torne obsoleta num curto horizonte temporal24.
A AGU tem razão. O maior desafio na construção de uma lei de proteção dos trabalhadores em face da automação está em normatizar a matéria sem que isso inviabilize a evolução tecnológica das empresas brasileiras e, consequentemente, seu poder concorrencial com empresas de outros países. Qualquer normatização que se apresente deve levar em conta a rapidez com que a inteligência artificial se desenvolve e o fato de o Brasil não poder ficar alijado das inovações digitais. Neste aspecto reputo importante o estabelecimento de amplo debate acerca da matéria para que a nova legislação não engesse a atuação de trabalhadores, empregadores e Estado.
Simplesmente não regulamentar o assunto não é uma opção viável pelo fato de a própria Constituição Federal exigir a elaboração de uma norma sobre o tema.
Atualmente, encontra-se em tramitação o Projeto de Lei 1091/201925 e a ele foi apensado, em 20 de junho de 2023, o Projeto de Lei 2421/202326.
O PL 1091 teve início em 2019, portanto, não contempla a grande inovação da década de 2020: a inteligência artificial com processamento de linguagem natural difundida em grande escala para a população em geral em dezembro de 2022. O PL portanto, não enfrenta esta grande disrupção ocorrida e trabalha com a concessão de prazos extremamente longos quando se trata de tecnologia. Por isso, sob minha óptica, o projeto já nasce obsoleto.
Além disso, o referido PL, determina que a adoção ou implantação da automação será obrigatoriamente precedida de negociação coletiva com o sindicato representativo da categoria profissional e, na hipótese de inexistência de negociação coletiva prévia, serão nulos, de pleno direito, os atos jurídicos tendentes à automação, com possibilidade de reparação por perdas e danos, no que couber, aos trabalhadores prejudicados. A ideia de nulidade de atos jurídicos pode acarretar insegurança de algumas empresas em atuar em solo brasileiro.
Saliento que é importante que haja efetivamente a participação coletiva neste tipo de negociação, porque a ampla visão de todos os atores sociais na mudança do processo produtivo pode gerar soluções que individualmente talvez nem sequer tivessem sido pensadas pelas partes, soluções estas que podem vir a beneficiar a todos os envolvidos.
O Projeto de Lei 1091/2019 prevê ainda, na hipótese de inexistência de entidade sindical representativa da categoria profissional, a possibilidade de formação de comissão eleita pelos trabalhadores do estabelecimento para a específica finalidade da negociação quanto à proteção em face da automação. Trata-se, a meu ver, de exemplo de negociação coletiva atípica, figura tão bem explorada por Maria Palma Ramalho27.
Aqui cabem alguns questionamentos: os sindicatos teriam condições técnicas de negociar matérias relacionadas à automação? Entendo que os sindicatos maiores são dotados destas capacidades e, se se sentirem inaptos em algum ponto, possuem condições financeiras de contratar técnicos que possam auxiliar na análise conjuntural do problema.
Os maiores obstáculos estão nas entidades sindicais menores que não possuem as mesmas condições econômicas que os médios e grandes sindicatos para a contratação de profissionais especializados na matéria. O mesmo se diga quanto à comissão que possa vir a ser formada pelos trabalhadores para negociação direta. Como se vê, deve-se ampliar esta discussão. Eventual lei sobre o assunto deve pensar em todas estas variáveis. A comissão de trabalhadores teria embasamento técnico para negociar em igualdade de condições com o empregador sobre o futuro profissional dos colegas? Apesar de, em determinadas circunstâncias, a negociação coletiva atípica ser uma fórmula viável, em matéria de automação entendo que não atingiria o escopo colimado e geraria discussões judiciais intermináveis acerca de sua representatividade.
O Projeto de Lei preconiza também que o empregador ou tomador de serviços obriga-se a comunicar ao sindicato da respectiva categoria laboral e à Superintendência Regional do Trabalho competente, com antecedência mínima de seis meses em relação à data de adoção ou implantação da automação. Ocorre que, como dito anteriormente, a demora na implementação de alguns projetos pode inviabilizá-los ou torná-los ultrapassados por outros pesquisadores e empreendedores, em especial aqueles não sujeitos à legislação brasileira.
O legislador apôs em seu texto que as pessoas naturais, jurídicas ou entes despersonalizados que adotarem qualquer método de automação devem garantir, aos empregados remanescentes, as mesmas ou melhores condições de trabalho. Frise-se que a garantia de manutenção das mesmas condições de labor já está expressa no artigo 468, da CLT, por meio do qual se proíbe a alteração contratual de forma unilateral e lesiva. Senão vejamos: nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia. Logo, por qualquer ângulo que se analise a matéria, não será possível ao empregador piorar a situação do trabalhador em razão da automação da empresa. Não bastasse, a Súmula 51, do C. TST fixa:
NORMA REGULAMENTAR. VANTAGENS E OPÇÃO PELO NOVO REGULAMENTO. ART. 468 DA CLT (incorporada a Orientação Jurisprudencial nº 163 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
I - As cláusulas regulamentares, que revoguem ou alterem vantagens deferidas anteriormente, só atingirão os trabalhadores admitidos após a revogação ou alteração do regulamento. (ex-Súmula nº 51 - RA 41/1973, DJ 14.06.1973)
II - Havendo a coexistência de dois regulamentos da empresa, a opção do empregado por um deles tem efeito jurídico de renúncia às regras do sistema do outro. (ex-OJ nº 163 da SBDI-1 - inserida em 26.03.1999)
O projeto normativo sugere, ainda, que cabe ao empregador ou tomador de serviços proporcionar aos empregados envolvidos, por meio de programas e processos de readaptação, capacitação para novas funções e treinamento e que o empregador não poderá despedi-los sem justa causa, nos primeiros seis meses, e nenhum dos empregados readaptados para outras funções, nos primeiros dois anos, sempre contados a partir da adoção, implementação ou ampliação da automação da empresa. Neste ponto, valeria a meu ver, deixar a fixação de prazos para eventual garantia de emprego por conta da negociação sindical, já que cada empresa tem realidade diferente da outra. A lei poderia fixar um prazo mínimo de seis meses e a negociação coletiva poderia se encarregar de conceder prazos maiores a depender da situação de cada empregador concretamente considerado.
Durante os dois primeiros anos de adoção da automação, só poderá haver dispensa de trabalhadores mediante prévia negociação coletiva e adoção de medidas para reduzir os impactos negativos da implantação do programa, encaminhando-se os trabalhadores dispensados aos centros a serem criados. Nesse contexto, as empregadas do gênero feminino, os aprendizes, as pessoas idosas e aqueles com maior número de filhos ou dependentes, respeitados os percentuais dos segmentos especialmente protegidos, terão precedência, nesta ordem, no processo de reaproveitamento e realocação de mão de obra.
O empregado dispensado em decorrência da automação de setores da empresa fará jus ao pagamento de todas as verbas rescisórias dobradas, incluída a indenização sobre os depósitos de FGTS (art. 18, §1º, da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990). Além disso, fica vedada a dispensa coletiva massiva de trabalhadores (assim entendida aquela que atinja de modo concomitante 10% ou mais dos obreiros do local) decorrente da adoção ou implantação de métodos de automação.
Em apenso ao PL 1091/2019, encontra-se o PL 2421/2023. Este trata da automação das atividades laborativas por um viés que reputo mais eficaz: o da taxação tributária das empresas que fecharem postos de serviços humanos para a alocação de robôs ou ferramentas tecnológicas com ou sem o uso da inteligência artificial28.
Nos termos do Projeto de Lei, seria criado um Fundo de Renda Básica, destinado a redistribuição de renda para famílias e pessoas com renda de até três salários mínimos ou um salário mínimo per capita, que tenham sido afetadas pelo uso da inteligência artificial nos processos produtivos. O imposto seria utilizado para auxiliar na capacitação digital destes trabalhadores e na manutenção de um patamar civilizatório básico.
Para tanto, as empresas que empregarem inteligência artificial e alto nível de automação robótica teriam alíquota adicional de 5% no Lucro Líquido, a ser paga por meio da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e no Imposto de Renda da Pessoa Jurídica.
A ideia de taxação de empresas que se utilizarem da tecnologia para eliminar postos de trabalho não é nova, mas ganhou novo fôlego após o advento da inteligência artificial com processamento de linguagem natural. Sobre este assunto, pesquisas mostram que a tecnologia impinge um duplo ataque ao erário: elimina empregos e reduz a arrecadação de impostos.
Trabalhadores sem emprego não pagam os impostos que incidem sobre a folha e, em muitos países, também têm direito a receber benefícios como seguro desemprego. Ou seja, têm peso duplo sobre as finanças públicas.
Nos EUA, para se ter ideia, 48% da arrecadação federal vem da cobrança de impostos sobre a renda e 35%, de contribuições sociais. Apenas 9% vêm da tributação de pessoa jurídica.
É por isso que, para compensar a perda de receita decorrente do desemprego estrutural causado pela maior automação da indústria americana, muitos especialistas defendem a criação de um "imposto sobre robôs"29.
Para os empregadores, substituir a mão de obra humana por ferramentas tecnológicas tem sido lucrativo inclusive porque não teriam que pagar encargos pela troca. A adoção de semelhante tributação restituiria ao Estado parte da arrecadação perdida, além de permitir a utilização desta verba no letramento digital da população, capacitação da massa de trabalhadores dispensados e criação de novas formas de sustentação financeira para aqueles diretamente atingidos pela automação.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É certo que a revolução tecnológica, materializada por meio da inteligência artificial e outras inovações digitais, tem o condão de reconfigurar não apenas o mundo do trabalho, mas também o arcabouço jurídico que o circunda.
Embora o avanço tecnológico ofereça possibilidades de otimização e eficácia, não se pode olvidar dos desafios éticos e jurídicos subjacentes, notadamente no que concerne à proteção do trabalho humano.
O artigo 7º, inciso XXVII, da Constituição Federal desde 1988 já se preocupava em deixar claro que as novas tecnologias têm como principal escopo o bem-estar da humanidade. Ocorre que a própria norma constitucional relegou à lei ordinária a regulamentação do nível de proteção que se deseja alcançar. E esta não é uma tarefa fácil.
É preciso discutir com seriedade os Projetos de Lei 1091/2019 e 2421/2023, e outros que tramitam na Câmara de Deputados e Senado Federal, para que sejam feitos ajustes que os tornem viáveis de efetivamente proteger os empregos sem paralisar os avanços tecnológicos das empresas brasileiras no mercado globalizado.
Prazos muito alongados de negociação coletiva, entidades sindicais não representativas, baixo nível de conhecimento dos negociadores acerca do funcionamento da informática, negociações feitas por comissões de trabalhadores não qualificados em matéria de negociação e de tecnologia podem resultar em problemas sérios de desempregos em massa e estagnação da empresa que não pode colocar em prática seus projetos tecnológicos.
Todos os atores sociais devem ser conclamados a debater sobre os impactos de tais normas na vida real. Não se pode deixar sancionar norma que se mostre desde o nascedouro pouco eficaz.
Mister se faz pensar com seriedade na tributação das empresas que substituírem a mão de obra humana pelas ferramentas de inteligência artificial, já que em semelhante cenário tanto o erário quanto os cidadãos perdem arrecadação e renda. Sem dinheiro em circulação para qual público alvo a empresa produzirá seus produtos? Para exportação? Este panorama não agravaria a desigualdade social no nosso país?
Ainda sob tal prisma, ao não estabelecer nenhum imposto sobre a automação, estar-se-ia a estimular o cálculo utilitarista de custo-benefício e, por meio do qual sempre vencerá a opção de deixar o ser humano sem emprego e adotar a tecnologia como o grande agente do processo produtivo.
A complexidade da matéria exige uma atuação sinérgica entre Estado, sindicatos e empresas, para que se possa navegar com segurança jurídica e ética neste mar de inovações tecnológicas. A construção de um arcabouço jurídico robusto e adaptável é não apenas desejável, mas indispensável para a salvaguarda dos direitos fundamentais e da dignidade humana no cenário laboral contemporâneo. Até porque, não legislar a questão não é uma opção possível, já que a CF/1988 exige tal regulamentação.
Portanto, é preciso discutir mais e melhor o presente tema para que se possa entregar à população uma norma jurídica que promova efetivamente a proteção do trabalhador em face da automação e nos traga um ambiente de trabalho mais justo, equitativo e humano, em consonância com os princípios e valores que norteiam o Estado Democrático de Direito.