Sumário: 1. Introdução. 2. A Violência contra a Mulher. 3. Vítimas Indiretas da Violência: a Invisibilidade dos Órfãos do Feminicídio. 4. Mínimo Existencial e Dignidade da Pessoa Humana. 5. Mínimo Existencial e Direitos Humanos. 6. Desenvolvimento Humano. 7. Implementação da Política Assistencial como Contributo para o Desenvolvimento Humano e a Erradicação da Pobreza. 8. Considerações Finais. 9. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A morte violenta de mulheres, provocada pelo machismo estrutural, além de caracterizar grave violação aos direitos humanos, atinge seus familiares e, em especial, sua prole, vítimas indiretas da violência, que sofrem as vicissitudes da orfandade.
A perda abrupta da figura materna, muitas vezes praticada pelo genitor, gera um processo de duplo luto, acarretando consequências de ordem psicológica, como traumas, medos, inseguranças, além de refletir no desempenho escolar e desenvolvimento dessas vítimas.
Com a desestruturação do eixo familiar, busca-se por familiares que possuam condições de acolhimento, o que nem sempre é possível, fazendo com que crianças e adolescentes sejam levados ao abrigamento. Em tais situações acabam, muitas vezes, sendo abandonados à própria sorte.
O presente trabalho tem por objetivo apontar os impactos gerados pela violência provocada pelo crime de feminicídio na vida de crianças e adolescentes que, para além de constituir uma questão de saúde pública, geram consequências sociais e econômicas. A perda dos provedores do lar acarreta, em sua maioria, alteração no padrão de vida, contribuindo, muitas vezes, para situações de pobreza e marginalização.
Valendo-se de metodologia indutiva, empregando os procedimentos bibliográfico e documental, verificou-se que, de acordo com o Fórum Nacional de Segurança Pública (ano base- 2023), houve um aumento expressivo dos crimes de feminicídio no ano de 2022, e, na maioria dos delitos, as vítimas possuíam entre 18 e 24 anos, o que revela que foram praticados na fase reprodutiva da mulher. Estima-se que, para cada morte de mulheres em situação de violência doméstica, a vítima deixa, em média, dois 2 filhos, órfãos da violência, inexistindo dados precisos acerca dessa temática. Ainda, verificou-se a ausência dessa temática. Ainda, verificou-se a ausência de políticas públicas destinadas a minimizar efeitos da orfandade provocada pelo feminicídio.
Os resultados obtidos revelaram a invisibilidade do assunto no Brasil, havendo poucos projetos de lei ainda pendentes de aprovação, o que torna ainda mais desafiadora a abordagem desse grave problema social. Essa temática, embora sensível, tem sido tão invisibilizada no Brasil que há escassez de dados sobre o assunto, o que torna sua abordagem ainda mais desafiadora.
Entretanto, se o Estado não foi capaz de evitar as mortes violentas, deverá se atentar para essa realidade, que contribui para situações de pobreza e marginalização, frustrando expectativas de vida e o pleno desenvolvimento humano.
Visando evitar tais situações e garantir a observância dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (artigos 1º e 4º, DA CF), mostra-se, portanto, urgente e imperiosa a atuação estatal por meio de políticas públicas assistenciais, cuja finalidade é compensar as vítimas indiretas, propiciando-lhes o mínimo necessário à existência digna.
2 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E O CRIME DE FEMINICÍDIO
A violência contra a mulher consiste em um fenômeno social que tem raízes no patriarcado e surge como consequência da supremacia masculina criadora de papéis sociais femininos4.
Os arranjos de gênero colocados na sociedade criam expectativas a respeito de como se deve agir, pensar ou gostar5. Ao categorizar comportamentos para cada grupo social, a sociedade cria estigmas e estereótipos que correspondem às expectativas normativas em relação à conduta masculina ou feminina e que permitem reconhecer sua identidade social6.
Os estereótipos produzem desigualdades, discriminações e violências que vão se naturalizando ao longo do tempo e que constituem fruto da história e educação de nossa sociedade7
A dominação socioc.ultural molda as mulheres como figuras dóceis, mães, esposas, cuidadoras. É o conjunto de políticas culturais praticadas pela família, escola e sociedade que encaixa as mulheres na classe que lhes é devida, associando os frutos da socialização do gênero ao aspecto biológico: mulheres são assim. Cresce-se acreditando que o que foi socialmente construído como gênero feminino é inato é da “essência feminina”8.
A visão estereotipada do comportamento feminino impõe à mulher a obrigação de se comportar segundo os padrões socialmente criados. Ao se destoar desses padrões passa a ser malvista e discriminada, sendo, muitas vezes, punida com atos de violência. A violência surge, então, como ato de legitimação para contenção do comportamento feminino destoante, permitindo-se, assim, a manutenção do poder patriarcal9.
Dentre as várias espécies de violência, a violência íntima ou doméstica é a que ocorre com maior frequência e atinge mulheres sem qualquer distinção de raça, idade, religião, cultura ou classe social.
Para o Comitê da ONU pela Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher: “A violência doméstica é uma das mais insidiosas formas de violência contra a mulher. Prevalece em todas as sociedades. No âmbito das relações familiares, mulheres de todas as idades são vítimas de violência de todas as formas, incluindo o espancamento, o estupro e outras formas de abuso sexual, violência psíquica e outras, que se perpetuam por meio da tradição. A falta de independência econômica faz com que muitas mulheres permaneçam em relações violentas. (...) Estas formas de violência submetem mulheres a riscos de saúde e impedem sua participação na vida familiar e na vida pública com base na igualdade”10.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher prevê que “a violência contra a mulher constitui grave violação aos direitos humanos e limita total ou parcialmente o exercício dos demais direitos fundamentais, constituindo ofensa à dignidade humana”11. E, em seu art. 1º, define a violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública quanto na esfera privada”12.
O caso Maria da Penha retirou da invisibilidade a violência praticada na esfera privada no Brasil. Maria da Penha Fernandes foi vítima, por duas vezes, de tentativa de homicídio, praticados por seu ex-companheiro, o que a deixou paraplégica aos 38 anos de idade. Após 15 anos da condenação pelo tribunal do Júri, o réu ainda permanecia em liberdade, em virtude de vários recursos por ele interpostos13. O caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que recomendou, dentre outras, a adoção de medidas administrativas, legislativas e judiciárias para evitar a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica no Brasil14.
Visando dar cumprimento às determinações da Comissão e, em virtude do compromisso assumido pelo Estado Brasileiro na prevenção da violência, foi editada a Lei 13.343/06, denominada “Lei Maria da Penha” que, dentre outras disposições, considerou a violência contra a mulher uma grave violação de direitos humanos e estabeleceu medidas de prevenção, assistência e proteção às mulheres em situação de violência15.
A Lei Maria da Penha, em perfeita consonância com a Convenção de Belém do Pará, trouxe um rol exemplificativo das espécies de violência contra a mulher praticadas no âmbito doméstico, abarcando a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, baseada no gênero.
O feminicídio, crime de ódio, consiste na morte violenta de mulheres pelo simples fato de serem mulheres. É considerado o ápice da violência contra a mulher, fundado no patriarcado e nos estereótipos de gênero. Constitui-se, muitas vezes, em um conjunto de pequenas violências que vão aumentando gradativamente até eclodir na violência extrema e fatal. “Trata-se de um evento evitável que não aconteceria sem a conivência e tolerância institucional e social perante as discriminações e violências praticadas contra as mulheres”16.
Atendendo às recomendações internacionais e, devido às pressões da sociedade, contrárias à postura omissiva estatal, a Lei nº 13.104/15 de 9 de março de 2015, “Lei do feminicídio”, veio trazer uma resposta penal mais severa às hipóteses de morte violenta de mulheres, incluindo-o como uma qualificadora do crime de homicídio (art. 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal), cuja motivação se dá por razões sexistas, envolvendo violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição da mulher. Matam-se mulheres, simplesmente por serem mulheres, “motivados por sentimento de posse e de controle da vida, inconformismo com o rompimento, supressão do direito de escolha da vítima, restabelecimento da vida íntima e amorosa das mulheres”17.
Inobstante a hediondez do delito, o feminicídio vem crescendo de forma exponencial pelo mundo, notadamente aqueles praticados na esfera íntima, sendo o Brasil considerado um dos países que mais mata mulheres no mundo.
Dados do anuário de Segurança Pública de 2023 revelam que “os feminicídios cresceram 6,1% em 2022, resultando em 1.437 mulheres mortas simplesmente por serem mulheres”18. Em 2022, os homicídios femininos também mostraram crescimento, chegando a 4.034 vítimas, um aumento de 1,2% em relação a 202119. Levantamento feito pelo monitor da violência, em 2022, o Brasil bateu recorde de feminicídios, com uma mulher morta a cada seis horas20. “Em mais da metade dos casos de feminicídio (53,6%), o crime é praticado pelo parceiro íntimo, sendo 19,4% dos casos o ex-parceiro íntimo e em 10,7% dos registros constava outro familiar, como filho, irmão ou pai”21.
Em se tratando do local de ocorrência do evento violento, 7 em cada 10 vítimas de feminicídio foram mortas dentro de casa, o que revela indícios de que, em muitos casos, a violência é praticada na presença de familiares das vítimas. Tratando-se do perfil das vítimas, destaca-se expressivo percentual de feminicídios em relação às mulheres negras 61,1% e 38,4% em relação às mulheres brancas, o que chama a atenção para o racismo existente em nossa sociedade. No que se refere à idade das vítimas, em 71,9%, as mortes ocorreram na faixa etária entre 18 e 44 anos, sendo o maior percentual entre 18 e 24 anos, segundo dados do anuário de segurança pública22. Esse recorte revela que, em sua maioria, os feminicídios ocorreram na fase reprodutiva da mulher. Estima-se que, para cada morte de mulheres em situação de violência doméstica, a vítima deixa, em média, dois 2 filhos, órfãos da violência23.
Muito já se avançou no tema da violência contra a mulher. Contudo, há um longo caminho a ser percorrido, o que abarca a situação referente aos órfãos do feminicídio, ainda invisibilizada. Após o crime, o Estado se ocupa de punir o infrator, sem se dar conta, em termos de política pública, de que a família da vítima foi colocada em uma condição de vulnerabilidade peculiar.
3 VÍTIMAS INDIRETAS DA VIOLÊNCIA: A INVISIBILIDADE DOS ÓRFÃOS DO FEMINICÍDIO
A violência contra a mulher, cujas raízes se encontram no patriarcado, além de constituir grave violação de direitos humanos, gera consequências que perpassam as vítimas diretas, atingindo seus familiares. São as chamadas vítimas indiretas, em especial, crianças, adolescentes e jovens adultos que convivem com situações de violência, muitas vezes, praticadas em seus próprios lares.
Crescer em um ambiente violento pode gerar a chamada transmissão intergeracional da violência (TIV), pois é comum que crianças ou adolescentes que tenham vivenciado situações de violência na infância, por meio do processo de aprendizagem observacional, tenham a tendência de reproduzi-las em suas relações interpessoais24.
A situação se torna ainda mais alarmante nos casos de feminicídio. A perda brusca e violenta da figura materna gera um processo de luto abrupto, impactando sobremaneira a vida dessas crianças e adolescentes.
Segundo dados do anuário de segurança pública, 56% dos feminicídios são praticados pelos parceiros íntimos. A morte provocada pelo genitor, padrasto ou companheiro da mãe, gera impactos físicos e psicológicos, tais como instabilidade emocional, medo, raiva, baixa autoestima, ansiedade, depressão, transtorno alimentar e psicotrópico, pensamentos suicidas, criminalidade, além de baixo desempenho escolar25, o que pode ser ilustrado nos seguintes relatos:
Com 57% do corpo tomado por cicatrizes, a modelo paulista Amanda Carvalho, 20, convive diariamente com as marcas da violência doméstica. Em 2014, seu pai ateou fogo em sua mãe, que morreu 24 horas depois, bem como a atingiu. Ela, assim como suas três irmãs, é órfã do feminicídio. Sua realidade dá rosto a um problema significativo, mas subestimado26.
A atriz Maitê Proença tinha 12 anos quando o pai matou a mãe com 16 facadas. Seu desabafo serve de alerta: “Quando acontece uma coisa, não é só a mãe que sofre, as outras vítimas também sofrem. A violência atinge a todos. Eu tinha dois irmãos, um se matou de tanto beber e o outro entrou para as drogas pesadas. Meu pai acabou se matando também. Então, quem sobrevive a isso, como no meu caso, passa a vida perguntando se tem valor. Por que eu não consegui impedir? Ninguém pensou na gente, naquela estrutura alegre, nada daquilo foi levado em conta”27.
Com a desestruturação da composição familiar causada pela morte violenta da mãe e a destituição ou perda do poder familiar do genitor em virtude da autoria do crime, busca-se por familiares próximos que tenham condições de acolhê-los, fato que acarreta mudança estrutural na vida de muitas crianças e adolescentes. Havendo parentes que os acolham, acabam mudando de residência, de escola e perdendo vínculos familiares e sociais anteriormente construídos. Por vezes, irmãos acabam se separando diante da impossibilidade do acolhimento de todos pelos seus familiares, o que acarreta consequências traumáticas, como descreve o seguinte episódio:
Mariana tinha dois filhos de relacionamentos anteriores. No dia do crime, ela saiu para se encontrar com seu ex-companheiro e não voltou. Foi estrangulada e teve seu corpo escondido em um buraco em uma via pública. A filha adolescente presenciou a retirada do corpo da mãe. Após o crime, ela foi residir com a avó, em outro Estado, e o irmão continuou residindo no DF. A adolescente passou a apresentar comportamento de automutilação, necessitando de apoio especializado28.
Em não havendo familiares em condições de acolhimento, quer por questões econômicas ou de outra ordem, faz-se necessário recorrer ao abrigamento, o que gera consequências ainda mais traumáticas pela estigmatização e perda completa do vínculo familiar.
Os impactos gerados pelo feminicídio nas vítimas indiretas do crime vão além das consequências físicas, psicológicas, sociais e familiares, podendo ainda ser sentido no aspecto econômico, o que interfere no desenvolvimento humano e na existência digna. A perda dos provedores do lar acarreta alteração no padrão de vida. Sem o referencial econômico, antes suportado pela mãe e/ou pelo pai, os órfãos da violência acabam por contar com a própria sorte, o que contribui para situações de marginalização e pobreza.
Muito tem sido realizado visando ao combate à violência contra a mulher, em especial, às situações de feminicídio. Contudo, as vítimas indiretas da violência ainda permanecem na invisibilidade, pouco ou nada sendo dedicado a essa questão em termos de políticas públicas.
O Decreto nº 10.906, de 20 de dezembro de 2021, que instituiu o Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio, traz em seu art. 2º, dentre outros objetivos (...) V - garantir direitos e assistência integral, humanizada e não revitimizadora às mulheres em situação de violência, às vítimas indiretas e aos órfãos do feminicídio29(grifo das autoras).
Vários projetos de lei que visam ofertar assistência psicológica e financeira a essas vítimas estão em trâmite no Congresso Nacional, contudo, ainda dependem de aprovação.
No município de São Paulo, a Lei nº 17.851 de 27 de outubro de 2022 instituiu o chamado Auxílio Ampara, benefício a ser pago a crianças e adolescentes, com idade inferior a 18 anos, em situação de orfandade decorrente de feminicídio.
O suporte emocional e econômico são fundamentais para o desenvolvimento humano, propiciando o mínimo que lhe garanta sua existência digna.
Ao se omitir diante dessa realidade, que só faz crescer, dado o aumento expressivo dos casos de feminicídio, o Estado descumpre seu dever constitucional de erradicar a pobreza e a marginalização. Deixá-los na invisibilidade é violar a Constituição, os tratados internacionais e compromissos pelos quais o Brasil se obrigou a cumprir, notadamente, no que se refere à proteção integral destinada à criança e ao adolescente.
4 MÍNIMO EXISTENCIAL E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O direito ao mínimo existencial, aventado pela primeira vez na doutrina alemã por Otto Bachof30, consiste em uma prestação material, destinada às pessoas necessitadas, para que, com seu implemento, o Estado coloque em prática a garantia e o respeito pelo direito à vida e à dignidade humana.
Sobre o tema, Ricardo Lobo Torres explica que antes das políticas sociais, as pessoas pobres não recebiam assistência do Estado: somente podiam contar com a ajuda oferecida pela Igreja Católica Apostólica Romana e por alguns cristãos mais abastados31. Afinal, no passado, prestações materiais não eram consideradas direito, mas sim caridade.
Embora não haja consenso doutrinário sobre o conteúdo do direito ao mínimo existencial, isto é, tudo o que nele está compreendido32, porquanto “a dignidade propriamente dita não é passível de quantificação”33, a noção do que pode ser o mínimo necessário para a existência digna varia conforme os valores, a cultura e as possibilidades econômicas de uma determinada sociedade. Um dos expoentes dessa ideia é Flávio Martins, apontando, ainda, que o direito ao mínimo existencial é pressuposto da cidadania na Constituição de 198834.
Esse direito, que surge na argumentação jurídica, fundamentada nos direitos humanos, na ideia de justiça, nas condições iniciais de liberdade e nos valores da igualdade e da dignidade da pessoa35, tem por objetivo dar concretude à ideia kantiana de que o valor da pessoa humana lhe é intrínseco36.
Como defende o filósofo Jacques Maritain, a dignidade humana não surge, apenas, como um fruto da racionalidade, mas da capacidade de a pessoa, que é única, singular entre todas as coisas, pensar e amar, pontuando que “o homem é um indivíduo que se sustenta e se conduz pela inteligência e pela vontade; não existe apenas de maneira física, há nele uma existência mais rica e mais elevada, que o faz superexistir espiritualmente em conhecimento e amor”37.
Na mesma senda, Ingo Wolfgang Sarlet conceitua a dignidade da pessoa humana como a “qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano e que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais”38.
Ora, não se pode olvidar que os órfãos e órfãs do feminicídio possuam a mesma qualidade. Para evitar que a perda da mãe implique, além do profundo abalo emocional, também na penúria material, deve o Estado garantir o seu direito ao mínimo existencial, isto é, acesso às prestações materiais que decorrem da dignidade humana.
Para tanto, em que pese ainda não haja lei específica, de âmbito nacional, instituindo o benefício, temos base no direito internacional dos direitos humanos para salvaguardar referido direito.
5 MÍNIMO EXISTENCIAL E DIREITOS HUMANOS
Começando pela Declaração Universal dos Direitos Humanos39, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, que consagra, no Artigo XX, o direito à segurança social e, no Artigo XXV, prestações materiais decorrentes da dignidade humana, como o direito da pessoa de assegurar para si (e sua família, inclusive), alimentação, vestuário, habitação, amparo médico, serviços sociais, abrangendo a proteção social contra os riscos do desemprego, da doença, da invalidez, da viuvez, da velhice e outros acontecimentos que resultem na perda dos meios de subsistência, além dos cuidados indispensáveis à infância40. Em uma interpretação extensiva, pode-se daqui depreender a proteção da orfandade pelo feminicídio, a qual, idealmente, independeria da qualidade de segurada da mãe, em relação à previdência social.
Esses direitos, como nota Alceu Amoroso Lima, tratam do padrão de vida e por isso, a bem da verdade, devem considerar não somente as necessidades materiais, mas também as outras necessidades da ordem do ser, como as questões morais, espirituais, psicológicas e intelectuais, a fim de que a pessoa tenha a possibilidade de ser inserida e, no devido tempo, contribuir com o progresso da civilização41.
Continuando o exame dos tratados de direitos humanos que buscam dar efetividade ao aspecto material da dignidade humana, pode-se mencionar o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais42, de 1966, que, com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, veio a dar força jurídica vinculante aos direitos consagrados na Declaração Universal de 1948.
O direito à previdência social está consagrado no Artigo 9, do referido tratado. Porém, no Artigo 11 do PIDESC, há o reconhecimento de direitos que podem ser compreendidos no rol do mínimo existencial. No parágrafo 1, proclama que toda pessoa tem direito “a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida” e, no parágrafo 2, pontua que os Estados reconhecem “o direito de toda pessoa de estar protegida contra a fome”, comprometendo-se na adoção de medidas para “melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos”.
Ora, se como visto, as crianças e adolescentes órfãos e órfãs do feminicídio ou são acolhidos por familiares ou, em muitos casos, relegados ao acolhimento institucional, onde se tornam, de fato, invisibilizados, a implementação do disposto no Artigo 11 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais passa, obrigatoriamente, por uma assistência previdenciária específica à sua qualidade de órfão e órfã, devendo ir além disso, visando ao seu pleno desenvolvimento humano.
Sobre o tema, o Comitê encarregado de supervisionar o cumprimento dos dispositivos do PIDESC, em seu comentário geral nº 19, afirma que “o direito à seguridade social tem uma importância central para garantir a dignidade humana de todas as pessoas confrontadas às circunstâncias que as privem da capacidade de exercer plenamente os direitos enunciados no Pacto”43.
Como destaca o Comitê, a seguridade social é uma ferramenta essencial do combate à pobreza, de modo que a seguridade social, nesse entendimento, há que ser compreendida como um bem social e não como mero fator político, econômico ou financeiro.
Sobre os elementos centrais a serem contemplados pela seguridade, o Comitê destaca que entre os riscos e contingências sociais a serem cobertos, além dos cuidados de saúde, auxílio na doença, na velhice, no desemprego, nos casos de acidente de trabalho, do auxílio à família e à infância, à maternidade, à invalidez e aos sobreviventes, também devem ser salvaguardados os órfãos.
A prestação a ser oferecida pelo sistema de seguridade, como destaca o Comitê, pode ser “em espécie ou in natura, devem ser de um montante e de uma duração adequada, a fim de que cada um possa exercer seus direitos à proteção da família e à ajuda da família, a um nível de vida adequado, e aos cuidados de saúde, tais como enunciados nos artigos 10, 11 e 12 do Pacto”44. Tais prestações constituem medidas de combate à pobreza e à exclusão social45.
Como medidas mínimas de implementação dos direitos consagrados no PIDESC, os Estados que fazem parte do tratado se obrigam a assegurar a todos e a todas o acesso a um regime de seguridade social que inclua um nível mínimo de prestações, garantindo “cuidados essenciais de saúde, acomodação e habitação de base, provisão de água e saneamento, alimentação, e as formas mais elementares de ensino”46, o que compreende a adoção de medidas específicas a fim de garantir o direito à seguridade aos grupos desfavorecidos e marginalizados.
Como se vê, para o Comitê das Nações Unidas encarregado de supervisionar o cumprimento do PIDESC, o sistema de seguridade social deve, obrigatoriamente, amparar as pessoas órfãs, no intento de evitar e combater situações de pobreza e marginalização. O patamar mínimo de implementação desses direitos equivale à ideia de mínimo assistencial.
A Convenção Relativa aos Direitos da Criança47, nas Nações Unidas, de 1989, também aborda a temática. Consoante seu Artigo 1º, são crianças todas as pessoas “com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”. Como se percebeu até aqui, são sujeitos de proteção jurídica desse tratado internacional, tanto as crianças, como os adolescentes.
No seu Art. 3º, a Convenção trata do maior interesse da criança, apontando como dever dos Estados a adoção de medidas legislativas e administrativas para assegurar o bem-estar delas e que, “com relação aos direitos econômicos, sociais e culturais, os Estados Partes adotarão essas medidas utilizando ao máximo os recursos disponíveis e, quando necessário, dentro de um quadro de cooperação internacional”, conforme previsão do Art. 4º.
Na Convenção Relativa aos Direitos da Criança, também são consagrados seu direito à vida e ao desenvolvimento, como aduz a redação do Artigo 6º.
Ora, dessa forma, nos tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil é parte, estando incorporados, portanto, ao ordenamento jurídico brasileiro, na forma do § 2º, do Artigo 5º, da Constituição de 1988, não há escusa para que crianças e adolescentes vítimas indiretas do feminicídio deixem de ter a proteção material de sua dignidade humana garantida pelo Estado.
6 DESENVOLVIMENTO HUMANO
O desenvolvimento, francamente compreendido como a passagem de modos de vida menos humanos, a modos de vida mais humanizados48, trata-se de um processo que compreende a vivência em completude dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, não somente das pessoas, individualmente, mas também dos povos, em sentido coletivo.
No direito internacional, a temática do desenvolvimento, que teve início com a independência dos povos coloniais, no contexto histórico da criação da ONU, tem, no direito ao desenvolvimento, um direito humano, reconhecido na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento49, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1986, que busca, nas palavras de Amartya Sen, Prêmio Nobel em economia, que as pessoas possam desenvolver suas potencialidades, livres das amarras da pobreza50.
A compreensão da pobreza como privação de capacidades e como fenômeno multidimensional, que inclui fatores como a renda e também outras questões que compõem a noção de condições de vida, como a educação e a saúde, foi o impulso para a criação do Índice de Desenvolvimento Humano - IDH, por Mahbub ul Haq e Amartya Sen, em contraposição à noção de Produto Interno Bruto - PIB, para medir o avanço das nações. O índice, contudo, não é completo, por não incluir fatores como a democracia, a participação, a equidade e a sustentabilidade51.
Se, por um lado, como destaca Amartya Sen52, não se pode confundir o bem-estar com a comparação de renda real, em função de um conjunto de variáveis, como a idade, o gênero, a função desempenhada pela pessoa, por outro, não se pode conceber que a criança e o adolescente, enquanto pessoas em formação que são, com a perda da estrutura familiar em decorrência do feminicídio, percam também toda a possibilidade de viver dignamente, no aspecto material, pela ausência de renda.
Quer-se dizer que o ganho e o incremento da renda não são os únicos fatores que medem o desenvolvimento. Contudo, a renda, o auxílio material, não perdem, jamais, sua essencialidade.
Os demais fatores que contribuem para maior vulnerabilidade das crianças e adolescentes, que são tema desse estudo, devem ser levados em consideração para programação de políticas públicas que, tendo a assistência material pela orfandade como pressuposto, também possibilitem ao órfão e à órfã pelo feminicídio, o quanto mais for necessário ao seu desenvolvimento humano, na máxima medida quanto possível.
É o mínimo que se espera de uma sociedade justa, inclusiva e fraterna, como pretende a Constituição de 1988, pela declaração de seu preâmbulo, Artigo 1º e Artigo 3º, que tratam, respectivamente, dos princípios e dos objetivos da República. Aliás, a ordem econômica, prevista no Art. 170 do texto constitucional, “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.
Se não há um amplo e suficiente aparato fraterno para acolhida e suporte ao pleno desenvolvimento das crianças e adolescentes, vítimas indiretas do feminicídio, que a solidariedade, enquanto princípio jurídico, obrigue o Estado e, dessa forma, a coletividade, à realização do quanto for necessário para que as necessidades materiais dessas pessoas necessitadas sejam supridas53.
7 IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA ASSISTENCIAL COMO CONTRIBUTO PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO E A ERRADICAÇÃO DA POBREZA
A assistência social é uma forma de proteção social - remedeia a indigência social - a miserabilidade - a pobreza, que pode ser traduzida como necessidade cumulada com a impossibilidade para o trabalho.
A assistência social visa garantir ao homem o mínimo de subsistência, quando em estado de necessidade extrema. É uma forma de reduzir a desigualdade social, de modo a garantir os direitos fundamentais da pessoa humana - a dignidade.
Na Constituição Federal de 1988, o art. 203 disciplina que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à Seguridade Social.
A Lei Orgânica da Assistência Social - Lei 8.742/1993 - prescreve em seu art. 1º:
A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.
A assistência social apresenta um caráter não contributivo e tem por finalidade atender às necessidades básicas das pessoas em situação de hipossuficiência - em estado de necessidade extrema, de miserabilidade - ou portadores de deficiência.
Portanto, trata-se de uma prestação pecuniária paga pelo Estado para acesso de idosos em situação de hipossuficiência ou pessoas com deficiência, garantindo o atendimento das necessidades básicas e condições mínimas de dignidade.
Nesse contexto, a assistência como contributo para o desenvolvimento e minimização da pobreza é política de seguridade não contributiva, que deve ser destinada às vítimas indiretas da violência, em especial, crianças e adolescentes órfãos em decorrência do crime de feminicídio, que em sua maioria se encontram em estado de necessidade extrema, seja ela de natureza psicológica, econômica e/ou social.
Nessa ótica assistencial foi criada no âmbito do município de São Paulo a Lei nº 17.851/2022, nominada Auxílio Ampara, que trouxe uma luz aos desamparados, ao destinar o valor prestacional de um salário-mínimo a crianças e adolescentes órfãos em decorrência do feminicídio.
Para ter direito ao recebimento do benefício é necessário atender aos seguintes requisitos: ter idade inferior a 18 (dezoito) anos; possuir residência e domicílio no Município de São Paulo; estar matriculado em uma instituição de ensino da capital Paulista e encontrar-se inscrito no CadÚnico - Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. Os beneficiários também deverão estar sob guarda oficializada por uma família acolhedora ou tutela provisória e, em caso de estarem inseridos em um ambiente familiar, a renda total do lar não pode ultrapassar três salários-mínimos.
Para a manutenção do recebimento a criança ou adolescente deverá estar em dia com o calendário nacional de vacinação, estar sob acompanhamento de seu estado nutricional, ter frequência escolar mínima de 75% (setenta e cinco por cento) e ser acompanhada pelo Serviço de Assistência à Família e Proteção Social Básica no Domicílio - SASF, além da ausência da prática de ato infracional, crime ou contravenção penal.
O Auxílio Ampara será pago até que o beneficiário complete 18 anos de idade, mediante depósito em conta aberta em nome da própria criança ou adolescente. Contudo, poderá ser estendido até que o beneficiário complete 24 (vinte e quatro anos), desde que se encontre em situação de vulnerabilidade social e esteja regularmente matriculado em curso de graduação reconhecido pelo Ministério da Educação, situação que dependerá parecer social favorável.
O benefício assistencial não poderá ser cumulado com quaisquer outros beneficios relacionados à previdência social (por exemplo, pensão por morte) e a assistência social, quer seja no âmbito municipal, estadual ou federal (por exemplo, bolsa família)
Recentemente, foi editada a Lei nº 14.717, de 31 de outubro de 202354, que instituiu em âmbito federal, uma pensão especial correspondente ao valor de um salário-mínimo mensal aos filhos e dependentes crianças ou adolescentes, órfãos em razão de crime de feminicídio (art. 121, VI, e § 2º-A do Código Penal), cuja renda familiar mensal per capita seja igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.
O valor do benefício assistencial corresponde ao valor de um salário-mínimo mensal vigente.
Iniciativas muito importantes foram dadas na busca da proteção social e assistencial de crianças e adolescentes, vítimas indiretas do feminicídio.
Em síntese, a assistência social é um instrumento de redução às desigualdades sociais, e para continuar sendo deverá ocorrer uma mudança na ótica social - o amparo aos desassistidos de modo a minimizar a pobreza - a exclusão social, ou seja, uma mudança no conceito de pobreza, não em uma visão econômica, e sim, ética e social.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência contra a mulher constitui um fenômeno social, cujas raízes se encontram na cultura machista e patriarcal. Além de consistir em grave violação aos direitos humanos das mulheres (vítimas diretas), a violência repercute em sua prole e em seus familiares, vítimas indiretas do delito. Ao conviver com situações de violência, crianças e adolescentes acabam por reproduzi-la em suas relações interpessoais, por meio da chamada transmissão intergeracional da violência.
A situação se mostra mais alarmante nos casos de feminicídio. No Brasil, segundo o Anuário de Segurança Pública de 2023, 1.437 mulheres foram mortas simplesmente por serem mulheres, o que resultou em um aumento de 6,1% em relação a 2022, com uma mulher morta a cada seis horas, de acordo com o monitor da violência. Pesquisa realizada pelo Instituto Maria da Penha revelou que cada vítima de feminicídio gera, em média, dois órfãos.
A desestruturação da composição familiar provocada pela morte materna e perda do poder familiar paterno, que ocorre em virtude da autoria do crime, gera impactos de ordem física, emocional, social e familiar, causando traumas e rompimento de vínculos, interferindo, ainda, na vida econômica desses órfãos, ao gerar alteração no padrão de vida que os impedem de alcançar seu pleno desenvolvimento, contribuindo para situações de pobreza e marginalização.
Faz-se necessário um olhar atento e urgente do Estado, para que as vítimas indiretas da violência sejam retiradas da invisibilidade. O suporte emocional e econômico são fundamentais para o desenvolvimento humano, propiciando o mínimo necessário que lhes garanta existência digna, o que se encontra em consonância com a proteção integral prevista no Estatuto da criança e do adolescente (Lei nº 8069/90) e com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III e art. 3º inciso III, da Constituição Federal).
A omissão estatal diante dessa realidade viola a constituição, os tratados internacionais e compromissos que o Brasil se obrigou a cumprir, notadamente, no que se refere à proteção integral da criança e do adolescente. Como pessoas em desenvolvimento, cabe ao Estado lhes garantir proteção integral e prioritária.
Conquanto tenham vindo avanços legislativos no campo da assistência social, dentre eles, a Lei municipal nº 17.851/2022, que trouxe uma luz aos desamparados e, mais recentemente, a Lei Federal nº 14.717, de 31 de outubro de 2023, que instituiu uma pensão especial aos filhos e dependentes, crianças ou adolescentes, órfãos em razão de crime de feminicídio, ainda há longo caminho a ser percorrido nessa temática. A ausência de dados e informações precisas acerca dessas vítimas, obstaculiza a criação de políticas públicas efetivas destinadas à promoção da igualdade social, contribuindo para situações de pobreza e marginalização.