Sumário: Introdução; 1. O conceito e as características do crime de tráfico de drogas; 2. A apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico de drogas; 2.1. A desnecessidade da apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico; 2.2. A necessidade da apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico; 3. Conclusão; 4. Referências.
INTRODUÇÃO
O tráfico de drogas é um crime que assola a sociedade brasileira desde longas datas, sendo um dos crimes mais graves e frequentes em nosso país. Além de toda a questão envolvendo os reflexos jurídico-penais advindos desse tipo de delito, há ainda as graves consequências sociais e econômicas para a nossa sociedade, com uma quantidade enorme de recursos públicos sendo destinada todos os anos para o combate ao tráfico. Não é de se estranhar, portanto, a importância a discussão jurídica acerca dos diversos temas relacionados ao tráfico de drogas em nosso país.
Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), o tráfico de drogas é o crime que mais encarcera no Brasil. Levantamento feito pela instituição revela que em 2019 (DEPEN, 2020)2, cerca de 28% da população carcerária advinha de inquéritos/processos relacionados ao tráfico de drogas. Tal dado, por si só, para além de espantar, revela a enorme importância de se fazer uma discussão séria acerca dessa temática em nosso país.
Dados os números que apontam o massivo encarceramento de pessoas pelas diversas condutas associadas ao crime de tráfico, resta evidente a pertinência deste estudo. Há uma clara necessidade de se discutir os limites e as possibilidades da aplicação da Lei de Drogas pelo judiciário brasileiro. Busca-se aqui contribuir para o debate acadêmico e social acerca dos critérios para a definição legal do crime de tráfico bem como seus reflexos na política criminal atualmente adotada pelo Estado brasileiro.
A opção legislativa do Brasil para o combate ao tráfico tem sido a adoção de uma política criminal bastante repressiva, baseada principalmente na repressão penal e aplicação de penas severas aos infratores da lei. Tratando-se de legislação penal sobre o tema, temos a Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) como a maior expoente para o combate a esse tipo de delito. A referida Lei contempla uma série de condutas que, uma vez realizadas pelo agente, configuram o crime de traficância, com penas que varia de 3 a 20 anos de reclusão.
Como se vê, a Lei de Drogas não polpou esforços em criminalizar toda e qualquer possível conduta associada ao tráfico, com penas altas (se comparadas a outros delitos do código penal) demonstrando desde logo uma clara vertente de combate massivo contra esse tipo de delito. Essa sanha punitivista estatal mostrou seus reflexos, como visto, no encarceramento massivo de pessoas em situação de vulnerabilidade social, mais suscetíveis, portanto, ao recrutamento pelos grupos e organizações criminosas voltadas ao tráfico. Se por um lado há muitas pessoas sendo presas em razão dos crimes associados ao tráfico de drogas, a verdade é que os números destes delitos não parecem diminuir. O que se vê é, na verdade, uma verdadeira ação estatal principalmente contra os usuários - principais afetados pela política criminal de combate ao tráfico adotada pela justiça do Brasil.
É certo que a aplicação da Lei de Drogas indiscriminadamente pelos rincões do nosso país tem gerado os mais diversos debates no âmbito jurídico e social. Uma dessas questões diz respeito principalmente acerca da necessidade ou não da apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico. Em outras palavras: não sendo apreendida a droga com o acusado, há a ocorrência do crime de tráfico? Esse debate é extenso e gera discussões no judiciário nacional há longas datas.
Essa problemática, a qual se pretende discutir no presente artigo, envolve principalmente aspectos relacionados à materialidade e autoria do delito, bem como à prova e tipicidade da conduta. Uma vez constatada a ausência de qualquer desses requisitos, é certo que, segundo a Teoria do Crime, não há a configuração do delito no caso concreto. A consequência lógica dessa não configuração é a não possibilidade de punição do “autor do crime”.
Apesar de termos quase duas décadas desde a vigência da Lei de Drogas, a jurisprudência brasileira ainda não firmou um posicionamento sólido sobre este tema. Há decisões que entendem que a ausência da apreensão da droga não torna automaticamente a conduta atípica. Para os que defendem esta corrente, a existência de outros elementos de prova poderia denotar a configuração da tipicidade da conduta. No entanto, há posicionamento (inclusive nos Tribunais Superiores), de que a apreensão da droga seria condição indispensável para a caracterização do crime de tráfico.
Diante dessa problemática, o objetivo do presente trabalho científico é analisar as diferentes decisões dos tribunais superiores acerca da imprescindibilidade, ou não, da apreensão de drogas para a configuração de delito de tráfico. Ora, definir parâmetros objetivos para a configuração do crime de tráfico é essencial para frear as prisões desenfreadas contra grupos socialmente vulneráveis. Conforme visto nos dados fornecidos pela DEPEN, o crime de tráfico representa uma parcela significativa da atual população carcerária brasileira, o que denota que a desnecessidade de apreensão da substância ligada ao crime de tráfego deve estar relacionada com o excesso de prisões pelo crime de tráfico.
Para a realização deste trabalho, optou-se pela utilização da pesquisa bibliográfica e documental, por ser um conteúdo com vasta produção científica acerca do tema. Ao se analisar os materiais produzidos pelos jurisconsultos, em todas as suas vertentes, é possível fazer uma análise acurada dos principais pontos a defender cada uma das correntes estudadas. Por fim, foi utilizado o método hipotético-dedutivo na análise das bases de conhecimento pesquisadas. Este revelou-se satisfatório para o levantamento e contraponto das hipóteses levantadas.
Para a elaboração deste artigo científico, levantou-se a hipótese de que a apreensão da droga é imprescindível para a configuração do crime de tráfico, ainda que haja outras provas robustas e concretas da materialidade e autoria delitivas. Essa tese se fundamenta na ideia de que o Estado brasileiro optou, através da Constituição Federal, pelo princípio da inocência, devendo a materialidade do crime ser comprovada para que o agente possa ser responsabilizado. Havendo a diretiva na Lei Penal para que a substância apreendida seja submetida à exame pericial para determinação da natureza e quantidade, não havendo a apreensão desta, resta prejudicada a comprovação fática da materialidade do crime ante a ausência de prova fundamental ao processo acusatório.
A conclusão final foi a de que é imprescindível a apreensão da droga para configuração do crime de tráfico, sendo, portanto, a apreensão do indivíduo sem a respectiva apreensão da droga uma medida ilegal. Todo o conjunto legal brasileiro, aí incluídas as disposições legais da Lei de Drogas e as garantias fundamentais da Carta Magna, convergem para a proteção da liberdade do indivíduo. Sendo assim, é forçoso reconhecer ser necessária a apreensão da droga, e consequente realização dos laudos periciais exigidos por lei, para a constatação dos crimes ligados ao tráfico. Sem a realização destes, toda prisão relacionada à Lei de Drogas deve ser considerada ilegal.
1 O CONCEITO E AS CARAVTERÍSTICAS DO CRIME DO TRÁFICO DE DROGAS
O tráfico de drogas é um dos crimes mais graves e frequentes em nossa sociedade. Para além dos reflexos penais, as condutas associadas a este crime geram uma série de consequências no âmbito social, econômico e jurídico do nosso país. Além da alta taxa de encarceramento, como visto nos dados trazidos à baila pelo relatório do DEPEN, o tráfico de drogas usualmente está relacionado a outros delitos, tais como homicídios, roubos, lavagem de dinheiro, associação criminosa e corrupção.
Ante a grave crise social advinda do avanço desse tipo de delito em nossa sociedade, o Estado brasileiro optou do adotar, através da sua política criminal, uma postura mais combativa no que tange à repreensão a esse tipo de crime. Todo o nosso sistema jurídico armou-se para proporcionar uma forte e rápida repressão ao crime de tráfico, com a aplicação de penas severas aos infratores. O crime de tráfico de drogas, que contém uma série de condutas ali tipificadas, prevê como pena a reclusão de 5 a 15 anos, uma pena relativamente alta quando considerada a média do Código Penal brasileiro.
Antes de adentrar no mérito do presente estudo, faz-se necessário analisar o conceito de tráfico de drogas. Para fins do Direito Penal, ele pode ser entendido sob o enfoque de duas perspectivas distintas: a formal e a material. Cada qual possui características que lhes são próprias e revelam uma interpretação diferente da conduta associada ao crime de tráfico.
Sob o aspecto formal, temos a descrição legal das condutas que configura o crime de tráfico de drogas, sendo mais utilizado para a exata tipificação da conduta do agente. De acordo com essa perspectiva, pratica o crime de tráfico de drogas qualquer pessoa que realizar qualquer uma das condutas previstas no artigo 33 e seguintes da Lei de Drogas3, in verbis
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
IV - vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente.
Art. 34. Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 1.200 (mil e duzentos) a 2.000 (dois mil) dias-multa.
Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa.
Art. 36. Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, e pagamento de 1.500 (mil e quinhentos) a 4.000 (quatro mil) dias-multa.
Art. 37. Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação destinados à prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e pagamento de 300 (trezentos) a 700 (setecentos) dias-multa.
O tráfico de drogas é um dos crimes mais graves e frequentes na sociedade brasileira, gerando graves consequências sociais, econômicas e jurídicas. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), o tráfico de drogas é o crime que mais encarcera no Brasil, representando 28% da população carcerária em 2019 (DEPEN, 2020)4. Além disso, o tráfico de drogas está relacionado a outros delitos, como homicídios, roubos, lavagem de dinheiro e corrupção.
Diante desse cenário, o Estado brasileiro tem adotado uma política criminal de combate ao tráfico de drogas, baseada na repressão penal e na aplicação de penas severas aos infratores. A Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) prevê uma pena de reclusão de 5 a 15 anos e pagamento de 500 a 1.500 dias-multa para quem importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (artigo 33).
No entanto, o que é considerado tráfico de drogas? Qual é o conceito e quais são as características desse crime? Essas são questões que não têm uma resposta simples e unívoca, pois envolvem aspectos jurídicos e sociais complexos e controversos. Apesar da dificuldade, tentaremos apresentar uma definição e uma descrição do crime de tráfico de drogas, com base na legislação e na doutrina pátria.
O conceito de tráfico de drogas pode ser entendido sob duas perspectivas: a formal e a material. A perspectiva formal se baseia na descrição legal das condutas que configuram o crime de tráfico de drogas. A perspectiva material se baseia na análise dos elementos que caracterizam o crime de tráfico de drogas.
A perspectiva formal é a mais utilizada pelos operadores do direito para definir o que é considerado tráfico de drogas. Segundo essa perspectiva, pratica o crime de tráfico de drogas quem realiza qualquer uma das condutas previstas no artigo 33 da Lei de Drogas5, dentre os quais se destacam
- Importar/exportar;
- Remeter;
- Preparar/produzir/fabricar;
- Adquirir/vender/expor à venda/oferecer;
- Ter em depósito/transportar/trazer consigo/guardar;
- Prescrever/ministrar/entregar a consumo ou fornecer drogas.
Essas condutas devem ser realizadas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Além disso, devem ter como objeto material as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência física ou psíquica relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União (artigo 31 da Lei de Drogas).
A perspectiva formal tem a vantagem de facilitar a identificação e a tipificação do crime de tráfico de drogas, pois basta verificar se a conduta do agente se enquadra em alguma das hipóteses legais. No entanto, essa perspectiva também tem algumas desvantagens e limitações. Uma delas é a abrangência excessiva das condutas descritas no artigo 33 da Lei de Drogas, que podem abarcar situações diversas e até mesmo atípicas. Outra desvantagem é a dificuldade de distinguir o crime de tráfico do crime de porte para uso pessoal, previsto no artigo 28 da Lei de Drogas, que possui uma pena muito mais branda.
Presentes essas dificuldades, surge a perspectiva material. Ela busca superar as desvantagens e limitações da perspectiva formal, ao considerar não apenas a descrição legal das condutas, mas também os elementos que caracterizam o crime de tráfico de drogas. Segundo essa perspectiva, o tráfico de drogas é um crime complexo e pluriofensivo, que não se esgota na mera posse ou entrega da droga, mas abrange uma série de condutas que visam à difusão ilícita de substâncias entorpecentes na nossa sociedade.
Por ser um crime complexo, podemos entender que o tráfico de drogas é composto por vários tipos penais, que podem ser praticados isolada ou cumulativamente. Por exemplo, quem importa e vende drogas pratica duas condutas previstas no artigo 33 da Lei de Drogas. O crime pluriofensivo significa que o tráfico de drogas ofende vários bens jurídicos, como a saúde pública, a ordem econômica, a segurança pública e a paz social. Logo se vê a extensão dos campos de estudo necessários para o correto entendimento das condutas associadas ao tráfico de drogas.
A perspectiva material tem a vantagem de permitir uma análise mais aprofundada e crítica do crime de tráfico de drogas, levando em conta os aspectos sociais e políticos envolvidos. No entanto, essa perspectiva também tem algumas dificuldades e desafios. Um deles é a necessidade de se estabelecer critérios objetivos e subjetivos para diferenciar o tráfico do uso pessoal. Outro desafio é a necessidade de se avaliar as provas e as circunstâncias de cada caso concreto, para verificar se há ou não a configuração do crime de tráfico de drogas.
Portanto, o conceito e as características do crime de tráfico de drogas são temas complexos e controversos, que exigem um estudo cuidadoso e atualizado. Passaremos a analisar como a doutrina e os tribunais superiores têm interpretado e aplicado a Lei de Drogas no Brasil, especialmente em relação à questão da apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico.
2 A APREENSÃO DA DROGA PARA A CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS
Uma das questões mais polêmicas e debatidas no âmbito jurídico e social diz respeito à necessidade ou não da apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico de drogas. Em outras palavras: não sendo apreendida droga com o acusado, há a ocorrência do crime de tráfico?
Essa problemática envolve aspectos relacionados à materialidade e à autoria do delito, bem como à prova e à tipicidade da conduta. A materialidade diz respeito à existência concreta do fato criminoso; a autoria diz respeito à identificação do agente responsável pelo fato; a prova diz respeito aos meios utilizados para demonstrar a materialidade e a autoria; e a tipicidade diz respeito à adequação da conduta ao tipo penal previsto em lei.
A doutrina e a jurisprudência brasileira não têm um posicionamento uniforme sobre essa questão. Há posicionamentos que entendem que a ausência de apreensão da droga não torna a conduta atípica se existirem outros elementos de prova aptos a comprovarem o crime de tráfico. Por outro lado, há também correntes que consideram que a apreensão da droga é indispensável para a caracterização do crime de tráfico, pois se trata de um delito material que deixa vestígios.
A seguir, analisaremos as diferentes decisões dos tribunais superiores sobre o tema da apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico. Para isso, examinaremos os argumentos favoráveis e contrários à exigência da apreensão da droga, bem como as consequências práticas dessa exigência para a política criminal brasileira.
2.1 A Desnecessidade da Apreensão da Droga para a Configuração do Crime de Tráfico
Há uma corrente jurisprudencial, inclusive com decisões nos Tribunais Superiores, que entendem não haver necessidade da apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico. Para ela, existindo nos autos outros meios de provas robustos o suficiente para comprovar a materialidade e autoria delitiva, já seria passível de imputar a prática do delito ao acusado/réu.
Em seus ensinamentos, o professor Salo de Carvalho (2013)6 levanta como principal argumento favorável a essa tesa a ideia de que o tráfico de drogas é um crime complexo e pluriofensivo, que não se esgota na mera posse ou entrega da droga, mas abrange uma série de condutas que visam à difusão ilícita de substâncias entorpecentes na sociedade. Assim, mesmo que não haja apreensão da droga, pode-se configurar o crime de tráfico se ficar demonstrado que o agente praticou alguma das condutas previstas no artigo 33 da Lei de Drogas.
Essa vertente de pensamento possui bastante adeptos, tantos na doutrina quanto na jurisprudência pátria. Um exemplo claro de uso dela pode ser exemplificada pela seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ)7, assim ementada.
AGRAVO REGIMENTAL EM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O MESMO FIM. PRISÃO PREVENTIVA. PARTICIPAÇÃO EM COMPLEXA E ESTRUTURADA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE APREENSÃO DAS DROGAS. MATERIALIDADE. COMPROVAÇÃO POR OUTROS MEIOS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. É entendimento assente nesta Corte Superior que o trancamento da ação penal pela via eleita somente se mostra viável quando, de plano, comprovar-se a inépcia da inicial acusatória, a atipicidade da conduta, a presença de causa extintiva de punibilidade ou, finalmente, quando se constatar a ausência de elementos indiciários de autoria ou de prova da materialidade do crime. 2. No caso, a despeito da não localização de drogas, existem outras provas capazes de comprovar os crimes - quebras de sigilo bancário, cumprimento de mandados de busca e apreensão, acesso a dados de aparelhos celulares e várias conversas de WhatsApp -, sendo que nas mensagens trocadas entre os corréus há expressa menção à cocaína, “pedra”, maconha ou “verdinha”, além de fotografias de armas, drogas sendo pesadas, bem como lista de devedores. Registre-se ainda que, com que com a quebra do sigilo bancário, constatou-se a movimentação de mais de R$ 95.000,00 (noventa e cinco mil reais) na conta do agravante, no período de janeiro de 2016 a julho de 2017, enquanto encontrava-se preso, tendo a agrav ante como uma de suas beneficiárias (fl. 135). 3. A ausência de apreensão da droga não torna a conduta atípica se existirem outros elementos de prova aptos a comprovarem o crime de tráfico. Precedentes. 4. Agravo regimental improvido.
Facilmente perceptível que essa corrente adota uma percepção mais formal para a caracterização da conduta como crime de tráfico. É notório em enfoque mais multicausal da conduta, olhando-se mais para as ações do agente, que para a materialidade fática do crime em si (consubstanciada na apreensão da droga). Essa corrente, notadamente mais punitivista, possui uma relevante difusão no seio social, podendo ser facilmente atribuída a ela como um dos fatores dos altos índices de encarceramento pelo crime de tráfico de drogas no Brasil.
Este posicionamento busca sustentar-se precipuamente em duas principais premissas. Ambas visam relativizar direitos e garantias fundamentais dos acusados buscando uma suposta maior efetividade no combate ao tráfico de drogas. Como dito anteriormente, tais argumentos nada mais são que uma expressão da sanha punitivista estatal.
A primeira premissa a sustentar essa corrente, defende que exigir a apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico violaria o princípio da livre apreciação das provas pelo juiz. Para seus defensores, o art. 155 do Código de processo penal não atribuiria grau de importância entre as provas, podendo o juiz utilizar outros meios que não os laudos na droga para a condenação do acusado. Dessa forma, por esse motivo, eles entendem ser cabíveis a condenação dos acusados com base exclusivamente em outros meios de prova que não os laudos periciais na droga (que não foi apreendida).
A segunda premissa sustentada pelos defensores dessa tese é a de que a exigência da apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico seria uma medida necessária para o combate ao narcotráfico. Tal argumentação inverte totalmente a ordem jurídico-constitucional do Estado brasileiro ao transmutar o princípio da inocência em princípio da culpabilidade. Buscam justificar os atropelos às garantias constitucionais como uma forma de tornar mais efetivo o suposto “combate ao crime”. Temos por certo que essas garantias existem justamente para evitar abusos. Se passarmos a ignorá-las, quem garantirá a defesa das pessoas contra os abusos e arbitrariedades da própria máquina repressiva estatal?
Podemos perceber que os argumentos a favor dessa tese se baseiam na ideia de que a necessidade de apreensão da droga para a condenação do acusado é um empecilho ao combate à criminalidade. Para os que a defendem, direitos e garantias fundamentais garantidos à duras penas são apenas um entrave a permitir o avanço da criminalidade em nosso país. Podemos observar claramente que tais argumentos não se sustentam per si, derrubando, por conseguinte, a própria tese que eles sustentam.
2.2 A Necessidade da Apreensão da Droga para a Configuração do Crime de Tráfico
Existe uma corrente jurisprudencial que vem tomando força nos últimos anos mesmo com a divergência existente. Ela sustenta que a apreensão da droga é indispensável para a configuração do crime de tráfico, pois se trata de um delito material e que, portanto, deixa vestígios. Essa corrente, de vertente mais aberta, é exposta pelo professor Salo de Carvalho (2013)8, com os seguintes argumentos.
O crime de tráfico de drogas é um delito material que deixa vestígios, sendo indispensável a realização do exame de corpo de delito para a comprovação da materialidade delitiva. A Lei de Drogas prevê dois tipos de laudos periciais: o laudo de constatação, que é um exame preliminar e provisório, e o laudo definitivo, que é um exame conclusivo e definitivo. O laudo de constatação é suficiente para a lavratura do auto de prisão em flagrante e o estabelecimento da materialidade do delito, mas não para a condenação do acusado pelo crime de tráfico. O laudo definitivo é imprescindível para a condenação do acusado pelo crime de tráfico, pois somente ele pode atestar com certeza se a substância apreendida é ou não droga ilícita. (CARVALHO, 2013, p. 234)
Para os que defendem esta corrente, o aspecto material do crime de tráfico de drogas é imprescindível para a condenação do réu/acusado. Eles entendem que para a configuração do crime, é necessária a demonstração cabal da materialidade delitiva, ou seja, da existência concreta do fato criminoso. Essa demonstração se faz por meio dos laudos toxicológicos da droga apreendida, nos termos do art. 50 da Lei de Drogas. Desta forma, não havendo o laudo toxicológico nos autos (ante a não apreensão da droga), resta impossível a caracterização da conduta pelo crime de tráfico.
Podemos afirmar com extrema segurança que a adoção dessa corrente atende os ditames constitucionais inerentes à dignidade humana nos termos da legislação vigente. Se por um lado a corrente anterior coloca a presunção de inocência de lado, esta, por seu turno, privilegia este princípio constitucional à medida em que impõe ao Estado o ônus de provar a culpa do acusado. Ora, se o Estado está a processar alguém, cabe a ele o dever de comprovar a materialidade do crime.
Esse argumento pode ser explicado com um simples raciocínio lógico. Não havendo droga para ser periciada, não há como se apontar (com extremo grau de precisão) acerca da materialidade da conduta do indivíduo. Ainda que existam outros elementos de prova nos autos, a efetiva constatação da materialidade do crime de tráfico depende do exame toxicológico da substância apreendida. Sem este exame, não há como se afirmar, com absoluta certeza, que não houve nos fatos analisados uma conduta típica correlacionada à alguma substância de livre comercialização proibida.
Este entendimento pode ser verificado em várias decisões dos Tribunais Superiores brasileiros, dentre as quais se destaca a do STJ9, assim ementada:
(…) A jurisprudência desta Corte Superior é firme no sentido de que a apreensão de drogas é imprescindível para a demonstração da materialidade do crime de tráfico ilícito de entorpecentes. No entanto, não se exige a apreensão da droga para a configuração do crime de associação para o tráfico, que, por ser de natureza formal, sua materialidade pode advir de outros elementos de provas, como por exemplo, interceptações telefônicas. (…) (AgRg no AREsp 1.798.272/MG, 5ª Turma, j. 21/09/2021)
Ressalta-se que esse entendimento não é algo novo na jurisprudência. Em verdade, o STF10 já vem se posicionando nesse sentido há bastante tempo, como se vê do seguinte julgado
(…) A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que é imprescindível a confecção do laudo toxicológico definitivo para comprovar a materialidade dos crimes previstos na Lei nº 11.343/2006. (…) (HC 148480/BA, 1ª Turma, j. 07/06/2010)
Essa corrente nos parece muito mais alinhada com os ditames constitucionais e de direitos fundamentais. Ao exigir o exame toxicológico da droga apreendida, a Lei de Drogas premia o princípio da presunção de inocência insculpido na Carta Magna em seu artigo 5º, Inciso LVII. Não poderia ser diferente uma vez que estamos vivemos num Estado Democrático de Direito. As Leis Penais, em ultima ratio, servem não tão somente como meio de coerção contra as práticas delitivas, mas também com alicerce de defesa dos cidadãos contra os abusos do Estado.
A apreensão da droga é uma exigência humanitária para a configuração do crime de tráfico, pois evita injustiças e abusos por parte das autoridades policiais e judiciárias. Sem a apreensão da droga, há um risco de condenações baseadas em provas frágeis ou duvidosas, como depoimentos contraditórios ou interessados, denúncias anônimas ou infundadas etc. Essas provas podem gerar falsas acusações e violações dos direitos fundamentais dos acusados.
Portanto, a questão da apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico é um tema que envolve não apenas aspectos jurídicos, mas também aspectos sociais e políticos. A escolha entre exigir ou não a apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico implica em optar por uma determinada política criminal, que pode ter consequências positivas ou negativas para a sociedade brasileira.
Podemos então afirmar que a apreensão da droga é uma exigência legal para a configuração do crime de tráfico, pois se trata de um delito material que deixa vestígios. A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) prevê no artigo 50 que “a materialidade do delito é comprovada pelo laudo de constatação da natureza e quantidade da droga”. O laudo de constatação é um exame preliminar feito por perito oficial ou pessoa habilitada que atesta se a substância apreendida é ou não droga ilícita. Sem esse laudo, não há como comprovar a materialidade do crime de tráfico.
3 CONCLUSÃO
O objetivo deste artigo foi analisar a questão da necessidade de apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico de drogas. Para isso, examinamos os aspectos jurídicos e sociais envolvidos nessa problemática, bem como os argumentos utilizados pela doutrina e jurisprudências dos dois posicionamentos divergentes existentes sobre essa contenda.
Constatamos que a jurisprudência brasileira não tem um posicionamento uniforme sobre a necessidade ou não da apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico, havendo decisões que entendem que a ausência de apreensão da droga não torna a conduta atípica se existirem outros elementos de prova aptos a comprovarem o crime de tráfico, e decisões que consideram que a apreensão da droga é indispensável para a caracterização do crime de tráfico, pois se trata de um delito material que deixa vestígios.
Apesar da dicotomia jurisprudencial, parece evidente que o entendimento de que há a necessidade da apreensão da droga para a configuração do crime de tráfico deve prevalecer. Analisando o arcabouço jurídico em contraponto com os direitos e garantias fundamentais insculpidos na Constituição, resta evidente que o princípio da presunção faz surgir a exigência de apreensão da droga para configuração do crime de tráfico de drogas. Sem os devidos laudos periciais exigidos pela Lei de Drogas, não há como se atestar a ilegalidade de livre comercialização da substância nos termos da competente Portaria do Ministério da Saúde.
Num Estado que se diz Democrático de Direito, o império das Leis encontra obstáculo nos próprios limites e definições constantes em seu documento constituinte. No nosso caso, a Carta Magna de 88 assegura o princípio da presunção de inocência assegura a todos a desnecessidade de provar não ser culpado dos atos ilícitos lhes atribuído. Deste modo, resta ao Estado, no papel do órgão acusador, comprovar materialmente a ilicitude dos atos realizados. Desta forma, revela-se imprescindível a apreensão da droga, e posterior realização dos competentes exames toxicológicos, para se possibilitar a imputação da prática do crime de tráfico de drogas a quem quer que seja.
Após o levantamento dos argumentos pró e contra a imprescindibilidade da apreensão de drogas para a condenação do réu/acusado pelo crime de tráfico, parece acertado afirmar que os argumentos pró-imprescindibilidade merecem prosperar. Para além da previsão legal exigindo a produção da prova pericial no material apreendido, o nosso próprio sistema jurídico parece apontar para essa direção. Ao que parece, ao entender ser desnecessária a apreensão das drogas no crime de tráfico, os operadores do Direito envolvidos no processo penal acabam por simplesmente promover o encarceramento em massa dos supostos “autores” do crime, sem que isso resolva o problema do aumento da criminalidade em nossa sociedade.
Por todo o exposto, após a realização do presente estudo, confirmou-se a hipótese levantada no tocante à necessidade de apreensão da droga para que haja a condenação de alguém pelo crime de tráfico de drogas. Seja por ser uma previsão legal contida na Lei de Drogas, seja pela interpretação sistemática do ordenamento jurídico, a obediência desse preceito legal surge como uma obrigação para os operadores do Direito diretamente envolvidos no processo penal. Além disso, a adoção desse entendimento, parece ser, também, o caminho para uma redução nos níveis de encarceramento brasileiro, à medida em que confrontam nas prisões desmedidas atualmente realizadas pelas autoridades estatais.