Sumário: 1 Introdução; 2 As variáveis gênero, sexo e mulher na legislação penal brasileira: efeitos da criminalização de condutas nos marcos de um Direito Penal “neutro”; 3 Feminicídio: perspectivas de um fenômeno social até a conduta penal típica; 4 A natureza da qualificadora de feminicídio no ordenamento penal brasileiro; 5 Considerações Finais; 6 Referências.
1 INTRODUÇÃO
O presente texto tem por objeto de estudo a natureza da qualificadora do crime de feminicídio incluído em nosso ordenamento penal, em seu artigo 121, §2º, inciso VI. Apesar de ser uma modificação legislativa recente, inúmeros são os debates que permeiam a criação do crime feminicídio, porém, poucos são os autores que buscam teorias interdisciplinares para manifestarem-se acerca de tal figura penal, a qual pretende abarcar um fenômeno de alta complexidade social.
Dessa forma, o problema de pesquisa aqui proposto busca responder, de acordo com a doutrina penal e a teoria especializada em violência de gênero, se a referida qualificadora possui natureza objetiva ou subjetiva. Para tanto, pensando nos objetivos específicos necessários para alcançar o problema apresentado, iniciamos o artigo com a análise da presença das variáveis de gênero, sexo e mulher na legislação criminal brasileira, pensadas a partir de uma perspectiva crítica da criminalização de condutas no marco de um Direito Penal tido como neutro.
Nesse sentido, realizamos uma breve exposição acerca das principais modificações legislativas que envolvem a violência contra a mulher e a violência de gênero - já que ambas não podem ser utilizadas como sinônimos - ao longo dos períodos pós 2ª Guerra Mundial, no cenário global, e pós Ditadura Militar, no cenário brasileiro, até os dias atuais. Demarcamos o aspecto crítico da aproximação dos direitos humanos com as pautas feministas, principalmente na sua faceta penal, a partir de grupos feministas homogêneos e institucionalizados, demonstrando a importância da constante disputa dos campos discursivos de poder compreendidos na ferramenta penal. Por fim, analisamos de que forma as variáveis de gênero, sexo e mulher estão presentes na legislação criminal brasileira, quais significados elas pretendem abarcar e quais efeitos podemos observar desde as suas inclusões.
No segundo capítulo, abordamos os caminhos das definições do femicídio e do feminicídio - delineando a distinção teórica de ambas as tipologias. Pensadas a partir de teorias não jurídicas, as figuras passam por inúmeras modificações desde a sua criação, nos anos 90, ilustrando a referida disputa dos campos discursivos a fim de que possamos evitar a universalização de termos que pretendem abarcar realidades locais de um fenômeno complexo. Tais disputas ainda seguem em curso, entretanto, um dos aspectos mais relevantes de suas consequências parece ser a observação de sua aplicação na prática do âmbito jurídico.
Incluído em nossa legislação como forma qualificada do crime de homicídio, o feminicídio assume características mais próximas de sua forma clássica, deixando de lado os elementos de responsabilidade Estatal que marcam a sua tipologia. Importante mencionar que a presente pesquisa foi motivada pelos recentes debates doutrinários acerca qualificadora e, principalmente, pelos dados observados em campo durante a realização de uma investigação empírica de análise do fluxo processual dos crimes de feminicídios e homicídios de mulheres4, no ano de 2020. Referida pesquisa, dentre outras questões, revelou uma aplicação da qualificadora somente no seu formato previsto no inciso I do §2º-A, do Código Penal, qual seja, a qualificação pela violência doméstica e familiar.
Tal preferência provavelmente pode ser justificada pela incompreensão da figura em outros contextos que não abarcam a já conhecida Lei Maria da Penha (LMP), o que demonstra, ao fim e ao cabo, a possível incompreensão geral das causas da violência de gênero. Essas conclusões nos apoiam nas ideias desenvolvidas no último capítulo, uma vez que também pode explicar a dúvida quanto a natureza de sua qualificadora.
Dessa forma, o terceiro capítulo refere alguns dos principais posicionamentos doutrinários a respeito da natureza da qualificadora do crime de feminicídio. Com argumentos distantes dos estudos de gênero, alguns autores mencionados referem a natureza objetiva da figura, reduzindo-a à verificação da existência de uma relação doméstica e familiar entre autor e vítima ou, presumindo uma desigualdade objetiva entre homens e mulheres para a aplicação da qualificadora. A partir desse entendimento, poderíamos ter a figura de um feminicídio qualificado por motivo torpe, assim como, de um feminicídio privilegiado, resultados incompatíveis com as garantias penais e com a própria definição especializada de feminicídio.
Além disso, coexistem outros dois posicionamentos, o de que a natureza da qualificadora é subjetiva e, o de que ela representa uma qualificadora híbrida ou mista pela maneira como está estruturada em nosso Código Penal. Esses últimos doutrinadores, compreendem que o inciso I do §2º-A, aduz uma qualificadora objetiva - por razões similares àqueles que compreendem a objetividade plena em sua natureza -, enquanto o inciso II, refere uma qualificadora de ordem subjetiva, pois não encontra correspondente direto de significado na lei brasileira, possibilitando uma adequação penal típica mais ampla e que abarque a motivação do autor.
Importa referir que, apesar da perspectiva acertada, somente alguns doutrinadores que consideram a natureza subjetiva da qualificadora foram capazes de adentrar em aspectos específicos da criação do feminicídio, bem como, das causas da violência de gênero. No geral, os autores restringiram-se a manifestar que a expressão “razões da condição do sexo feminino” inferia necessariamente motivação do agente, caracterizando, portanto, uma figura penal com qualificadora de natureza subjetiva.
Metodologicamente, e a título de conclusão, referimos que a partir de uma investigação baseada no método dedutivo buscamos responder se a qualificadora do crime de feminicídio possuía natureza objetiva ou subjetiva, para tanto, utilizamos as ferramentas de revisão bibliográfica e de revisão documental. Considerando o que diz a teoria especializada acerca da violência de gênero e do crime de feminicídio, de acordo com as ideias explicitadas ao longo do artigo, foi possível concluir que a figura penal possui natureza subjetiva.
2 AS VARIÁVEIS GÊNERO, SEXO E MULHER NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA: EFEITOS DA CRIMINALIZAÇÃO DE CONDUTAS NOS MARCOS DE UM DIREITO PENAL “NEUTRO”
A relação entre Direito e sociedade apresenta grande oscilação na história moderna brasileira. Não é sempre que a legislação e a cultura social estão em compasso, por vezes, alguns avanços para o reconhecimento, redistribuição e representatividade5 de direitos são positivados no ordenamento legal, de forma a buscar garantias que não estão socialmente solidificadas. De outra banda, também podemos apontar inúmeras normas que não ressoam com a realidade brasileira, seja porque possuem alguma espécie de vício na sua origem, ou porque refletem questões consuetudinárias ultrapassadas, por exemplo.
Entretanto, refletir a realidade nem sempre implica em algo positivo, principalmente se pensarmos desde perspectivas teóricas especializadas que tem como objetivo a construção de sociedades progressistas e igualitárias. Pesquisas recentes6 que analisam os processos históricos de subalternização da mulher desde os anos 30, demonstram que as legislações brasileiras, que trataram de normas referentes às mulheres, refletiam os padrões sociais e acabavam por corroborar com a manutenção da condição de subjugação das mulheres, silenciamento da violência e hierarquização de gêneros, consequências que perduram até os dias atuais.
Nesse sentido, podemos citar a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, já que o diploma não considerava a violência contra a mulher uma violação aos direitos humanos. Naquele momento, a preocupação central era a busca da garantia para prevenir e/ou inibir o excesso da violência exercida pelo Estado contra os cidadãos. Assim, sendo a violência contra a mulher praticada majoritariamente em âmbito privado, e, portanto, invisibilizada - interpretada como um assunto privado -, não era abordada como uma violação dos direitos humanos7.
Somente a partir de 1993, com a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, em Viena, na Áustria, a violência contra a mulher passa a ser considerada uma violação dos direitos humanos. Ou seja, somente após 45 anos de Declaração Universal dos Direitos Humanos8, e de um enorme trabalho político por parte de diversos grupos de mulheres e, principalmente, de grupos feministas, temos o reconhecimento formal da dimensão jurídica de tal violência.
A união dos discursos feministas com os discursos dos Direitos Humanos permitiu que as discussões sobre direitos das mulheres ganhassem cada vez mais espaço no cenário jurídico internacional, inclusive para que fossem expandidas a fim de incorporar e especificar outras condutas abusivas, e que podem prejudicar o desenvolvimento livre e saudável de meninas e mulheres de todas as idades9.
Nessa trilha, pensando em um breve apanhado do cenário de políticas afirmativas às mulheres, podemos mencionar a I Conferência Mundial sobre a Mulher, na Cidade do México, em 1975 - ano conhecido como Ano Internacional da Mulher, que, posteriormente, fez instalar a década da mulher nas Nações Unidas -, a qual deu origem à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em 1979. No Brasil, no ano de 1984, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), o qual promoveu, junto com outros importantes grupos feministas, uma forte campanha nacional pela inclusão dos direitos das mulheres na nova Carta Constitucional, com o famoso slogan “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher”10.
Assim, em 1986 seria conhecida a parcela de mulheres que iriam compor a Assembleia Nacional Constituinte. De pouca diversidade e com grande parte das mulheres ligadas à política através de homens, sejam maridos, companheiros, ou militantes de luta, o seleto grupo é formado por 26 mulheres deputadas e nenhuma senadora. A bancada era predominantemente constituída por deputadas filiadas a partidos de centro-direita e com perfil mais conservador, brancas, de classe média e heterossexuais, importando destacar a presença de Benedita da Silva, única deputada negra desse diminuto grupo de mulheres11.
A partir de forte movimentação, chamada pejorativamente por seus companheiros de assembleia de “Lobby do batom”, a bancada de mulheres conseguiu aprovar 80% das pautas pretendidas, um enorme sucesso se pensarmos que esse grupo representava menos de 5% do total de 559 deputados constituintes que compunham a Assembleia. Tal sucesso só foi possível a partir das lutas e articulações dessas mulheres e das demais mulheres que acompanharam a bancada em vinte meses de um trabalho que começou em 1987 e terminou em outubro de 198812.
Com a reabertura democrárica, ocorre em 1994, na cidade de Belém do Pará, Brasil, a Assembleia-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), daí destacando-se a Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 199613. Tal diploma, representa para os seus países signatários um grande passo na área da política criminal. Entretanto, a criação das Delegacias Especializadas para o Atendimento a Mulheres no estado de São Paulo, já podia ser considerada um marco representativo do reconhecimento formal por parte do Estado da condição de desigualdade da violência contra a mulher.
Atualmente, possuímos uma das legislações mais avançadas do mundo no que diz respeito à proteção de mulheres vítimas de violência14, entretanto, impossível não destacar que as teorizações legais de condutas que envolvem a violência contra a mulher adquiriram especificidade normativa desde recortes palatáveis para a realidade do legislativo e judiciário brasileiros, os quais acabaram abarcando certa homogeneidade para o trato de questões complexas e da ordem da diversidade, gerando efeitos (im)previstos tanto na sua criação quanto na aplicabilidade das leis.
Comumente, serão os campos da Criminologia, da Sociologia e da Antropologia que analisarão tais efeitos na área das Ciências Criminais. Aqui, considerando o objetivo específico do capítulo, lançaremos mão das análises da Criminologia, especificamente das chamadas Criminologias feministas. Os pensamentos criminológicos feministas podem ser compreendidos como campos de conhecimentos que destacam a categoria de gênero, a abordagem das desigualdades sexistas presentes nos estudos criminológicos, para uma crítica às suas bases epistemológicas, na mesma medida em que desconstroem a ideia da existência de uma única sujeita universal, afirmando que não existe somente uma mulher, mas sim, diferentes mulheres, em condição de desigualdade histórica, social e racial15.
Nesse sentido, a principal crítica emergente dos pensamentos criminológicos feministas era a de que o Direito Penal, tal como a Criminologia clássica e crítica, partiam de perspectivas androcêntricas, com bases patriarcais e machistas que não compreendem a mulher como sujeito totalmente capaz e ativo. As primeiras aberturas de um saber criminológico feminista surgem dentro de uma perspectiva já crítica para denunciar o silenciamento da categoria de gênero, tido como marginalizado mesmo dentro daqueles espaços pretensamente contra hegemônicos16.
Logo, os desafios das Criminologias feministas são, dentre outros tantos, o de suprir a lacuna de ausência das discussões acerca da mulher e do gênero - definido como algo que extrapola a condição da mulher - nos processos e agências de criminalização, bem como de reconhecer a dimensão ideológica do Direito Penal, onde é evidente a opressão de gênero, raça e classe17.
Ao analisarmos a legislação penal brasileira compreendida aqui no Código Penal, Código de Processo Penal e Lei das Contravenções Penais, verificamos que não possuímos propriamente normas gênero-específicas, mas sim algumas normas específicas para mulheres (que poderíamos considerar sexo específicas) que, em sua maioria, nos apontam para a legislação especial, qual seja, a Lei Maria da Penha (LMP, Lei n.º 11.340/06). Conquanto a referida lei abarque inúmeras estruturas para além da tipificação penal, prevendo mecanismos como assistência social, assistência médica e campanhas educativas, o viés penal acaba mostrando-se como o mecanismo mais sedutor em razão de sua popularidade e aplicabilidade imediata.
Dessa forma, considerando os efeitos (im)previstos de sua aplicabilidade, devemos mencionar que, muito embora a LMP determine em seu artigo 5º que para os efeitos da lei “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero”18, sabemos que, na prática, não somente no âmbito legislativo e judiciário, mas na sociedade como um todo, essa expressão gênero está reduzida à sinônimo de sexo feminino, em oposição ao sexo masculino. Referida dualidade é potencializada na prática jurídica, uma vez que as análises processuais serão, em sua grande maioria, um certo jogo de oposições pautadas pela moralidade imperante e subjetividades daqueles que atuam no Sistema de Justiça Criminal (SJC). Tais reflexos formam base justamente da criação da própria concepção de gênero, como veremos em seguida.
Além disso, mais um efeito (im)previsto, nesse caso na criação e aplicabilidade da Lei n.º 11.340/06, pode ser observado a partir da vinculação automática entre violência contra a mulher com a violência doméstica e familiar. Ainda que o âmbito doméstico e familiar seja o lugar onde mais ocorrem agressões à integridade física, psicológica, econômica e moral das mulheres19, a vinculação da noção de que quando falamos sobre violência contra a mulher, ou, pior, de violência de gênero, estamos tratando automaticamente de violência doméstica e familiar, pode apresentar-se como um entrave ao reconhecimento de outras formas de violência de gênero.
No ponto, importa mencionar nova problemática, qual seja, a utilização da elementar sexo na legislação. Ainda que a LMP não tenha pretendido reduzir a violência de gênero à violência doméstica e familiar contra a mulher, tampouco tenha utilizado as categorias de mulher e gênero como sinônimos de uma maneira reducionista ao sexo biológico, essa opção vem aparecendo nas modificações legislativas mais recentes. A expressão “por razão da condição de sexo feminino”20 aparece uma vez em nosso Código de Processo Penal, no seu artigo 28-A §2º, inciso IV, nas disposições acerca dos casos de impossibilidade de proposição de acordo de não persecução penal ao agente infrator, e três vezes no Código Penal.
Inicialmente, a expressão aparece nas disposições acerca do crime de feminicídio, momento em que foi cunhada e inserida no diploma legal, no ano de 2015, após, na lesão corporal qualificada (art. 129, §13, CP) e, por fim, na forma majorada do crime de perseguição (art. 147-A, § 1º, inciso II, CP). Apesar de representar um avanço no sentido de possibilitar a verificação de outros tipos de violência para além da violência doméstica e familiar, a categoria se fecha na elementar de caráter biológico sexo feminino, em uma clara negação à categoria de gênero.
A categoria de gênero, para além de uma simples variável transformada em elementar, faz parte das tentativas levadas pelas feministas contemporâneas para reivindicar certo campo de definição, para insistir sobre o caráter inadequado das teorias existentes em explicar desigualdades persistentes entre mulheres e homens21. Sua utilização não significou uma mera revisão das teorias existentes, as quais construíam sua lógica sob analogias com a oposição do masculino/feminino e preocupações com a formação da identidade sexual subjetiva, mas uma revolução epistemológica.
Destacadamente, foram Kate Millet22 (1970), em sua obra Política Sexual, e Gayle Rubin23 (1975), em seu artigo The Traffic in Woman: Notes on the “Political Economy” of sex, as primeiras estudiosas a oferecerem um conteúdo ao conceito de gênero. A primeira referiu-se ao mesmo como categoria analítica, enquanto a segunda como um sistema de organização social. Entretanto, concomitantemente, ambas compreenderam o gênero também como um sistema de relações sociais que transforma a sexualidade biológica em um produto da atividade humana24.
Assim, foi no início da década de noventa que Joan Wallach Scott revoluciona o próprio conceito de gênero, apresentando uma de suas mais conhecidas e utilizadas definições. Conforme a autora25, em sua obra Género e Historia, o gênero seria tanto um elemento constitutivo de relações sociais, baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, assim como uma forma primária de significação das relações de poder.
Dessa forma, como elemento constitutivo das relações sociais, o gênero pressupõe, primeiramente, símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações da mulher (como p. ex.: Eva pecadora e Maria virtuosa), em segundo lugar, pressupõe conceitos normativos expressos em doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas que tomam a forma de uma oposição binária que afirma de maneira categórica o sentido do masculino e do feminino. A posição que emerge como dominante é, apesar de tudo, declarada a única possível. A história posterior é escrita como se essas posições normativas fossem o produto de um consenso social e não de um conflito26.
Em terceiro lugar, a autora afirma que as análises de gênero devem incluir a noção do político, bem como, a referência às instituições e organizações sociais, extrapolando o sistema de parentesco (universo doméstico e familiar), e adentrando em uma visão mais ampla do mercado de trabalho, da educação, da economia e, mais uma vez, do sistema político27. Finalmente, o quarto aspecto do gênero como elemento constitutivo das relações sociais é a identidade subjetiva. Nesse sentido, a autora reconhece a utilidade da psicanálise, a partir da teoria lacaniana, para pensar na construção da identidade de gênero, mas jamais como uma declaração universal, e tampouco desconectada de seu contexto histórico28.
Como forma primária de significação das relações de poder, por seu turno, o gênero é um campo primário no qual, ou mediante o qual, se articula o poder. Isto é, o gênero tem sido uma forma habitual de facilitar a significação do poder, se dissolvendo no conceito e na constituição do próprio poder. Dessa forma, para a autora em comento, toda a atividade social, incluindo a produção científica, tem como tração esse sistema29. Por essa razão, gênero é a ferramenta analítica, ou a categoria teórica, da epistemologia feminista que permite compreender como a divisão da experiência social tende a dar a mulheres e homens concepções pessoais diferentes, seja de suas atividades ou crenças, e até mesmo do mundo que as(os) cerca30.
Contemporaneamente, sabemos que a categoria de gênero não pode ter como ponto de partida o sexo biológico, sendo esse somente sua dimensão física, tampouco pode ser utilizada sem ter em conta a diversidade, trazendo sempre articulada a si a questão de raça e a questão de classe. Para além da dualidade, é necessário compreender que os corpos são uma construção social e cultural, logo, o caráter biológico e as chamadas características sexuais primárias, são desconstruídos para dar lugar a uma visão não determinista do gênero31.
Nesse sentido, o que precisamos compreender é de que maneira, e até que ponto, um corpo é moldado e dotado de significância em virtude de uma estrutura histórica na qual ele é compreendido, bem como, os discursos históricos através dos quais ele é formado32. Somente desconstruindo visões deterministas poderemos construir noções diversas e não estanques acerca dos papeis masculinos, femininos, transgêneros, não-binários, fluidos etc., retirando o ônus analítico que insiste em trabalhar a partir de uma dualidade violenta.
Tais teorizações fundamentalmente implodem não só a categoria mulher, mas a própria noção do feminismo, de quem seriam os seus sujeitos privilegiados e sua visão de mundo compartilhada - elementos centrais na constituição de campos discursivos de ação, incluindo tanto o universo trans quanto os movimentos de mulheres negras, direcionando às necessárias diversidades33.
Apesar de fortemente criticada, a opção pela ferramenta penal é inegavelmente uma escolha imprescindível na disputa dos campos discursivos. Seguramente, o debate acerca da violência de gênero como problema social relevante não deve ser usado como justificante de extremos, seguindo um modelo de Direito Penal máximo incondicionado e ilimitado. Todavia, devemos ressaltar que o Direito Penal mínimo corresponde não somente ao grau máximo de tutela das liberdades frente ao poder punitivo, mas a um ideal de racionalidade e certeza34, de modo que tais racionalidades devem estar embasadas em teorias científicas comprometidas com a diversidade e que não se escondam detrás de um paradigma de neutralidade.
Além disso, é necessário considerar que a criminalização de condutas proporcionou, e segue proporcionando, a publicização da dimensão da violência - gostaríamos nós - de gênero, no contexto jurídico brasileiro, ao mesmo tempo em que demonstrou a necessidade de um processamento responsável dos conflitos. Para além da crítica à eleição da ferramenta penal, a qual pensamos já ter sido exaustivamente debatida pela Criminologia crítica e, seguramente, descreditada, devemos apontar que o seu uso representa um posicionamento político dentro de um cenário de disputas de poder35 e, por fim, voltar à análise para os demais resultados e aspectos individuais dessa estratégia.
3 FEMINICÍDIO: PERSPECTIVAS DE UM FENÔMENO SOCIAL ATÉ A CONDUTA PENAL TÍPICA
As primeiras construções teóricas acerca do feminicídio ou femicídio são oriundas de correntes sociológicas e antropológicas36, ou seja, não são construções provenientes das ciências jurídicas. Os conceitos de feminicídio e femicídio - uma vez que existe uma distinção marcadamente teórica acerca da nomenclatura - foram desenvolvidos na literatura feminista no início da década de 90 para evidenciar o androcentrismo de figuras aparentemente neutras como o homicídio, o teor sexista e misógino em inúmeras mortes de mulheres, assim como, a responsabilidade direta do Estado nesses fenômenos, dada à impunidade dos casos37.
As expressões feminicídio e femicídio encontram seu antecedente direto no termo inglês femicide, o qual foi utilizado pela primeira vez, com seu conceito contemporâneo, por Diana Russell em um depoimento no Tribunal Internacional de Crimes contra as Mulheres, no ano de 197638. Muito embora a autora39 tenha atribuído a invenção da palavra à Carol Orlock, foram Diana Russell juntamente com Jane Caputi (1990), as autoras responsáveis pela definição do termo no artigo Femicide: Speaking the unspeakable40.
Seu significado, referido novamente em sua obra posterior, de 1992, com Jill Radford, foi primeiramente definido como “o assassinato misógino de mulheres por homens”41, desde então, seu conceito vem passando por modificações em busca de aperfeiçoamento e objetividade. Em sua obra, intitulada Femicide in Global Perspective, Diana Russell redefiniu o termo como “o assassinato de mulheres, por homens, porque são mulheres”42. Mais recentemente, em seu discurso introdutório ao Simpósio sobre Feminicídio, na sede das Nações Unidas em 2012, a autora, com o temor de que sua definição anterior pudesse se aplicar somente a uma mulher ou homem, redefine o termo como “o assassinato de uma ou mais mulheres, por um ou mais homens, porque são mulheres”43.
Inobstante tais variações, o que pretendia ser demonstrado nos primeiros estudos da década de 1990 era, dentre outros aspectos, o contexto de desigualdade presente nas mortes de homens e de mulheres. Tais desigualdades poderiam ser observadas não somente na maneira como as mortes ocorriam, como eram investigadas e, principalmente, quais eram suas motivações.
As concepções de femicídio de Diana Russel são fortemente vinculadas aos estudos do feminismo radical, vez que, o desenvolvimento acerca da violência de gênero pode ser percebido marcadamente pelo aspecto da dominação de corpos. Dessa forma, podemos perceber que as nuances que definem tal fenômeno ultrapassam as instâncias psíquicas de um indivíduo, levando em consideração aspectos misóginos e sexistas estruturais, norteadas por sentimentos de ódio, desprezo, prazer ou pretensão de propriedade e dominação sobre os corpos das mulheres44.
A trajetória de definições de femicídio evidencia o contexto complexo que a terminologia pretende abarcar, mas também destaca que, principalmente a partir da institucionalização dos movimentos feministas nos anos de 1990 - conforme já abordado no capítulo anterior -, suas diretrizes pretendem, de fato, tornarem-se únicas e universais.
No referido discurso de Diana Russell45, ao mencionar o intercâmbio de definições a partir da iniciativa da então deputada federal mexicana Marcela Lagarde46, a autora demonstra sua insatisfação em torno na nova dimensão dada ao femicídio. Isso porque o termo femicide passou a ser traduzido para o espanhol como feminicidio, sob a definição que incluía “a impunidade com que tais crimes são tipicamente tratados na América do Sul”47. Muito embora a tradução revisada tenha sido previamente autorizada por Diana Russel, a mesma acaba por rejeitá-la nesse discurso.
No entanto, para Marcela Lagarde o uso da palavra feminicídio seria importante na língua espanhola, uma vez que a tradução para a expressão femicídio se mostraria unicamente a construção da palavra homicídio de maneira feminizada. Além disso, a inclusão do elemento da impunidade à definição, era necessária para o contexto latino-americano, pois, nas palavras da autora:
Para que se dê o feminicídio concorrem de maneira criminal o silêncio, a omissão, a negligência e a conveniência de autoridades encarregadas de prevenir e erradicar esses crimes. Há feminicídio quando o Estado não dá garantias para as mulheres e não cria condições de segurança para suas vidas na comunidade, em suas casas, nos espaços de trabalho e de lazer. Mais ainda quando as autoridades não realizam com eficiência suas funções. Por isso o feminicídio é um crime de Estado48.
A diferença entre as duas expressões, femicídio e feminicídio, tem sido objeto de profunda discussão, apesar de serem largamente generalizadas e utilizadas como sinônimos, tanto em seu contexto social, quanto político. Apesar das dissonâncias, é possível verificar certa unanimidade acerca da necessária reunião de diversos fatores para podermos falar sobre feminicídio e femicídio, como, por exemplo, as condições sociais, econômicas, políticas e jurídicas particulares de opressão contra as mulheres, que podem levar até os seus assassinatos49.
O femicídio e feminicídio vem sendo definido genericamente como a morte violenta de mulheres, pelo fato de serem mulheres, ou o assassinato de mulheres por razões associadas ao seu gênero. A expressão morte violenta enfatiza a violência como determinante da morte e, a partir de uma perspectiva penal, incluiria as que resultam de homicídios simples ou qualificados50.
Entretanto, podemos apontar posturas mais amplas que incluem as mortes de mulheres provocadas por suas ações, ou omissões, que não necessariamente constituem delito. Essas condutas são aquelas que carecem do elemento subjetivo que requerem os delitos contra a vida: a intenção de matar. Alternativamente, também serão aquelas condutas que não podem ser imputadas a uma pessoa delimitada, mas sim dar conta de violações dos direitos humanos devido ao não cumprimento das obrigações do Estado com relação à garantia do direito à vida das mulheres51.
Apesar do dissenso entre as expressões cunhadas, inúmeros são os argumentos valiosos que permeiam o tema, os quais não devem ser ignorados. No entanto, por razões de adequação e localidade, adotaremos no desenvolvimento do presente artigo a terminologia feminicídio. A adequação se justifica em razão de ter sido essa a terminologia adotada pelo ordenamento legal brasileiro, e a localidade, por ser oriunda de perspectivas latino-americanas, portanto, que melhor tratam de nossa realidade social.
Na literatura especializada52, os feminicídios também são classificados de acordo com diferentes tipologias, quais sejam, feminicídio íntimo, não íntimo e por conexão, definidos, respectivamente, em: assassinatos cometidos por homens com quem a vítima tinha ou teve uma relação íntima, familiar, de convivência ou afins; assassinatos cometidos por homens com quem a vítima não tinha relações, ou somente relações ocasionais, e que frequentemente envolvem um ataque sexual prévio, podendo assim também ser chamado de feminicídio sexual; e, finalmente, a tipologia melhor delineada por Ana Carcedo e Montserrat Sargot53, o feminicídio por conexão, que ocorre quando o alvo era uma mulher mas acaba por atingir outra mulher adulta, ou menina, na “linha de fogo”.
Efetivamente, as definições legais mais frequentes de feminicídio e femicídio se restringem às mortes violentas de mulheres por razões de gênero como consequência direta dos delitos, excluindo as mortes que se produzem como consequência de leis e práticas discriminatórias, como por exemplo, o aborto, a deficiência no atendimento à saúde das mulheres, assim como os suicídios muitas vezes motivados por razões de gênero54.
Inobstante a carga de especificidade apresentada pelas variações locais desse fenômeno, importa ressaltar que a formulação dos conceitos de femicídio e feminicídio é vinculada aos chamados crimes de ódio. As reflexões iniciais acerca do termo surgiram num contexto norte-americano de amplo debate político e social de reconhecimento dos hate crimes, impulsionado pelo movimento de direitos civis e outros coletivos sociais. Através dessa categoria criminal o objetivo era tornar visível a violência que afetava de maneira específica diversos grupos socialmente vulnerados55.
A simbiose entre os conceitos político, jurídico e cultural dos termos femicídio e feminicídio possibilitou sua popularização e aceitação social, viabilizando a inclusão da nova categoria no ordenamento jurídico penal de diversos países da América Latina, seja como categoria penal específica, agravante ou qualificadora da figura do homicídio. Assim, apesar da especificidade necessária para a transposição do conceito, conforme as dinâmicas locais de violência, a estreita vinculação do feminicídio com crimes de ódio precisa ser ressaltada.
Em se tratando de elementos que entram ou não no debate penal, é necessário mencionar que por mais que as teorias latino-americanas insistam na carga de responsabilidade estatal diante da impunidade histórica do assassinato de mulheres, tal dimensão não é incorporada juridicamente quando tratamos do feminicídio no Brasil56. Apesar disso, podemos perceber com certo êxito as décadas de esforços feministas em prol da desnaturalização da violência contra as mulheres na percepção coletiva.
Isso porque, a impopularidade política de manifestação contrária a medidas que buscam a sanção dessa violência ou a proteção de suas vítimas, é cada vez mais presente. Por outro lado, também cresce a ideia do estereótipo da vítima ao mesmo tempo em que se reforça o tradicional papel de protetor do Estado, tornando a criminalização de condutas uma fácil estratégia de política quando os governos se veem obrigados a dar respostas às pautas feministas57.
As legislações nacionais incorporam a tipificação penal do crime de feminicídio principalmente a partir do compromisso internacional com os ditames da Convenção de Belém do Pará, de 1994, a qual foi ratificada pelo Brasil em 1996. Não existe consenso sobre as vantagens de aproximação das ações feministas com o discurso dos direitos humanos. No entanto, muitas autoras entendem que o uso da categoria insere a dimensão política ao problema, já que um dos maiores obstáculos para os estudos e as possíveis estruturações de políticas criminais na América Latina, é a ausência, ou escassez de dados que permitam uma visão mais clara do número de mortes e de seus contextos58.
A respeito do contexto nacional atual, os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública59 demonstram que desde a promulgação da lei do feminicídio, em 2015, onde tínhamos 449 casos de feminicídio registrados no país, estamos em uma crescente, de modo que contabilizamos, em 2022, 1.437 casos. Ainda que tenhamos alguns estados que apresentem diminuição, ou até mesmo o estagnamento do número de casos, os números absolutos apresentam crescimento na série histórica.
A promulgação da Lei do Feminicídio, Lei n. 13.104, de 9 de março de 2015, alterou o artigo 121 do Código Penal, para prever o feminicídio em seu inciso VI como circunstância qualificadora do crime de homicídio, incluindo-o no rol dos crimes hediondos. Dessa forma, de acordo com o direito penal vigente, feminicídio é o homicídio doloso praticado contra a mulher por “razões da condição de sexo feminino60”, em casos de violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação, desconsiderando a dignidade da vítima enquanto mulher (art. 121, §2º-A, incisos I e II, CP).
Assim, apesar de classificar-se como uma norma penal em branco, optou-se pela inclusão do feminicídio não como um tipo penal autônomo (o que é recorrente em outros ordenamentos jurídicos), mas por uma qualificadora cuja incidência está condicionada aos casos previstos pela lei, conforme já referido. Nesse contexto, esses crimes traduzem a mais extrema expressão da violência de gênero quando buscam vincular a sua natureza a um processo de socialização que estamos todos envolvidos, e não como fruto da natureza61. Do ponto de vista técnico, não seria exagero afirmar, que o bem jurídico ofendido em um ato feminicida se mostra um grande passo para a desconstrução de argumentos que diminuem os atos do agressor, tais como perturbações de ordem psicológica, a patologização, ou alegações como a “forte emoção” e a “legítima defesa da honra”.
Como já vimos, não há como questionar a legitimidade da demanda pela criminalização de condutas para que o Estado realize a promoção de diretos presentes em Tratados Internacionais ratificados, e garantidos desde a Constituição Federal de 1988. A demanda pela inclusão do feminicídio não é um requerimento arbitrário, caprichoso ou desmensurado. Contudo, reconhecer e denunciar um fenômeno social não é o mesmo que legislar penalmente sobre ele, reduzir um problema social a um debate penal é impor limites - em nome das garantias legais - para a compreensão de um fenômeno altamente complexo62.
Tais limites foram possíveis de serem observados através de valores e representações da sociedade antes mesmo da lei que institui o crime de feminicídio no Brasil ser aprovada. Alvo de muitas críticas, o texto sofreu modificações substanciais em suas tramitações no Congresso Nacional. Desafortunadamente, em uma manifestação de claro viés religioso-conservador, foi substituída a expressão “razões de gênero” por “sexo”, sob o argumento de que a primeira abarcaria também situações outras que não a de morte de mulheres biológicas, mas também as de transexuais e travestis63.
Esse fato demonstra explicitamente a prévia seletividade de vítimas. No entanto, mesmo admitindo, infelizmente, que a lei entende por “mulheres” somente aqueles indivíduos nascidos biologicamente do sexo feminino, ainda devemos atentar para outras potenciais seletividades de vítimas. Estas sofrem igualmente com os gestos totalizantes do feminismo, onde as análises são estruturadas em supostos universalismos que, atrelados a características homogeneizantes, pretendem criar um sujeito único do feminismo, e igualmente, um sujeito único feminino.
Dessa forma, para além da crença depositada em uma ferramenta penal, na máquina estatal e nas suas instituições, pontua-se a ampliação de disputa no campo discursivo de poder. Além disso, tão importante quanto discutir a validade ou a legitimidade da utilização do Direito Penal como elemento central para a regulação de condutas, parece ser a discussão a respeito de quais as consequências geradas nas dinâmicas formais de administração de conflitos64.
No capítulo final, iremos analisar um desses efeitos que pode ser observado na interpretação acerca da natureza da qualificadora do crime de feminicídio. Tal celeuma demonstra a importância de todos os elementos trabalhados até aqui e, principalmente, a necessidade de uma compreensão especializada na análise de fenômenos de natureza complexa.
4 A NATUREZA DA QUALIFICADORA DE FEMINICÍDIO NO ORDENAMENTO PENAL BRASILEIRO
No presente artigo, nos propusemos responder o problema de pesquisa acerca da natureza da qualificadora do feminicídio, a pergunta em tela tem relevância, além do debate dogmático e dos possíveis diagnósticos dos atores do SJC, principalmente, pelo resultado na prática jurídica, pois a definição de uma natureza subjetiva nos aponta três aspectos, nas palavras de Alice Bianchini:
A motivação do crime deve ser trazida no decorrer do processo e abordada fortemente quando do plenário; se for levantada a tese do homicídio privilegiado e, tendo sido ela acatada, restará prejudicado o quesito referente ao feminicídio; em caso de concurso de agentes, as qualificadoras subjetivas não se comunicam aos demais coautores ou partícipes65.
Ainda, continua a autora, se o entendimento aplicado for o de que a natureza da qualificadora é objetiva, surgem outras duas questões:
Pode subsistir a qualificadora do feminicídio com as qualificadoras do motivo torpe ou do motivo fútil, que são subjetivas? As qualificadoras objetivas (artigo 121, incisos III, IV), comunicam-se aos demais coautores ou partícipes, desde que ingressem na esfera de conhecimento dos agentes66.
Como sabemos, as qualificadoras objetivas são aquelas relacionadas com o crime em si, normalmente, envolvem as formas de execução, os meios e modos de perpetração do crime, aqui compreendemos as qualificadoras elencadas nos incisos III, IV, VIII e IX e do artigo 121, do Código Penal. Enquanto as qualificadoras de natureza subjetivas dizem respeito ao autor do fato, portanto, com a motivação do crime e estão elencadas nos incisos I, II, V e VII do mesmo diploma legal67.
De acordo com o disposto no §2º-A, do artigo 121 do Código Penal, o crime de feminicídio pode ocorrer em três circunstâncias: por violência doméstica e familiar contra a mulher, por menosprezo à condição de mulher e por discriminação à condição de mulher. Na prática, sabemos que não basta, para a aplicação da qualificadora, a simples existência de uma vítima mulher. Portanto, tal noção pode nos levar a pensar que estaríamos distantes de uma qualificadora objetiva, entretanto, a complexidade do tema, que envolve não só uma compreensão dogmática da norma penal, prescinde de fatores relativos ao próprio SJC para analisarmos o assunto.
Conforme afirmado acima, as chamadas “razões de condição do sexo feminino” estão elencadas em três possibilidades explicativas. A primeira delas, em razão da “violência doméstica e familiar”, parece ser a de mais fácil compreensão, tanto para os atores e atoras do SJC, quanto para os leitores e leitoras habituados as normativas especiais do ordenamento jurídico brasileiro. Isso porque, a partir de uma interpretação sistemática da legislação penal, a norma nos leva à LMP, a qual, em seu artigo 5º, apresenta a definição de violência doméstica ou familiar contra a mulher da seguinte forma: “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”68.
No ponto, é possível perceber a referida confusão presente no ordenamento jurídico brasileiro acerca das variáveis, gênero, sexo e mulher. Não obstante, a LMP fale em violência baseada em gênero, a figura do feminicídio explicita a variável sexo ao requerer que a conduta ocorra “contra a mulher por razões da condição do sexo feminino”. Portanto, infelizmente, sempre que estivermos diante da conduta penal típica de feminicídio, teremos uma vítima mulher, somente do sexo feminino.
Conforme já explicitado, essa restrição representa um descompasso completo, não somente no que diz respeito às determinações de um ordenamento jurídico anterior a Lei do Feminicídio, mas também, com relação às pautas de reconhecimento da comunidade LGBTQIA+. Pois, para além de permanecer silente - ato costumeiro ao Direito brasileiro ao legislar sobre populações minoritárias -, explicitamente exclui a possibilidade de inclusão das mulheres trans69.
Retomando a modalidade de feminicídio envolvendo violência doméstica e familiar, também temos, conforme disposição do artigo 5º, incisos I, II e III, da LMP, o contexto em que essa violência pode ocorrer. Necessário ressaltar que tais elementos de contexto não nos apontam, necessariamente, para a ocorrência de feminicídio em qualquer caso de assassinatos de mulheres no ambiente doméstico e familiar, uma vez que, para a caracterização do crime de feminicídio será necessário estar presente a componente de “razões do sexo feminino”. Para os demais casos, já possuíamos a agravante genérica do artigo 61, f, do Código Penal, relativa ao fato de o crime ter ocorrido “com violência contra a mulher na forma da lei específica”70.
Passando à segunda espécie do crime de feminicídio, temos a razão de menosprezo à condição de mulher. Nessa espécie, poderemos começar a encontrar certa dificuldade de compreensão por parte daqueles que não estão familiarizados com as chamadas teorias feministas ou teorias de gênero. Isso porque, ainda que possamos lançar mão dos ensinamentos da LMP, a adequação penal típica não advém de um contexto que envolve conflitos puramente domésticos e familiares.
O menosprezo pode estar caracterizado naquelas situações em que autor do crime demonstra pouca ou nenhuma estima pela mulher vítima, tratando-a com desdém, depreciação e desvalorização como ser humano. Tal sentimento, na maior parte das vezes, é nutrido por uma estrutura social que fomenta a noção de que mulheres são inferiores aos homens. Para além de uma determinação histórica do chamado patriarcado ou patriarcalismo, serão os fenômenos definidos como machismo, sexismo e misoginia que nos darão os aportes para pensarmos em situações que nos apontem para o referido menosprezo à condição de mulher.
Já a segunda elementar do inciso nos aponta para um caminho mais fácil dentro da lógica jurídica, pois a definição da discriminação à condição da mulher pode ser encontrada na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 1979, ratificada pelo Brasil em 1984, em seu artigo 1º:
Art. 1º. Toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo71.
Nesse sentido, é possível perceber que as definições de menosprezo e discriminação são, em certa medida, complementares. Isso porque, o menosprezo pode ser uma forma de discriminação, senão vejamos. Se buscarmos uma possível definição de discriminação racial, por exemplo, veremos que essa está ligada à atribuição de vantagens ou desvantagens por conta da raça72. Da mesma maneira, a discriminação de gênero busca atribuir um tratamento diferente às pessoas de um grupo identificado por seu gênero, ou, no caso específico do feminicídio, às mulheres.
Ainda, a discriminação pode ser praticada na sua forma direta ou indireta73. Nesse caso, a chamada discriminação direta compreende o repúdio ostensivo motivado pela condição de ser mulher, portanto, possui uma intenção direta de discriminar. Comumente, ainda que necessite formas distintas de atuação, essa intenção pode estar atrelada à discriminação indireta, já que essa é definida a partir de processos que naturalizam e invisibilizam a desigualdade, sem levar em conta as diferenças sociais significativas que causam um impacto adverso à existência das mulheres. Normalmente, aquele que discrimina indiretamente não possui a intenção explícita de discriminar, mas ainda assim atua de maneira a implicar prejuízos e desvantagens às mulheres.
Lançar mão da literatura especializada é essencial para que possamos interpretar e identificar em casos concretos tais elementos, a fim de que consigamos pacificar o entendimento desde uma visão jurídica socialmente comprometida. Todavia, a qualificadora de feminicídio nos apresenta desafios específicos pela maneira como foi legalmente construída em nosso ordenamento penal, senão vejamos.
Doutrinariamente, teremos três posicionamentos acerca da natureza das qualificadoras, os quais refletem certas limitações da Ciência Jurídica para compreender o fenômeno a partir de uma perspectiva pouco interdisciplinar, mas também demonstram as dificuldades das normas penais de darem conta de fenômenos socialmente complexos.
O primeiro posicionamento, compartilhado por juristas como Alice Bianchini74, César Roberto Bittencourt75, Fernando Capez76, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto77, é de que a qualificadora possui uma natureza subjetiva. Nesse caso, os autores compreendem que o inciso sexto deixa evidente a existência de uma motivação especial para que reste caracterizado o crime de feminicídio. Ainda que o inciso primeiro do §2º-A traga uma situação que pode ser objetivamente verificada na legislação especial (LMP) isso não afasta a subjetividade da conduta, pois não demonstra qualquer relação com os meios de execução.
Já o segundo posicionamento, veiculado por Amom Albernaz Pires78, Paulo Busato79 e Guilherme de Souza Nucci80, afirma que a natureza da qualificadora é objetiva. Aqui, compreende-se que a violência doméstica ou familiar é um contexto objetivo a ser verificado no caso concreto, bem como, a violência contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, a qual traduz-se numa condição de fato. Além disso, afirmam que a qualificadora do feminicídio não pode simplesmente substituir as demais qualificadoras subjetivas, sob pena de diminuição de seu efeito de maior proteção à mulher brasileira - realizando uma conexão direta entre aumento da penalidade e proteção, já que dessa forma, qualificadoras objetivas e subjetivas podem coexistir.
No ponto, podemos verificar alguns dos efeitos mencionados anteriormente:
[...] é objetiva a análise da presença do modelo de violência baseada no gênero (ou em razão da condição do sexo feminino), positivada na Lei Maria da Penha e na Convenção de Belém do Pará e agora incorporada pela Lei nº 13.104/2015 com a expressão “violência doméstica e familiar”, já que a Lei Maria da Penha já reputa como hipóteses desse tipo de violência àquelas transcritas acima (art. 5º, incisos I, II e III)81.
O autor refere o “modelo de violência baseada em gênero (ou em razão da condição do sexo feminino)”, o que pode denotar certa confusão entre violência de gênero e violência ao sexo feminino e, na sequência afirma “positivada na Lei Maria da Penha e na Convenção de Belém do Pará e agora incorporada pela Lei nº 13.104/2015 com a expressão ‘violência doméstica e familiar’”, vinculando a violência de gênero à violência doméstica e familiar, dificultando a verificação do feminicídio naqueles casos em que vítima e agressor não possuíam algum tipo de relação.
Ademais, tal concepção objetiva, que busca verificar uma condição de fato no caso concreto, pode nos levar a uma visão estereotipada da vítima e de sua relação com o autor. Nesse sentido, podemos citar a visão de Guilherme de Souza Nucci, o qual situa nas razões de sexo feminino a noção de inferioridade física da mulher diante do agressor, fisicamente mais forte, levando a crer que “matar o mais fraco, [é] algo francamente objetivo”82.
Por fim, o terceiro posicionamento verifica ambas as naturezas na qualificadora de feminicídio, de modo que poderíamos defini-la como uma qualificadora híbrida. Tal opinião é compartilhada por Everton Zanella, Márcio Friggi, Marcio Escudeiro e Vírgilio Amaral83. Os autores afirmam que o inciso I da qualificadora, o qual traz o contexto da violência doméstica e familiar, seria de natureza objetiva, já o inciso II, por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, seria de natureza subjetiva. Novamente, a visão de objetividade, em se tratando de violência doméstica e familiar, cristaliza um suposto “quadro fático-objetivo”84 da relação entre agressor e vítima, ou seja, não verifica motivos determinantes na execução do ilícito, bastando que estejamos diante de situações definidas pela LMP.
Ainda, conforme compreensão dos autores, o caso elencado no inciso II, por não contar com referência normativa no ordenamento jurídico brasileiro, não possui um cenário fático-objetivo a ser verificado, podendo ocorrer em quaisquer circunstâncias desde que o motivo imediato do crime contemple o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher85. Nesse caso, não poderá haver cumulação com outras qualificadoras subjetivas, somente com as qualificadoras objetivas de meio e de modo de execução, diferentemente do caso do inciso anterior, onde, na prática, por exemplo, poderíamos estar diante da cumulação de um feminicídio e um motivo torpe.
Todavia, nos parece evidente que a qualificadora de feminicídio está atrelada à motivação especial do agente, pois, sem ela, poderíamos estar diante de um motivo fútil, ou torpe, por exemplo. O fato de termos legalmente optada pela descrição de dois modos de execução (incisos I e II do art. 121, VI, §2º-A do CP) nos aponta para uma possível confusão, entretanto, não é exagero pensar que ausência de tal descrição também poderia nos levar a uma completa inaplicabilidade da norma, ou sua aplicação sempre que a vítima fosse uma mulher, independente de quaisquer fatores, aí, sim, uma qualificadora objetiva.
O certo é, se pensarmos que a simples existência de um laço afetivo entre autor e vítima determina automaticamente que estamos diante de um feminicídio, poderemos pensar que a ausência desse laço implica na inexistência de um feminicídio, o que não é verdadeiro. Ainda que muitos casos de feminicídio ocorram em relações afetivas, não podemos limitar a sua ocorrência à um elemento que se pretende tornar puramente objetivo, isso porque, como vimos, o feminicídio é um fenômeno que abarca mais complexidade.
Finalmente, devemos mencionar a questão da privilegiadora, a qual parece ser um argumento bastante contundente que nos aponta para a natureza subjetiva da figura penal.
[...] na hipótese de o homicídio privilegiado (CP, art. 121, § 1º) ser acolhido pelos jurados [...]: restará prejudicada a votação do quesito da qualificadora subjetiva eventualmente imputada na pronúncia (motivo fútil ou torpe), porém a votação seguirá quanto às qualificadoras objetivas (incisos III, IV e VI do § 2º do art. 121 do CP), inclusive quanto à qualificadora do feminicídio, pois [...] tal qualificadora é perfeitamente compatível com a incidência do privilégio, quando teríamos um homicídio privilegiado-qualificado86.
Consoante todo o exposto pela literatura de gênero especializada - ainda que se considere aqui somente a mulher biológica -, não é possível concluir que a privilegiadora seja compatível com o crime de feminicídio. Se o benefício do privilégio for aplicado, não há como pensar que estamos diante de um feminicídio. Ora, como poderíamos conceber um feminicídio onde aplica-se a benesse por compreensível emoção violenta ou motivo de relevante valor social ou moral? A construção da figura do feminicídio prescinde a presença de tais elementos, o ato é injustificável diante da motivação do agente, é incompreensível a sua emoção violenta, é inexistente motivo de relevante valor social ou moral, pois, justamente, o agressor age motivado por valores sociais ou morais baseados em uma estrutura de desigualdade que subjuga a vítima.
Ademais, pouco interessa se estamos diante da forma qualificada por violência doméstica ou familiar ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, pois a violência doméstica ou familiar tampouco ocorre sem motivação. Ainda que compreendamos a violência de gênero como algo estrutural ela nos motiva em nossas ações, ela vem de uma vontade de manutenção de privilégios, ela vem da noção subjetiva de que uns são menos do que outros, da certeza de que por ser de um determinado gênero posso dispor da vida de outro. Essa é justamente a justificante de termos normas gênero específicas, no caso da LMP, e sexo específicas, no caso do feminicídio.
Pensar na violência de gênero como um fator objetivo cristaliza mulheres na posição de vítimas e homens na posição de agressores, situa a desigualdade em características como sexo forte e sexo frágil ou papel masculino e papel feminino. Da mesma forma, nos distancia da posição de potenciais agressores ou potenciais vítimas, pois se uma mulher se identifica como forte, independente e bem resolvida, não irá se encaixar objetivamente na posição de vítima de violência de gênero, entretanto, ela pode estar tão exposta quanto qualquer outra mulher a esse tipo de violência. Pensar objetivamente nos leva a buscar vítimas e autores ideais, situando a ferramenta jurídica a parte da realidade.
Compreendemos que ainda teremos um longo caminho pela frente, principalmente se levarmos em conta quão nova é a qualificadora de feminicídio. Entretanto, já levamos séculos de patriarcado, machismo, sexismo e misoginia - ao fim e ao cabo, de desigualdades -, de forma que não é mais possível conceber a produção de decisões, doutrinas ou legislações que versem sobre esses temas sem o aporte interdisciplinar, é chegada a hora de questionarmos não somente o que pretendia o legislador quando promulgou determinada norma - ênfase para o pronome sempre masculino desse questionamento -, mas sim o que dizem as teorias feministas acerca de determinados fenômenos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir de uma teoria especializada em torno do tema, verificamos no presente artigo qual é a natureza da qualificadora do crime de feminicídio. Importa ressaltar que, de acordo com nossa perspectiva, a resposta para o problema de pesquisa proposto somente pode ser adequadamente vislumbrada desde um caminho de conclusões verdadeiramente interdisciplinares e compromissadas com epistemologias que partem da crítica à neutralidade do Direito Penal.
Iniciamos a análise demonstrando que a criminalização de condutas que se pretendem gênero específicas possuem efeitos (im)previstos tanto na sua construção, quanto na sua aplicação, apresentando algumas perspectivas acerca dos resultados da imbricação dos direitos humanos com os direitos das mulheres. Ademais, concluímos que um desses efeitos é o fato de que não possuímos em nosso Código de Processo Penal, Código Penal e Lei das Contravenções Penais, quaisquer normas gênero específicas, mas sim, sexo específicas. Tal conclusão foi verificada a partir da busca, nas legislações referidas, das variáveis gênero, mulher e sexo, as quais foram analisadas sob a ótica das teorias de gênero, demonstrando que a incompreensão da categoria de gênero implica em utilizações reducionistas e excludentes.
Ressaltamos que somente a LMP utiliza a expressão gênero em sua redação, entretanto, apesar de representar uma das legislações mais avançadas do mundo na prevenção, combate e punição da violência contra a mulher, na prática, ficou limitada à uma ferramenta de criminalização de condutas que acaba por vincular como sinônimos a violência de gênero e a violência doméstica e familiar, reduzindo drasticamente o escopo pretendido pelas teorias de gênero.
Adentramos nas construções teóricas e legais das figuras do femicídio e do feminicídio, compreendendo como sua criação insere uma dimensão política importante para a compreensão de um fenômeno social complexo. Nesse sentido, sintetizamos as principais construções oriundas das ciências sociais que permitem a observação da complexidade em torno das mortes violentas de mulheres, sinalizando, novamente, para os perigos de compreender um fenômeno tão amplo com tipificações específicas e limitantes.
Tais limitações podem ser percebidas na compreensão da qualificadora do feminicídio no Código Penal brasileiro. Apesar de fazer referência em seu inciso I à definição de violência doméstica e familiar definida no artigo 5º da LMP, a qual menciona o gênero como categoria principal, o artigo 121, §2º, inciso VI, do Código Penal, refere ao feminicídio como sendo a conduta praticada “contra a mulher por razões da condição do sexo feminino”, selecionando previamente quem está abarcado pela qualificadora do feminicídio.
Por fim, encaminhando para a resposta de nosso problema de pesquisa, identificamos três posicionamentos doutrinários acerca da natureza da qualificadora. O primeiro, que refere à qualificadora como subjetiva, o segundo, como objetiva, e o terceiro, como híbrida ou mista. Ressaltamos que as construções que percebem a objetividade na figura penal - seja como unicamente objetiva ou na sua forma mista - não abarcam a complexidade do fenômeno da violência de gênero, entretanto, essas visões são um reflexo de todo o caminho institucional percorrido até aqui.
Ainda, a posição objetiva da qualificadora cristaliza a mulher na posição de vítima e o homem na posição de agressor, reproduzindo valores e representações da sociedade baseados em relações desiguais de gênero e gerando expectativas estereotipadas com relação ao comportamento feminino. Finalmente, mencionamos a aplicação da privilegiadora no crime de feminicídio, benefício completamente incompatível com os objetivos da criação da conduta típica.
Dessa forma, concluímos que a qualificadora do feminicídio possui natureza subjetiva, uma vez que apesar da desigualdade de gênero ser um quadro estrutural objetivamente identificável, é a sua motivação que interessa quando buscamos verificar em casos concretos o limite da sua punibilidade. Identificar a qualificadora de feminicídio com a natureza subjetiva implica identificar a violência de gênero como subjetiva, aproximando suas causas não somente à comportamentos coletivos, mas também individuais, situando nos sujeitos a responsabilidade de desfechos distintos.