Sumário: 1. Introdução. 2. Lei de Improbidade Administrativa e os tipos descritivos das condutas ímprobas. 3. Atuação dialógica do Ministério Público na superação de irregularidades no quadro de funcionários públicos. 4. A atividade estruturante desenvolvida pelo GEPATRIA de Santo Antônio da Platina no interregno de 2009 a 2016. 5. Considerações finais. 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A Lei de Improbidade Administrativa (LIA) representa um importante instrumento de combate à corrupção no Brasil, com grande impacto na forma de condução da Administração Pública. Entretanto, a Lei n.º 14.230/2021 introduziu uma nova roupagem à LIA, impondo contornos mais restritivos para a aplicação das penalidades e a indicação de requisitos incisivos para a configuração da conduta ímproba. A alteração legislativa gerou grande embate doutrinário e jurisprudencial, culminando com o ajuizamento de Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade (ADIs) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), sob o fundamento de descompasso com a moldura constitucional e do possível retrocesso no sistema repressivo e punitivo à corrupção, inclusive, contrariando tratados internacionais internalizados pelo país, como a Convenção de Mérida.
Sem adentrar na discussão da constitucionalidade e convencionalidade das alterações promovidas pela Lei n.º 14.230/2021, é necessário ponderar que existem situações irregulares no âmbito da Administração Pública, por vezes sedimentadas, que não serão passíveis de correção por intermédio da Lei de Improbidade Administrativa, seja por ausência de demonstração do elemento subjetivo exigido, seja por inadequação da conduta ao rol taxativo previsto no artigo 11 da LIA. As irregularidades na contratação e no manejo interno de servidores públicos, em que não existe a finalidade de favorecimento pessoal ou de terceiros, deixam de guardar subsunção no artigo 11 da LIA em decorrência da revogação do inciso I e inclusão de novas elementares ao inciso V.
O contexto apresentado indica o vácuo legislativo de caráter punitivo em situações complexas em que a responsabilidade se dilui no tempo. Com a exigência do dolo e conhecimento do ilícito, houve a redução no rol de condutas passíveis de punição e da incidência da Lei de Improbidade Administrativa. Em certa medida, a reformulação da LIA promove adequação aos preceitos do Direito Administrativo Sancionador. Mas, embora o espaço de não ingerência punitiva possa decorrer de opção legislativa, a ausência de subsunção da conduta do gestor aos tipos descritivos de condutas passíveis de punição na LIA não converte o fato em um irrelevante jurídico.
Buscando delimitar o problema de pesquisa, indaga-se: como promover a regularização da estrutura administrativa do ente público, afetado por circunstâncias fáticas diversas e sem a utilização da legislação repressiva? A hipótese recai sobre a adoção de medidas estruturais, sobretudo pelo Ministério Público, em sua atuação preventiva, como instrumento adequado para a reorganização da estrutura administrativa. O objetivo é demonstrar como a atuação preventiva por intermédio de medidas estruturantes pelo Ministério Público pode corrigir irregularidades afetas à contratação de servidores públicos, evitando o ajuizamento prematuro de ações pautadas na Lei de Improbidade Administrativa ou ações desconstitutiva ordinárias, inadequadas para o tratamento de situações fáticas interligadas e complexas.
Para a demonstração da hipótese, foi aplicada a metodologia de estudo de caso, com foco na atuação do Ministério Público do Estado do Paraná, Brasil. O Ministério Público do Estado do Paraná (MPPR) criou, em 2015, os Grupos Especializados na Proteção do Patrimônio Público e no Combate à Improbidade Administrativa (GEPATRIA), que foram instituídos pela Resolução n.º 5.5253 e regulamentados pela Portaria n.º 01/20154.
O GEPATRIA, da cidade de Santo Antônio da Platina, Paraná, Brasil, atualmente abarca 37 municípios da região. É vinculado ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção ao Patrimônio Público e têm por objetivo atuar de maneira preventiva e repressiva, sobretudo, nos casos de maior lesividade, repercussão, gravidade e complexidade, que importem em enriquecimento ilícito, causem danos ao patrimônio público e/ou atentem contra os princípios regentes da administração pública.
Da atuação do grupo, extraem-se dificuldades e entraves à consecução do objetivo de regularização imediata. Algumas dificuldades identificadas não possuem relevância jurídica de forma isolada e, de regra, não são submetidas ao Poder Judiciário quando deduzida uma pretensão sancionatória ou anulatória do ato jurídico. Mas, possivelmente, alongam a duração do procedimento de organização da estrutura burocrática do ente público, sendo relevantes para a avaliação da existência do dolo imputável ao gestor.
Diante disso, foi inicialmente realizada a revisão da literatura e jurisprudência acerca do assunto com a análise de uma amostra previamente delimitada, que ilustra a atuação do Ministério Público do Paraná, Brasil. Foram analisados cinco procedimentos administrativos que tramitaram no Grupo Especializado na Proteção ao Patrimônio Público e no Combate à Improbidade Administrativa (GEPATRIA).
O artigo é fruto de uma análise inicial que integra a pesquisa que vem sendo desenvolvida pela autora em nível de mestrado na UENP - Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho, Brasil. E, por isso, possui limitações, tendo em vista que o estudo de caso não abarca a integralidade do trabalho desenvolvido pelo GEPATRIA iniciado a partir de 2009. Não obstante, foi possível verificar alguns óbices concretos enfrentados pelo gestor que inviabilizam a solução do problema pelo modelo tradicional de processo ou mesmo por intermédio de pretensão sancionatória.
A relevância da pesquisa recai na conjugação de elementos teóricos acerca da lei de improbidade administrativa e procedimento estrutural com elementos concretos que apontam existência de circunstâncias que afetam a configuração do dolo do gestor, além de dificultar a superação das irregularidades com a aplicação do procedimento ordinário inadequado em virtude da preponderância retrospectiva da atuação judicial.
2 LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E OS TIPOS DESCRITIVOS DAS CONDUTAS ÍMPROBAS
A Lei n.º 8.429/92 - Lei de Improbidade Administrativa (LIA) foi um marco como um dos principais instrumentos de prevenção e combate à corrupção no país, tendo permanecido em vigência por quase três décadas. Entretanto, a Lei nº. 14.230/2021 reformulou profundamente o referido mecanismo jurídico, pautada no discurso de excesso punitivo e no “apagão das canetas” impulsionados pelo efeito midiático da Operação Lava Jato. O apagão das canetas encontra-se inserido na cultura do Direito Administrativo do Medo, em que o medo em decidir dos agentes públicos, em face do alto risco de responsabilização decorrente do controle externo disfuncional, ocasiona uma paralisação. Prioriza-se, pois, a inação como forma de fuga da responsabilização em detrimento do interesse público5.
A reformulação da LIA, neste contexto, busca retomar os contornos originários então previstos pela Lei Pitombo-Godói Ilha (Lei n.º 3.164/57) e Lei Bilac Pinto (Lei n.º 3.502/58), cujo enfoque repousava no combate ao enriquecimento ilícito, praticado pelo agente público ou particular. “A exclusão da possibilidade de imputação de atos de improbidade culposos está no epicentro das mudanças operadas pela Lei n.º 14.230/2021”6, pois tem por finalidade delimitar a improbidade de irregularidades ou ilegalidades perpetradas por incompetência ou inaptidão do gestor. “O accountability dos gestores é fundamental, mas deve ser sensível às dificuldades tipicamente enfrentadas pelos funcionários públicos e às limitações conjunturais em decisões sensíveis”7. A reforma legislativa promovida, portanto, pretende circunscrever a imposição das sanções às condutas ímprobas a partir da limitação ao poder punitivo estatal, iniciando a reformulação com a inclusão no artigo 1º, § 4º da LIA com a inserção de um guia hermenêutico, ao apontar que “aplicam-se ao sistema de improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”8, que isoladamente tem potencialidade de afetar os limites da atuação repressiva do Estado.
Trata-se de uma reforma legislativa que gerou impacto em processos que se encontravam em andamento e questionamentos acerca da constitucionalidade e convencionalidade da Lei n. 14.230/2021 junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Dentre as principais mudanças de natureza material, a nova legislação exclui qualquer possibilidade de condenação por conduta culposa, passando a exigir o dolo, que vem agregado a outras circunstâncias, conforme se reportem às condutas abarcadas pelo artigo 9º, 10º ou 11 da LIA, o que demanda do intérprete um esforço crescente para se comprovar a subsunção da conduta.
As condutas descritas no artigo 9º da LIA dispensam maior aprofundamento probatório sobre o elemento subjetivo do agente, pois “ninguém se enriquece ilicitamente de forma culposa”9 ou mesmo com finalidade diversa do tipo. Os atos que causem prejuízo ao erário, ao contrário, exigem a comprovação do resultado naturalístico e também do elemento subjetivo, justamente para diferenciar o ato ímprobo da mera inaptidão do gestor. As condutas que afrontem os princípios, em decorrência da tessitura aberta e, mesmo após o estabelecimento do rol taxativo, demandam evidências da lesividade expressiva e o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para pessoa ou entidade (LIA, artigo 11, § 1º e 4º).
No julgamento do Tema 119910, fixou-se a tese de que: (i) é necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - dolo; (ii) a norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa - é irretroativa, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; (iii) a nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; (iv) o novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei”.
Sem adentrar na questão de retrocesso no sistema de proteção ao patrimônio público, cabe a investigação sobre questões que deixam de ser abarcadas pela LIA, sobretudo, pelas disposições que tratam da ofensa aos princípios constitucionais da Administração Pública. Muitas irregularidades eram apresentadas ao Poder Judiciário fundadas neste dispositivo legal, pois “o artigo 11, da Lei revogada, sempre foi um tipo de injusto subsidiário, em que condutas que não se amoldavam no artigo 9º ou 10, ambos da Lei n.º 8.429/92, pudessem ser subsumidos ao ‘soldado reserva’”11.
As inconformidades com a contratação e o manejo interno de servidores públicos nem sempre encontrarão consonância com as elementares do artigo 9º da LIA, que exige vantagem patrimonial indevida no exercício do cargo, mandato, função, emprego ou de atividades nas entidades contempladas pela lei. De igual forma, o artigo 10 da LIA demanda a comprovação de que a conduta dita ímproba tenha causado lesão ao erário e que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres. Essas disposições legais continuam a estampar um rol exemplificativo, mas exigem a conduta dolosa, com a finalidade específica na prática do ato e a ocorrência do resultado naturalístico descrito no caput. O artigo 11 da Lei n.º 8.429/92, por outro lado, passou a elencar um rol taxativo em virtude da abertura semântica da redação do caput. No julgamento do ARE 803568/SP12, o STF estendeu os efeitos do julgamento do Tema 1199 à nova redação do artigo 11 da LIA e, por consequência, os processos em andamento, cuja imputação não guardem consonância em um dos incisos do rol taxativo, terão por consequência a extinção por atipicidade da conduta.
Verifica-se que houve a revogação do inciso I do artigo 11 da LIA, que capitulou como ímproba a prática de ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência. O inciso revogado, conjuntamente com o inciso V do art. 11 da LIA, fundamentaram o ajuizamento de ações de improbidade administrativas, envolvendo irregularidades na contratação e no manejo interno de servidores públicos, como a ausência de concurso público, testes seletivos fora das hipóteses de excepcionalidade exigidas, cargos comissionados para funções técnicas ou administrativas a serem desempenhadas por servidores efetivos, além dos desvios de função para suprir necessidade esporádica da Administração.
Embora o inciso V, do art. 11 da LIA, reporte-se às irregularidades atinentes aos concursos públicos, doravante se exige a finalidade específica de frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, “com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros13”. Esses elementos fáticos não se manifestam corriqueiramente em processos que envolvam uma desestruturação administrativa que se revela comum e apta à geração de incontáveis inconformidades, inclusive, quanto à forma de ingresso no serviço público. Por outro lado, o artigo 11, inciso XI da Lei n.º 8.429/92 passou a prever expressamente o nepotismo, direto ou cruzado, internalizando o entendimento contido na Súmula Vinculante 13 do STF, facilitando neste ponto a subsunção da eiva.
Importante observar que o julgamento do Tema 1108 pelo Superior Tribunal de Justiça aborda a contratação de servidor público sem a prévia aprovação em concurso público, mas pautada em lei municipal. No acórdão, concluiu-se que a autorização legislativa para a contratação independentemente de concurso público impede a condenação por improbidade administrativa.
O afastamento do elemento subjetivo de tal conduta dá-se em razão da dificuldade de identificar o dolo genérico, situação que foi alterada com a edição da Lei n. 14.230/2021, que conferiu tratamento mais rigoroso para o reconhecimento da improbidade, ao estabelecer não mais o dolo genérico, mas o dolo específico como requisito para a caracterização do ato de improbidade administrativa, ex vi do art. 1º, §§ 2º e 3º, da Lei n. 8.429/1992, em que é necessário aferir a especial intenção desonesta do agente de violar o bem jurídico tutelado. Para os fins do art. 1.039 do CPC/2015, firma-se a seguinte tese: ‘A contratação de servidores públicos temporários sem concurso público, mas baseada em legislação local, por si só, não configura a improbidade administrativa prevista no art. 11 da Lei n. 8.429/1992, por estar ausente o elemento subjetivo (dolo) necessário para a configuração do ato de improbidade violador dos princípios da administração pública14.
A reforma, todavia, não conduz à conclusão de irrelevância jurídica das desconformidades excluídas da incidência da LIA, sendo que, a partir dos valores constitucionais, deve ser viabilizada a superação dos obstáculos, “enfrentando essa burocracia para eliminação de qualquer possibilidade de não concretização daquilo que está descrito na Constituição15”. Por outro lado, o procedimento de monitoramento e correção também deve ser atentar às limitações reais do gestor, além das circunstâncias práticas que tenham imposto limitações à ação do agente, conforme exige o artigo 22, § 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDIB), norma reproduzida no art. 17-C, inciso III da LIA ao estabelecer os requisitos da sentença. A nova roupagem normativa, neste contexto, cobra daqueles investidos da atribuição constitucional fiscalizatória maior esforço dialógico e com incursão sobre circunstâncias adjacentes complexas que afetam a solução do problema.
3 ATUAÇÃO DIALÓGICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA SUPERAÇÃO DE IRREGULARIDADES NO QUADRO DE FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS
A reforma produzida pela Lei n.º 14.230/2021 não se restringiu aos aspectos materiais da lei e, no âmbito processual, passou a exigir elementos probatórios robustos acerca da conduta ilícita e do elemento volitivo. Afastou da incidência da LIA os ilícitos que não se encontram contaminados pelo elemento volitivo ligados à corrupção, como por exemplo as omissões inconstitucionais vinculadas às políticas públicas e mesmo as irregularidades dos procedimentos atinentes aos quadros funcionais, que variam do ingresso ao manejo interno de servidores públicos. A nova perspectiva legal exige dos órgãos censores conhecimento e atuação interdisciplinar, ao passo que deverão descrever e demonstrar suficientemente as condutas ímprobas, demonstrando elementos anteriormente não essenciais ao ajuizamento de ação civil pública para apuração de atos de improbidade administrativa.
O Ministério Público, no entanto, poderá transformar o desafio decorrente da alteração promovida pela Lei n.º 14.230/2021 em oportunidade de aperfeiçoamento da atividade fiscalizatória, superando a exclusiva finalidade punitiva, para alcançar o princípio da eficiência por intermédio da atividade concertada e dialógica. “A Lei n.º 14.230/2021 reforçou a importância de os agentes ministeriais obterem maiores conhecimentos gerenciais e também sobre as circunstâncias que envolvem as políticas públicas”16. A necessidade se infere do artigo 17-C, incisos II e III da LIA, ao exigir a ponderação das consequências da decisão e dos obstáculos e dificuldades reais do gestor. Adotou a nova legislação o julgamento consenquencialista ditado pela LINDIB, impondo o aprimorando dos órgãos censores, a quem cabe delimitar as irregularidades passíveis de sanção de falhas na construção de políticas públicas ou mesmo das desconformidades estruturais pautadas em dificuldades ou inaptidão do gestor. “Esse postulado não se aplica apenas à decisão judicial. Ele também se aplica às decisões administrativas e às decisões tomadas por órgãos de controle, como os tribunais de contas e as agências reguladoras”17.
A atuação da Administração Pública tende a afetar e sofrer limitações de vários setores, caracterizando-se pelo policentrismo de interesses, e inúmeras irregularidades sedimentam-se, tornando intrincada a atividade de acertamento. A intervenção em controvérsias do Poder Público pode afetar circunstâncias interligadas internamente, mas também outros setores da sociedade, sendo imperioso considerar a realidade normativa, administrativa e orçamentária. A sujeição ao princípio constitucional da legalidade, de igual forma, demanda atuação diferenciada, esboçando pontos diversos dos litígios convencionais no momento de regularização de estruturas públicas.
A multipolaridade é, portanto, ínsita ao direito administrativo pelo simples fato de que a Administração Pública, ao exercer função administrativa em prol do (s) interesse (s) público (s), naturalmente desborda as relações individuais e tende a atingir uma coletividade dotada de interesses diversos e plúrimos status jurídicos18.
As irregularidades têm potencialidade de se espalhar para os variados setores da administração, razão pela qual não se apresenta adequada a avaliação compartimentada, conforme rotineiramente ocorre. Valendo-se de uma metáfora sobre a teia de aranha, Willian Fletcher aponta que a tensão dos vários fios é determinada pela reação entre todas as partes da teia, de maneira que a intervenção em apenas um fio acarreta a redistribuição de tensão em toda a estrutura, implicando sua total reconfiguração19/20. Ou seja, no contexto em que haja desordem burocrática, a remoção de uma anormalidade, sem uma compreensão abrangente da situação real, não garantirá a eficácia da decisão, podendo até mesmo contribuir para o surgimento de novas deficiências.
As novas exigências normativas e as peculiaridades da Administração Pública guardam convergência com o modelo estrutural, que pode ser adotado na fase administrativa ou judicial. “Estes litígios são marcados pela existência de violações estruturais de direitos, causadas pelo conjunto de práticas e dinâmicas institucionalizadas, dentro de uma causalidade complexa”21. Embora não exista uma delimitação suficiente na doutrina sobre as características essenciais do procedimento ou processo estrutural, o cerne do sistema repousa na finalidade de reorganização de uma estrutura, pública ou particular22, sobrelevando o enfoque prospectivo, sendo que, “mais do que corrigir uma situação momentânea ou pretérita, essa dinâmica de realocação impõe o desafiador trabalho de olhar para frente”23.
A estratificação da demanda estrutural exige a realização de diligências incomuns no modelo tradicional de processo. Edilson Vitorelli24 indica que o processo estrutural estabelece seu percurso, com as seguintes etapas de desenvolvimento: 1) a apreensão das características do litígio; 2) a elaboração de um plano de alteração do funcionamento da estrutura; 3) a implementação desse plano, de modo compulsório ou negociado; 4) a avaliação dos resultados da implementação; 5) a reelaboração do plano, a partir dos resultados avaliados, no intuito de abordar aspectos inicialmente não percebidos ou minorar efeitos colaterais imprevistos; 6) a implementação do plano revisto.
Apesar da singularidade do caminho, essa atividade de reorganização revela-se promissora no âmbito administrativo, em procedimentos administrativos instaurados pelo Ministério Público, em que a flexibilidade de atuação e o favorecimento de efetiva participação dos interessados encontram acolhida. Permite-se sobretudo a discussão de estratégias de reestruturação institucional, resguardando-se a esfera de atribuição do administrador público. “A execução da decisão estrutural é complexa e deve ser realizada de forma negociada, gradual e progressiva, com a colaboração de todas as partes”25, viabilizando o cumprimento em menor tempo e de forma menos onerosa.
O processo estrutural não possui previsão expressa na legislação ordinária, sendo contemplado no Projeto de Lei n.º 1.641/2021, que renova a tentativa de condensação da legislação processual coletiva no Brasil. Este diploma, apelidado de Projeto de Lei Ada Pellegrini Grinover, não traz o conceito de processo estrutural de forma expressa. O artigo 26, § 5º, inciso II, do Projeto de Lei n.º 1.641/202126 dispõe que a sentença poderá determinar a alteração em estrutura institucional, pública ou privada de natureza cultural, econômica ou social, a fim de adequar seu funcionamento aos parâmetros legais e constitucionais, ou, ainda, a adequada correção do estado de fato de violação sistemática de direitos. No entanto, é imprescindível frisar o reconhecimento formal do Supremo Tribunal Federal acerca do processo estrutural, com a criação do Centro de Soluções Alternativas de Litígios (Cesal), por meio da Resolução 790/2022, sendo integrado por três unidades, dentre as quais o Centro de Coordenação e Apoio às Demandas Estruturais e Litígios Complexos (Cadec).
A Recomendação n.º 54/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público27 adota a solução extrajudicial do conflito como preferencial, sempre que esta escolha externar uma solução mais célere, econômica e eficaz, contribuindo para a diminuição de litígios. Com a utilização do procedimento administrativo e recorrendo a providências estruturantes, portanto, o desarranjo burocrático do ente público poderá ser sanado com eficiência e legitimidade. O mapeamento do problema permite a formação de plano de reestruturação integral, com a identificação dos limites fáticos e jurídicos, para que sejam projetadas metas parciais e marcos temporais a serem monitorados pelo Ministério Público. As decisões em cascata permitem os ajustes necessários quando, da estratégia desenhada, não se obtenham os resultados esperados.
A estratégia estrutural constitui tarefa complexa, que demanda conhecimento de áreas diversas e afinco para solução dialógica, pois “não existem respostas simples para problemas complexos”28. Mas, antes mesmo da reformulação legislativa no regramento de combate à improbidade administrativa, o Grupo Especializado na Proteção ao Patrimônio Público e no Combate à Improbidade Administrativa (GEPATRIA) atuou junto aos municípios abarcados por sua atribuição buscando a correção da base do desarranjo burocrático da Administração Pública. Doravante, com a alteração legislativa da LIA e as limitações decorrentes, eleva-se a relevância da atividade preventiva do Ministério Público.
4 A ATIVIDADE ESTRUTURANTE DESENVOLVIDA PELO GEPATRIA DE SANTO ANTÔNIO DA PLATINA NO INTERREGNO DE 2009 A 2016
A análise da atividade estruturante desenvolvida pelo Ministério Público no âmbito administrativo foi orientada a partir de pesquisa empírica com a aplicação do método de estudo de caso. Foram analisados casos concretos, em que houve aplicação de medidas estruturantes para a reorganização administrativa funcional. O estudo de caso possui foco na atuação do Ministério Público do Estado do Paraná, junto ao Núcleo Regional de Trabalho de Proteção ao Patrimônio Público do Norte Pioneiro, instituído pela Resolução n.º 5.525 e convertido para Grupo Especializado na Proteção ao Patrimônio Público e no Combate à Improbidade Administrativa (GEPATRIA). As atividades do Grupo são regulamentadas pelas Portarias n.º 01/2015 e n.º 01/2019. Foram abarcados os procedimentos administrativos envolvendo os municípios de abrangência do Núcleo Regional de Trabalho de Proteção ao Patrimônio Público do Norte Pioneiro, cuja finalidade recaia no controle da prática do nepotismo e de irregularidades na contratação de servidores públicos para cargos comissionados.
Embora o Núcleo abarcasse o total de 49 (quarenta e nove) municípios da região do norte pioneiro, não houve autorização do Promotor de Justiça da origem para a realização do trabalho na Comarca de Ribeirão Claro e Jacarezinho. Restou prejudicada a análise com relação ao município de Jaguariaíva e Santa Cecília do Pavão, em virtude de não estarem os procedimentos arquivados no GEPATRIA. Ainda, não se encontram disponíveis os procedimentos relativos a Carlópolis e uma gestão de Cornélio Procópio, em virtude de terem os procedimentos sido encaminhados às respectivas comarcas. Referidas informações foram obtidas diretamente no GEPATRIA, por ocasião da autorização de acesso aos documentos e delimitação do objeto da pesquisa.
Esclarece-se, inicialmente, que o presente artigo foi desenvolvido a partir do levantamento inicial dos casos em pesquisa de dissertação em nível de mestrado. A pesquisa de mestrado apontou o trabalho desenvolvido junto a 45 (quarenta e cinco) municípios do Norte do Paraná. Destes, apenas cinco procedimentos foram objeto de análise neste artigo. Além disso, é importante ressaltar que a metodologia aplicada à pesquisa de dissertação engloba a apuração da existência de instauração de ação civil pública pela prática de improbidade administrativa, vinculadas à contração de servidores públicos de forma irregular. Este recorte tem como base o nome dos gestores identificados nos procedimentos administrativos que tramitaram no GEPATRIA e que constituem a primeira parte do estudo de caso.
Para a pesquisa documental, obteve-se autorização da Promotora de Justiça responsável pelo GEPATRIA, sendo franqueado o acesso, realização de relatório e extração de cópias dos procedimentos, que possuem natureza pública por envolverem contratações firmadas pelo poder público.
Delimitou-se como recorte temporal os procedimentos iniciados a partir do ano de 2009, para viabilizar a investigação sobre toda a atividade, desde a expedição das recomendações até o relatório de arquivamento, sendo que a maior parte dos municípios tiveram o acompanhamento relativo às duas recomendações iniciais encerrados no ano de 2016.
Para atrelar o estudo de caso à problematização proposta, buscou-se responder às seguintes questões: 1) Qual a extensão de irregularidades identificadas vinculadas ao objeto da recomendação? 2) Qual o tempo que demandou para regularização e quais pontos são diversos da recomendação inicial? 3) Havia legislação adequada sobre a estrutura administrativa no município? 3.1) O Ministério Público teve participação/orientação quanto à elaboração do Projeto de Lei? 4) Foi identificado comprometimento do limite de gasto com pessoal (Lei de Responsabilidade Fiscal)? 5) Foi necessária a realização de concurso público? 5.1) O Ministério Público teve participação/orientação quanto ao procedimento ou edital? 6) É possível extrair do procedimento se houve conduta colaborativa do gestor quanto à adequação pontada pelo Ministério Público? 7) Identificaram-se apontamentos acerca de ajuizamento de ação de improbidade administrativa em virtude da recalcitrância do gestor?
Com a elaboração do relatório, buscou-se a identificação de padrões e categorias que viabilizasse a análise das perguntas propostas. Ainda, realizaram-se visitas ao GEPATRIA, de forma a verificar se existe estrutura funcional diferenciada a dar suporte ao trabalho estrutural. Buscou-se extrair a visão do gestor público por intermédio da interpretação das respostas às recomendações e requisições de diligências ou de documentos expedidas no curso do processo, e a estrutura funcional e técnica diferenciada foram extraídas por meio da observação direta, nas várias visitas realizadas ao GEPATRIA, além dos relatos trazidos pela Promotora de Justiça atuante naquela divisão. Ao final, para assegurar a validade do construto, encaminhou-se cópia do relatório e análise dos dados arrecadados para a Promotora de Justiça responsável pelo GEPATRIA para fins de revisão e apresentação de seus apontamentos ou ressalvas.
No presente artigo, como explicado, apresentam-se os resultados da análise de cinco procedimentos administrativos: Autos 0130.09.000158-2, Município de Salto do Itararé; Autos 0130.09.000187-1, Município de Wenceslau Braz; Autos 0130.09.000184-8, Município de Siqueira Campos; Autos 0130.09.000165-7, Município de Sengés e Autos 0130.09.000114-5, Município de Cambará, cujo acesso foi franqueado pela Promotoria de Justiça titular, para fins de pesquisa acadêmica. A seleção dos procedimentos que compõem a presente pesquisa decorre de indicação da Promotoria de Justiça titular do GEPATRIA de Santo Antônio da Platina, sendo os Município de Salto do Itararé e Wenceslau Braz em virtude da inexistência de legislação sobre a estrutura administrativa e de funcionários públicos efetivos. Quanto aos demais municípios, a relevância recai na quantidade expressiva de cargos comissionados, existência de casos de nepotismo e a necessidade de adequação da legislação que regulamentava o quadro de servidores públicos.
A partir do aprofundamento sobre a Lei de Improbidade Administrativa e as exigências estampadas na LINDIB, o estudo bibliográfico sugeriu que o modelo estrutural pode ser adequado para aplicação em situações complexas da Administração Pública, como irregularidades de contratação e manejo interno de servidores públicos. Sobreleva-se a reestruturação burocrática, independentemente do viés punitivo, pois “a Constituição de 1988, ao instituir a necessidade de concursos públicos para o provimento de cargos e empregos públicos, tornou o serviço público profissionalizado, especializado, impessoal (não clientelista) e eficiente29”. Confrontando-se os elementos teóricos com o estudo de caso, portanto, pretende-se avaliar se a atuação do Ministério Público foi relevante na reorganização do quadro funcional dos municípios estudados e se o monitoramento contribui para delimitar as condutas ímprobas de atos de mera inaptidão.
Dos procedimentos analisados, constatou-se que foram deflagrados a partir de Recomendações Administrativas atinentes ao controle de Nepotismo e Funções Comissionadas junto aos Municípios inseridos no âmbito de atribuição do GEPATRIA. Salienta-se que a recomendação é instrumento previsto no artigo 27, parágrafo único, inciso VI, da Lei 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público)30 e no artigo 6°, inciso XX, da Lei Complementar 75/199331, e regulamentada pelo CNMP, pela Resolução 23, de 17 de setembro de 200732. Por meio das recomendações administrativas, “o Ministério Público pode expedir recomendações dirigidas aos órgãos ou entidades públicas, para a melhoria dos serviços públicos e o respeito aos interesses e direitos cuja defesa lhe cabe promover33”.
Com as informações dos gestores, apontaram-se entraves que impossibilitam a solução imediata, havendo problemas que reclamavam intervenção prévia, sob pena de inviabilizar as atividades administrativas, com evidente ofensa ao princípio da continuidade dos serviços públicos.
A partir da análise dos trabalhos de monitoramento realizado pelo Ministério Público, verificou-se que houve a necessidade de incursão sobre a existência e suficiência de Lei Municipal que trate de Estrutura Administrativa do ente Público, Lei que Plano de Cargos e Carreira, realização de concursos públicos para suprir os cargos ocupados irregularmente, além da adequação ao limite prudencial de gastos com pessoal, previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal. Em média, os procedimentos tramitaram por cerca de sete anos para que houvesse a compatibilização entre a finalidade de regularização do quadro de servidores públicos municipais, as dificuldades e os obstáculos para a consecução de tais objetivos (LINDIB, art. 22, § 1º) e a manutenção da estrutura administrativa em funcionamento suficiente para o atendimento da população.
Dentre os casos de maior complexidade, conforme apontado pela Promotora de Justiça responsável pela condução dos trabalhos do GEPATRIA de Santo Antônio da Platina, destaca-se o município de Salto do Itararé34, pertencente à Comarca de Siqueira Campos, com população aproximada de 5.190 pessoas, conforme censo de 202235. Em resposta à recomendação ministerial, o gestor público comunicou que não havia nenhum servidor público concursado e, ainda, que o município não possuía nenhuma legislação (Lei ou Decreto) que regulamenta a estrutura administrativa dos cargos públicos e suas atribuições, mas tão somente leis esparsas que criam alguns cargos em provimento efetivo e os cargos de provimento em comissão.
A partir da comunicação promovida pelo administrador, o Ministério Público acompanhou, inclusive, a elaboração do projeto de lei, com a criação de toda a estrutura administrativa do município de Salto do Itararé, prevendo a criação de 20 cargos comissionados e 63 cargos efetivos e que gerou a disponibilização de 389 vagas, entre as duas categorias, além da elaboração de edital de concurso público, realização do certame e, enfim, a contratação de servidores. Extrai-se do procedimento administrativo que se tratou de atividade de grande complexidade, com agruras para a escorreita compreensão do gestor e sua equipe técnica quanto à descrição suficiente dos cargos e seus requisitos, inserção nas respectivas divisões e departamentos na legislação municipal. Realizaram-se cinco reuniões com o administrador e sua equipe, sendo expedidos 14 ofícios de fiscalização e orientação, com a elaboração de um termo de ajustamento de conduta.
Os dados contidos no procedimento administrativo referente ao município de Salto do Itararé não indicam qualquer caso de nepotismo, direto ou cruzado. A inexistência de qualquer legislação regulamentadora da estrutura administrativa do município, criado em 1960, de certa forma inviabiliza a demonstração de dolo do gestor com relação às contratações desconformes, nos moldes exigidos pela LIA, sobretudo, pela atual redação do art. 11, inciso V da Lei n.º 8.429/1992, não se vislumbrando no quadro descortinado ao Ministério Público a finalidade de favorecimento do administrador ou de terceiros. A ausência de conduta ímproba em contraste com a situação de extrema irregularidade demandou a atuação administrativa, segundo o modelo de processo estrutural em que o mapeamento e a delimitação da extensão do problema permitiram a formulação de estratégia, com decisões seriadas e a fiscalização até a solução integral da demanda.
Situação similar constata-se no procedimento 0130.09.000187-1 de Wenceslau Braz36, em que se informou que, na gestão anterior à investigada, o município não possuía Departamento de Recursos Humanos e quadro de funcionários efetivos, sendo apenas prestadores de serviços e contratados irregularmente. Observou-se que vários servidores se encontravam em processo de aposentadoria e recebendo outros benefícios, apenas com atestado médico, sem a constituição de Junta Médica para a avaliação do quadro. Durante os trabalhos desenvolvidos, aprovou-se a legislação sobre emprego público e a elaboração de Plano de Cargos e Salários. Após a verificação do impacto financeiro, foi realizado concurso público. Posteriormente, o monitoramento voltou-se ao Cargo de Chefe de Divisão e Assessor de Planejamento, providos indevidamente por cargos comissionados.
Ainda, recomendou-se a realização de concurso público para os cargos do quadro mínimo dos seguintes servidores efetivos: procurador jurídico, tesoureiro, médico, mecânico, contador, secretário, dentista, bioquímico, assistente social, engenheiro civil, motorista, vigia, pedreiro, administrador (RH), auxiliar administrativo, enfermeiro padrão, farmacêutico, nutricionista, professor e operador de máquinas, além da exoneração de todos os contratados irregulares de qualquer natureza. A fiscalização e correção das irregularidades se estendeu aos casos de nepotismo e, em maio de 2016, adentrou na fase de transposição do regime celetista para estatutário, sendo encerrado o acompanhamento em outubro de 2016.
Nos procedimentos administrativos 0130.09.000184-8 de Siqueira Campos37, 0130.09.000165-7 de Sengés38 e 0130.09.000114-5 de Cambará39, apurou-se número expressivo de cargos comissionados de forma inadequada, além da necessidade de alteração da lei que regulamenta a estrutura administrativa dos municípios e casos de nepotismo. Siqueira Campos revelou 16 casos de nepotismo e 18 cargos comissionados irregulares, mas com dificuldades de realização de concurso público para suprir as vagas em decorrência do comprometimento do gasto com pessoal, que se mantinha acima de 51,30%. O município de Sengés ostentava 58 cargos comissionados irregulares e 17 casos de nepotismo, sendo necessária a adequação legislativa da estrutura administrativa municipal. Por fim, no município de Cambará, constatou-se maior dificuldade de adesão do gestor no atendimento das recomendações ministeriais, embora mantivesse o número expressivo de 120 cargos comissionados. Identificaram-se 24 cargos de gerentes e 35 cargos de assessor técnico e administrativo, cujas funções deveriam ser desempenhadas por funcionários efetivos. Pela extensão das irregularidades, também se mostrou necessária a reformulação da lei que trata da estrutura administrativa municipal e a realização de concurso público.
O monitoramento desenvolvido para a superação do quadro de desorganização burocrática dos municípios revela a dificuldade de delimitação do dolo do gestor em virtude da diluição da conduta por lapso temporal relevante, que ultrapassa o mandato do Administrador Municipal. De igual forma, constata-se que o processo com finalidade punitiva, em que pese necessário nos casos em que aponte a existência do elemento subjetivo exigido na LIA, não terá o condão de promover a correção das eivas, posto que o processo volta-se ao passo, com contornos exclusivamente repressivos. A pretensão desconstitutiva, com finalidade de anulação de contratações irregulares e construída sob o modelo de relação jurídica própria do direito processual tradicional, não enfrenta entraves relevantes como a continuidade dos serviços públicos, preponderando também a atividade retrospectiva.
O estudo do trabalho desempenhado pelo GEPATRIA, portanto, revela que as medidas estruturantes, seja como complemento, seja contraponto ao direito administrativo sancionador, mostram-se essenciais para a persecução do princípio da eficiência, em virtude da capacidade de correção da base do problema que irradia inúmeras desconformidades na atividade administrativa.
A conclusão é corroborada pela análise de processos judiciais que buscam a imposição de sanções previstas na LIA, como se verifica do confronto com acórdãos vinculados ao município de Wenceslau Braz por exemplo. Na apelação cível n.º 1.442.636-940, que trata da contratação de funcionário sem concurso público, houve condenação do prefeito municipal com o enquadramento da conduta no artigo 11 da Lei n.º 8.429/1992, afastando-se a ocorrência de dano ao erário em virtude da prestação de serviços, além de não se demonstrar que o interessado tenha sido beneficiado com a contratação ou se apropriado de dinheiro público. No acórdão, restou anotado que o prefeito municipal havia sido condenado anteriormente por outras cinco contratações irregulares, impondo-se as sanções de suspensão dos direitos políticos e a proibição de contratação com o poder público pelo prazo de três anos, além da multa civil correspondente a três vezes o valor da remuneração do prefeito municipal. Na apelação cível n.º 1.442.642-741, no mesmo contexto, o prefeito municipal foi condenado ao pagamento de multa civil no valor de R$ 5.000,00 atualizados. A atividade desempenhada pelo GEPATRIA, neste caso, exerceu a natureza de complemento à atividade repressiva e, com o mapeamento e monitoramento, possibilitou a correção da base que viabiliza as contratações irregulares. Nas condenações atinentes ao município de Wenceslau Braz, não houve a incursão sobre a finalidade do gestor na contratação sem observância de concursos públicos, eis que não se tratava de elementar do artigo 11, inciso V da LIA quando dos julgamentos.
Com relação ao município de Cambará, houve o ajuizamento do processo 0001025-08.2013.8.16.0055 em face ao prefeito municipal pela prática do nepotismo, sendo acolhida a pretensão punitiva por ofensa aos princípios constitucionais em primeira instância. Em sede de recurso, houve a manutenção da sentença proferida em segunda instância embora o prefeito tenha sido absolvido na seara criminal. Em derradeira decisão que aportou ao processo, o STF afastou a incidência da tese firmada no Tema 1199, mantendo a condenação. Nos autos 0001776-58.2014.8.16.0055, a pretensão sancionatória também recai sobre a contratação de trabalhadores de cargo efetivo sem a realização de concurso público, indicando-se a imputação no art. 11, caput e inciso V da Lei nº 8.429/1992, sendo afinal imposta a penalidade de multa civil correspondente a cinco vezes o valor do salário mínimo vigente na data dos fatos. Com o julgamento do Tema 1199 pelo STF, o processo foi convertido em diligência para manifestação das partes ao passo que a redação anterior do inciso V do artigo 11 da LIA se restringia a indicar a frustração de concurso público, sem a atual exigência da finalidade de benefício próprio ou de terceiros.
O confronto dos dados arregimentados nos procedimentos administrativos com eventuais ações por improbidade administrativa restou prejudicado com relação aos municípios de Siqueira Campos em virtude da restrição de sigilo anotado no sistema PROJUDI. A mesma dificuldade foi encontrada nos procedimentos de Cambará, havendo várias anotações na página de consulta externa, ao todo 71 processos de variada natureza, mas sem permissão de acesso ao conteúdo, ainda que parcial. Por outro lado, pela consulta pelo nome dos prefeitos de Sengés e Salto do Itararé, não restaram positivas as respostas acerca de ações de improbidade administrativa, sendo possível que a atividade do GEPATRIA tenha sido exercida como contraponto suficiente para a regularização, sem reflexos na seara punitiva.
Ainda que sem abarcar o estudo sobre o trabalho sobre todos os municípios que integram o GEPATRIA, pode se extrair que o direcionamento proporcionado pelo Ministério Público acerca das irregularidades secundárias que afetam a contratação e o manejo interno de servidores públicos contribuiu para que o Administrador Público lograsse êxito no cumprimento dos objetivos entabulados nos termos de ajustamento de conduta. Em que pese o ponto central dos procedimentos administrativos tenham alcançado a contratação sem a realização de concurso público, nomeação para funções comissionadas fora das permissões legais e casos de nepotismo, verifica-se que a inexistência de legislação acerca da estrutura administrativa, com todos os seus requisitos legais, dificulta a manutenção da atuação do gestor segundo os parâmetros constitucionais. De igual forma, o comprometimento de gasto com pessoal, segundo os índices previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal, exige uma prévia organização, que ocorrerá de forma paulatina, o que inviabiliza a imediata transposição dos cargos irregulares.
O mapeamento, desenvolvimento de estratégia e monitoramento do cumprimento das metas, além de viabilizar a adequação da estrutura burocrática do ente público, fornece ao Ministério Público uma visão diferenciada de condutas sem potencialidade de configuração de improbidade administrativa, a despeito de se tratar de afronta aos princípios constitucionais. A adversidade da atuação, a princípio, mostra-se comum às demandas estruturais, pois se trata de litígios complexos e que requerem dedicação diuturna. Ainda, imprescindível a compreensão sobre os entraves e obstáculos enfrentados pelo administrador seja transmitida ao representante do Ministério Público com atuação na respectiva comarca, prevenindo o ajuizamento açodado de casos tratados de forma estrutural.
Com a reformulação da LIA, a atividade de monitoramento e adequação da estrutura administrativa do município tem a relevância potencializada em decorrência da revogação do inciso I e a inclusão de novas elementares ao inciso V, ambos do artigo 11 pela Lei nº 14.230/2021, em que subsumiam as contratações irregulares de funcionários públicos, sem a finalidade de benefício pessoal ou de terceiros. O trabalho desenvolvido nesses procedimentos também demonstra que se trata de atividade complexa, com necessidade de conhecimentos específicos e mais aprofundados na área da Administração Pública, além de exigir lapso temporal diferenciado para a conclusão. Referidas circunstâncias devem ser ponderadas para avaliação de produtividade dos responsáveis pelo desempenho desse encargo ministerial, além de se mostrar necessária a especialização dos grupos de atuação e fortalecimento das equipes.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As alterações legislativas promovidas pela Lei n.º 14.230/2021 incrementaram o debate em torno das penalidades previstas na LIA e a existência de irregularidades graves que ficarão aquém da atuação repressiva do Estado. Por outro lado, a desorganização relacionada à Administração Pública, abrangendo inclusive questões de contratações e gestão interna de servidores públicos, não se encaixa facilmente no modelo adversarial do processo legal. Nesse contexto, é importante observar que a atuação das entidades públicas não deve ser analisada e debatida exclusivamente com base na teoria das relações jurídicas que fundamenta o sistema processual brasileiro. Esse sistema foi desenvolvido a partir de conceitos binários e direcionados principalmente a direitos em sua maioria disponíveis para negociação. Dada a percepção das disparidades presentes nas relações em discussão e considerando a abordagem retrospectiva tradicional, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e o artigo 17-C da LIA enumeram considerações e critérios para as respostas judiciais e administrativas de fiscalização. Essas respostas devem avaliar as ramificações das decisões, permitindo uma implementação progressiva das medidas determinadas.
A análise de caso é um indício que confirma a hipótese dentro da amostra e com base nas limitações indicadas de que as medidas estruturais são instrumentos eficazes para a atuação preventiva do Ministério Público, corrigindo desconformidades burocráticas graves da Administração Pública e que desembocam na contratação de funcionários públicos à margem do modelo constitucional para o ingresso em cargos públicos. Entretanto, infere-se da investigação que se trata de atuação complexa, que reclama aprofundamento nos entraves administrativos que, isoladamente, podem não ostentar relevância jurídica apta a configurar o objeto principal de um processo judicial. Pelo estudo dos procedimentos administrativos, conclui-se que o trabalho possui grande impacto no gerenciamento público, contribuindo para a consecução de princípios constitucionais ligados à Administração Pública, sem comprometer o funcionamento dos serviços públicos durante a implementação dos mecanismos de correção.
Para o aprofundamento da pesquisa, mostra-se salutar a confrontação mais detalhada sobre eventuais processos judiciais gerados a partir dos problemas tratados em sede administrativa, sobretudo, se houve deferimento de liminar para a cessação dos vínculos inadequados sem considerar os elementos circunstanciais que dificultavam a solução incontinenti e se as dificuldades adjacentes foram ponderadas na análise do dolo do gestor público. Entretanto, para viabilizar o aprofundamento, imprescindível a colaboração do Ministério Público e Poder Judiciário na identificação das ações ajuizadas a partir de 2009, para posteriormente solicitar o levantamento do sigilo anotado.