Sumário: 1 Introdução; 2 A origem da liberdade testamentária na Common Law inglesa; 3 Tensão entre liberdade testamentária e proteção da família; 4. Solidariedade e reciprocidade: qual família a lei protege? 4.1 Cônjuge/Companheiro; 4.2 Filhos Menores; 4.3 Filhos Adultos; 4.4 Pessoas que tenham sido tratadas como filhos pelo falecido e Pessoas mantidas pelo falecido imediatamente antes da sua morte; 5. O que é Provisão Razoável? 6. Conclusão; 7. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Estudar o direito das sucessões em diversos ordenamentos jurídicos representa muito mais do que constatar as diferenças e semelhanças entre as leis nacionais e as leis de outros países. Para além disso, significa conhecer a proximidade e o distanciamento entre os valores sociais, costumes e princípios adotados por cada comunidade. Embora muitos sejam os fundamentos apontados para o direito das sucessões nos diversos ordenamentos jurídicos existentes, parece haver um consenso entre quase todos eles, no sentido de que ele deve, ao mesmo tempo, garantir a autonomia privada do testador e promover a proteção da sua família próxima1.
Atualmente, existem três grandes sistemas sucessórios no ocidente: o sistema de legítimas - que impõe uma quota indisponível da herança -, o sistema de ampla liberdade testamentária - que garante o exercício da autonomia privada do testador -, e o sistema intermediário - que concede ampla liberdade testamentária ao testador, desde que este não tenha deixado herdeiros menores ou incapazes2.
A Inglaterra adota o sistema de liberdade para testar e a liberdade para dispor dos bens para depois da morte é um dos princípios básicos do direito das sucessões (LANGBEIN, 1975, p.491) naquele ordenamento jurídico, representando, nessa seara, o próprio direito fundamental à liberdade.
Dessa maneira, toda pessoa capaz, que faz um testamento válido, poderá escolher para quem deixará os seus bens. Essa liberdade, entretanto, poderá ser limitada em razão de contestação posterior do testamento baseadas na Lei de Heranças de 1975. (INGLATERRA, 1975).
Essa limitação à ampla liberdade testamentária, que foi instituída pela primeira vez em 19383 e encontra-se atualmente vigente, é foco de grandes debates legislativos, doutrinários e jurisprudenciais. Isso porque, por ato intervivos, para todos os indivíduos considerados civilmente capazes, a lei confere a liberdade para tomar decisões relacionadas aos seus bens da maneira como lhes aprouver, mesmo que sejam prejudiciais à sua família ou se mostrem completamente desarrazoados perante terceiros. Por outro lado, a morte é um fator limitante dessa autonomia, o que parece completamente contraditório.
A principal razão para que a autonomia do indivíduo de dispor de seus bens para depois da morte seja limitada é a proteção da família contra os arbítrios do testador. Mesmo na maioria dos sistemas de ampla liberdade testamentária - como é o caso da Inglaterra - a lei promove a proteção da família, garantindo que determinados herdeiros, próximos ao de cujus, possam reclamar uma provisão razoável4 em caso de necessidade. Dessa maneira, a lei busca prestigiar a autonomia privada sem descuidar do dever de solidariedade familiar.
Atualmente, o sistema sucessório inglês é uma referência no que tange ao estabelecimento de um equilíbrio entre liberdade e solidariedade familiar, na medida em que permite ao julgador levar em consideração o caso concreto, resguardando ao herdeiro um valor que efetivamente atenda às suas necessidades, valor este que, muitas vezes, será muito superior àquele que é resguardado pela lei aos herdeiros necessários nos países que adotam o sistema de legítima (ZALUCKI, 2016).
Apesar disso, há um recente debate acerca da discricionariedade conferida ao julgador para fixar a provisão nos casos em que há contestação do testamento deixado pelo de cujus pelos legitimados. Isso porque, como a lei não estabelece critérios objetivos mínimos para a aferição do quantum a ser fixado a título de provisão, ora o julgador poderá tender para a liberdade de testar conferida ao autor da herança, ora poderá tender ao herdeiro, limitando sobremaneira a autonomia do testador.
Nesse aspecto, o presente trabalho traz como problema central a seguinte questão: a ausência de fixação de parâmetros objetivos mínimos na Lei de herança inglesa para guiar o julgador nos casos em que há contestação do testamento por legitimados a requererem uma provisão familiar, seria um fator limitante ao exercício da autonomia privada do autor da herança? Para além do problema central apresentado, uma outra relevante questão se apresenta: uma vez que a autonomia privada é um dos princípios fundantes do Direito inglês, permitir que o Poder Judiciário faça a revisão da manifestação de última vontade do testador, de maneira indiscriminada, não seria uma afronta a esse princípio e, consequentemente, ao próprio Direito?
Para responder a tais questões, é preciso levar em consideração, em primeiro lugar, que, por muito tempo, houve uma clara separação entre os sistemas jurídicos de common law - adotado pela Inglaterra - e de civil law. Ocorre que, na atualidade, diante da complexidade das situações jurídicas que se apresentam, tanto o common law precisou ceder à positivação de normas quanto o civil law precisou utilizar-se do sistema de precedentes, havendo uma verdadeira aproximação entre os sistemas5. Nesse aspecto, acrescentar na Lei de heranças, parâmetros objetivos mínimos, capazes de limitar a discricionariedade do julgador nos casos de contestação de testamento para fins de pleito de provisão familiar, parece não ser capaz de descaracterizar o sistema jurídico em vigor. Ao contrário, ao que parece, a positivação de tais critérios serviria, justamente, para resguardar princípio fundamental do direito inglês que é a autonomia privada.
O objetivo do presente trabalho é, pois, promover um estudo acerca do atual direito das sucessões inglês, visando verificar se, de fato, os testadores possuem liberdade para dispor de seus bens para depois da morte ou se essa liberdade vem sendo indevidamente tolhida pelo Poder Judiciário ao apreciar as reivindicações dos legitimados para requererem uma provisão familiar. Para tanto, utiliza-se do método dedutivo, apoiado na revisão bibliográfica, com análise da lei, da doutrina e da jurisprudência, na tentativa de buscar uma resposta concreta ao problema apresentado.
A pesquisa encontra justificativa nas recentes decisões judiciais que demonstram a insuficiência da atual Lei de heranças para resolver relevantes casos de disputas por provisão familiar - principalmente propostas por filhos dos falecidos -, na medida em que, quando comparadas, demonstram não haver uniformidade de pensamento em casos semelhantes. A hipótese aventada é a de que a ausência de parâmetros objetivos mínimos para o direcionamento do julgador para decidir nos casos envolvendo requerimentos pautados na Lei de herança, poderá causar grande insegurança jurídica, considerando a ampla discricionariedade conferida ao Poder Judiciário, que poderá promover uma completa revisão da vontade manifestada pelo testador, em verdadeira afronta à sua autonomia privada.
Conclusivamente, é possível observar que, se, por um lado, nos países que adotam o sistema de legítimas, há uma recente reivindicação doutrinária por uma maior liberdade para testar e pelo rompimento com legítimas fixas por não atender aos interesses dos herdeiros necessários, por outro lado, nos países que adotam uma maior liberdade testamentária, é possível identificar uma tendência à sua restrição. (TATE, 2008, p. 141). Isso porque, nos países que admitem a ampla liberdade testamentária, ela está sujeita a um controle judicial. Dessa maneira, os julgadores possuem discricionariedade para, na análise do caso concreto, decidir se o pleiteante de uma porção da herança terá direito de recebê-la ou não. A regra traz grande insegurança jurídica, além de criar um arbítrio dos juízes, que se tornariam verdadeiros “testadores substitutos” (TATE, 2008, p. 141) de maneira que uma corrente doutrinária mais moderna vem defendendo a necessidade de se estabelecerem regras legais capazes de fixar a provisão pleiteada pelos herdeiros legitimados, afastando, assim, a discricionariedade dos julgadores (PARRA, 2009, p. 488).
2 A ORIGEM DA LIBERDADE TESTAMENTÁRIA NA COMMON LAW INGLESA
Nem sempre a liberdade para testar foi uma regra no direito inglês. Durante todo o período medieval, não se admitia a disposição testamentária de bens imóveis, prevalecendo a regra da primogenitura segundo a qual deveria haver um único herdeiro para a terra. (TATE, 2008, p. 141). Apenas nos casos em que não houvesse herdeiros do sexo masculino que sobrevivessem ao de cujus, as terras seriam transferidas às filhas, ocasião em que todas herdariam em copropriedade (TATE, 2008, p. 149). Se o de cujus falecesse sem deixar qualquer herdeiro, suas terras se tornariam propriedade da coroa.
Em 1540, o Parlamento inglês, pressionado pelos proprietários de terra, promulgou o Statute of Wills, que, pela primeira vez, previu a possibilidade de que os proprietários pudessem dispor em testamento de suas terras, desde que reservassem um terço para seus herdeiros. Somente mais tarde, em 1660, o Tenures Abolition Act permitiu que o testador dispusesse integralmente de suas terras por testamento sem qualquer restrição (TATE, 2008, p. 152).
Conforme é possível observar, essa ideia de ampla liberdade hoje adotada por aquele ordenamento jurídico é fruto de construções histórico-filosóficas, ganhando destaque com o advento do liberalismo que teve como um de seus principais expoentes o filósofo inglês John Locke.
Apesar disso, Locke nunca defendeu um direito de propriedade absoluto. Ao contrário, defendia a proteção à vida, à liberdade e à propriedade, obedecidos os limites impostos pela lei. Isso porque, segundo afirma:
A liberdade consiste em estar livre de restrições e de violência por parte de outros, o que não pode existir onde não existe lei. Mas não é, como já nos foi dito, liberdade para que cada um faça o que bem quiser (pois quem poderia ser livre quando o capricho de qualquer outro homem pode dominá-lo?), mas uma liberdade para dispor e ordenar como se quiser a própria pessoa, ações, posses e toda a sua propriedade, dentro dos limites das leis às quais se está submetido; e, portanto, não estar sujeito à vontade arbitrária de outrem, mas seguir livremente a sua própria. (LOCKE, 1998, p. 433-434)
A liberdade para testar surge no contexto do liberalismo não como expressão da autonomia privada do indivíduo - ideia que se desenvolveu bem mais tarde -, mas como uma decorrência lógica do direito de propriedade6, que atinge o ápice da sua proteção com os ideais liberais. Aliás, para o liberalismo clássico, tanto a propriedade quanto a família estão no campo do domínio privado, de maneira que o Estado - e consequentemente a lei - devem abster-se de qualquer interferência. (GREEN, 1988, p. 187).
Por outra ótica, é possível vislumbrar, segundo os liberais, as vantagens da liberdade de testar para a família, na medida em que o testamento seria instrumento “colocado nas mãos dos indivíduos para a prevenção da calamidade privada”7 (BENTHAM, 1843, tradução nossa).
Foi essa perspectiva liberal que deu origem ao Wills Act de 1837, que dispôs, na seção 3 que “todos os bens podem ser alienados por testamento”. (INGLATERRA, 1837). Essa ampla liberdade, entretanto, trazia sérios problemas ao possibilitar a desproteção por completo da família próxima do testador, notadamente seu cônjuge e filhos. Argumentava-se, por exemplo, sobre a injustiça de uma esposa “obediente e leal” ser deserdada em benefício da amante do testador (HEDLUND, 2021, p. 56).
Em 1925, um discurso na Câmara dos Lordes8 chamava a atenção para a necessidade de proteção do cônjuge sobrevivente e dos filhos do de cujus, que poderiam se tornar verdadeiros fardos ao erário. (GREEN, 1988). Nascia, assim, para a lei inglesa, a necessidade de equilibrar o direito de propriedade e a proteção da família.
Após longos e calorosos debates e alguns projetos de lei frustrados, em 1938, o Inheritance (Family Provision) Act, conferiu ao Poder Judiciário a prerrogativa de modificar o testamento deixado pelo de cujus caso os julgadores ficassem convencidos que o testador não deixou provisões razoáveis para a manutenção de uma determinada classe de herdeiros9.
Posteriormente, o Inheritance (Family Provision) Act de 197510, alterou a classe dos legitimados, possibilitando que qualquer filho - independentemente da idade, estado civil ou incapacidade -, qualquer pessoa que o testador tratava como filho na data da morte, e os companheiros, pudessem pleitear uma provisão para sua manutenção. Dessa maneira, qualquer pessoa que tenha sido total ou parcialmente mantida pelo de cujus em período imediatamente anterior à sua morte, passou a ser legitimado para pleitear uma provisão.
A nova lei também concedeu ao julgador ampla liberdade para decidir acerca do percentual da herança que seria destinada ao herdeiro que a reclamasse, de acordo com as necessidades apresentadas no caso concreto.
3 TENSÃO ENTRE LIBERDADE TESTAMENTÁRIA E PROTEÇÃO DA FAMÍLIA
Dentro da dualidade público-privado que ganhou força no contexto da filosofia liberal, o exercício da liberdade somente é possível com a mínima intervenção estatal. Exatamente por isso, qualquer restrição a direito individual por parte do ente público estaria associada à prevenção de danos a terceiros, ou seja, o poder do Estado somente poderá ser exercido legitimamente sobre um membro da comunidade para proteger direitos de outro membro dessa mesma comunidade11.
Durante a vida do indivíduo, as próprias instituições de direito de família tendem a proteger seus familiares e os indivíduos que vivem sob seus cuidados. Após a morte, entretanto, as obrigações decorrentes dos laços familiares e de afeto devem ser cumpridas pelo direito das sucessões. A lei inglesa, apesar de privilegiar a autonomia privada do autor da herança, prevê que o julgador poderá interferir no destino dos bens após a morte do testador, fixando uma provisão razoável para determinados herdeiros. Nesse aspecto, são dois os requisitos para que alguém possa pleitear uma family provision: (i) estar no rol dos legitimados para pleiteá-la; e (ii) não ter recebido uma parte da herança que seja capaz de mantê-lo com dignidade.
Dessa maneira, a doutrina alerta para o fato de que, na vigência da atual Lei de Herança inglesa, “tem sido um risco calculado ‘deserdar’ filhos que venham a necessitar de alimentos futuramente”. (SLOAN, 2016, tradução nossa). Isso porque cada caso de contestação do testamento deve ser analisado individualmente, “baseando-se não apenas nos laços formais que liguem o de cujus a determinada pessoa, mas também por outros motivos, especialmente pela situação social dos titulares”. (ZALUCKI, 2016, tradução nossa).
Historicamente, o número de reivindicações pautadas na Lei de Heranças não é muito alta na Inglaterra. Apesar disso, é possível constatar uma tendência de aumento nos últimos anos, considerando o aumento dos valores mobiliários e a formação de estruturas familiares mais complexas diante do aparecimento cada vez maior de famílias recompostas12. Esse aumento de casos tem se mostrado preocupante, na medida em que faltam padrões objetivos para respaldar o julgador em sua decisão. Exatamente por isso, o caso Ilott v. Mitson - o primeiro a tratar da reivindicação de provisão familiar que chegou ao mais alto Tribunal do Reino Unido - ganhou grande repercussão, visto que, ao tratar sobre as questões específicas do caso, o Supremo Tribunal analisou o funcionamento da Lei de Heranças de forma geral.
No caso, Heather Ilott reclamava os bens deixados por sua falecida mãe, Melita Jackson. Em razão do rompimento da relação entre mãe e filha, ocorrido quase trinta anos antes do falecimento da testadora, Melita havia deixado por testamento todos os seus bens para três instituições de caridade voltadas para os cuidados com animais, com as quais ela não havia tido qualquer contato durante a sua vida. Juntamente com o seu testamento, Melita havia deixado uma declaração, explicando as razões pelas quais não contemplou Heather em seu testamento, informando à filha, por meio de carta, a sua decisão quando da feitura do testamento. Com a morte de Melita, Heather, que na época estava com 44 anos de idade, era dona de casa, mãe de cinco filhos e vivia com a família em uma casa alugada, contestou o testamento, requerendo uma provisão sob o fundamento de que possuía poucos recursos e dependia de benefícios do Estado para sua manutenção. Na primeira instância, o juiz concedeu à Heather uma provisão no valor de £50.000 (cinquenta mil libras) - correspondente a cerca de 10% do patrimônio -, ao considerar que Melita falhou ao não fornecer a ela em seu testamento uma provisão razoável. De acordo com o Juiz sentenciante, a decisão de Melita ao deserdar completamente Heather foi “caprichosa e injusta” e “dura e irracional”13.
Insatisfeita com a decisão, Heather apelou ao Tribunal de Recursos, afirmando que o valor fixado em primeira instância não era suficiente para garantir-lhe a compra da sua casa e uma renda razoável para sua manutenção. No Tribunal, a decisão foi reformada para conceder à Heather o valor de £ 163.000 (cento e sessenta e três mil libras) a título de provisão, o que correspondia a um terço do patrimônio deixado pelo de cujus. Chamados a se pronunciarem sobre o caso, os sete juízes da Suprema Corte reformaram a decisão do Tribunal de Recursos para restabelecer a decisão de primeira instância.
Várias críticas foram direcionadas às decisões proferidas no caso, inclusive aquela proferida pela Suprema Corte. Em matéria para o Daily Mail, intitulada Who are judges to tell us who we can leave our money to in our wills! (Quem são os juízes para nos dizer para quem podemos deixar nosso dinheiro em nossos testamentos!), Max Hastings direciona duras críticas ao ativismo judicial presente no caso, afirmando que
Já estamos com muitos problemas constitucionais por causa do crescimento da lei feita por juízes - ou seja, novas regras para a nossa sociedade criadas não pela vontade democrática do povo britânico expressa no parlamento, mas, em vez disso, através de decisões arbitrárias de membros do judiciário. (HASTINGS, 2015, tradução nossa)
No caso da decisão de primeira instância, o questionamento voltou-se justamente para o fato de o juiz sentenciante ter fixado a título de provisão um valor aleatório, sem estabelecer requisitos objetivos mínimos, o que é capaz de gerar grande insegurança jurídica para casos futuros. Além disso, o fato de Heather não ter dependido de qualquer assistência financeira de sua mãe por quase trinta anos parece ser argumento suficiente para afastá-la da herança de Melita - principalmente diante da inquestionável vontade da testadora de que a filha não se beneficiasse de seus bens -, entretanto, tal argumento não foi levado em consideração pelo Juiz, o que fez nascer uma tortuosa questão jurídica sobre quais medidas um testador poderia adotar para afastar seus filhos adultos da sucessão.
No Tribunal de Recursos, o apelo de Heather para aumentar o valor da provisão fixada em primeira instância foi acolhido. De acordo com o julgamento, o fato de Heather viver com recursos muito básicos supera o fato de ela ser uma pessoa adulta e capaz, que vive independentemente dos recursos de sua mãe há muitos anos. Exatamente por isso, o Tribunal concedeu à Heather uma provisão em valor suficiente para que ela adquirisse a casa onde vivia de aluguel com a família, bem como uma renda suficiente para complementar os benefícios que recebia do Estado.
A decisão criou verdadeiro alvoroço no mundo jurídico, na medida em que representou um grande marco na limitação à liberdade testamentária. Isso porque, embora de acordo com a Lei de Heranças, a competência para fixar a provisão seja do Poder Judiciário - uma vez que não há quotas preestabelecidas na Inglaterra - o valor fixado à título de provisão para Heather foi relativamente alto. Além disso, o argumento do Tribunal de que não havia uma legítima expectativa das instituições de caridade de receber os valores deixados por Melita, considerando a ausência de qualquer relacionamento anterior entre eles, causou grande preocupação para aqueles testadores que, querendo afastar filhos adultos e capazes da sucessão, dispuseram de seus bens em favor de instituições de caridade.
Ao apreciar o caso, a Suprema Corte, reformando a decisão do Tribunal de Recursos para restabelecer a decisão de primeira instância, destacou que a liberdade testamentária continua sendo a regra no direito inglês e que tal regra deve ser excepcionada apenas para conceder provisões financeiras razoáveis aos legitimados que comprovem, inequivocadamente, a necessidade de recebê-las para se manter.
Apesar de ser o primeiro caso sobre a reivindicação de provisão de um filho adulto que chegou à Suprema Corte na Inglaterra, o caso Ilott não foi o primeiro a afastar a vontade do testador em benefício de descendentes maiores e capazes, mesmo diante da desaprovação do falecido em relação ao estilo de vida do herdeiro e do afastamento entre eles. Sloan (2019) destaca que há outros casos, inclusive, mais dramáticos na história inglesa. Para exemplificar, o autor cita o caso Land v Land, em que um filho adulto e capaz foi autorizado a reivindicar uma provisão da herança deixada por sua mãe, mesmo após ter sido acusado pelo homicídio dela por negligência grosseira14.
Essas decisões, entretanto, não refletem a opinião pública, na medida em que uma pesquisa realizada em 2005 apontou que 86% do público pesquisado concordava que os indivíduos deveriam ser financeiramente independentes de seus pais (ROWLINGSON, MCKAY, 2005, p. 14) o que faz com que a decisão do Tribunal no caso Ilott e em tantos outros que conferiram aos filhos adultos provisões pelo simples fato de serem pobres e terem sido deserdados não reflita os anseios sociais.
A preocupação, aliás, com a discricionariedade conferida ao Tribunal para a fixação de provisões em benefício dos legitimados não é nova na Inglaterra. Desde os debates do Projeto de Lei que instituiu o Inheritance (Family Provision) Act de 1975, havia uma grande preocupação do Parlamento com esse poder conferido aos juízes. Ao analisar os sistemas francês e escocês de quotas fixas, Lorde Wilberforce afirmou que
Ainda não estamos preparados para adotar um sistema fixo semelhante ao francês ou ao escocês. Optamos por um compromisso tipicamente inglês, como o encontrado na Lei de 1938, e que agora se encontra neste novo projeto de lei, ao abrigo do qual deixamos aos tribunais a decisão do que é justo, correto e razoável fazer a título de provisão financeira para a família de um homem. Claro, tudo isso soa muito bem, e pode-se usar as palavras "justo e razoável" e "provisão financeira"; e você pode definir uma lista de considerações. Mas gostaria de assegurar a Vossas Senhorias que nem tudo é tão fácil assim. Estou falando como alguém - acho que o único aqui - que realmente administrou a Lei de 1938 e que se sentou no tribunal tentando decidir casos sob ela. É realmente uma jurisdição muito difícil. Em primeiro lugar, tem a desvantagem de premiar as pessoas que podem recorrer a bons consultores jurídicos, preparar um bom processo judicial e fazer uma boa apresentação perante o tribunal. Certamente incentiva disputas entre famílias. É também uma jurisdição muito difícil de ser exercida pelo juiz. Apresentamos, no § 3º deste Projeto de Lei, toda uma lista de considerações que visam orientar o juiz. Mas posso assegurar a Vossas Senhorias que, quando alguém está sentado ali e tentando decidir o que é justo e certo para um homem em particular, de cuja história de vida se sabe pouco, o que é justo e correto fazer em relação à sua esposa divorciada, sua viúva, uma possível amante, filhos ilegítimos - decidir como distribuir os méritos e deméritos entre essas pessoas é doloroso e extremamente difícil. Não estou de modo algum certo de que se consiga, em muitos casos, chegar ao resultado certo. Tudo o que se pode fazer é fazer o melhor e esperar que o resultado seja o que deve ser. Mas não é uma solução ideal. Não se torna ideal usando palavras como "equitativo", "razoável", "justo" e assim por diante. A dificuldade de conseguir um bom resultado continua muito intensa15 (tradução nossa).
O caso Ilott, dessa maneira, ganhou grande relevância no direito inglês, ao escancarar a insuficiência da atual Lei de Heranças para a resolução de casos em que há contestação do testamento em razão de um pedido de provisão feito por um dos legitimados, principalmente quando se trata de descendentes adultos plenamente capazes.
A questão, aliás, foi brilhantemente debatida por Lady Hale no julgamento do caso Ilott. Após apontar diversas pesquisas realizadas na Inglaterra acerca da sucessão de descendentes, que indicavam para uma variedade de opiniões da sociedade, a magistrada destacou que “essa gama de opiniões pode muito bem ser compartilhada por membros do judiciário que devem decidir essas reivindicações”16, o que implicaria muitas decisões conflitantes sobre reivindicações da mesma natureza. Destaca, também, que a comissão que discutiu a Lei de 1975 considerou limitar o direito de reivindicar provisões apenas aos adultos e às crianças que fossem efetivamente dependentes do de cujus na data da morte, mas afastou essa possibilidade ao considerar que “um filho adulto, que é totalmente autossustentável no momento da morte dos pais, pode repentinamente deixar de sê-lo”17, razão pela qual, foi dado ao julgador o poder de “distinguir entre o que merece e o que não merece”18.
O principal problema, entretanto, é definir, objetivamente, qual herdeiro merece receber provisão e qual não merece. No julgamento do caso Ilott, Lady Hale deixa muito clara a difícil posição do juiz ao julgar casos como esse. Isso porque, segundo ela aponta, o magistrado teria três opções: (i) afastar por completo o pedido de Heather; (ii) dar uma porção considerável do patrimônio deixado por Melita para Heather - como fez o Tribunal de Recursos - diminuindo, assim, a responsabilidade do erário de arcar com as despesas da pleiteante; (iii) fixar um valor total a ser conferido à Heather, calculado com base em uma renda anual mínima por determinado prazo19. O juiz de primeiro grau, escolheu a terceira opção, o que foi mantido pela Suprema Corte, mas diante da imprevisão da Lei quanto a parâmetros mínimos capazes de orientar o magistrado em julgados como esse, qualquer posição se tornaria facilmente defensável, a depender da inclinação do juiz pela liberdade testamentária ou pelo dever de solidariedade familiar20, sendo essa imprecisão dos critérios de fixação da provisão a grande crítica atualmente direcionada à Lei de Heranças na Inglaterra, principalmente por possibilitar decisões conflitantes em casos semelhantes.
4 SOLIDARIEDADE E RECIPROCIDADE: QUAL FAMÍLIA A LEI PROTEGE?
Conforme já se afirmou, na Inglaterra, há ampla liberdade testamentária, o que significa que o autor da herança poderá dispor do seu patrimônio como lhe aprouver. Dessa maneira, os filhos e demais parentes que a lei considera como herdeiros necessários nos países que adotam o sistema de legítimas, poderão ser deserdados, bastando que, para isso, o autor da herança teste todos os seus bens sem contemplá-los. A regra, portanto, é a da prevalência da autonomia, independentemente das razões que levem o testador a excluir seus herdeiros legitimários da herança21. É permitido, entretanto, que determinados herdeiros possam solicitar, com base no Inheritance (Provision for Family and Dependants) Act, de 1975, uma provisão que garanta uma vida digna.
Essa provisão é garantida, tanto à família decorrente do laço matrimonial e de parentesco quanto às pessoas que, antes do falecimento, eram mantidas, total ou parcialmente, pelo de cujus. A regra parece atender, tanto à proteção da família quanto à boa-fé objetiva, na medida em que visa a proteger, para além dos laços de parentesco e conjugalidade, os laços de afeto consolidados no tempo. Apesar disso, ao aumentar o número de legitimados para pleitear uma parte da herança para sua manutenção, a lei limita a liberdade testamentária do autor da herança para dispor de seus bens como achar adequado.
Atualmente, são partes legítimas para requerer a Family provision, (i) o cônjuge ou companheiro do falecido; (ii) o ex-cônjuge ou ex-companheiro do falecido, desde que não tenha contraído novo casamento ou conviva em união estável; (iii) os filhos do falecido; (iv) qualquer pessoa que tenha sido tratada como filho pelo falecido; (v) qualquer pessoa que estivesse sendo mantida, total ou parcialmente, pelo falecido em momento imediatamente anterior à sua morte22.
Há quem defenda, que ao elastecer o rol de legitimados para reclamar direito a uma provisão, a Lei de 1975 parece atender a um interesse social ao impor que cada indivíduo assuma as responsabilidades pelas famílias - e pelos laços de afeto - que criaram23.
De qualquer forma, uma pesquisa realizada na Inglaterra, aponta para o fato de que há um alto nível de expectativa populacional no que tange à percepção de herança. Entre os mais jovens, a expectativa de receber qualquer herança é maior do que entre os mais velhos. Essa diferença de expectativa entre gerações, segundo o estudo, parece estar associada à existência de pais vivos, na medida em que 90% dos entrevistados que tinham a expectativa de herdar algo, esperavam fazê-lo dos pais. (ROWLINGSON, MCKAY, 2005)
Diante dessas informações, é possível aferir que a ideia de herança, mesmo nas sociedades que instituíram a liberdade testamentária como regra, ainda está muito relacionada aos laços de sangue, sendo esse um fator muito importante para a opinião pública na hora de apontar quais pessoas deverão ser chamadas a suceder o falecido. Apesar disso, a pesquisa deixa claro que, na Inglaterra, o princípio da liberdade testamentária está totalmente consagrado, tanto é assim que há uma relutância entre as pessoas pesquisadas em utilizar o termo “esperar” receber uma herança, porque há uma visão consagrada de que naquele país não há um direito automático sobre a propriedade dos bens deixados pelo de cujus. (ROWLINGSON, MCKAY, 2005)
Como se pode verificar, na Inglaterra os ascendentes e os irmãos não são uma categoria independente de legitimados para requererem uma provisão. Aliás, quanto aos ascendentes, mesmo nos países que adotaram o sistema de legítima, há uma tendência de abolição dessa classe como herdeiros necessários. A principal justificativa para a exclusão, é que os pais - e também os irmãos - não costumam ser dependentes do de cujus (DOUGLAS, 2013). Entretanto, é preciso atentar-se para o fato de que, com o envelhecimento cada vez maior da população, somado ao fato de que as aposentadorias e pensões muitas vezes são insuficientes para suprir necessidades básicas dos pais idosos, a sua retirada do rol de herdeiros necessários - ou, no caso da Inglaterra, a sua não contemplação como legitimado para requerer uma provisão familiar - rompe com o próprio fundamento do direito sucessório de proteção da família.
4.1 Cônjuge/Companheiro
No que tange à sucessão do cônjuge/companheiro, a lei determina que deverão receber uma provisão adequada, ou seja, trata-se da única classe de herdeiros com legitimidade para reivindicar uma provisão que não precisa comprovar necessidade.
Há, pois, um privilégio instituído pela lei em favor dos cônjuges/companheiros, na medida em que, enquanto todos os demais herdeiros farão jus a uma provisão razoável para sua manutenção, apenas se comprovada a sua necessidade efetiva, ao cônjuge/companheiro é garantida uma provisão financeira razoável independentemente de ser ela necessária ou não para sua manutenção24. Essa provisão, levará em consideração a idade do cônjuge/companheiro sobrevivo, o tempo de duração do casamento com o de cujus, a contribuição do cônjuge/companheiro para a formação do patrimônio familiar25 e o valor que o cônjuge/companheiro teria direito de receber se, no dia do falecimento do de cujus, o casamento terminasse pelo divórcio e não pela morte. (REED, 2006)
A regra tem recebido muitas críticas26, visto que, muitas vezes, o requerimento de provisão, com base na Lei de herança de 1975, mesmo para casamentos muito curtos, tem sido mais benéfico ao cônjuge/companheiro do que as regras aplicáveis em casos de divórcio.
No julgamento do caso Fielden & Graham v Cunliffe, em que uma esposa, casada com o de cujus há apenas um ano, pleiteava provisões financeiras razoáveis sob o argumento de que o que havia sido deixado para ela em testamento, não era suficiente para a sua manutenção - incluindo-se moradia e renda -, o Tribunal de Recursos deferiu o pedido para conceder a ela cerca de 46% (quarenta e seis por cento) do patrimônio deixado pelo falecido. No julgamento, o Tribunal pareceu entender que, em um casamento curto terminado pela morte, o cônjuge sobrevivo deve ser mais amparado do que em um casamento curto rompido pelo divórcio. Nos termos do julgamento:
O primeiro ponto a destacar é que, embora seja um casamento curto, a Srª. Cunliffe celebrou-o com base no fato de que suas obrigações para com o marido eram de duração indefinida e podiam assumir todas as formas. Ele era consideravelmente mais velho do que ela. Poderia ter esperado que ela passasse vários anos cuidando de um inválido. Em suma, acho correto abordar o caso com base no fato de que, ao se casar com o falecido, a Srª. Cunliffe, como a Srª. Miller (ver Miller v Miller 2005 EWCA Civ 984, 2005 2 FCR 713) tinha o direito de ter o que Singer J descreveu no último caso como “uma expectativa razoável de que sua vida como mulher solteira novamente não precisasse voltar ao que era antes do casamento; (ver 2005 2 FCR 713 em 724, parágrafo 41) e que ela poderia esperar segurança financeira para o resto da vida”27 (tradução nossa).
Dessa maneira, a interpretação do Tribunal parece ser a de que, uma vez que a culpa pela morte de um dos cônjuges não pode ser imputada ao outro, o pequeno tempo de duração do casamento não parece ter tanta relevância para fins de concessão de herança quanto teria para fins de divórcio, ocasião em que o casamento seria dissolvido pela vontade das partes.
4.2 Filhos Menores
Assim como no caso do cônjuge sobrevivo, a Lei de Herança de 1938 - a primeira a tratar acerca do dever do testador de deixar provisão razoável para determinados herdeiros - preocupou-se com a proteção dos filhos menores deixados pelo de cujus.
Em 2021, um interessante caso envolvendo pedido de provisão familiar para filhos menores foi julgado pelo Supremo Tribunal da Inglaterra. No caso, o falecido havia deixado a totalidade dos bens para seus pais e sua companheira, com quem havia vivido nos últimos sete anos, afastando seus filhos da sucessão. Os filhos, que na época do falecimento contavam com 17 e 18 anos de idade, moveram uma ação, com base na Lei de Herança de 1975, para solicitar uma provisão financeira razoável para a sua manutenção.
A justificativa apresentada pelo falecido, para não deixar qualquer bem aos filhos, pautava-se no afastamento entre eles, de maneira que em uma carta deixada juntamente com o testamento, o de cujus afirmou que não desejava que os filhos fizessem parte da sua família. Isso porque, desde o divórcio entre os pais, os filhos mantiveram contato com o falecido apenas nos três primeiros anos posteriores ao rompimento do vínculo conjugal. Após esse período, o contato foi completamente rompido. Além disso, após o divórcio, o falecido não havia pagado pensão alimentícia para os filhos menores, que passaram a ser integralmente mantidos pelo marido da mãe.
Apesar disso, o Supremo Tribunal reconheceu que o testamento falhou ao não conceder provisões razoáveis para os filhos menores do falecido. A decisão, não afastou o fato de os filhos serem mantidos pelo padrasto por longa data e jamais terem recebido alimentos por parte do de cujus após o divórcio - fator que, segundo reconheceram, deve impactar no valor da provisão -, entretanto, tal fato, por si só, não foi tido como suficiente para afastar o direito dos filhos de pleitearem uma provisão.
Na fixação do quantum, o Tribunal levou em consideração as despesas dos filhos com escola, moradia, despesas com carro, aconselhamento psicológico, bem como custos de vida até os 25 anos de idade.
4.3 Filhos Adultos
Historicamente, os filhos adultos só ganharam o direito de requerer uma provisão com a Lei de 1975. Antes disso, apenas os filhos menores tinham legitimidade para requererem a provisão. Talvez por isso, mesmo atualmente, os descendentes do de cujus que são maiores e capazes não têm obtido muito sucesso ao reivindicarem provisões.
Nos termos do disposto no Inheritance (Family provision) Act, a reivindicação de uma provisão por parte desses legitimados deverá estar pautada na efetiva necessidade. A seção 3 da Lei, traz uma série de fatores que devem ser considerados pelo Tribunal para fixar a provisão em benefício dos filhos do de cujus, o que dificulta sobremaneira o sucesso das reivindicações feitas por descendentes adultos e capazes. Isso porque, nos países que adotam a liberdade para testar, há uma tendência dos Tribunais, em reivindicações dessa natureza, de se perguntarem por que os filhos adultos deveriam receber alguma provisão da herança quando eles mesmos são capazes de se sustentar.
A questão, aliás, ficou muito bem definida, recentemente, por ocasião do julgamento do caso Miles v Shearer29. Na decisão, o Supremo Tribunal não reconheceu o direito de duas filhas - uma de 39 e outra de 40 anos de idade - de obterem provisões, considerando que não restou configurada a necessidade de serem mantidas pelos bens do espólio.
Apesar das alegações das filhas de que eram mantidas pelo pai, o Tribunal reconheceu que o de cujus não tinha qualquer obrigação com as requerentes no momento da morte, principalmente considerando que haviam recebido vultuosas doações em dinheiro do falecido em vida, ocasião em que foram alertadas pelo pai de que não deveriam esperar dele mais nenhuma assistência financeira. Além disso, o Tribunal destacou em sua decisão que “embora as requerentes possam ter desfrutado de um estilo de vida abastado até os vinte e poucos anos, quando seus pais se divorciaram, elas não tinham o direito de esperar esse padrão de vida indefinidamente (...)”30 (tradução nossa).
4.4 Pessoas que Tenham Sido Tratadas como Filhos pelo Falecido e Pessoas Mantidas pelo Falecido Imediatamente Antes da Sua Morte
Tradicionalmente, o rol de pessoas legitimadas para requererem uma parcela da herança deixada pelo de cujus é limitado à sua família próxima. Essa é constituída pelas relações de parentesco e conjugalidade. Ocorre que, na Inglaterra, a compreensão de família para fins sucessórios - ou seja, de indivíduos legitimados para requererem uma provisão familiar - “emana da importância atribuída ao que as pessoas 'fizeram', como elas 'se comportaram' umas com as outras e o que eles ‘devem’ um ao outro, em vez de que posição ocupam dentro de uma estrutura familiar (formal)”. (DOUGLAS, 2013, tradução nossa).
Exatamente por isso, a inclusão dos enteados como pessoas legitimadas para requererem uma provisão familiar, demonstra o “reconhecimento de um modelo de família atualizado que pode abranger crianças que não são ‘próprias’ do falecido, mas para quem ele ou ela se colocou na posição social ou psicológica de pai ou mãe”. (DOUGLAS, 2013, tradução nossa)
Da mesma forma, a inclusão de pessoas mantidas pelo de cujus anteriormente à sua morte como legitimadas para requererem uma provisão a cargo da herança demonstra a intenção de o legislador conferir proteção para aqueles que possam ter cuidado por anos do falecido, muitas vezes sem nenhuma remuneração, mas tenham se tornado financeiramente dependente dele31.
De acordo com Gillian Douglas (2013), essa categoria de legitimados é a que “representa mais fortemente o reconhecimento de que as reivindicações podem ser feitas não com base na posição dentro de uma estrutura familiar, mas em virtude do comportamento familiar e das práticas compartilhadas entre o falecido e o requerente” (tradução nossa). Percebe-se, dessa maneira, que a Lei visa proteger não a família como instituição, mas as pessoas que compõem o núcleo próximo ao de cujus, resguardando, assim, a confiança depositada nas relações estabelecidas entre essas pessoas e o falecido.
5 O QUE É PROVISÃO RAZOÁVEL?
A provisão familiar não é criação inglesa. Ao contrário, no sistema de Common Law, o instituto foi criado pelo New Zealand Testator's Family Maintenance Act, de 1900, visando impedir que o testador deixasse sua viúva e filhos em completo abandono após a sua morte. Foi um marco histórico na proteção da família próxima do de cujus. (SLOAN, 2019). A provisão poderá ser estabelecida em montante fixo, na forma de pagamentos periódicos, uma transferência de propriedade, ou outras formas que atendam às necessidades do pleiteante.
Atualmente na Inglaterra, uma das grandes preocupações relacionadas à provisão familiar, desde o Inheritance (Family Provision) Act, de 1938, refere-se ao seu valor. Isso porque a Lei de Heranças é vaga ao tratar do assunto, não estipulando uma provisão automática, em quota fixa, conferindo ao julgador o poder de fixar, no caso concreto, uma provisão razoável. Com a falta de critérios objetivos mínimos para a fixação, é possível que determinados juízes tendam a beneficiar o solicitante e outros a privilegiar a autonomia privada do testador. (GOLD, 1938).
De acordo com Douglas, o rol de requisitos a serem observados pelo juiz ou Tribunal quando da fixação da provisão familiar razoável
(...) é, em um nível, neutra de valor. Não diz ao tribunal se as necessidades financeiras do requerente devem pesar mais do que os recursos de outros beneficiários; não sugere que as obrigações devidas pelo falecido superem a conduta do requerente em relação a ele ou ela. Por outro lado, é apenas valorativo até certo ponto, pois poderia ter incluído outros fatores nos quais valores diferentes estariam implícitos: por exemplo, poderia ter referido a proximidade (definida em termos familiares ou emocionais) da relação entre o requerente e o falecido, ou na medida em que o requerente mantinha o falecido ou prestava outro tipo de apoio. (DOUGLAS, 2013, p.232, tradução nossa).
Nesse aspecto, no caso Ilott v Matson a Suprema Corte fixou diretrizes mínimas para fins de definir o que é uma provisão razoável. De acordo com Lorde Hughes, o conceito de manutenção é muito amplo, mas “não pode se estender a toda e qualquer coisa que seria desejável para o requerente ter. Deve importar provisões para atender às despesas diárias da vida”32 (tradução nossa). Apesar disso, a Corte foi omissa em fixar critérios objetivos a serem observados pelo magistrado no momento da fixação do quantum, fazendo, assim, com que a insegurança que circunda o tema permaneça.
6 CONCLUSÃO
O sistema sucessório inglês, é prova de que é possível a coexistência da liberdade testamentária com a proteção da família em um mesmo sistema jurídico, de maneira a assegurar a autonomia privada do testador e, ao mesmo tempo, promover a proteção sucessória da família. Da mesma forma, ao estabelecer que outras pessoas mantidas pelo de cujus em momento anterior à sua morte também possuem legitimidade para requerer a provisão familiar, a lei inglesa promove a proteção da boa-fé objetiva, consolidando princípio fundante do Direito Privado. Entretanto, mesmo naquele ordenamento jurídico, o equilíbrio entre o direito do de cujus de dispor livremente de seus bens para depois da morte e o direito dos legitimados de requererem uma provisão familiar para fins de proteção da família próxima e das relações obrigacionais contraídas pelo falecido em momento imediatamente anterior à sua morte ao promover a manutenção de terceiros mostra-se extremamente difícil. Isso porque, se por um lado, nos sistemas que adotam uma quota indisponível da herança, a crítica que se faz é que uma quota prefixada pela lei é incapaz de promover um equilíbrio entre a liberdade do de cujus e a proteção da família, na medida em que o valor poderá ser muito alto para atender as necessidades apresentadas pelo herdeiro legítimo - ocasião em que haveria injustificável limitação ao direito de disposição patrimonial para depois da morte do testador -, ou poderá ser muito baixo diante das necessidades do herdeiro - situação que não atenderia à ratio da lei de proteger a família próxima do de cujus, por outro lado, no sistema inglês, em que se adota a ampla liberdade testamentária, restrita, apenas, pelo pedido de provisão por uma classe determinada de herdeiros definida em lei, essa restrição, por meio da fixação da quota da herança que será deferida ao herdeiro que demonstrar a necessidade, é imposta pelo Poder Judiciário, que deverá analisar, no caso concreto, qual valor atenderia às necessidades do pleiteante.
Nesse aspecto, considerando que a lei de herança inglesa não dispõe acerca de parâmetros objetivos mínimos para o direcionamento do julgador quando da fixação da provisão familiar, de maneira que há ampla discricionariedade por parte do juiz, ora as decisões proferidas poderão privilegiar a autonomia privada do testador, em prejuízo do pleiteante da provisão familiar, ora poderão ser tendentes a beneficiar o pleiteante em prejuízo do testador - de maneira que, em verdadeira afronta ao princípio da liberdade testamentária, o julgador atuaria como um verdadeiro revisor da vontade manifestada pelo de cujus, reescrevendo o seu testamento.
Importante dizer que, apesar de a primordial diferença entre os sistemas de civil law e commom law residir justamente nas principais fontes das decisões judiciais, o estabelecimento de critérios objetivos mínimos para aferição da possibilidade de afastamento da vontade do de cujus para atender às necessidades daqueles legitimados para requererem uma provisão familiar, na própria lei de herança, em nada contrariaria a natureza do common law inglês. Isso porque, apesar das diferenças, há, cada vez mais, uma aproximação dos dois sistemas diante da complexidade da vida moderna, que exige ora um certo ativismo judicial nos sistemas de civil law ora o aumento da produção legislativa nos sistemas de common law.
Nesse aspecto, ao analisar o problema apresentado, a solução que se mostra mais razoável, na busca de um equilíbrio entre a liberdade testamentária e a proteção da família, seria que a legislação fixasse parâmetros objetivos mínimos para que o juiz, na análise do caso concreto, pudesse se orientar, evitando-se, assim, uma grande discrepância entre decisões proferidas por julgadores diferentes em casos semelhantes, com vistas a assegurar a segurança jurídica que se espera das decisões judiciais. Tais parâmetros, poderiam ter como base, regras já consolidadas em outros ordenamentos jurídicos, tais como o binômio necessidade-possibilidade, utilizado pelo direito brasileiro para fins de fixação da verba alimentar.
Mais uma vez, destaca-se que a diferença entre as famílias jurídicas que regem o direito brasileiro e o direito inglês, não representa qualquer óbice para a implementação dos parâmetros legais mínimos para a fixação da provisão familiar conforme sugerido, na medida em que, em primeiro lugar, conforme demonstrado, há uma lei que estabelece regras sobre a possibilidade de requerimento de provisão familiar em favor de determinados legitimados, bastando uma simples alteração legislativa para acrescer regras mínimas capazes de direcionar o julgador quando da análise do caso concreto; em segundo lugar, conforme afirmado, os sistemas de common law e civil law, utilizados de maneira pura, tem se mostrado ineficazes, razão pela qual, cada vez mais, é possível verificar uma aproximação entre eles na tentativa de preencher as lacunas que se verificam diante da complexidade das situações jurídicas que se apresentam na atualidade.
Não restam dúvidas de que a solução apresentada também é passível de críticas, entretanto, é a que se mostra mais razoável diante da consolidação do princípio da liberdade testamentária e da obrigação de proteção dos vulneráveis no contexto do Estado Democrático de Direito. Como se afirmou, embora o número de casos judiciais de contestação de testamentos tenha tido significativo aumento nos últimos anos na Inglaterra, tal fato não se mostra um problema, o que demonstra a eficiência do sistema de liberdade testamentária e afasta o argumento de que ela representaria um aumento de demandas judiciais. Isso se deve, principalmente, ao fato de que, em regra, os membros da família são leais uns com os outros, sendo a situação mais comum aquela em que os testadores beneficiam os seus herdeiros mais próximos, com os quais mantêm laços de afeto. A não contemplação desses parentes próximos, que fariam jus a uma porção da herança em um sistema de legítima, é uma verdadeira anomalia e pode ser facilmente revista pelo julgador dentro de parâmetros objetivos prefixados pela lei.