Sumário: 1. Introdução; 2. A escolha pelo modelo societário de responsabilidade limitada; 3. A responsabilidade limitada como elemento de alocação de riscos, e o benefício de ordem; 4. O esgotamento patrimonial da sociedade, como fator que necessariamente antecede a verificação da responsabilidade limitada; 5. A falência da sociedade limitada, e a concretização da proteção patrimonial dos sócios; 6. Considerações Finais; 7. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A responsabilidade limitada dos sócios é um princípio fundamental no direito empresarial, que desempenha um papel crucial na promoção da livre iniciativa, um dos pilares da função social da empresa.
A relação entre a responsabilidade limitada dos sócios, o benefício de ordem e o princípio constitucional da livre iniciativa, por abranger aspectos legais, econômicos e sociais, merece, por isso, um estudo que se dedique a justificar a importância desses temas, orientando a sua aplicação.
Neste artigo, temos por objetivo demonstrar a necessidade de se compatibilizar a devida proteção patrimonial dos sócios, com a necessária transparência que deve sempre estar presente nas relações negociais, de modo a concretizar a um só tempo o estímulo ao empreendedorismo e a imprescindível segurança jurídica.
A análise parte da premissa da inequívoca distinção entre sociedade empresária, enquanto pessoa jurídica, e a pessoa dos sócios que a integram, especialmente quanto à responsabilidade patrimonial destes, pelas obrigações sociais contraídas perante terceiros.
O alicerce legal para que se defenda o robustecimento da responsabilidade limitada está há muito construído, estabelecendo bases sólidas para que possa afirmar, como adiante se demonstrará, que a atividade empresária pode ser exercida com uma bem calculada alocação de riscos, de modo a evitar a indesejada vulneração dos patrimônios pessoais dos empreendedores, especialmente quando tal exercício se der sob o amparo de uma sociedade que lhes garanta responder limitadamente.
O Presente trabalho propõe, para a solução do problema de delimitação da responsabilidade dos sócios, que se compatibilize a necessária idoneidade das relações mantidas com sociedades empresárias limitadas, com a devida proteção que as quotas de responsabilidade limitada atribuem aos seus titulares, evitando que se confundam as responsabilidades da pessoa jurídica (sociedade empresária limitada) para com terceiros que com ela contratem, com a eventual (e excepcional) responsabilização de seus integrantes por dívidas dessa mesma sociedade. Como solução, este estudo propõe que se imprima a devida interpretação teleológica aos dispositivos legais que definem a separação patrimonial e de responsabilidade entre sócios e sociedade. Para tanto, iniciaremos o estudo abordando as razões que motivam a escolha pelo desenvolvimento da atividade societária através do modelo da sociedade limitada, ante o claro apelo da delimitação da prudente alocação de riscos, e o benefício de ordem a garantir a distinção de responsabilidade entre os sócios e a sociedade, quanto às obrigações impostas à pessoa jurídica. Seguiremos estudando os reflexos do esgotamento patrimonial da sociedade, como fator que necessariamente antecede a verificação da responsabilidade limitada, os efeitos da falência de uma sociedade limitada juntos aos seus sócios, e a proteção que a lei os oferece. A pesquisa documental, predominantemente doutrinária e jurisprudencial, ao final nos revelará que o sistema jurídico brasileiro foi claramente construído para proporcionar um campo fértil e seguro para que bem se desenvolva a atividade empresarial, especialmente pelo modelo da sociedade limitada, em prestígio ao princípio constitucional da livre iniciativa.
2 A ESCOLHA PELO MODELO SOCIETÁRIO DE RESPONSABILIDADE LIMITADA
Comumente, a simples adesão ao modelo de uma sociedade limitada, faz concluir que os sócios estão escudados, em certos limites previamente definidos, contra possíveis investidas de terceiros credores da sociedade, quando esta já não mais honrar os seus haveres.
Essa limitação de responsabilidade começa a ser definida na constituição da sociedade por uma operação denominada subscrição, em que todos os sócios individualmente comprometam-se a contribuir com dinheiro ou bens para a formação do capital social dessa nova pessoa em criação, e em montante que voluntariamente definem e se obrigam a investir2.
Segue-se à subscrição, a obrigatória operação de integralização, com o adimplemento e a efetiva transmissão dos valores ou bens subscritos à sociedade3, como bem esclarece Vera Helena de Mello Franco:
O capital social pode ser visto como configuração jurídico contábil ou como configuração patrimonial financeira. Sob o primeiro aspecto, corresponde ao montante das contribuições do sócio no ato da constituição da sociedade. Sob o segundo, equivale ao patrimônio social, como complexo de direitos e obrigações, relações jurídicas ativas e passivas, ocorrentes durante a gestão, e, destarte, sujeitas às flutuações e transformações determinadas pelas exigências e pelos efeitos da realidade econômica (FRANCO, 2012, p. 260).
A integralização assim concretiza a formação do capital social, determina a quantidade de quotas de cada sócio, e principalmente define a limitação da responsabilidade de cada integrante ao montante integralizado.
Figurativamente, a integralização levada a efeito na formação do capital social, pode ser comparada a uma aposta realizada numa mesa de jogo de azar, quando um dos apostadores, a despeito de eventualmente deter uma grande quantidade de “fichas” (seu patrimônio total), destina apenas parte determinada delas para o risco calculado da aposta. Ganhando, o risco foi nulificado, e poderá haver lucro, mas perdendo, o desfalque não ultrapassará a exata quantia que, à vista de todos os demais apostadores, foi objeto da aposta.
Portanto, na sociedade limitada, é o valor efetivamente integralizado que serve de elemento limitador do risco assumido pelo sócio, não sendo possível, em tese, que um sócio, ante o insucesso da sua empresa, tenha um prejuízo maior do que o valor que integralizou, seja na constituição da sociedade, ou em posteriores operações de aumento de capital.
Sem dúvida, a alocação de riscos, delimitando-os na integralização de capital, serve de claro incentivo ao empreendedor, como observa Fábio Ulhoa Coelho:
De fato, poucas pessoas - ou nenhuma - dedicar-se-iam a organizar novas empresas se o insucesso da iniciativa pudesse redundar a perda de todo o patrimônio, amealhado ao longo de anos de trabalho e investimento, de uma ou mais gerações. A limitação da responsabilidade do empreendedor ao montante investido na empresa é condição indispensável, na ordem capitalista, à disciplina da atividade de produção e circulação de bens e serviços. (COELHO, 2012, p. 434).
E como tais operações, de subscrição e integralização de capital, são levadas a efeito por simples contrato, que após o obrigatório registro em órgão próprio, torna-se de conhecimento público, assim passa a ser oponível a terceiros que, dada a publicidade, não poderão alegar o seu desconhecimento.
A eficácia da limitação de responsabilidade nasce da regular publicidade, decorrente do registro do contrato social da sociedade, como um anúncio real, feito pelo arauto em praça pública: “saibam todos que contratarem com a esta sociedade, que os sócios já limitaram a sua responsabilidade, e alocaram os riscos pessoais no exato montante que integralizaram, assim não respondendo para além de tais valores”.
Obviamente, temas marginais como a confusão patrimonial entre o patrimônio dos sócios e da sociedade, o abuso da personalidade jurídica, fraude etc.4, podem interferir nessa lógica, permitindo que os credores de uma sociedade personificada possam suplantar a barreira da personalidade jurídica, e da limitação de responsabilidade, buscando a satisfação dos seus créditos diretamente no patrimônio dos sócios, pela via da desconsideração da personalidade jurídica, assim definida por Roberta Tarpinian de Castro:
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem como ponto de partida a quebra da autonomia patrimonial e, por isso, somente existe em tipos societários que gozam desse benefício. As pessoas jurídicas que tem a personalidade jurídica desconsiderada são as de responsabilidade limitada, pois as de responsabilidade ilimitada não tem autonomia patrimonial. Os integrantes de uma sociedade de responsabilidade limitada sabem de antemão que, em caso de insolvência da sociedade, ainda que não tenham praticado qualquer ato fraudulento, terão o patrimônio atingido, ainda que de maneira subsidiária. (TARPINIAN DE CASTRO, 2019, p. 46)
Outrossim, enquanto o capital social não estiver plenamente integralizado por todos os sócios, a limitação não se operará sobre o montante pendente de integralização, sendo por tal solidária e ilimitadamente responsáveis, além do sócio inadimplente, os demais, ainda que tenham integralizado os seus respectivos quinhões do capital social, como expressamente adverte o caput do artigo 1.052 do Código Civil, in fine.
No dizer de Fazzio Junior: “a sociedade pode contratar e se obrigar; a sociedade tem individualidade: não se confunde com a pessoa natural dos sócios que a constituem; tem patrimônio próprio que responde ilimitadamente por seu passivo; (FAZZIO JUNIOR, 2013, p. 115).
De todo modo, a partir da regular constituição da sociedade limitada, os sócios passam a gozar de certa proteção patrimonial, o que, por certo, é imprescindível, considerando os naturais riscos decorrentes da atividade empresarial.
Justamente por isso, pela limitação da responsabilidade dos sócios ao montante integralizado ou realizado, é que a sociedade limitada e as sociedades por ações5, acabam protagonizando o cenário societário brasileiro.
Vale lembrar, que a limitação da responsabilidade dos sócios, para além de um importante anteparo, concretiza o princípio constitucional da Livre Iniciativa, servindo de relevante fator de incremento ao empreendedorismo6.
Poder-se-ia alegar que a limitação da responsabilidade dos sócios, tal como exposta, poderia servir de elemento de fragilização ao bom trato das relações negociais, ou até mesmo de desestímulo ao crédito, já que os sócios, uma vez protegidos pela limitação da responsabilidade, poderiam dela se valer para indevidamente obter vantagens perante os credores da sociedade.
Todavia, e como já advertido, em qualquer cenário de abuso, sempre será cabível a desconsideração da personalidade jurídica, assim impondo aos sócios responder, sem a aludida limitação das suas quotas, pelas obrigações inadimplidas da sociedade.
Justifica-se, portanto, segundo Fábio Ulhoa Coelho, a sistemática de submeter as perdas dos sócios ao limite do investimento, transferindo o prejuízo para os credores da sociedade, na medida em que ao direito positivo cabe, por meio do controle dos riscos, motivar os empreendedores na busca de novos negócios (COELHO, 2012, p. 49).
Cumpre observar, contudo, que a limitação de responsabilidade dos sócios ora em apreço, refere-se tão somente às obrigações negociais comuns da sociedade, excetuadas as de natureza trabalhista e fiscal, que, dadas as suas especificidades e regras próprias, excepcionam os efeitos definidos no mencionado artigo 1.052 do Código Civil, atribuindo responsabilidade primária aos sócios de uma sociedade limitada, por vezes, solidária.
3 A RESPONSABILIDADE LIMITADA COMO ELEMENTO DE ALOCAÇÃO DE RISCOS, E O BENEFÍCIO DE ORDEM
Já delineados os contornos da responsabilidade limitada dos sócios por dívidas negociais da sociedade limitada, e enfatizada a sua importância, a atenção é volvida para o momento em que os sócios poderão dela se valer, especialmente quando diretamente confrontados pelos credores da sociedade a que pertencem. É nesse momento que uma outra garantia vem ao socorro dos sócios de uma sociedade regularmente constituída, o benefício de ordem previsto no artigo 1.024 do Código Civil7:
Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.
O instituto do benefício de ordem, tal como bem prevê o sobredito dispositivo legal, é o primeiro anteparo de que dispõem sócios, para se escusarem de responder com os seus bens particulares por dívidas que a sociedade contraiu. Afinal, como bem pontua Fábio Ulhoa Coelho:
É em razão da personalização das sociedades empresárias, os sócios têm, pelas obrigações sociais, responsabilidade subsidiária. Isto é, enquanto não exaurido o patrimônio social, não se pode cogitar de comprometimento do patrimônio do sócio para a satisfação de dívida da sociedade. (...) Se todo o patrimônio particular dos sócios pudesse ser comprometido, em razão do insucesso da sociedade empresária, naturalmente os empreendedores adotariam posturas de cautela, e o resultante poderia ser a redução de novas empresas, especialmente as mais arriscadas. (COELHO, 2012, p. 49-50).
Na verdade, um olhar mais atento mostrará que o benefício de ordem nada mais é do uma forma de defesa a ser oposta pelo sócio eventualmente demandado a responder com o seu próprio patrimônio por dívidas da sociedade, antes que os credores busquem a satisfação dos seus créditos diretamente no patrimônio da real devedora, a sociedade empresária.
No exato mesmo sentido, revelando o caráter processual de defesa do benefício de ordem, o artigo 795, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil, assim dispõe8:
Art. 795. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei. § 1º O sócio réu, quando responsável pelo pagamento da dívida da sociedade, tem o direito de exigir que primeiro sejam excutidos os bens da sociedade. § 2º Incumbe ao sócio que alegar o benefício do § 1º nomear quantos bens da sociedade situados na mesma comarca, livres e desembargados, bastem para pagar o débito.
Logo se percebe, pois, que o benefício de ordem não serve a exonerar os sócios quanto a eventualmente terem que responder por dívidas da sociedade, mas apenas determina uma ordem a ser seguida pelos credores: Primeiro devem ser excutidos os bens sociais, para então, esgotados, num segundo momento, poderem volver as suas pretensões contra os sócios.
A hipótese, portanto, traduz clara responsabilidade subsidiária dos sócios quanto às obrigações sociais da sociedade a que pertencem, afinal a expressão “tem o direito de exigir que primeiro sejam excutidos os bens da sociedade”, expressa no mencionado parágrafo primeiro do artigo 795 do Código de Processo Civil, deixa claro que os sócios poderão ser eventualmente responsabilizados, mas apenas após os credores investirem contra o patrimônio social. E assim deve ser, já que sendo a sociedade a devedora, é o seu patrimônio que em primeiro lugar deverá responder pela sua solvência, afinal, quando os credores lhe concederam crédito, certamente o fizeram (ou deveriam tê-lo feito) ao mensurar o patrimônio da devedora, e não o dos sócios. Afinal, como nos lembra Fábio Ulhoa Coelho:
Não existe no direito brasileiro nenhuma regra geral de solidariedade entre sócios e sociedade (simples ou empresária), podendo aqueles sempre se valer do benefício de ordem, pela indicação de bens sociais livres e desembaraçados, sobre os quais pode recair a execução da obrigação societária. (COELHO, 2012, p. 50)
Ademais, e em reforço à ordem estabelecida pelo referido artigo 1.024 do Código Civil, o parágrafo único do artigo 49-A do mesmo Diploma9 bem define a importância da distinção entre o patrimônio da sociedade e o dos sócios, inclusive como relevante fator de estímulo ao empreendedorismo.
Nesse sentido, bem esclarece Giuseppe Giamundo Neto:
O novo artigo 49-A do Código Civil, como se observa, tem verdadeiro conteúdo declaratório: afirma a necessidade de respeito à autonomia patrimonial das pessoas jurídicas como medida de fomento à economia pública. (...) O princípio da distinção entre a sociedade e seus integrantes somente pode ser afastado em determinadas circunstâncias. (GIAMUNDO NETO, 2020, p. 205)
E não apenas os sócios de uma sociedade empresária limitada, regularmente personificada podem se valer do benefício de ordem na forma dos dispositivos legais mencionados, mas igualmente poderão fazer uso dessa mesma defesa os sócios de uma sociedade não personificada.
No sistema brasileiro, a aquisição da personalidade jurídica das sociedades se dá com o registro e arquivamento dos atos constitutivos da sociedade empresária (contrato social ou estatuto, e demais documentos exigidos por lei) perante os órgãos que compõe o Sistema Nacional de Registro de Empresas, regulados pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração, a cargo das Juntas Comerciais de cada Estado.
Embora seja com o registro que a sociedade passe a existir como pessoa jurídica de direito privado, é certo que o legislador brasileiro não ignorou uma indesejada realidade, qual seja, a existência de negócios em sociedade, sem qualquer regularidade formal.
O direito pátrio distingue dois elementos, no que toca às sociedades empresárias: Os elementos de caracterização, e de formalização.
Para a caracterização de uma sociedade empresária, e independentemente de qualquer formalidade, bastará que duas ou mais pessoas consorciem-se com o objetivo de desenvolverem uma atividade de natureza empresarial, economicamente organizada, com intuito especulativo, habitual, para a produção ou circulação de bens, ou para a prestação de serviços. Já a formalização, se dará, como exposto, pelo regular registro.
É o caso da Sociedade em Comum, que mesmo sem ser registrada, preenche os requisitos que a caracterizam como uma sociedade empresária, embora irregular e não personificada.
A falta de personalidade jurídica, por certo, conduz à inicial conclusão de que os sócios de uma sociedade em comum, por não ser personificada, responderiam de modo direto com os seus respectivos patrimônios pessoais por todas as eventuais obrigações da sociedade. Afinal, sem a personificação não existe qualquer anteparo entre os sócios e os credores da sociedade.
Entretanto, a despeito da ausência de regularidade, e mesmo que a sociedade em comum não tenha personalidade jurídica, o legislador brasileiro reconheceu haver distinção entre os bens de empresa, estes destinados ao exercício da atividade empresarial, e os bens particulares dos sócios que a integram10.
E mais do simplesmente reconhecer a distinção patrimonial que sempre foi marca exclusiva das sociedades personificadas, o legislador previu que mesmo na sociedade em comum será lícito aos sócios valerem-se do benefício de ordem, assim exigindo que os credores antes de dirigirem as suas pretensões aos seus patrimônios particulares, primeiro busquem a satisfação dos seus créditos no patrimônio social, este considerado como aquele de que se vale a sociedade para o desenvolvimento da sua atividade empresarial.
Com exceção do sócio gestor, os demais sócios poderão assim defender-se das investidas dos credores, sob o pálio do benefício de ordem.
Bem se vê a importância que o legislador conferiu ao instituto do benefício de ordem, tanto que assim também o estendeu aos sócios de sociedades não personificadas:
E o benefício de ordem se faz presente também na legislação trabalhista, evidentemente descrito no artigo 10-A da Consolidação das Leis do Trabalho. o citado dispositivo legal expressamente define uma obrigatória ordem gradual a ser observada quanto à identificação das pessoas responsáveis pelos débitos trabalhistas, além de bem divisar as hipóteses de responsabilidade subsidiária e solidária. (CARNEIRO FILHO, 2021, p. 53-60).
Portanto, à evidência, a defesa pelo benefício de ordem é tão conferida aos sócios de responsabilidade limitada (sociedade limitada personificada), como também àqueles que respondem ilimitadamente, porque integram uma sociedade sem personalidade jurídica.
4 O ESGOTAMENTO PATRIMONIAL DA SOCIEDADE, COMO FATOR QUE NECESSARIAMENTE ANTECEDE A VERIFICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE LIMITADA
Seja numa sociedade limitada, ou numa sociedade não personificada, como visto, surge a inafastável conclusão de que mesmo que tenha sido observado o benefício de ordem, quando esgotado o patrimônio social este não for suficiente a suportar as dívidas da sociedade, os sócios poderão ser chamados a responder pelas obrigações inadimplidas pela sociedade.
E é justamente nesse momento, e apenas nesse, após o inequívoco esgotamento patrimonial da sociedade, é que será pertinente indagarmos se a responsabilidade dos sócios é limitada ou ilimitada.
Porém, antes de se definir o âmbito de responsabilidade dos sócios, se limitada ou ilimitada, cumpre prescrutarmos o que se deve considerar como esgotamento do patrimônio da sociedade, especialmente perante a expressão “senão depois de executados os bens sociais” presente no artigo 1.024 do Código Civil, como também, de modo semelhante no artigo 795, §1° do Código de Processo Civil, “primeiro sejam excutidos os bens da sociedade”.
À luz da semântica, ambos os termos “executados” e “excutidos”, no presente contexto, podem ser considerados comuns em significado, e expressam a ocorrência de excussão patrimonial pela adoção de um procedimento executivo judicial11.
Assim, seja pela execução por título executivo extrajudicial, ou pela via do cumprimento de sentença, incumbirá ao exequente comprovar que o patrimônio da sociedade executada é insuficiente à plena satisfação do seu crédito, para então direcionar as suas pretensões contra os sócios, requerendo ao Juízo a inclusão destes. E também nesse momento caberá aos sócios, agora demandados em nome próprio, valerem-se do benefício de ordem, incumbindo-lhes, contudo, indicar os bens livres e desembargados da pessoa jurídica, que sirvam à satisfação dos créditos reclamados, sob pena de terem que responder pelas dívidas sociais.
Mas como o tema em pauta se refere ao esgotamento patrimonial da sociedade empresária pela via judicial, é de se concluir, que o procedimento adequado para tanto é o falimentar. Afinal, somente após a realização dos ativos do falido12, é que se pode ter a certeza jurídica da completa excussão patrimonial:
Em razão da natureza subsidiária da responsabilidade dos sócios, nas sociedades em geral, e da decorrente exaustão do patrimônio social como pressuposto da responsabilização, normalmente ela se torna efetiva no processo de falência da sociedade. Quer dizer, em geral apenas depois de decretada a quebra da sociedade empresária será possível executar bens do patrimônio particular dos sócios, para garantia de obrigação social. (COELHO, 2012, p. 51)
5 A FALÊNCIA DA SOCIEDADE LIMITADA, E A CONCRETIZAÇÃO DA PROTEÇÃO PATRIMONIAL DOS SÓCIOS
Em qualquer cenário executivo, pela via individual ou pela via concursal da falência, uma vez excutidos os bens da sociedade, é chegado o momento de se averiguar se o capital social foi totalmente integralizado, pois, como já advertido, é somente com a plena integralização que se opera a limitação da responsabilidade de cada sócio, relativamente ao montante que efetiva e comprovadamente realizou.
Apurado que o capital social ainda pendente de integralização, incidem as consequências previstas no artigo 1.052, caput, do Código Civil13, com a consequente responsabilização solidária e ilimitada dos sócios, relativamente ao montante ainda não integralizado. E quanto à extensão dessa responsabilidade solidária, esclarece Vera Helena de Mello Franco:
Esta solidariedade, porém, não é ilimitada, posto que os sócios somente respondem até o montante do capital a ser integralizado, embora, internamente, vá além do montante das quotas subscritas. O sócio poderá ser chamado a compor o que faltar para a integralização do capital social, cumprindo obrigação de um de seus pares que não integralizou o montante prometido, ainda que tenha integralizado sua quota totalmente. E, para tanto, não terá defesa. (FRANCO, 2012, p. 260)
Vale lembrar, que no sistema brasileiro de registros das sociedades empresárias, ao se constituir a sociedade, basta que os sócios declarem no contrato social que o capital foi integralizado, sem a necessidade de comprovação documental de tal operação, que passará a ser presumida a veracidade de tal declaração.
Incumbirá aos credores interessados, portanto, quando oportuno, suscitarem a eventual inexistência de integralização, para então, caso comprovada a falta, incidam as regras do mencionado artigo 1.052, caput, do Código Civil.
Quanto ao sobredito dispositivo legal, adotando-se uma interpretação tendente ao prestígio da responsabilidade limitada, é de se concluir que mesmo que o capital social não esteja integralizado, total ou parcialmente, a responsabilidade solidária e ilimitada se refere apenas ao montante que fora subscrito, ou seja, quinhão não integralizado. E ocorrendo a insolvência da sociedade empresária, os sócios deverão promover a integralização do que falta para preencher o capital social, nada mais lhe restando que, posteriormente, voltar-se em ação de regresso contra o sócio inadimplente (FRANCO, 2012, p. 260).
Porém, uma vez integralizado o capital social, ainda que pendam de satisfação plena alguns credores da sociedade, e mesmo que sejam os sócios chamados a responder pelas obrigações sociais inadimplidas, nada mais lhes poderá ser exigido para além do que efetivamente integralizaram, como elucida Fábio Ulhoa Coelho:
Nesse quadro, o sujeito que negocia com a sociedade limitada sabe - ou deve saber - que tem apenas o patrimônio social por garantia; se negocia mal, deixando de considerar, nos seus preços uma taxa compatível com a limitação da reponsabilidade dos sócios, então deve sofrer as consequências de sua imprevidência. A quebra da sociedade será perda do credor. Desse modo socializa-se, por assim dizer, a sempre presente possibilidade de insucesso das atividades econômicas. (COELHO, 2012, p. 435).
Não se trata, com tal conclusão, de se desprestigiar a idoneidade dos pactos negociais empresariais, ao contrário, a limitação da responsabilidade dos sócios da falida ao quanto integralizado pelos sócios, é fator de estabilidade das relações, na exata medida em que todos aqueles que engendram seus negócios sabem que a concessão de crédito à sociedade limitada deve sempre se pautar pelo seu patrimônio, e não o dos sócios que a compõem. Afinal, essa é a regra da responsabilidade patrimonial, expressa nos artigos 391 do Código Civil14, e 789 do Código de Processo Civil15. Assim, incumbe ao credor, concedente de crédito à uma sociedade limitada, acautelar-se na forma da lei pela adoção das garantias que o sistema lhe oferece, reais ou pessoais, já ciente de que o inadimplemento da sociedade poderá resultar em irreparável prejuízo, pois, como bem pontua Fábio Ulhoa Coelho:
O limite da responsabilidade subsidiária dos sócios pode ser ‘zero’. Vale dizer, se todo o capital social já estiver integralizado, os credores da sociedade não poderão alcançar o ativo do patrimônio particular de qualquer sócio com responsabilidade limitada. Deverão, em decorrência, suportar o prejuízo. (COELHO, 2016, p. 153)
Portanto, de rigor, para que se considere a integral execução do patrimônio da devedora, enquanto sociedade empresária, que antes se lhe declare a falência, e durante a fase falimentar ocorra a integral liquidação dos ativos, com a completa alienação dos bens do falido.
Após a liquidação, observado o prévio pagamento dos credores extraconcursais, e a ordem de preferência conforme cada classe dos credores concursais, todo o produto será revertido aos credores concursais, como preveem os artigos 15316 e 15417, da mesma lei.
Após tais providências, e mesmo que a apuração dos resultados seja insuficiente ao pagamento dos credores, o processo de falência será encerrado, como determinam os artigos 15418 e 15519 da sobredita Lei.
Encerrada a falência, os eventuais credores que não lograram satisfazer os seus créditos, poderão voltar-se contra os sócios da sociedade falida, para então, em derradeira oportunidade, buscarem os pagamentos dos débitos ainda inadimplidos.
Esse é o momento de se indagar: Os sócios em questão, integravam uma sociedade que lhes atribuía responsabilidade limitada ou ilimitada?
Tratando-se de sócios de responsabilidade ilimitada, os artigos 7720, 8121 e 19022 da Lei 11.101/2005, bem determinam que a eles serão estendidos os efeitos da falência, sendo assim igualmente declarados falidos, do que resulta a idêntica responsabilidade patrimonial da sociedade falida.
Há que se lembrar, mesmo em relação aos sócios ilimitadamente responsáveis, por se tratar de responsabilidade patrimonial, incidem as regras protetivas que impedem a plena excussão patrimonial da pessoa natural, previstas no artigo 833 do Código de Processo Civil, e da Lei 8.009 de 29 de março de 1990 (Lei do Bem de Família).
Já o tratamento que o sistema falimentar dispensa aos sócios de responsabilidade limitada é bem diferente, finalmente se concretizando a vantagem de se adotar o modelo da sociedade limitada, ou mesmo de sociedades por ações:
Decretada a falência da sociedade, da mesma forma, ainda que os ativos não sejam suficientes para a satisfação dos credores concursais, os sócios ou administradores não serão responsabilizados pelas obrigações da sociedade. Não possuem ambos a responsabilidade secundária pelo adimplemento dessas obrigações sociais, como ocorre com os sócios ilimitadamente responsáveis. (SACRAMONE, 2021, p. 415)
A redação do artigo 82-A da Lei 11.101/2005, não deixa quaisquer dúvidas quanto à isenção dos sócios de responsabilidade limitada, exonerando-os quanto aos efeitos da falência, e, assim, de responderem pelas obrigações da falida, exceto nas restritas hipóteses autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica23.
Cuida-se, em última análise, da ratificação ao que se expôs anteriormente sobre a possibilidade de completa irresponsabilidade dos sócios, sobre obrigações negociais da sociedade limitada, com regra a ser observada, seja no processo executivo individual ou na falência.
Esse cenário, contudo, não traduz uma franca licença aos sócios, para que possam administrar a sociedade sem qualquer compromisso com as obrigações sociais, deliberadamente causando prejuízos àqueles que se aventurarem a conceder crédito à sociedade, desprovido de garantias. Afinal, mesmo durante o processo falimentar, como expressamente prevê o artigo 82-A da Lei 11.101/2005, sempre será possível que se obtenha perante o mesmo Juízo falimentar a desconsideração da personalidade jurídica da falida, com o propósito de se atribuir aos sócios a responsabilidade patrimonial pelas dívidas sociais.
Desse modo, novel artigo 82-A da Lei de Falência e Recuperações garante a um só tempo a limitação da responsabilidade dos sócios, e a lisura do trânsito negocial ao deixar aberta a possibilidade de que tal garantia pode sucumbir às hipóteses que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica.
O que se vê, em resumo, é a harmonização dos institutos que disciplinam o tema, em claro prestígio ao estímulo do empreendedorismo, sem que haja descuido da necessária segurança que sempre deve estar presente nas relações negociais empresariais.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se demonstrou, a responsabilidade limitada dos sócios, aliada ao benefício de ordem conferido a todas as sociedades, e de modo especial às empresárias, personificadas ou não, é uma fundamental garantia a permitir que empreendedores assumam riscos calculados ao desenvolverem as suas atividades empresariais, sem o temor de perderem seu patrimônio pessoal além do montante que voluntariamente se dispuseram investir, caso atuem com regularidade.
Trata-se de um sistema protetivo que compatibiliza a necessária segurança de que se sempre se ressentem os empresários, com o imprescindível estímulo ao empreendedorismo, sem descuidar da proteção dos interesses dos credores.
Em última análise, a responsabilidade limitada dos sócios, aliada ao benefício de ordem, é um elemento crucial para o funcionamento saudável das empresas e para a promoção da livre iniciativa, oferecendo bases para o empreendedorismo, ao mesmo tempo em que estabelece salvaguardas para os interesses dos credores.
Constata-se, portanto, que o modelo da sociedade limitada, por constituir fonte de estímulo ao exercício da atividade empresarial, representa inequívoca espécie societária moderna, ao compatibilizar a devida idoneidade das relações empresariais, com a imprescindível segurança que se dever atribuir a todos aqueles que resolverem por empreender. De fato, este trabalho permite constatar que o sistema jurídico brasileiro foi engendrado para não deixar quaisquer dúvidas quanto a segregação patrimonial e de responsabilidade entre as dívidas e obrigações atribuíveis a sociedade empresária limitada, enquanto pessoa jurídica, e as de atribuição própria dos sócios que a integram. Numa economia globalizada, sem dúvida, a segurança jurídica é uma necessidade a ser intransigentemente buscada, especialmente no que toca ao rigoroso estabelecimento dos limites das responsabilidades que lhes serão atribuídas, para que saibam, com razoável certeza, a quais riscos estão expostos, e assim possam legitimamente alocá-los. A finalidade da defesa do resguardo da escolha do modelo da sociedade limitada, a par de trazer mais segurança aos seus titulares, igualmente promove harmonia e equilíbrio nas relações empresariais, ao permitir que o empreendedor possa enfrentar com clareza legal todas as agruras que o mercado, já tão incerto, lhe apresentará.