1. Introdução
Um dos movimentos artísticos mais populares dentro do mercado musical, a música eletrônica caracteriza-se pela produção de sonoridades sintetizadas a partir do uso de equipamentos e instrumentos eletrônicos ou métodos artificiais, tendo suas origens e expansões bastante pautadas pelo processo de desconstrução da compreensão de estética e de representação ocorridas ao longo do século passado e que, do ponto de vista da arte contemporânea, tiveram importância crucial para a constituição dos fenômenos musicais que são percebidos e conhecidos no cotidiano estético e de consumo. Em especial, tomamos como referência a música eletrônica enquanto música no seu caráter originário ou primário (em particular sua concepção serial ao longo da escola de Elektronische Musik) e, em seguida, concebemos seus eventuais desdobramentos ao longo da popularização e manifestação da música eletrônica como um gênero dançante e rotineiro das sociedades de consumo.
Nesse sentido, como abordagem teórica, é necessário que sejam considerados alguns aspectos fundamentais das revoluções artísticas ocorridas na virada do século XIX e XX que podem contribuir para o surgimento do movimento, bem como desse processo criativo, sobretudo os avanços tecnológicos e seus efeitos na construção e elaboração dos produtos culturais. É possível entender que a música eletrônica está inserida dentro dos contextos culturais nos quais é produzida, e suas particularidades operam em imbricação com as contradições da realidade. As mudanças na percepção do tempo e a fragmentação do conceito de sujeito ocorrida no período e que se instituem como paradigmas filosóficos da contemporaneidade se refletem na produção cultural, tanto na diversidade de meios e suportes destas produções como na temática abordada por estas obras.
2. O objeto de Investigação
A partir destes postulados, este texto se propõe a analisar aspectos determinados da produção da arte contemporânea e, a saber, da música eletrônica sob duas chaves da estética e da subjetividade atuais: as imagens técnicas de Flusser e Benjamin e o infamiliar freudiano, considerando que os elementos que destacam a e-music (1) enquanto gênero, a construção “em camadas”, as alterações de andamento e tempo e o uso do sample, provocam sensações de desconforto e, simultaneamente, remetem a elementos familiares, características que são encontradas em outras formas de expressão artística no período descrito. Por analogia, a investigação de alguns elementos destas outras formas de expressão servirá também para a conceituação da ocorrência destes processos na música eletrônica.
3. Investigação Teórica
3.1. A imagem técnica e a música eletrônica
O desenvolvimento da arte no final do século XIX trouxe mudanças significativas nos modos de apresentação e compreensão dos objetos artísticos. Vanguardas europeias como o impressionismo e o pós-expressionismo deram substrato para que novas correntes intelectuais surgissem com modos de exibição de seus objetos estéticos que modificavam ou ainda proporcionavam uma quebra com relação a tradição dos modos de apresentação dos objetos, visando não mais uma imitação perfeita dos objetos naturais (prática recorrente das artes clássicas), mas uma apresentação pautada na exibição do objeto conforme suas características perceptivas ou ainda conforme seus critérios conceituais:
Mas, afinal, o que deve um pintor experimental? Por que não se contenta em postar-se ante a natureza e pintá-la com todo o seu talento? A resposta parece ser que a arte perdeu o rumo porque os artistas descobriram que a simples exigência de “pintar o que veem” é contraditória. Isso talvez pareça um dos paradoxos com que os artistas e críticos modernos gostam de irritar um público atônito de longa data; [...] Com alguma disciplina e auto-observação, podemos descobrir por nós mesmos que aquilo a que chamamos “visão” é invariavelmente colorido e modelado pelo nosso conhecimento do (ou crença no) que vemos. Isso se torna bastante claro sempre que as duas coisas estão em discrepância. [...] Essa, penso eu, é a dificuldade tenuemente sentida pela geração que queria seguir e superar os impressionistas e que, em última instância, a levou a rejeitar toda a tradição ocidental. (Gombrich, 2011, p. 560-561)
Nos projetos artísticos impressionistas e seus sucessores, a arte figurativa perde espaço, pois o interesse pictórico destas obras busca não mais uma representação fiel de seus objetos, mas novas perspectivas ou novos modos de apresentação dos objetos de arte conforme novos critérios: luz, coloração, seus possíveis afetos, etc., de forma cada vez mais minimalista, o que permitiu que o processo de mimese e de representação se tornassem cada vez mais voláteis ou ainda mais suscetíveis a poéticas experimentais que permitissem novos modos de compreensão do objeto ou modos de contestação dos métodos tradicionais da arte dentro do pensamento ocidental que eram considerados pertinentes ou característicos de obras belas ou de virtuosa execução. Nesse sentido, a música é, também, uma das áreas fortemente influenciadas por esses novos modos de compreensão artísticos e, sobretudo, de grandes revoluções no que compete a sua composição, execução e propostas apesar de suas divergências metodológicas para com as artes visuais.
A música do início do século XX, fortemente marcada pelas obras de Debussy e Erik Satie são paradigmas de melodias que, ao contrário de suas escolas ou influências anteriores, prezam pelo uso de poucos instrumentos com o uso da repetição ou de ritornelos(2) como modos de composição. Esse processo de construção minimalista é que fará Satie e seus pares o reconhecimento como fundadores da música contemporânea:
O fato de que Erik Satie tenha se oposto à estética clássica-romântica alemã, à visão estética francesa e principalmente ao impressionismo é um fenômeno interessante que permite iniciar uma discussão a respeito de qual poderia ser a natureza de sua proposta musical e como ela foi compreendida na academia. [...] De acordo com a quantidade de dimensões estético-musicais que Satie tensiona a respeito da tradição docente de cunho clássico-romântico e alemão, como a orquestração, retórica predominante, timbre, forma/estrutura, métrica, harmonia, melodia, agógica, caráter, papel do intérprete e do receptor, sua perspectiva dá conta de um tipo de subversão musical, pois levanta uma estética musical em constante mudança e sem um referente canônico. Tal tema foi proposto por ele como pensamento e ocorreu como realidade, pois efetivamente não há uma escola satiana, nem outro compositor com a sonoridade de Satie, mas abriu um caminho de emancipação artística a partir de múltiplos conceitos artístico-musicais dos que foi precursor: a furniture music, o surrealismo, o piano modificado, o teatro Dada, o minimalismo, o cinema surrealista, a sátira a partir da linguagem musical e do discurso musical. (Carrasco, 2019, trad. dos autores)
Na música de Satie, bem como de outras tradições musicais como as de John Cage, Debussy e Stockhausen, percebe-se a intenção de uma quebra dos paradigmas artísticos anteriormente proferidos pela tradição clássica a fim de inserir uma nova concepção de valores (Zanini, 2004). Em especial, é possível notar que a busca por novas formas de apresentação dos fenômenos estéticos e musicais se torna uma constante em seus trabalhos, o que garante o seu caráter experimental e inovador, frente aos métodos prévios ou ainda tradicionais. Conforme Victor Flores (2007), a música eletrônica, enquanto herdeira desse processo, assemelha-se à proposta minimalista(3) por operar a quebra da concepção de objeto como representação fidedigna de sua apresentação:
O modernismo, mais propriamente a sua fase tardia, encara a representação e toda a ordem simbólica como uma forma de ruptura, de rasgo e de cisão com a ordem ontológica e fenomenológica do mundo. A imagem ganha cada vez mais o estatuto de enigma e de linguagem que já não fornece a janela transparente sobre o mundo, mas antes uma aparência enganosa de naturalidade: “Considerava-se [...] que a representação acarretava a alienação de qualquer coisa. Numa representação, com efeito, há “algo” que é permanentemente privado de ser experimentado (vivido) diretamente. Dizemos que é substituído por um representante, um signo, um sinal, uma simbolização. E a sua presença é iludida como real que já não é.” [...] O ato de representar passa a ser associado a um mecanismo, a um dispositivo que tende a distorcer o real, a implicar afastamento, a criar dobras e simulacros que pendem sob as questões do poder e da ordem que susbsistiram em continuum desde a Idade Clássica. A linguagem imagética passa a denunciar-se na convencionalidade de um sistema que não denota senão a verdadeira e cruel ausência dos representamen, creditando-se por isso de um sentido de impossibilidade de contato, de controlo ou de transformação da realidade. (Flores, 2007, p.9)
Essa ruptura, traço fundamental da tradição modernista, também poderia ser aplicável aos princípios musicais: a proposta de tal música não seria mais estabelecer uma linguagem que mimetize o real conforme a experiência representativa dada pela tradição musical, mas como uma possível distorção do fenômeno acústico por meio da aplicação de novas técnicas para produção de som. Flores pontua que há por parte do modernismo minimalista não somente uma subversão da condição do objeto artístico, mas uma desconstrução da compreensão ontológica de suas manifestações artísticas. Ou seja, não cabe apenas reproduzir a natureza (ou seus caracteres poéticos determinados pelo pensamento estético aristotélico), mas demonstrar a arte como algo a parte ou ainda dissociada de suas características imitativas oriundas da tradição ocidental clássica(4). A relação tradicional entre essência e aparência se torna, dentro da tradição minimalista, uma questão em absoluto suprimida uma vez que sua apresentação visa única e exclusivamente a demonstração de um elemento mínimo, primordial e, sobretudo, imagético que não necessariamente pretende uma correlação essencial ou ontológica com um objeto natural de origem ou, ao menos, que esteja determinado dentro de critérios estéticos consolidados. De acordo com Vilém Flusser (2008), a função da imagem é apresentar um sistema de “códigos” que são interpretados ou ainda “imaginados” pelo observador, mas que, dentro do espectro da imagem, deixam de ser exatamente traduzidos, mas diretamente vivenciados:
[...] são mediações entre homem e mundo. O homem “existe”, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem. [...] O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é idolatria. Para o idólatra - o homem que vive magicamente -, a realidade reflete imagens. Podemos observar, hoje, de que forma se processa a magicização da vida: as imagens técnicas, atualmente onipresentes, ilustram a inversão da função imaginística e remagicizam a vida. (Flusser, 2008, p. 7-8)
Para Flusser a imagem adquire um caráter de autonomia dentro do pensamento do observador de tal forma que, em suas devidas proporções, a imagem é processada de forma automatizada, não havendo mais por parte da imaginação qualquer tipo de interferência ou decodificação: a imagem é absorvida tal como é percebida. Dessa perspectiva, se comparado com o comentário de Flores, pode-se notar que a imagem é essa manifestação que consegue se desligar completamente de uma discussão epistêmica e passa a atingir o campo simbólico não mais como instrumento representativo que esconde a coisa em si, mas como a própria coisa ou ainda a própria manifestação sem qualquer tipo de anteparo ou impedimento epistemológico por parte do sujeito que conhece essas manifestações técnicas. Nesse sentido, tal música, uma vez que estabelece um parâmetro de criação, pode ser considerada como uma imagem-técnica já que não possui uma essência ou fundamento originário. Tendo em vista o nosso objeto de estudo, a saber, a música eletrônica enquanto um conjunto de formulações sonoras com base em objetos técnicos, estaria no campo dos estímulos sonoros e acústicos que visam abandonar ou ainda suprimir qualquer vínculo estabelecido com os métodos anteriores de produção sonora. Sendo assim, a música, do ponto de vista do minimalismo, a saber, enquanto uma composição que utiliza processos sistemáticos de repetição por meio de poucas notas ou efeitos acústicos pautados em instrumentos técnicos alternativos, cumpre sua função de apresentação sem que haja, necessariamente, a demanda a necessidade de ser compreendida como um objeto artístico tal como foi estabelecido ao longo das tradições musicais anteriores.
Nessa esteira, é possível perceber que a música eletrônica se imbrica à modificação dos critérios de reconhecimento da música como representação artística. A busca pela economia, como o uso de poucas notas para as composições, torna-se popular pelo uso de instrumentos técnicos como sintetizadores. Tais melodias tornam-se músicas reproduzidas de forma massificada, sendo corriqueiras e cotidianas ao ponto de serem reproduzidas em espaços públicos e demais áreas de convívio como esteticamente agradáveis. Portanto, compreende-se que, diante de sua popularidade, a música eletrônica pode, enquanto movimento artístico, expressar um conjunto de relações com demais aspectos da vida contemporânea que refletem um ethos da sociedade de consumo, que pode ser investigada por meio de suas manifestações.
Em observância a Flusser (2008), a imagem técnica é uma manifestação que tem como origem a relação entre input e output: o uso de um impulso elétrico como capaz de produzir ou ser codificado em imagem. Esse processo modifica estruturalmente os métodos tradicionais de produção de imagem, pois pela primeira vez é possível que uma máquina seja capaz de sintetizar uma imagem de forma semelhante ou ainda estranha aos modos tradicionais de composição antes conhecidos:
No caso das imagens tradicionais, é fácil verificar que se trata de símbolos: há um agente humano [...] entre elas e seu significado. Este agente humano elabora símbolos “em sua cabeça”, transfere-os para a mão munida de pincel, e de lá, para a superfície da imagem. A codificação se processa “na cabeça” do agente humano, e quem se propõe a decifrar a imagem deve saber o que se passou em tal “cabeça”. No caso das imagens técnicas, a situação é menos evidente. Por certo, há também um fator que se interpõe (entre elas e seu significado): um aparelho e um agente humano que o manipula[...]. Mas tal complexo “aparelho-operador” parece não interromper o elo entre a imagem e seu significado. Pelo contrário, parece ser canal que liga imagem e significado. Isto porque o complexo “aparelho-operador” é demasiadamente complicado para que possa ser penetrado: é caixa preta e o que se vê é apenas input e output. Quem vê input e output vê o canal e não o processo codificador que se passa no interior da caixa preta. Toda crítica da imagem técnica deve visar o branqueamento dessa caixa. Dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquanto analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos como decifrá-las. (Flusser, 2008, p.10-11)
Flusser é explícito em demonstrar que o processo de composição de uma imagem técnica difere radicalmente de uma imagem tradicional. Se, por um lado, a imagem tradicional pauta sua condição pela produção artesanal ou ainda manufaturada (o músico que dedilha um instrumento), na imagem técnica, por ser um processo de operação de botões (como um sintetizador), o resultado oriundo dela se coloca para além da própria condição do sujeito. Ora, é como se a manifestação estética que resulta da operação input-output não fosse resultado de seu operador propriamente dito, mas da máquina que processa essa informação e a transforma em imagem. Sendo assim, concebe-se que, dentro do centro de interesse desse texto, a música eletrônica funciona tal como uma imagem técnica, pois apesar de compreendermos o resultado, não sabemos como ela surgiu(5). Não é possível designar ao certo uma possível intenção humana no objeto finalizado, como se a música eletrônica, aqui herdeira dessa tradição contraventora minimalista, elevasse essa condição a seu termo mais radical: a música sintetizada é também uma música além-homem ou não-humana.
Cabe aqui ressaltar a relação estabelecida pelo comentário de Flores para com o pensamento de Flusser : a imagem não mais vinculada a uma noção de substância adquire agora uma autonomia de relação que faz da imagem seu próprio objeto que designa ou ainda distorce o real. Mais além, tanto Flusser como Flores notam que nessa abordagem o caráter representativo da imagem não necessita de imitação ou mimese dos objetos naturais, mas de apresentação de forma independente e até mesmo fora dos parâmetros humanos.
É possível então associá-la com outros fenômenos estéticos de ordem semelhante, como projetos arquitetônicos e culturais que são coligados e se relacionam com o tema abordado. Assim, é possível estabelecer um paralelo entre a música eletrônica enquanto fenômeno de estranhamento por sua não-humanidade ao mesmo tempo que é, para seus ouvintes, um gênero musical familiar e proliferado na rotina estética da sociedade.
3.2. Unheimlich: a música eletrônica como estranhamento
Tendo em vista a discussão proposta no tópico anterior, é possível conceber que a música eletrônica, enquanto imagem técnica, produz como resultado uma estruturação sonora que extrapola a sua condição humana ou manufaturada para alcançar o ramo da produção maquínica ou, ainda, não-humana(6). Eis, portanto, um paradoxo: apesar da música eletrônica, por seu potencial de automatização, não ser totalmente redutível à produção musical “humana” ou analógica/mecânica, ela pertence ou ainda é concebida e apreciada dentro da esfera da humanidade. Essa relação contrastante da música eletrônica nesse contexto é, também, a relação da arte contemporânea no seio da pós-modernidade (ou de sua reprodutibilidade técnica).
Walter Benjamin (2014) aponta uma direção interessante quando pontua que os objetos de arte, nesse processo de crítica da representação e de contravenção, abrem possibilidades para novos modos de relação com os objetos de arte que ainda não haviam sido vistos antes, como um novo horizonte possível para pensamento e arte:
O novo ambiente de vidro transformará completamente os homens. Deve-se apenas esperar que a nova cultura de vidro não encontre muitos adversários. Pobreza de experiência: isso não deve ser compreendido como se os homens aspirassem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza, externa e também interna, que algo de decente possa resultar disso. (Benjamin, 2014, p.127)
A crítica de Benjamin concentra-se, fundamentalmente, no uso de grandes janelas (vitrinadas), com todos os espaços bastante abertos e visíveis, de forma que não há possibilidade para locais velados ou privativos. Essa ausência de privacidade, de acordo com Benjamin, reflete também a massificação da cultura de forma que todos os indivíduos agora consomem experiências de vida similar, não havendo uma distinção clara entre a vida pública e a vida privada. A mudança estrutural das edificações para o modelo aberto é um fenômeno que chama a atenção de Benjamin pois as galerias em Paris, os bulevares e os demais espaços de convívio público agora parecem higienizados ou clarificados ao ponto de não haver mais nenhum tipo de característica sui generis que possa classificar estas localidades como ambientes singulares. Todavia, apesar de haver esse processo de massificação das experiências culturais e estéticas, o filósofo ainda compreende que essa modificação nas experiências possa ser considerada uma “barbárie positiva” (Benjamin, 2014, p.125) que pode suscitar novos modos de produção artística e intelectual.
Em especial, é interessante o comentário de Benjamin no seguinte sentido: a massificação das edificações e dos bens culturais de consumo é também a transformação desses objetos em objetos impessoais desprovidos de características singulares. A experiência de reprodutibilidade técnica dada pela arte ou cultura de massa garante que seja possível observar tanto a relação de proximidade existente entre o objeto de cultura e a humanidade como de afastamento, já que não há nenhum traço marcante que pudesse distingui-la como genuína, deste ou daquele indivíduo. Assim como é possível consumir objetos de consumo dentro de uma sociedade e denominá-los como de propriedade do indivíduo em particular, a experiência com relação a eles é tão impessoal que qualquer outro indivíduo poderia ocupar o mesmo lugar deste indivíduo em particular. Sendo assim, espaços públicos como shoppings, galerias, supermercados ou ainda áreas de transição são esses locais que possuem uma identidade específica, mas, ao mesmo tempo, de alto teor impessoal.
David Harvey (2017) parece seguir o pensamento de Benjamin quando menciona os espaços modernistas e pós-modernistas surgidos ao longo do século XX. De acordo com o autor, após as duas grandes guerras, as sociedades, influenciadas pelo pensamento modernista, necessitaram urgentemente reconstruir seus edifícios e cidades de forma a popularizar e democratizar esses espaços com fins de consumo, proporcionando uma maior movimentação da economia e com preços acessíveis. Tais espaços, sobretudo os de ordem pública e residenciais, são sempre bastante uniformizados e de pouca variação estilística, o que foi considerado pelos denominados “pós-modernos” como espaços pobres de sentido e pouco inclusivos. Sendo assim, a pós-modernidade investiu maciçamente na reformulação desses espaços com o intuito de reconstruir as noções mais arcaicas de cidade, buscando o apreço local e espaços com identidades mais marcantes e exclusivas. Todavia, aponta Harvey, esse projeto não possuiu o efeito esperado:
Jencks (1984) [...] afirma que a arquitetura pós-moderna tem como raízes duas significativas mudanças tecnológicas. Em primeiro lugar, as comunicações contemporâneas derrubaram as “fronteiras usuais do espaço e do tempo”, produzindo tanto um novo internacionalismo como fortes diferenciações internas em cidades e sociedades baseadas no lugar, na função e no interesse social. Essa “fragmentação produzida” existe num contexto com tecnologias de comunicação e de transporte capazes de lidar com a interação social no espaço de maneira bastante diferenciada. [...] Formas urbanas dispersas, descentralizadas e desconcentradas são hoje muito mais factíveis do que antes. Em segundo lugar, as novas tecnologias (particularmente os modelos computadorizados) dissolveram a necessidade de conjugar a produção em massa flexível de “produtos quase personalizados”, que exprimem uma grande variedade de estilos. “Os resultados estão mais próximos do artesanato do século XIX do que dos superblocos regimentais de 1984”. [...] Esse problema é agravado pelo grau em que as diferentes “culturas do gosto” e comunidades exprimem seus desejos por meio de uma influência e de um poder de mercado diferenciados (Harvey, 2017, p.77-78)
Harvey aponta exatamente para a mesma direção que Benjamin: a tentativa pós-moderna de intimismo e aproximação das massas por meio de espaços cada vez mais conjugados com o que seria essa “cultura de gosto”, mais se tornam impessoais - ou reforçam separações de classe - do que conseguem recuperar essa noção de identidade importante para as sociedades do pós-guerra. É possível conceber que espaços voltados para socialização, como shoppings, etc., também sofrem do mal de não conseguirem garantir a seus habitantes a sensação de pertencimento, mas uma concepção de impessoalidade e deslocamento, de forma que o sujeito nunca está devidamente inserido no espaço arquitetônico que ocupa, numa sensação de estranhamento ou de não contexto, ainda que os locais - ou, no caso da música, os blocos de construção dos arranjos - evoquem o já conhecido(7).
Essa relação entre proximidade e afastamento das relações nos remete à concepção de infamiliar (unheimlich) afirmada por Sigmund Freud. De acordo com o autor, o conceito, demonstra o caráter ambíguo do termo unheimlich, pois ele possui, dentro do alemão, duas concepções: heimlich pode ser entendido tanto quanto o familiar, corriqueiro e doméstico como aquilo que é segredado, oculto ou que não pode ser colocado à vista (Freud, 2019, p.58-60). Em particular, Freud recorre ao comentário de Schelling que afirma que o unheimlich é aquilo que não pode ser colocado à mostra, como uma intimidade velada e oculta (ibid). Para além das questões psicanalíticas, nos interessa nessa concepção de Freud um detalhe marcante: a condição de ambiguidade que repousa no conceito de infamiliar e como as relações cotidianas acabam sendo assaltadas por essas concepções dúbias(8). Pode-se conceber que a arte modernista (no qual se insere a música eletrônica), ao instaurar uma quebra no padrão representativo, abre espaço para a compreensão da imagem ou de seus fenômenos estéticos e artísticos como manifestações de infamiliaridade ou do que é o não-humano que pertence a esfera humana.
Grafton Tanner aponta para um caminho próximo e até mesmo paradigmático das questões abordadas até o presente momento. Seu texto, que aborda o movimento vaporwave, ramo da música eletrônica operante durante os anos de 2010, mostra como a musicalidade deste movimento parece alcançar o estatuto do incômodo e até mesmo do irritante pelo uso da repetição excessiva de elementos conhecidos:
Um elemento-base de muitas faixas de Vaporwave é a repetição, que traz o foco para a sensação de inquietação diante do áudio em loop. Focando num fragmento de toda uma canção, o produtor de vaporwave irá fazê-lo em loop ad nauseum, frequentemente por toda a música. O efeito é absurdo, hilário, enervante e, às vezes, entediante. (Tanner, 2016, p. n/a. Trad. dos autores)
Tanner é enfático em abordar como o vaporwave, para alcançar seu efeito de estranhamento ao ouvinte utiliza da repetição de músicas bastante populares e familiares da década de 80 ao ponto de gerar uma sensação de náusea e desconforto. Esse processo é que desvela o caráter infamiliar da composição, sobretudo por parecer ao ouvinte que sua não-normalidade tem algo de fantasmagórico ou até de não-humano. É necessário dizer que este gênero, sob nenhuma hipótese, representa todos os ramos de música eletrônica existentes, mas sua característica primordial, a repetição, é um elemento que está presente em todos os gêneros eletrônicos. Dito isso, pode-se concluir que este efeito de estranhamento surge da radicalização de uma premissa básica do estilo: o uso do ritornelo às últimas consequências.
É possível vislumbrar características semelhantes às que são percebidas no ramo musical quando são observadas as tendências arquitetônicas oriundas das mudanças de experiências pontuadas por Benjamin e Harvey . É possível ainda especular que essa sensação de infamiliar da música eletrônica possa estar relacionada às condições de vida das cidades e populações ao longo do século XX e XXI que se refletem e perpassam a constituição do sujeito da contemporaneidade, sendo fruto de uma dialética entre a repetição total e a permanência de um resíduo(9) que denota um estranhamento em relação à realidade.
Assim, eis a questão: as imagens técnicas produzidas pelos dispositivos, no que possuem de correlatas a nós enquanto espécie, nos são próprias (humanas), ou extrapolam a sua condição para além-humanas? Não à toa, o cerne da análise de Freud em seu estudo sobre o choque entre o familiar e o inesperado - (un)heimlich - é o encontro entre medos e sonhos arcaicos com o que o novo tem de mais promissor e assustador: a tecnologia(10).
4. Conclusão: colagens musicais e subjetivas
É possível supor que tanto a sensação de infamiliaridade quanto a do choque com a percepção técnica das imagens sonoras da música eletrônica compartilhem, como solo comum, o esgarçamento das dimensões de tempo e velocidade. A aceleração da sociedade causada pelas alterações na infraestrutura econômica (de um capitalismo fabril, ou fordista, assiste-se à consolidação de um capitalismo no qual os serviços e o fluxo financeiro são seus motores) é acompanhada pelo desenvolvimento dos meios técnicos e por alterações no processo de fruição estética, seja esta fruição de forma direta ou demandando um tempo de reflexão. Para Deleuze (2017),
É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina (…) porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhes darem nascimento e utilizá-las. [...] as sociedades de controle operam por máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo. (Deleuze, 2017, p.252)
Como alterações nas estruturas sociais resultam em alterações na produção cultural de uma sociedade, características como simultaneidade, imediaticidade e superexposição à informação rompem as compreensões e percepções vigentes de um tempo linear. A simultaneidade do agora coloca não apenas o tempo em xeque, mas o tempo da arte, ou o fluxo em que se estabelece a relação objeto-sujeito artístico, assim como a duração desta relação, o que sugere que o tempo, em si, não pode ser definido por sua representação ou manifestação linear, mas sim por imagens (11) - ou instantâneos, recortes, colagens ou samples.
Ainda que muitas vanguardas artísticas preconizassem o privilégio da experiência de fruição e do vivido em seu máximo, é preciso notar que tal imediaticidade não seria dissolver ou reduzir a temporalidade ao zero, não seria apenas aquilo que se dá ao mesmo tempo ou sem intervalo: é aquilo que se dá sem mediação, e a mediação pode ser entendida não só como o anteparo, ou o meio pelo qual recebemos a informação contida na obra, como também o conjunto de referenciais culturais que moldam a interpretação do objeto artístico. Logo, o tempo se altera e a mediação se modifica, mas não desaparece por completo.
A música tem o tempo como elemento constitutivo no andamento e na divisão de compassos, relacionados à duração e à interpenetração dos elementos de arranjo, o encadeamento sonoro da melodia. As tecnologias permitem a reorganização da temporalidade musical ao operar elementos de uma realidade recortada, caracterizada pela colagem (sampler) e sobreposição de camadas sonoras. Numa sociedade de fluxo constante de dados, a multiplicidade de informação - e a subsequente necessidade de recorte e condensação informacional, logo, de algum nível de mediação - também está presente na própria forma da produção musical que passa a privilegiar o arranjo sobre a melodia, ou a construção de camadas sonoras sobre o estabelecimento de variações de uma linha principal.
O processo criativo que possibilita o surgimento e consolidação da música eletrônica como fruto das mudanças técnicas e psicossociais ocorridas no último século, tem como um de seus efeitos uma modificação na percepção sobre o próprio acontecimento artístico. Tal percepção passaria a ultrapassar tanto o suporte do acontecimento como o conjunto de referências que a delimitam. Em particular, a música eletrônica, dentro de seu experimentalismo, consegue demonstrar mudanças na estrutura da percepção de seus códigos, ou ainda do modo como tal fenômeno estético é consumido. Nesse sentido, movimentos como o vaporwave ou, ainda, músicas eletrônicas de caráter experimental são aquelas que buscam ressignificar tais relações perceptivas e até mesmo epistemológicas(12) uma vez que os métodos tradicionais de apreciação das melodias são deslocados ou até mesmo distorcidos. Portanto, uma sociedade cujos signos culturais se alteram numa velocidade maior do que a capacidade de seus indivíduos têm de processar tais alterações acaba por gerar a sensação de estranhamento e deslocamento. As imagens, ou constructos sonoros da e-music, por funcionarem como instantâneos de um tempo que se move mais rápido do que nossa capacidade de retenção, mostram-se nostálgicas e futuristas, estranhas e familiares, atemporais exatamente por retratarem sua própria temporalidade.