1. Introdução
No campo de investigação de arquitetura e computação é comum encontrarmos em iniciativas de pesquisa duas vertentes com mais proeminência. Uma vertente foca em uma abordagem direcionada para a otimização do trabalho e a outra foca em autonomia humana. Ambas abordagens utilizam a computação apenas como uma ferramenta. Na primeira, a computação é utilizada para encontrar a melhor solução em um contexto técnico, específico e concreto. Em termos de desempenho, o resultado encontrado pela ferramenta é a melhor solução, logo, ele é determinístico, sem abertura para outras interpretações. Na segunda situação, a computação é utilizada para dar autonomia ao ser humano. Neste contexto são desenvolvidas interfaces que facilitam o trabalho do ser humano no momento de criação, através da automação de atividades repetitivas. Existe abertura e espaço para interpretação, mas a interface acaba sendo apenas uma ferramenta, como qualquer outro software de desenho assistido por computador (como as tecnologias CAD e BIM), a grande diferença é o grau de abstração dessas interfaces em comparação com os softwares convencionais, apesar disso, percebe-se que sua principal função é automatizar processos iterativos para potencializar a autonomia do projetista durante as tomadas de decisão, já que ele terá mais tempo para se dedicar às decisões criativas e subjetivas do projeto.
Ambas abordagens lidam com a computação numa apropriação linear e mecanicista, onde existem apenas uma função e um objetivo a serem alcançados. Essa realidade é uma característica herança da expansão tecnológica durante o período da Primeira Revolução Industrial, em que as máquinas eram projetadas para executar funções lineares. Contudo, como apontado por Yuk Hui (2023) (10), não é justo igualar máquinas fruto da computação moderna com as máquinas do “tempo de Descartes” meramente mecânicas em sua natureza, uma vez que, a computação moderna tem se tornado orgânica, oposto de mecânica. Essa realidade provocada pelo avanço tecnológico, principalmente no campo da Inteligência Artificial, permite com que os algoritmos de aplicação recursiva se comportem em lógicas de pensamento orgânicas e não lineares, simulando o pensando cognitivo humano e não-humano, e implicando em possibilidades alternativas de apropriação tecnológica em vários campos criativos, incluindo o campo da Arquitetura.
Entretanto, o caminho da automação total via Inteligência Artificial não é o objetivo deste texto. O que busco propor, é uma reflexão e análise de alguns exemplos de produção artística no campo da Arte Computacional, para propor estratégias de projeto que se baseiam em práticas poéticas capazes de estimular a produção criativa. Neste contexto, lidamos com estruturas computacionais programadas fora da lógica industrial e capitalista. Arlindo Machado (2008) (14) aponta que a apropriação que a arte faz do aparato tecnológico que lhe é contemporâneo difere de outros setores da sociedade. Para o autor, máquinas semióticas (aparatos tecnológicos) são desenvolvidas em uma lógica de produtividade industrial e automação dos processos, mas nunca para a produção de objetos singulares, singelos e sublimes. Nessa lógica, algoritmos e aplicativos são concebidos industrialmente para uma produção mais rotineira e conservadora, que não perfura limites, nem perturba os padrões estabelecidos (Machado, 2008) (14). É exatamente essa expectativa capitalista que este trabalho busca superar. Pensar aplicações capazes de autoprodução, mas sem a necessidade de excluir a participação humana.
Esclarecidas estas questões iniciais, entende-se que este trabalho está localizado em um ponto de encontro (assimétrico) entre autonomia humana e influência computacional, e que a partir desse ponto de encontro, busca-se estabelecer relações colaborativas entre agentes humanos e computacionais para potencializar a emergência de resultados inesperados no contexto da exploração criativa no campo da produção de arquitetura.
2. Dueto Artístico e Contingência
Como apontado anteriormente, propor uma estrutura de dueto entre ser humano e computação para a produção de arquitetura, significa que a atuação das estruturas computacionais não será limitada às etapas de representação gráfica ou automação de trabalho repetitivo. Essas estruturas também serão consideradas nas etapas de tomada de decisão, e a atuação delas deverá ter influência substancial no resultado do projeto. Para tal, recorro ao campo da Arte Computacional para contextualizar a prática de dueto em que pelo menos um agente humano e um computacional geram inputs substanciais no resultado do produto de Arte.
Esse tipo de estrutura de trabalho é recorrente, e cito aqui, alguns exemplos: Mirror Ritual (2020)(16); Plucking Sounds Out of the Air (2020)(11) e Assembly Lines (2022) (3). Esse tipo de estrutura também pode ser observado em práticas transdisciplinares entre Arte, Artesanato e Design. Essa modalidade de produção artística é circunstanciada pela interação entre agentes computacionais e humanos numa relação ativa ou reativa. Pode-se existir a interação ativa momentânea, em que o resultado é alterado em tempo real, ou a reativa, em que a análise, interpretação e alteração ocorrem fora do laço de funcionamento do algoritmo. No contexto da Arte, um exemplo de dueto é a prática artística de Sougwen Chung, ver figura 1. Seu trabalho Assembly Lines é uma instalação performativa com um sistema multi-robótico personalizado conduzido por meditação e biofeedback. Conforme as palavras da artista e pesquisadora, o sistema da máquina é uma configuração tecnológica que vai além da automação, e que explora os ritmos instintivos da pintura por meio da cocriação humana e da máquina. A prática entrelaça a autoria gestual de sujeitos biológicos (artista) e mecânicos (braços robóticos) no espaço.
Outro exemplo, é o projeto transdisciplinar Crochê Digital(2) que representa uma prática artística e processo de design que busca explorar a técnica de crochê através da inclusão de um autômato celular, que gera padrões gráficos circulares através da recursividade, em outras palavras, a capacidade do sistema em se autorreferenciar e autorregular. Entretanto, a prática inclui o artesão de forma reativa ao solicitá-lo a interpretação dos gráficos, elaboração das regras de materialização e produção das peças. O resultado são peças de crochê com estética não convencional que surgem a partir da influência humana e computacional, como pode ser observado na figura 2.
Ambos exemplos demonstram a inclusão de estruturas computacionais para além do discurso de automação, e desafiam a produção artística que utiliza mídias tradicionais (pintura e crochê) ao propor um processo de coautoria entre agentes numa relação de dueto. Esse tipo de iniciativa desafia estruturas de produção como o artesanato e pintura, porém, oferece possibilidades alternativas de produção que podem levar a resultados inesperados e improváveis, já que se baseiam na relação de surpresa, contingência e improviso durante a interação entre o agente computacional e o ser humano.
Essas práticas são viáveis porque os códigos que operam as máquinas, além de funcionarem em lógicas orgânicas e não mecânicas, são construídos para permitir que elas tenham algum nível de participação ativa. A parametrização é importante, mas quando se controla todos os parâmetros, essa estrutura vira uma máquina de epistemologia mecânica que assume uma causalidade linear - uma causa seguida de um efeito -. Apenas o operador da máquina consegue tirar sua estabilidade, através da alteração do valor dos parâmetros, o que configura um processo de automação da busca por alternativas. É importante entendermos a diferença entre mera estatística e contingência. Hui (2023) (10), aponta que Aristóteles faz a distinção entre dois tipos de possibilidade, túkhē que é o acaso/sorte e, aftómaton que é probabilidade. Aftómaton é homogêneo no sentido de que qualquer resultado é um mero fato estatístico, e túkhē seria um evento completamente inesperado como encontrar uma nota de dinheiro na rua. Aristóteles fala que todas as ocorrências de túkhē são Aftómaton, mas não o contrário. No contexto da Arquitetura e Design, o projeto paramétrico, por exemplo, é Aftómaton e não túkhē porque todos os parâmetros são atrelados a restrições, e o resultado é uma probabilidade de um raciocínio já estabelecido, não existe o acaso ou sorte. A contingência e recursividade computacional são túkhē e se tornam fundamentais para que a máquina consiga se autorregular e autorreferenciar, e dessa forma participar como um coautor, contribuindo com inputs significativos.
Para Yuk Hui (2023) (10), a contingência se afirma no processo artístico como uma necessidade, não somente porque sua eliminação é inviável, mas porque ela tem um papel na composição dos elementos, como nas pinturas abstratas de Kandinsky e na música estocástica de Iánnis Xenákis (21). A contingência e recursividade computacional, quando em contato e troca com a interpretação humana, representam a possibilidade do surgimento de resultados inesperados, porque uma possui a capacidade de potencializar a outra. É essa lógica de operação presente no Assembly Lines e Crochê Digital que busco introduzir no processo de projeto de arquitetura, visando a exploração criativa e a especulação espacial de espaços residenciais, questão a ser apresentada na próxima seção.
3. Dueto Criativo na Arquitetura
Assim como, na prática profissional de Oscar Niemeyer(15) (ver figura 3 ) e outros arquitetos influentes, a busca pela solução espacial acontecia mediante rabiscos, ou esboços exploratórios com grande grau de abstração. Apesar das simulações mentais serem recorrentes no cotidiano dos arquitetos, entende-se que rabiscos exploratórios ou qualquer outro método especulativo, possuem um elevado grau de aleatoriedade, porque a intenção desses métodos é justamente sair da zona de conforto, com isso, nem sempre esses resultados irão corresponder fielmente à simulação mental criada para circunstanciar o projeto.
O código pensado para auxiliar o processo criativo do arquiteto funciona da mesma forma. Ele é uma etapa exploratória e deve possuir um certo grau de abstração, para garantir que o arquiteto consiga fazer sua própria interpretação do que está sendo gerado, e aleatoriedade para que o inesperado surja. Assim como qualquer outro método exploratório baseado na capacidade cognitiva humana, códigos construídos para estimular a criatividade também necessitam de análise e interpretação. Eles não necessariamente devem anular a presença do ser humano no laço de informação ou automatizar o processo criativo. Pelo menos esta não é a intenção desta pesquisa.
Dessa forma, a estrutura de dueto na arquitetura proposta neste artigo, se refere a pelo menos um código com comportamento autônomo que produz resultados via interação momentânea ou não, porém, esses resultados possuem um nível de abstração que demanda interpretação humana. A proposição do dueto implica no entendimento de que o resultado do projeto sofre influência computacional, e que o código contribuiu substancialmente com o resultado. É a mesma lógica de funcionamento de uma prática em que dois arquitetos colaboram. A diferença é que nesse laço de informação o algoritmo se encontra em constante auto-organização e não sofre de cansaço físico, bloqueio criativo ou exaustão. Dessa forma, o potencial de exploração criativa cresce exponencialmente, assim como, o potencial especulativo, impactando no desenvolvimento de soluções espaciais não convencionais, improváveis e possivelmente, até então inexploradas. Tudo vai depender do modelo computacional, da capacidade cognitiva do ser humano, e da interação entre os dois.
FloorPlanGenerator(18) e Blobs Arquitetônicos são dois exemplos de aplicações pensadas nessa estrutura de raciocínio. Os programas geram gráficos de viabilidade espacial baseados em informações tangíveis e reais, utilizados como estímulo criativo para o desenvolvimento de soluções espaciais. Os Softwares não serão explicados detalhadamente devido ao escopo deste artigo, mas, resumidamente, FloorPlanGenerator é um autômato celular que gera manchas residenciais considerando espaços privados, sociais e vazios. A proposta do algoritmo foi inspirada no Jogo da Vida de John Conway (Gardner, 1970) (7), contudo, o emprego de autômatos celulares (CA) na exploração arquitetônica não é recente, a aplicação de CA como método generativo para encontrar soluções arquitetônicas foi utilizado por Krawczyk (2002) (12), Devetakovic et al. (2009) (5), Cruz, Karakiewicz & Kirley (2016) (4), Lee & Kim (2016) (13) e dentre outros. O CA é um método computacional capaz de simular processos evolutivos implementados por um sistema complexo baseado em regras simples. A maioria das aplicações de CA na arquitetura acontecem através da geração de formas conceituais, permitindo que o projetista explore uma variedade de resultados, de onde podem selecionar soluções potenciais (Araghi & Stouffs, 2015) (1). Na interface do FloorPlanGenerator, as proporções entre os espaços, tamanho das células, do terreno e da edificação podem ser alterados via interação. O resultado é amadurecido via esforço humano e a capacidade cognitiva do arquiteto vai definir o projeto final. Nas figuras 4 e 5 podemos ver a interface da versão atual do programa e um resultado preliminar, informações detalhadas sobre o código podem ser acessadas nas referências (18). A premissa poética da aplicação é a interpretação do espaço residencial como um ecossistema em que cada metro quadrado é um ser vivo interagindo com outros seres vivos, neste sentido, a casa está literalmente viva em uma simulação computacional, e o desenho sugerido é resultado de um processo evolutivo que considera as quantidades de espaço social, privado e vazio.
Já a aplicação Blobs Arquitetônicos produz diagramas de bolha representando adjacência entre espaços. Diagrama de bolhas é um recurso utilizado para especular a composição do espaço arquitetônico. Em 1976, Weinzapfel e Negroponte desenvolveram o experimento YONA (Weinzapfel and Negroponte 1976) (20), um exemplo seminal do uso da técnica em ambiente digital, mas existem outros exemplos para contextualizar essa prática, como, por exemplo, Interactive Space Layout (Rush 1978) (17), BUBBLE (Fortin 1978) (6), Floating Bubbles (Hua and Jia 2010) (9), Bubble Diagrams (Veloso 2014) (19), and Graph 2plan (Hu et al. 2020) (8).
Entretanto, diferente dos exemplos citados, Blobs Arquitetônicos, não foca em otimização, mas sim em estratégias criativas e poéticas, e neste contexto, cada Blob (ou bolha) é um habitante de uma simulação de mini mundo. Neste mini mundo, os habitantes interagem entre si e com os agentes externos que são representações de elementos geográficos, como, por exemplo, vento dominante, sol da manhã e tarde, fonte de ruído e vista privilegiada. Cada Blob possui peso de importância e dimensões alteráveis para se ajustar a diversos contextos. Eles crescem ou diminuem, se aproximam ou afastam de acordo com preferências programadas para cada elemento. O código também possui algumas estratégias de aleatoriedade para garantir resultados inesperados. Neste contexto existe um enorme grau de complexidade, o que torna o resultado impossível de prever. Na figura 6 é possível observar a interface atual do programa em funcionamento.
4. Conclusões
Inicialmente, podemos perceber que a poética e indeterminação de estratégias presentes na Arte Computacional, e outras práticas transdisciplinares envolvendo arte e computação são elementos capazes de expandir a exploração criativa no campo da Arquitetura. Os exemplos apresentados ilustram como essas estratégias podem contribuir com a expansão da criatividade em um contexto em que o uso de algoritmos de Inteligência Artificial tem, cada vez mais, se popularizado em áreas criativas. Abordagens que visam a automação e otimização do trabalho são válidas, mas quando divergimos desse contexto, também conseguimos pensar em estratégias e produção de tecnologia capazes de estimular o pensamento crítico e criativo do designer. É exatamente neste ponto que o estudo desenvolvido tem muito a contribuir com outras áreas criativas, não limitando a teoria apresentada ao campo da arquitetura. A discussão proposta deixa claro que existem maneiras alternativas de apropriar a tecnologia, tornando-a uma aliada ativa na criatividade e nos processos criativos.
Sobre as aplicações FloorPlanGenerator e Blobs Arquitetônicos, fica evidente que estas, junto à formulação de dueto apresentada, não são para o usuário genérico que busca automatizar sua produção. Este tipo de abordagem é para o profissional que, dotado de um discurso filosófico artístico, busca expandir suas barreiras criativas, e enxerga na computação uma possibilidade de superar o efeito de concretização do conhecimento causado por ferramentas de mera automação do trabalho.
As aplicações estão em fase inicial de desenvolvimento e precisam de testes para garantir o funcionamento e usabilidade por parte dos usuários. Cada tipo de estrutura computacional implementada nas aplicações oferece recursos para estímulo de criatividade, diferentes níveis de abstrações e limitações de programação. O autômato celular, por exemplo, possui limites de implementação de regras para garantir que o sistema consiga funcionar, isso implica em um output com alto nível de abstração que demanda mais esforço cognitivo e criativo do arquiteto para interpretar os resultados em uma planta baixa. Já o Blobs Arquitetônicos, construído a partir de agentes inteligentes, possui uma proposta de representação e funcionamento que diminui o nível de abstração e subjetividade dos resultados. O material gerado pelo código é um resultado complexo, porém, mais próximo do contexto da prática profissional, o que facilita o processo de leitura e interpretação.
De todo modo, os dois programas ilustram como estratégias poéticas e artísticas aliadas ao poder da computação podem contribuir com o desenvolvimento de resultados criativos. Também é perceptível como a estrutura de dueto é fundamental para conseguirmos implementar formas alternativas de apropriação tecnológica. Sem o reconhecimento da autoprodução dos sistemas computacionais e o entendimento de que eles podem ser nossos parceiros e colaboradores criativos, continuaremos apropriando essas estruturas como simples ferramentas de automação do trabalho, ao invés de utilizá-las para nos fazer acessar e potencializar nosso próprio poder criativo. Para estudos futuros, os softwares serão aplicados em contextos heterogêneos e acadêmicos, visando a análise dos seus impactos tanto na produção de arquitetura como no ensino de projeto.