1. Introdução
Pensar sobre a representação de mulheres na cultura visual não é uma temática recente dos estudos acadêmicos, todavia, permanece propiciando trabalhos relevantes e interessantes. O aprofundamento das teorias feministas é central nessas novas produções, que trazem aspectos críticos renovados e um olhar mais atento às relações de gênero. Estudar as mulheres como produtoras de obras artísticas tão pouco é um esforço recente. A historiadora estadunidense Linda Nochlin, em 1971, discutiu essas e outras questões em seu ensaio que se tornaria um clássico: Por que Não Houve Grandes Mulheres Artistas? (Nochlin, 1971/2016). Adentrar a essa temática traz consigo alguns desafios próprios: de que maneira podemos recuperar as criações de artistas apagadas da história? Onde encontrar essas fontes? Que informações mais detalhadas podem ser descobertas sobre essas mulheres? Se, por um lado, houve algumas artistas consagradas e reconhecidas, por outro, existem dezenas que permanecem no anonimato e desconhecimento.
Tais questionamentos também alicerçam os caminhos de pesquisa na área de história das mulheres. A historiadora Michelle Perrot (2006/2016), uma das principais referências do campo de estudos, enfatiza a necessidade de recuperar os relatos das próprias mulheres, rompendo com a invisibilidade posta às suas trajetórias e com o silêncio das fontes. Esse esforço intelectual em dar voz às mulheres e às suas histórias faz parte de um longo processo de institucionalização que se iniciou em meados do século XX e teve como característica própria uma contínua renovação crítica. É dessa forma que o conceito de gênero como categoria analítica (Scott, 1995) e a abordagem relacional ganham espaço, trazendo para debate questões importantes, tal qual as tensões e negociações entre mulheres e homens, as sexualidades, as noções de masculinidades, virilidade, entre outros. Vale ressaltar que, do ponto de vista historiográfico, os estudos de gênero e a história das mulheres se apresentam, em geral, entre orientações mais ligadas à história social - visando recuperar as experiências das mulheres do passado - e tendências que privilegiam as análises das representações e dos discursos (Franco, 2015).
No que tange à questão do humor, há uma série de outras particularidades que surgem em cena. Vale relembrar que a própria história dos estudos sobre o tema é permeada por dificuldades em sua constituição como campo de pesquisa, muito por conta do desprestígio e indiferença acadêmica que perdurou por décadas (Saliba, 2017, p. 3). Quando pensamos no contexto histórico do Brasil do início do século XX, há também as tensões referentes aos próprios humoristas da época e suas autoimagens. Suas trajetórias não foram sempre “uniformes” ou reconhecidas socialmente, já que a sociedade designou o lugar do humorista como o lugar do efêmero, distante dos circuitos institucionalizados da cultura e da intelligentsia brasileira da época (Saliba, 2002, p. 150).
Além disso, trazer a perspectiva da história das mulheres e das relações de gênero implica acrescentar novas problemáticas ao universo do humor: quem são as mulheres que produzem representações humorísticas? Quais são as características gráficas dessas obras? Sua inserção no meio profissional se deu de qual maneira? Quais as relações que as suas criações estabelecem com os ideais feministas? Há importantes estudos de referência para pensar nessas questões no caso brasileiro. Destacamos a tese de doutorado de Cintia Lima Crescêncio (2016), de título Quem Ri por Último, Ri Melhor: Humor Gráfico Feminista (Cone Sul, 1975-1988), tal qual os trabalhos de Maria da Conceição Francisca Pires (2019, 2021a, 2021b), que se dedicaram a debater o humor gráfico nos quadrinhos produzidos por mulheres, a autodefinição em histórias de quadrinhos de mulheres negras, e a transexualidade nos quadrinhos. Há ainda a tese De Maria a Madalena: Representações Femininas nas Histórias em Quadrinhos de Ediliane Boff (2014) e a dissertação Um Panorama da Produção Feminina de Quadrinhos Publicados na Internet no Brasil de Carolina Ito Messias (2018), entre outros1.
Entretanto, a revisão bibliográfica demonstra que as reflexões que alinham as duas perspectivas - o período histórico do início do século XX e as produções de humor gráfico feitas e/ou veiculadas por mulheres (especialmente as feministas) - são muito mais escassas. Apesar disso, não podemos deixar de citar que foram realizados estudos importantes sobre algumas artistas brasileiras dessa época, tal qual Nair de Teffé: Artista do Lápis e do Riso (Campos, 2016), que trata da trajetória de Rian (o pseudônimo adotado por Nair de Teffé), e alguns artigos publicados que refletem sobre a produção visual de Patrícia Galvão2. De toda forma, a escassez de trabalhos advém de uma série de fatores, tanto do âmbito histórico como historiográfico. No aspecto histórico, há poucas humoristas e artistas gráficas conhecidas da época, o que possivelmente decorre de uma restrição que se impunha nos editoriais e redes de sociabilidade desses meios, dominados por homens. Ainda assim, não se pode deixar de remarcar que o esquecimento e o apagamento de mulheres na história da arte, dos quadrinhos e do humor gráfico como um todo também está ligado à própria historiografia, tratando-se de uma arbitrariedade perpetuada por estudos, dicionários ilustrados e catálogos que deram destaque apenas aos artistas homens3. No caso do Brasil, há também algumas evidências de que o histórico do humor gráfico presente em diversas coletâneas silenciou parte significativa da produção feminina (Crescêncio, 2018, p. 71).
Se distanciando das especificidades do humor gráfico - entretanto, sem perdê-lo de vista - também é possível refletir sobre a presença de mulheres na cultura visual do início do século XX a partir das manifestações políticas e artísticas de alguns grupos sufragistas. Tais grupos de mulheres demandavam principalmente a conquista do direito ao voto, compreendendo que a participação política direta era essencial para sua emancipação4. O uso da imagem como parte fundamental da militância desses grupos foi mais estudado nos casos do sufragismo estadunidense e especialmente do britânico, tal qual no clássico The Spectacle of Women: Imagery of the Suffrage Campaign 1907-14 (O Espetáculo das Mulheres: Imagens da Campanha do Sufrágio 1907-14), de Lisa Tickner (1988). Ainda assim, é possível - e necessário - recuperar as trajetórias de sufragistas de outros países e regiões que igualmente se utilizaram dos recursos imagéticos. No Brasil, a conquista do sufrágio feminino data do ano de 1932, tendo se concretizado na Constituição de 1934. Durante décadas o ativismo foi pautado por figuras como a periodista Josefina Álvares de Azevedo (1851-1913) e a professora Leolinda Figueiredo Daltro (1859-1935). Nos anos da década de 1920, entretanto, o movimento ganhou bastante visibilidade com a atuação tática da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), liderada pela bióloga Bertha Maria Júlia Lutz (1894-1976). A FBPF angariou paulatinamente espaço para divulgar seus ideais na grande imprensa, até que, em 1927, inaugurou a coluna “Feminismo” no jornal O Paiz, onde puderam publicar textos vinculados à militância feminista5. Nesta coluna também aparecem imagens, fotografias, mapas propagandísticos e charges6, provavelmente idealizados pelas próprias participantes da FBPF.
Assim sendo, propomos nesse artigo uma breve reflexão que relacione e conecte as diferentes artistas e obras citadas anteriormente, levando em consideração suas particularidades, suas diferentes intenções e posições políticas, sem perder de vista seus pontos de consonância e sua conjuntura política e social comum: o período tradicionalmente chamado pela historiografia como “Primeira República”. Ao confrontar essas criações entre si, pretendemos dar ênfase às discussões decorrentes dos estudos da história das mulheres e das relações de gênero, para assim elucidar as subversões e os limites presentes em cada narrativa. Serão abordados como fontes principais desta reflexão os três segmentos de produções visuais: (a) as caricaturas (mais especificamente as portrait-charges) de Rian (Nair de Teffé), lançadas na revista Fon-Fon! em 1910; (b) as imagens - que vão desde mapas a charges - que ilustram a coluna “Feminismo” do periódico O Paiz; e (c) as tirinhas satíricas “Malakabeça, Fanika e Kabelluda” de Patrícia Galvão, publicadas em 1931 no jornal O Homem do Povo. Essas obras serão contrastadas com a produção masculina hegemônica, que circulava majoritariamente na imprensa massiva, a fim de que possamos enxergar as inovações - em termos gráficos e narrativos - que os trabalhos das mulheres desenvolveram7.
2. Relações de Gênero e Humor Gráfico no Brasil do Início do Século XX
Diferentes autores e autoras concordam com a dificuldade de estabelecer uma história precisa sobre o surgimento da história em quadrinhos. Há genealogias que apontam a origem dos quadrinhos (ou seus “precursores estéticos”) nas pinturas rupestres, nas images d’Épinal da França do século XVIII, ou na literatura de cordel da Espanha dos séculos XVIII e XIX; mas, indo para além das discordâncias, há um consenso de que os quadrinhos nasceram em fins do século XIX como gênero subordinado ao meio gráfico, tendo sua história associada à imprensa (Levín, 2015, pp. 44-45). Dessa forma, quando analisamos o período inicial do século XX, encontramos uma convergência de diferentes expressões visuais nas revistas ilustradas: ali reproduziam-se fotografias, gravuras, imagens publicitárias, caricaturas, charges e histórias em quadrinhos. Nesse sentido, utilizar o termo “humor gráfico” possibilita uma abordagem conjunta dessas manifestações tão alinhadas no corpus documental da pesquisa. A historiadora Florencia Levín (2015) define o humor gráfico como:
um tipo particular de discurso social que captura fragmentos de ideias, imagens e opiniões que circulam em outros espaços em que se produz o intercâmbio social; lhes transforma e coloca-os de volta em circulação através da imprensa massiva, alimentando assim a produção de aquilo que constitui, ao mesmo tempo, sua própria matéria-prima: o fluxo de representações sociais. E o faz entrelaçando essas redes de representações coletivas sob as cenas imaginárias construídas pelos humoristas (sejam essas referências da realidade ou não). Porque o humor gráfico veicula, necessariamente, o que chamamos de “senso comum”
A partir dessa definição, podemos compreender o humor gráfico tal qual uma expressão estética com implicações sociais muito marcantes: o senso comum circula e se reproduz na imprensa massiva, os fragmentos de ideias e opiniões ganham forma visual, se transformam, mas são, ainda assim, representações sociais. Adotar o humor gráfico em suas diversas formas como fonte de estudo histórico nos permite buscar, entre os seus vestígios, marcas de mentalidades e sensibilidades do passado que podem ou não permanecer no presente. As relações de gênero e as idealizações e projeções de “feminilidade” e “masculinidade” estão sempre presentes se forem observadas analiticamente, tanto pela representação presente nas imagens, como na própria autoria e concepção delas.
Os dados da imprensa e da bibliografia sobre o tema nos revelam, todavia, que o “jogo das representações” a partir do humor gráfico não era equivalente em termos de gênero: nesse contexto, os principais cartunistas das revistas humorísticas massivas eram majoritariamente homens - que produziam, com muita frequência, narrativas que privilegiavam um humor de tipo sexista8 nos diferentes cenários ilustrados. Nesse sentido, antes de avançarmos para as produções gráficas de mulheres, vale a pena analisar brevemente algumas imagens que representam essa corrente mais conhecida e difundida do humor gráfico no início do século XX. Para isso, analisaremos brevemente dois quadrinhos da revista ilustrada humorística O Malho, publicada no Rio de Janeiro desde 1902 e que lançou, em poucos anos, uma ampla circulação nos centros urbanos brasileiros por meio de uma significativa tiragem semanal.
Em diferentes lugares do mundo as leis que regulamentam o direito ao divórcio datam da segunda metade do século XX9. Todavia, os debates sobre o tema são anteriores, pois já apareciam nas vozes de algumas feministas e nas primeiras tentativas de projetos de lei que ocorreriam desde as décadas iniciais do século XX. No ano de 1907, o tema estava em voga no contexto carioca com a publicação do folhetim “A Divorciada” na revista Kosmos (Guimarães & Ferreira, 2009), assim como era um assunto polêmico entre as reuniões do Instituto dos Advogados, que, segundo a revista O Malho, teria “aprovado por dois terços” o “divórcio completo ( ... ) ao que parece, pela doutora Myrthes de Campos10” (Bocó, 1907, p. 8). Tal afirmação consta na mesma edição em que se encontra a história em quadrinhos “O Divórcio”, assinada pelo ilustrador J. Carlos (Figura 1).
Fonte. Retirado de “Guignol - O Divórcio” [Ilustração], por J. Carlos, 17 de agosto de 1907, O Malho, 257, p. 11. Disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional. (http://memoria.bn.br/docreader/116300/9838)
A narrativa gráfica se concentra nos percalços do protagonista “Commendador Cornelio Carneiro, um moralista intransigente” (Carlos, 1907, p. 11) que se indignava com a possibilidade de reconheceminto do direito ao divórcio. Ele é retratado como uma “ingênua vítima” de sua própria esposa e a história delimita essa ideia ressaltando que, no espaço doméstico, havia brigas e discussões (representadas nas primeiras vinhetas) e no espaço público, dos encontros sociais, o “constrangimento” dos “galanteios de inúmeros D. Juans” - tal qual mostra o desfecho do quadrinho. Aqui há uma série de projeções sobre a feminilidade e a masculinidade, além de pressupostos sexistas que regem recursos humorísticos da narrativa. A personagem que representa a esposa do protagonista não tem nome, é chamada “senhora do comendador”, “patrôa” e “madame Cornelio Carneiro”. Ela aparece no início da história como uma mulher descontrolada - o que na época se associava à suposta “natureza emocional” feminina - mas, com o desenrolar da história, revela o seu lado lascivo, sugerindo que mantinha relações extraconjugais. Além disso, “a criada” é a outra personagem que aparece rapidamente na história, retratada de maneira estereotipada como uma ingênua “fiel serviçal”. Ao se comunicar, ela diz “fava ó cloca” em vez de five o’clock - uma espécie de paródia da língua estrangeira utilizada por muitos humoristas brasileiros da época para criar efeitos cômicos11, mas também, assinalar estupidez a tais personagens que as proferissem.
À vista disso, é importante notar que a história de quadrinho, ainda que seguindo o estilo das “comédias de costumes”, compele à figura da esposa uma carga extremamente negativa para os códigos de moralidade da época. O protagonista da narrativa, por sua vez, motiva o divertimento do leitor por sua própria estupidez, ao não compreender a hipocrisia de suas ideias frente ao seu próprio relacionamento conjugal. Assim, a zombaria é intrinsecamente associada aos pressupostos sexistas e patriarcais da “autoridade do marido” que, ao não se sustentar no caso de Cornelio Carneiro, culmina na ridicularização desse personagem “traído por uma mulher” e “incapaz de controlá-la”. Explorar essa “crise da virilidade masculina” como narrativa antifeminista12 era recorrente na imprensa e no humor gráfico, ganhando contornos ainda mais emblemáticos no contexto da Primeira Guerra Mundial (Moreira, 2021).
Em 1906, no Rio de Janeiro, ocorreu um crime que repercutiu na imprensa: o roubo da joalheria de Jacob Fuocco, que acabou em assassinatos e na alcunha dos criminosos como “quadrilha da morte”. Esse episódio inspirou a história de quadrinhos do cartunista Leônidas (Figura 2), que narra uma versão alternativa do ocorrido, em que “as ideias do feminismo já estariam desenvolvidas no Brasil”, dando origem a uma tropa de mulheres policiais que teriam dado outro fim à história. Desse modo, podemos supor que a ideia do autor e do editorial O Malho foi a de mobilizar a curiosidade popular para com o acontecido (não à toa surgiu um romance, uma peça de teatro e dois filmes baseados no crime) enquanto tratavam de um assunto igualmente polêmico na época: o feminismo e a campanha feminista.
Fonte. Retirado de “Documentos Para a Campanha Feminista - Direitos da Mulher” [Ilustração], por Leônidas, 3 de novembro de 1906, O Malho, 216, p. 42. Disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional. (http://memoria.bn.br/docreader/116300/8272)
A ironia, as concepções essencialistas sobre as mulheres e a ridicularização das feministas são os eixos principais da narrativa gráfica. O desfecho positivo do crime - com a prisão em flagrante dos culpados - justifica o título da vinheta, já que o bom resultado poderia ser usado como “documento para a campanha feminista” (Leônidas, 1906, p. 42). Além disso, a boa atuação das mulheres seria decorrência da “curiosidade feminina”, um termo eufêmico para se referir ao comportamento de intromissão, amplamente associado às mulheres. Se o título lança certo deboche aos esforços feministas13, o conteúdo (escrito e visual) do quadrinho de Leônidas (1906) demonstra, do ponto de vista sexista, que o feminismo seria responsável pela “distorção” das figuras femininas. Ainda que o “comportamento feminino” das personagens não fugisse do senso comum, a representação caricaturada delas é pensada para ser absurda e chocante, pois vestem fardas (indumentária masculina) e têm seus rostos e corpos disformes e grotescos, fora dos padrões estéticos da época. A zombaria consiste, assim, no desfecho alternativo do crime protagonizado por “mulheres masculinizadas” - um estigma associado às mulheres feministas com muita frequência.
Analisar brevemente as duas histórias de quadrinhos anteriores nos possibilita visualizar o cenário hegemônico das narrativas gráficas em que apareciam representações de mulheres e de questões caras ao feminismo. Quadrinhos, caricaturas e charges de semelhante teor se encontram em grande quantidade não só nas páginas de O Malho - editorial de grande alcance no Rio de Janeiro - como em outras publicações semelhantes e igualmente populares. As mulheres que apareciam nos quadrinhos como personagens relevantes são, muitas vezes, alvos de críticas moralistas e ridicularizações. No aspecto gráfico, há o uso de distorções quando há a pretensão de deslegitimar a figura das mulheres feministas, afastando-as da imagem idealizada da mulher abundante nas publicidades dessas mesmas páginas. Pensar sobre a presença de mulheres na produção do humor gráfico da época significa, portanto, considerar o ambiente hostil evidenciado pelas produções masculinas massivas.
3. As Portrait-Charges de Rian
Nair de Teffé von Hoonholtz nasceu no Rio de Janeiro em 1886, no seio de uma família aristocrata da capital federal. Ela é conhecida como a primeira caricaturista mulher do Brasil, mas foi sobretudo uma pessoa que explorou o mundo da arte de diversas formas, o que incluiu experiências com o teatro e a música. De toda forma, Nair aprendeu a desenhar em sua estadia na França e ao voltar para o Brasil iniciou a sua trajetória de artista visual em 1906, expondo semanalmente na Casa David e na vitrine da Chapelaria Watson (Campos, 2016). Na imprensa massiva brasileira, Nair passa a ser conhecida a partir de 1910, quando tem uma série de portrait-charges14 publicadas na revista ilustrada Fon-Fon!, em uma sessão chamada “Galeria das Elegancias”. Nesse momento ela já assinava as ilustrações como “Rian” (Nair ao contrário, que soa tal qual rien, “nada” em francês). Exibimos, a seguir, algumas delas: Figura 3, Figura 4 e Figura 5.
Fonte. Retirado de “Galeria das Elegancias” [Ilustração], por Rian, 1910a, Fon-Fon!, 33, p. 15. Disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional. (http://memoria.bn.br/docreader/259063/4999
Fonte. Retirado de “Galeria das Elegancias” [Ilustração], por Rian, 1910b, Fon-Fon!, 34, p. 15. Disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional. (http://memoria.bn.br/docreader/259063/5047)
Fonte. Retirado de “Galeria das Elegancias” [Ilustração], por Rian, 1910c, Fon-Fon!, 35, p. 17. Disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional. (http://memoria.bn.br/docreader/259063/5092)
No aspecto gráfico, nota-se a importância dos trajes e dos traços rápidos, que evidenciam exageros a partir de figuras sintéticas. As caricaturas de Rian lançam um certo deboche crítico às mulheres abastadas que frequentavam os círculos sociais das elites - dos quais ela própria fazia parte (Boff, 2014, p. 221). Por outro lado, há uma série de sutilezas nessas representações que vale a pena ressaltar. As “damas de Rian” ganham uma visibilidade muito diferente do que era habitual no humor gráfico da época, pois não há a masculinização de suas fisionomias ou a sugestão de que fossem mulheres “moralmente desviantes”. Elas aparecem como personagens protagonistas da narrativa visual, com um nome próprio (ainda que abreviado) e a graça está justamente na autenticidade dessas figuras, nas suas expressões risonhas e na importância exagerada que atribuem à moda.
Como bem destacou Maria de Fátima Hanaque Campos (2016), Rian fugia dos estereótipos de outros caricaturistas que representavam as mulheres como biscuit ou espécie de adornos frágeis. Ou seja, quando comparamos a série com outras representações hegemônicas das mulheres na imprensa, há diferenças marcantes e uma visão bem menos idealizada da feminilidade. Ainda que ela se autointitule “nada”, as suas imagens nada têm de ingênuas. Trazer as mulheres sob um novo olhar e caricaturar até as figuras masculinas da cena pública e da política, tal qual ela viria a fazer posteriormente, são atitudes ousadas para uma mulher naquele período. Ainda que sua origem social lhe conceda privilégios notáveis, o comportamento “recatado” e “comportado” era esperado das mulheres - especialmente as burguesas, como ela - e as suas obras foram uma maneira criativa e sutil de subverter as projeções de gênero que recaíam sempre com muita agressividade sobre as mulheres.
Nair vive, de fato, um momento de consagração entre 1910 e 1912, recebendo convites para colaboração na imprensa, expondo as suas artes (Figura 6) e tendo as suas caricaturas publicadas não apenas em Fon-Fon!, mas também em Careta e Gazeta de Notícias, periódicos igualmente relevantes do Rio de Janeiro (Campos, 2016). Em 1913 a artista casa-se com o Presidente Hermes da Fonseca e se torna a primeira-dama do Brasil. A cerimônia, como era de se imaginar, foi um acontecimento público, noticiado e fotografado pelos jornais e revistas da época - inclusive com alguns comentários negativos por parte dos opositores de Fonseca. Segundo Maria de Fátima Hanaque Campos (2016), o novo estado civil não teria interferido na carreira de Rian, entretanto, é na década de 1920 que se encontram as últimas obras caricaturais da artista na imprensa ilustrada carioca. De todo modo, vale salientar que Nair de Teffé “viveu entre a arte e a política com a consciência de que seus gestos artísticos modernos e inovadores tinham extraordinário impacto num mundo político conservador e patriarcal” (Chagas, 2016, p. 62).
Fonte. Retirado de “Notas Artisticas” [Fotografia], por Brun&Cia, 1912, Fon-Fon!, 24, p. 23. Disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional. (http://memoria.bn.br/docreader/259063/10297)
4. As Imagens ao Serviço de um Ideal Feminista - Federação Brasileira pelo Progresso Feminino em O Paiz
A questão do feminismo e dos ideais da “emancipação feminina” ganharam muito espaço na imprensa do início do século XX, motivados sobretudo pelas intensas mobilizações políticas das sufragistas, tanto no exterior como no contexto local. Parte significativa dessa repercussão era crítica e detratora, se dando muitas vezes através da publicação de inúmeras caricaturas, charges e quadrinhos antifeministas, que buscavam ridicularizar e deslegitimar a causa. Essa produção massiva de imagens contrárias implica considerar que, para as militantes feministas, produzir seus próprios materiais, sendo eles textos ou imagens, foi um esforço fundamental e necessário não só para angariar a aceitação pública, mas também para disputar uma reputação própria que estava em constante ataque por parte de muitos editoriais de ampla circulação. No caso específico do sufragismo inglês, especialmente o vinculado à associação Women’s Social and Political Union, a historiadora Lisa Tickner (1988) demonstrou o vasto arsenal de imagens mobilizado pelas militantes, que iam desde trajes para manifestações, estandartes, acessórios, fotografias, cartões-postais propagandísticos e periódicos próprios.
No caso do Brasil, o movimento sufragista do início do século não se concentrou na organização de manifestações públicas tão recorrentes e chamativas tal qual o sufragismo inglês e estadunidense. A professora e ativista feminista Leolinda Figueiredo Daltro, fundadora do Partido Republicano Feminino, em 1910, chegou a organizar passeatas e encontros de mulheres no Rio de Janeiro, mas não há registros de que esses atos tenham se repetido muitas vezes ou tenham ganhado tanta adesão. A partir de 1922, a FBPF, liderada pela bióloga feminista Bertha Lutz, passa a priorizar, por sua vez, uma atuação voltada mais às conferências e meetings políticos. Tais eventos aconteciam com a presença de convidadas (muitas vezes estrangeiras) e eram realizados, na maioria das vezes, em cafés ou hotéis - ou seja, longe das ruas e praças públicas. No lugar dos estandartes e cartazes, as feministas brasileiras priorizaram disputar espaço na imprensa do grande público, tal qual se observa na carta que Bertha Maria Júlia Lutz envia para o editorial da Revista da Semana, em 1918. Segundo Beatriz Berr Elias e Mônica Karawejczyk (2021, p. 14), os periódicos, jornais e revistas foram uma das principais ferramentas de divulgação dos atos da FBPF, apresentando suas demandas e seus argumentos a favor do voto feminino como forma de expandir sua atuação e aumentar suas alianças políticas. É especialmente no jornal O Paiz que a FBPF vai encontrar um lugar privilegiado para trazer sua voz, na coluna “Feminismo”, entre os anos 1927 e 1930.
Beatriz Berr Elias e Mônica Karawejczyk (2021, p. 15), ao analisarem a coluna “Feminismo”, lançam a hipótese de que o periódico O Paiz passa a ceder esse espaço para a FBPR por conta do renovado interesse na questão dos direitos políticos femininos consequentes da aprovação do voto feminino no estado do Rio Grande do Norte, em outubro de 1927, visto como uma expressiva vitória feminista da época. As primeiras aparições da seção já apresentam imagens junto ao conteúdo, tal qual observamos abaixo, com a publicação de um mapa intitulado “As Duas Correntes - A Qual Dellas o Brasil Deverá Filiar-se?” (Figura 7). A imagem tem um viés propagandístico forte, no sentido de utilizar um suposto apoio massivo ao feminismo na Europa (ilustrado pelos países que não foram coloridos no mapa) como forma de convencer os leitores brasileiros de que é uma causa legítima e que merece atenção. É interessante notar que a mesma ilustração foi reproduzida em 20 de abril de 1930 no Diário Carioca, sob o título “Federação Brasileira pelo Progresso Feminino” - entretanto, dessa vez, com a relação corrigida de países que admitiam o voto feminino na Europa, já que, em 1927, o mapa considerou a França como parte dessa “corrente sufragista”, mas na realidade o país só regulamentou esses direitos políticos para mulheres em 1945.
Fonte. Retirado de “As Duas Correntes - A Qual Dellas o Brasil Deverá Filiar-se?” [Ilustração], por Carmen Velasco Portinho, 11 de novembro de 1927, O Paiz, 15727, p. 7. Disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional. (http://memoria.bn.br/DocReader/178691_05/31913)
Ainda que essa imagem não seja o foco de nossa análise, chamamos atenção para o uso dos mapas como forma de comunicar ideias. Há fontes que atestam como as sufragistas dos Estados Unidos, já na década de 1910, manejam esse tipo de representação visual para defender as suas demandas. De modo similar, encontram-se nas décadas seguintes outros “mapas sufragistas” em materiais políticos das militantes da América do Sul, tal qual esse que reproduzimos anteriormente e um mapa elaborado em 1929 pela feminista uruguaia Paulina Luisi, que assinalava em sua legenda: “80 milhões de mulheres votam no mundo - as uruguaias não têm direitos”. Vale frisar que essas mulheres estão usando os mapas como propaganda em uma época em que tais representações eram extremamente associadas ao “mundo dos homens”, às políticas expansionistas/ colonialistas de alguns países e às tensões bélicas que explodiam desde o final do século XIX até à Primeira Guerra Mundial. Elas estão, dessa forma, se apropriando desses símbolos para remarcar o aspecto transnacional e profundamente político que o sufrágio feminino detinha.
Em 1929, a FBPF decide publicar em sua coluna o artigo “Resistindo à Invasão Feminista”, contando ainda com a charge reproduzida na Figura 8. O contexto da publicação é uma polêmica envolvendo um relatório dos Correios que teria se posicionado contra a admissão de mulheres no serviço postal, alegando que as mulheres eram “auxiliares que não ofereciam vantagens ao bom andamento do trabalho burocrático”, já que seus esforços eram sempre “desatentos e falhos” (“Resistindo à Invasão Feminista”, 1929, p. 10). A FBPF reage ao acontecimento, destacando que o relatório “extravasava preconceitos antifeministas”, que o diretor e autor do documento “parecia pertencer a uma escola philosofica passadista” (“Resistindo à Invasão Feminista”, 1929, p. 10) e que descumpria um direito constitucional das mulheres brasileiras. A charge, indo para o mesmo sentido de crítica às declarações do relatório, faz uso do humor gráfico para ridicularizar tais homens antifeministas que permaneciam resistentes à participação feminina em determinadas áreas e conclui: “no século XX, a vassoura do preconceito não amedronta a mulher”. Essa menção ao século XX pode ser entendida como uma tática, recorrentemente empregada pelas sufragistas, de associar o feminismo e os direitos das mulheres às práticas mais modernas do seu tempo. Ou seja, “estar no século XX” é “estar no tempo da crítica de velhos hábitos”, de forma que a resistência às mudanças da condição das mulheres na sociedade aparece como um apelo ao passado, ao arcaico. Tal argumentação tinha altas probabilidades de ser contundente entre os leitores em um momento em que ideias modernistas ganhavam espaço, permeadas pela ânsia de construir novos ares e paradigmas.
Fonte. Retirado de “Resistindo à Invasão Feminista” [Ilustração], autoria desconhecida, 3 de março de 1929, O Paiz, 16205, p. 10. Disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional. (http://memoria.bn.br/DocReader/178691_05/37515)
No aspecto gráfico, a charge não se utiliza das abordagens habituais do humor gráfico antifeminista, como o uso dos traços grotescos, dos absurdos ou dos exageros nas fisionomias e corpos das personagens. A cena adquire um tom humorístico e crítico apenas pela analogia que se faz com a “vassoura do preconceito”, manejada pelo personagem masculino duplamente ridicularizado, tanto pela charge em si quanto pelas mulheres representadas dentro da cena - risonhas diante do sujeito que inutilmente tenta “levantar um grande dique”. Podemos apontar como hipótese que essa característica pouco mordaz da imagem decorre de uma tentativa consciente de se afastar esteticamente das charges antifeministas, além de preservar uma imagem “polida” às críticas feministas. Em outras palavras: não recorrer às representações carregadas, recorrentes no humor gráfico feito por muitos homens antifeministas, pode ter sido uma maneira conveniente de não se vincular a uma prática “tão masculina” tal qual eram as sátiras políticas, já que essas militantes viviam sob a contínua acusação pública de que eram “masculinizadas” por reivindicar direitos políticos.
5. As Tirinhas de Pagu
Patrícia Rehder Galvão nasceu em São João da Boa Vista, no interior do estado de São Paulo, em 1910. Pagu, como ficou conhecida, teve uma trajetória de vida intensa, rompendo continuamente com muitos padrões sociais e expectativas tradicionais do que seria o “comportamento feminino”. Ela é publicamente lembrada como militante comunista e escritora, mas teve também uma série de trabalhos ligados às artes visuais que nem sempre são mencionados. Pagu teria começado a desenhar na revista Antropofagia, apresentando um álbum que reunia desenhos e textos dedicados à pintora Tarsila do Amaral (Boff, 2014, p. 222). Além disso, produziu croquis que foram reunidos e publicados apenas em 2004, no livro Croquis de Pagu: E Outros Momentos Felizes que Foram Devorados Reunidos, organizado por Lúcia Maria Teixeira Furlani (2004). Para a nossa análise, selecionamos as tirinhas “Malakabeça, Fanika e Kabeluda” elaboradas para o semanário O Homem do Povo, editado por ela e Oswald de Andrade - seu marido na época - durante o ano de 1931, em São Paulo.
O primeiro ponto a se destacar é que os quadrinhos de Patrícia Galvão, tal qual seus romances e outros escritos, evidenciavam partes da própria vivência da autora, podendo ser considerados como produções autobiográficas (Nogueira, 2017, p. 5). Kabelluda é a protagonista das suas tirinhas de O Homem do Povo e possivelmente guarda muitas similaridades com os posicionamentos da própria Pagu, pois a personagem é combativa, participa de ações políticas e vive sua vida sexual de maneira livre, o que era considerado um escândalo aos padrões morais da época. Na Edição 4, a narrativa ilustra a participação da protagonista em um meeting comunista em um espaço público, chamado “Praça da Lamparina” (Figura 9). Logo ela é surpreendida pela repressão policial, expressa de forma ligeira e crua, pois Kabelluda “é presa” e em seguida “fusilada” (Galvão, 1931a). Há uma rápida quebra de expectativa entre a mulher que vibra, no alto de uma manifestação, ao seu total oposto, quando é detida e calada. Todavia, a expectativa é novamente desvirtuada com o ressurgimento da personagem no último quadrinho - o que é, por sua vez, uma clara alusão satírica à passagem bíblica que narra a ressurreição de Cristo. O ressurgimento de Kabelluda é comemorado por outras personagens que já estavam em cena, entre elas, algumas mulheres.
Fonte. Retirado de “Malakabeça, Fanika e Kabelluda”, por Patrícia Galvão, 2 de abril de 1931, O Homem do Povo, 4, p. 6. Disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional. (http://memoria.bn.br/DocReader/720623/24)
Ainda que possa parecer, para os olhos atuais, uma história simples e rudimentar, Pagu está tratando de um tema polêmico para os anos 1930: a participação das mulheres na política por via da militância. As personalidades que optaram por esse caminho, independentemente de seu viés ideológico, encontravam forte oposição dentro e fora dos movimentos. Além disso, elas enfrentavam críticas duras vindas da opinião pública e algumas chegavam a sofrer perseguições políticas, como foi o caso com Patrícia Galvão. Kabelluda foi brutalizada e presa, antecipando aquele que seria o futuro de sua própria criadora (Nogueira, 2017, p. 8). Ademais, podemos destacar como Pagu usa de vários elementos cômicos com uma acidez própria, trazendo em si uma mensagem de autoafirmação da mulher que defende seus ideais políticos. Kabelluda, ao ressurgir, externa ao mundo: “agora vocês me pagam!”.
Por sua vez, a vinheta publicada na Edição 7 aborda uma dimensão da sexualidade livre da personagem, pois ela se envolve com vários homens e ao fim escolhe, de acordo com sua própria vontade (e sem constrangimentos), com quem quer fugir - o próprio “homem do povo” (Galvão, 1931b; Figura 10), que dá nome ao jornal. Kabelluda rejeita “o sargento” e “o político cartolão”, o que demonstra também a sua rebeldia e sua crítica aos ideais burgueses do matrimônio, demonstrando que aquelas figuras, ainda que tivessem prestígio social aos olhos da sociedade, pouco interessavam a ela. No aspecto gráfico, mantêm-se os traços ligeiros e divertidos, contrastando humoristicamente os cenários lúdicos - de nuvens e estrelas - com a temática revolucionária e ousada da protagonista feminina.
Fonte. Retirado de “Malakabeça, Fanika e Kabelluda” [Ilustração], por Patrícia Galvão, 9 de abril de 1931, O Homem do Povo, 7, p. 6. Disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional. (http://memoria.bn.br/DocReader/720623/42)
Se comparamos com o quadrinho “O Divórcio”, analisado anteriormente neste artigo, há uma mudança significativa na maneira como essa personagem é vista diante de sua própria sexualidade. A mulher não é retratada a partir de uma moral conservadora e sexista. Kabelluda não deve satisfações aos homens que abandona e não é julgada pela narrativa, tal qual no caso da “madame Cornelio Carneiro”. Nas demais tirinhas de Pagu, as dimensões de gênero são igualmente presentes: ela aborda o tema da maternidade não reconhecida (e o repúdio público gerado por isso), da rivalidade feminina e a reprodução de sexismo por parte das próprias mulheres, tanto quanto a questão da rebeldia e da subversão política quando impulsionada por uma mulher.
6. Mulheres que Ilustram, que Fazem Rir, que Fazem Política
As três primeiras décadas do século XX revelaram um período de transformações políticas intensas no Brasil, que vão da consagração ao definhamento da chamada “Primeira República”. Esse é o contexto comum desses diferentes grupos de fontes que mencionamos até então, que demonstram, de certa forma, como as perspectivas de mudanças nas relações entre homens e mulheres também faziam parte desse cenário de disputas e tensões. Nesse sentido, observar a pluralidade de representações presentes especialmente na produção gráfica feminina nos permite considerar o quanto essas iniciativas, dentre outras coisas, buscaram romper com as concepções sexistas vigentes. Assim, o que se evidencia em todas as suas obras, sejam elas quadrinhos, charges ou caricaturas, é o anseio (e a ousadia) de mulheres que assumem a voz da narração sobre si próprias, se colocando como mulheres produtoras e mulheres que comunicavam para outras mulheres.
Seja para dar visibilidade às suas compatriotas dos salões, para criticar e rir dos homens antifeministas ou para explicitar as hipocrisias e o elitismo da sociedade burguesa, o que há em comum entre todas elas é o gesto de tirar a autoridade dos homens em produzir discursos sobre elas, sobre seus direitos e sobre seus comportamentos. Nunca é demais relembrar que essa autoridade masculina era assegurada por leis ainda patriarcais naquele momento - tal qual o Código Civil e a própria Constituição, que, por exemplo, não previa o voto das mulheres.
Nas criações de Rian, da FBPF e de Pagu, há também mudanças no que tange os padrões do humor gráfico vigente (em geral, como vimos, de teor sexista e/ou antifeminista). Desta vez são os homens que se tornam alvos do riso e da chacota - mas não por serem homens, e sim por serem irrelevantes e antiquados aos propósitos das personagens femininas. Há também a presença do riso feminino, retratado como um gesto natural das mulheres, e não algum tipo de insinuação moral sobre seus próprios comportamentos. Como destacou Cintia Lima Crescêncio (2016), podemos chamar a atenção para a diferença da abordagem humorística de viés feminista, que parte de pressupostos e temáticas distintos dos do humor hegemônico e antifeminista. A autora demonstra, inclusive, que, entre as ativistas dos anos 1970 e 1980, o tema do feminismo em si era pouco comum em suas produções (Crescêncio, 2017, p. 88), o que é sintomático, pois destoa do humor massivo antifeminista que geralmente não perdia a oportunidade de fazer piadas com o movimento social e com as suas representantes. As obras de mulheres que analisamos anteriormente, pelo contrário, trazem figuras permeadas pelo desejo da autodeterminação - que é, no fim das contas, um pilar dos feminismos, ainda que algumas dessas ilustrações não tenham sido produzidas com esse viés explícito.
Assim sendo, observar brevemente a trajetória dos quadrinhos e do humor gráfico a partir de uma ótica que privilegia o gênero como categoria de análise nos mostra que, apesar do cenário de disputas, a perspectiva feminista de valorizar a subjetividade das mulheres se impõe desde muito cedo nas produções feitas e/ou veiculadas por elas. Nesse sentido, não se trata de reafirmar um ponto de vista essencialista sobre as artistas mulheres e as suas obras. A questão posta é a de que Rian, as articulistas da FBPF e Patrícia Galvão evidenciaram, por diferentes formas e abordagens, que o meio gráfico poderia ser também um meio para expressar contrapontos e críticas às tendências sexistas de representação feminina. As personagens mulheres não precisavam ser sempre o alvo do riso “por serem mulheres” ou por “se comportarem como mulheres”. Elas podiam ser as protagonistas das histórias, podiam rir das outras figuras em cena, podiam tratar de assuntos políticos - tudo isso sem passar pelo julgamento moral cínico do humor irônico ou dos traços grotescos que visavam ridicularizar. Nesse sentido, são trabalhos inovadores do ponto de vista do gênero.
A relação entre as mulheres, a política e as representações visuais pelos quadrinhos não é uma conexão que se restringe ao passado. Pelo contrário, a subversão expressa nas ilustrações do início do século XX reflete ainda nas obras mais atuais que tratam das mesmas temáticas. Um exemplo disso é a novela gráfica Bertha Lutz e a Carta da ONU (Amma & Kalil, 2021), publicada pela editora Veneta em 2021.
A história de quadrinhos conta a história da passagem de Bertha Lutz como representante da “Conferência de São Francisco” de 1945, onde foi redigida a Carta da Organização das Nações Unidas, que visou criar um pacto global de paz e cooperação internacional pós-guerra. Nesse episódio importante da política internacional, a feminista brasileira teve um papel central na incorporação da igualdade de gênero no documento oficial. Segundo as autoras do quadrinho, Amma e Angélica Kalil (2021), o relato seguiu muito fielmente as Reminiscências da Confederação de São Francisco que Bertha escrevera na década de 1970, e o projeto priorizou que “a narrativa continuaria nas mãos de Bertha, ela mesma estaria no controle” (Amma & Kalil, 2021, p. 120).
O desafio de trazer a perspectiva feminista para as representações se mantém perene, ligando o passado e o presente, pois mulheres com a importância política de Bertha Lutz ainda não são conhecidas pelo grande público. Produções contemporâneas tal qual Bertha Lutz e a Carta da ONU (Amma & Kalil, 2021) dão continuidade, portanto, ao exercício das mulheres artistas e articulistas de ressignificar as suas próprias imagens, especialmente quando se trata do mundo da política. Afinal de contas, os estereótipos pejorativos das mulheres na política e das feministas são inúmeros, ainda marcados por imagens e associações misóginas que, por ora, resistiram ao tempo.
7. Considerações Finais
Estudar as mulheres nos quadrinhos e no humor gráfico, seja como autoras, seja como representações, não é apenas um gesto de reconhecimento. Incorporá-las às análises é um passo fundamental para compreender, de forma mais completa, todo o universo dessas expressões visuais: afinal de contas, as mulheres sempre apareceram nas narrativas e sempre fizeram parte das sociedades em que tais representações foram criadas. Evidenciar o aspecto das relações de gênero é uma opção teórica de não invisibilizar o quanto tais conflitos de poder permeiam os diferentes grupos que produzem e consomem a cultura material em diferentes épocas. O objetivo desse breve olhar sobre o caso brasileiro consistia, dentre outros pontos, em ir além do retrospecto histórico das mulheres cartunistas do início do século XX. Nos interessou, através do contraste com as produções hegemônicas sexistas, destacar de que maneira as questões de gênero e a autoimagem feminina são transformadas nos trabalhos idealizados por Nair de Teffé, pelas militantes da FBPF que atuaram na coluna “Feminismo” e por Patrícia Galvão, a Pagu.
Apesar do renitente sexismo, já no início do século XX se manifestaram representações diferenciadas e contestatórias produzidas por mulheres. Em seus traços, vemos novos modos de retratar as personagens nos quadrinhos, compreendendo essas figuras como sujeitos de sua própria história e de suas próprias vontades, sem para isso tornarem-se alvos de ridicularizações. Essas mulheres riem dos homens, mas riem também de si mesmas. Demonstram, através das imagens, a importância de construir continuamente o seu lugar na política e na esfera pública e de defender os seus ideais com as mais diversas estratégias. Ainda que suas obras possam ter caído no esquecimento ou na marginalidade, elas trouxeram contribuições ao próprio humor gráfico, já que as suas perspectivas sobre representação feminina tensionavam o fluxo das ideias, imagens e opiniões correntes na imprensa. Com isso, passam a ocupar espaços historicamente negados, se apropriando do debate público sobre as questões políticas, os comportamentos e a condição feminina. Tal qual sintetiza Carolina Ito Messias (2018) na conclusão do seu mestrado:
o mundo das histórias em quadrinhos sempre contou com mulheres talentosas, desde os primórdios das publicações na imprensa. Trazer a produção feminina à luz significa reconhecer o protagonismo das mulheres enquanto criadoras e enriquecer o debate público com outras narrativas e olhares sobre a realidade, outras formas de abordar (e, sobretudo, questionar) o que é ser mulher. (p. 99)