1. Introdução
Neste início do século XXI, o crescente sucesso das narrativas gráficas não parece ser objeto de disputa, como já apontava Chute (2008), entre tantos outros, há mais de uma década. O volume e a diversidade de títulos disponíveis no mercado, o lançamento de coleções por jornais generalistas, a cada vez mais frequente adaptação de textos clássicos ou mesmo a incidência de processos de transmedialidade, que levam o universo das narrativas gráficas para o cinema ou mesmo para os videojogos, por exemplo, reforçam essa perceção.
Explorar o potencial comunicativo desse medium, que engloba tanto as tradicionais bandas desenhadas, que se popularizaram nos jornais impressos, principalmente, até aos romances gráficos, publicados, muitas vezes, em edições de luxo, é o foco deste artigo. No atual mercado mediático global, qual é o alcance e a força desse género? Dadas as suas características básicas - associação à cultura popular, combinação de recursos visuais e textuais, exigência de um suposto baixo grau de literacia, facilidade e rapidez de circulação -, qual a sua aptidão para abordar temas fraturantes das sociedades contemporâneas, como a promoção dos direitos humanos e o combate à desigualdade e ao preconceito?
Como base da nossa reflexão, tomaremos a antologia de banda desenhada Nódoa Negra (Lopes et al., 2018), coordenada por Dileydi Florez e publicada, em 2018, pela editora portuguesa Chili com Carne, com o objetivo de explorar a capacidade da narrativa gráfica para representar questões tão difíceis, complexas e ambíguas (Williams, 2012, p. 21) como a experiência da dor, mais concretamente a dor no feminino.
Após uma breve contextualização do volume em análise, explanamos o conceito de narrativa gráfica como forma e/ou estratégia de comunicação e linguagem, com o intuito de perceber o seu potencial para a construção de narrativas sobre temas complexos e, muitas vezes, conflituosos. Dentre eles, o nosso foco incide sobre a dor no feminino, frequentemente invisibilizada, ou mesmo negada, tanto em termos culturais como médicos. Estas questões são ilustradas no último ponto, onde analisamos um conjunto de narrativas em Nódoa Negra (Lopes et al., 2018) que têm na dor feminina o seu tema principal, atentando no modo como a linguagem (texto e imagem) é utilizada para representar a experiência física e emocional da dor.
Ao intersetarmos narrativa gráfica, representação e dor no feminino, esperamos não só contribuir para uma melhor compreensão do espaço e impacto das narrativas gráficas no campo dos estudos de cultura e comunicação, como também demonstrar o seu potencial para as humanidades médicas, área multidisciplinar que cruza arte, literatura e medicina com o intuito de melhorar os cuidados de saúde (Bleakley, 2015).
2. Nódoa Negra: Breve Contextualização
A iniciativa de Nódoa Negra (Lopes et al., 2018) é atribuída a Dileydi Florez, que, em resposta ao desafio lançado pela associação Chili com Carne, no seu concurso anual “Toma Lá 500 Paus e Faz uma BD!”, coordenou a produção da obra, vencedora da edição de 2017, e publicada, em 2018, pela editora do mesmo nome.
Como descrito na sinopse em contracapa, a antologia foi impulsionada por uma “vontade de trabalhar a plasticidade e diferentes entendimentos da dor enquanto temática” (Lopes et al., 2018), contemplando não só a dor física, mas também a emocional. Houve 11 artistas (algumas de referência, outras emergentes) que responderam ao repto, bem como a jornalista e crítica literária Sara Figueiredo Costa (2018), responsável pelo texto introdutório “Escala Sem Dó”, o único em prosa; à época, as 12 autoras exerciam a sua atividade profissional em Portugal (Moura, 2019). Todas as histórias configuram narrativas gráficas - mais especificamente, bandas desenhadas -, e são todas de autoria única, ou seja, resultam de projetos individuais das respetivas criadoras, que respondem por imagem e/ou texto, em tom pessoal e/ou ficcional, ao desafio de representar a dor - experiência particularmente complexa e de difícil expressão, como explanado adiante.
Por ter sido exclusivamente elaborado por mulheres, Nódoa Negra (Lopes et al., 2018) pode ser entendido como um gesto de afirmação, tendo em conta a preponderância da autoria masculina no universo da banda desenhada e das narrativas gráficas, no qual Portugal não é exceção. É importante recordar que o mundo das narrativas gráficas, em especial o das bandas desenhadas de natureza comercial, é invariavelmente associado ao universo masculino: quer na criação, com a predominância de autores e ilustradores; quer no consumo, com destaque para os leitores de diferentes faixas etárias. Apenas a título de exemplo, em Variantes: Uma Homenagem à BD Portuguesa, publicado em 2022, do total de 35 autores homenageados, apenas duas são mulheres.
Esta intenção de reclamar um espaço feminino é corroborada por Florez, impulsionadora deste projeto colaborativo, ao declarar-se mais alinhada com banda desenhada feita por mulheres, e ao salientar a influência de autoras como Power Paola ou Julie Doucet (Ribeiro, 2018). Já Sara Figueiredo Costa frisa a importância deste projeto ter sido feito exclusivamente por mulheres, tendo em conta a invisibilidade anterior de autoras femininas na banda desenhada: “tem sobretudo a ver com um espaço que não é reclamado e que muitas vezes é negado” (Ribeiro, 2018, para. 7).
Porém, segundo Costa, este cenário tem vindo a mudar (Ribeiro, 2018), e continua de facto a mudar, como exemplificado pela edição de 2022 do Festival Amadora BD, que procurou dar visibilidade à banda desenhada feita por mulheres. Também Moura (2019, p. 109) observa um movimento de abertura, especialmente neste início de século XXI, com a entrada em cena de novas autoras e ilustradoras, a exemplo da obra aqui analisada, que veio no seguimento de esforços anteriores em criar espaços femininos na banda desenhada, como por exemplo os fanzines Gasp, de 1992, ou All-Girlz, de 2011-2012. No entanto, uma rápida consulta às livrarias comerciais é suficiente para se notar o flagrante desequilíbrio, no que se refere ao género, na autoria das obras destacadas nas prateleiras. Sem prejuízo da relevância do tema da representação de género no contexto das narrativas gráficas, este não será objeto central da presente reflexão.
Ainda que integralmente criada por mulheres, Nódoa Negra não se cinge à dor no feminino, pois apresenta uma perspetiva abrangente de uma experiência que, como Florez relembra, é “comum a todo o ser humano ( … ) e é preciso que venha cá para fora” (Ribeiro, 2018, para. 1). Enquanto algumas narrativas abordam a dor de um modo mais geral ou figurativo, outras mostram-se ancoradas na experiência física e cultural do feminino (nomeadamente “Pequeno Almoço com Sísifo”, de Marta Monteiro, “Distimia”, de Inês Cóias, “Bons Costumes”, de Sílvia Rodrigues, “Siento y Sangro” (Sinto e Sangro), de Dileydi Florez, e “O Castigo”, de Bárbara Lopes), retratando vivências como o parto, dores menstruais, ou a dor causada pelo peso do patriarcado. Tendo em conta o nosso propósito, a nossa análise concentrar-se-á posteriormente nestas cinco histórias, aqui entendidas como narrativas gráficas.
3. Narrativas Gráficas Como Forma de Comunicação e Estratégia de Intervenção Social
Nesta reflexão, optamos pela adoção do conceito de narrativas gráficas, em linha com as propostas de Chute (2008) e Davis (2019), por exemplo, de modo a acomodar a grande variedade de média passível de ser assim classificada, entre elas a banda desenhada. Em comum, tais narrativas adotam um formato híbrido, envolvendo recursos verbais e visuais, num dado registo espacial e temporal, que envolve duas formas de leitura: a textual e a visual (Chute, 2008, p. 452).
Quanto à banda desenhada, especificamente, esta é caracterizada pela justaposição de imagens e texto, numa sequência específica, com o intuito de se contar uma história ou de provocar uma reação estética no/a recetor/a, como afirma McCloud (1994, p. 20). O autor, entretanto, não deixa de acentuar o caráter aberto e inacabado de tal definição, sempre em processo de revisão, transformação e reinvenção (p. 23).
Segundo Groensteen (1999/2007), a característica básica e essencial, embora não suficiente, das narrativas gráficas, seria a “solidariedade icónica”, ou seja, a existência de um conjunto ou série de imagens interdependentes que, ao mesmo tempo, existem de forma singular e coexistem em associação umas com as outras. Daí a relevância da ideia das narrativas gráficas como uma espécie de sistema de comunicação. Vale aqui apontar que o autor defende o predomínio da imagem sobre o texto, ao mesmo tempo que afirma que as narrativas gráficas constituem uma linguagem, pois configuram um conjunto de mecanismos de produção de significados.
Assim como Groensteen (1999/2007), Davis (2019) analisa a perspetiva das narrativas gráficas como comunicação, sem, entretanto, defender o predomínio da imagem sobre o texto. Partindo da abordagem de Halliday ao conceito de linguagem, que remete para a coexistência de três metafunções - ideacional, interpessoal e textual -, o autor defende que as narrativas gráficas desempenham esses mesmos papéis.
Nesse contexto, a ideia de linguagem não implica a definição de uma sintaxe própria, ou seja, de regras gramaticais definidas, mas sim a capacidade de construção de representações de mundo e de valores (metafunção ideacional), de identidades e de relações entre sujeitos (metafunção interpessoal) e de organização e produção de sentido (metafunção textual). Esse entendimento constitui a base da chamada linguística sistémico-funcional (Gouveia, 2009).
Essa caracterização das narrativas gráficas, por si só, realça o potencial comunicativo do género, mas não o esgota. Na perspetiva dos estudos de cultura e comunicação, tais objetos mediáticos são fortemente associados ao campo do entretimento e da cultura popular ou de massas, mas sem deixar de lado a perspetiva do humor, da sátira, da crítica e da intervenção social, uma vez que se popularizaram nas páginas dos jornais (Round, 2014).
No que se refere à receção, prevalece, em alguma medida, a perceção de que as narrativas gráficas, ao menos nas suas versões mais comerciais, implicam um baixo nível de literacia, sendo facilmente compreendidas por uma faixa alargada de público - o que carateriza, de certo modo, a cultura popular e de massas, marcadamente antielitista. O recurso à imagem, o texto de fácil leitura, a simplicidade e linearidade das narrativas, a construção de estereótipos onde os papéis de herói, vilão e vítima são facilmente reconhecidos reforçam tal entendimento (Chute, 2008).
Ainda nesse sentido, a associação de tais objetos ao entretenimento pode implicar menor resistência do leitor ao seu conteúdo. Essa faceta será retomada logo a seguir, quando refletirmos sobre o potencial das narrativas gráficas para a discussão de temas sociais fraturantes e de difícil consenso. Antes de prosseguir, entretanto, importa ressaltar a relevância do conceito de literacia, em sentido amplo, e de literacia digital e mediática, em sentido estrito, que implica a aquisição e/ou desenvolvimento de capacidades analíticas e de comunicação necessárias à vida em sociedade neste século XXI (Hobbs, 2010).
Para McCloud (1994), o elemento essencial da linguagem das narrativas gráficas é a vinheta, a dividir espaço e tempo. Esta configuraria uma primeira unidade de sentido. A sequência e a relação entre vinhetas, com os necessários espaços vazios construídos entre elas, constituem a linha condutora da leitura - aqui entendida em sentido amplo. Tendo isso em conta, Groensteen (1999/2007) insiste no papel ativo do leitor, que é instado a participar e colaborar na construção de significados de modo a colmatar tais espaços ou ausências.
Adotando-se a perspetiva da semiótica social, na aceção de van Leeuwen (2005), a relação entre imagem e texto, que configura um duplo código semântico, é elemento intrínseco ao processo de construção de significados. Extraído do seu contexto - isto é, analisado de forma isolada e independente de recursos de imagem -, o texto tem o seu potencial de significação alterado (Miodrag, 2011). Davis (2019) propõe uma forma de leitura alternativa que reconhece a amálgama texto-imagem, evidenciada no uso da expressão “imagemtexto” como sendo o foco da análise, resgatando o conceito de “enunciado” (em inglês, “utterance”; pp. 278-280), que nos parece o mais adequado para dar conta da enorme variedade de estratégias de comunicação compatíveis com o universo das narrativas gráficas.
Ao lado das versões comerciais, há uma grande oferta de narrativas alternativas, tanto no campo da ficção como da não-ficção, com o lançamento de obras de caráter autobiográfico, histórico ou jornalístico, representadas, apenas a título de exemplo, por Persepolis, de Marjane Satrapi (2000/2007); Maus, de Art Spiegelman (1991/2014), e Paying the Land (Pagando a Terra), de Joe Sacco (2020). Em Portugal, o jornal Público, que regularmente organiza publicações de novelas gráficas, lançou recentemente a Coleção Novela Gráfica VI, que inclui obras como Ao Som do Fado, de Nicolas Barral (2021/2020), e As Paredes Têm Ouvidos, de Giorgio Fratini (2008/2020), que abordam, cada uma de seu modo, o período da ditadura civil portuguesa, com ênfase no papel repressivo e violento da Polícia Internacional e de Defesa do Estado.
Esse conjunto aleatório de referências díspares consiste numa breve ilustração da afirmação de Chute (2008, p. 460), ao refletir sobre o reconhecimento das narrativas gráficas como um veículo cultural influente na contemporaneidade. Ao mesmo tempo, subverte, pelo menos em parte, a noção redutora de que o grau de literacia exigido por esse objeto mediático seria pouco exigente.
Não é novidade para ninguém que, no campo dos média, passamos por uma fase de mudanças aceleradas e intensivas. Nesse cenário em constante transformação, que opera cada vez mais em espaços globais onde línguas, culturas, experiências e sensibilidades se multiplicam, as narrativas gráficas, como linguagem e estratégia de comunicação, parecem adaptar-se bastante bem (Grossberg et al., 2006; Hall, 1992/2014).
As baixas barreiras de acesso, características da cultura popular e de massas, a relativa facilidade de tradução como forma de superação de entraves linguísticos, a liberdade da forma - que privilegia a inovação -, assim como a rapidez e agilidade da leitura fazem do recurso à narrativa gráfica uma estratégia de comunicação bastante compatível com a atualidade.
A aceleração da vida, a necessidade de inovação constante, a rápida obsolescência de tudo (pessoas, produtos, ideias, valores), a adoção de uma noção de autenticidade bastante esvaziada são algumas das marcas deste mundo contemporâneo, no qual a atenção adquire valor monetário. Nesse universo, as narrativas gráficas parecem circular com certa facilidade e despertar o interesse de uma audiência bastante alargada e diversificada, sem esquecer o apelo junto do público mais jovem, já acostumado à linguagem híbrida e multimodal das redes sociais, que envolvem, por sua vez, não só a combinação de texto e imagem, como também som e movimento.
Se o potencial de comunicação das narrativas gráficas parece indiscutível, resta explorar a sua aptidão para promover o debate sobre temas sociais controversos e complexos, dentre eles, as questões de género, nomeadamente a representação e o reconhecimento da dor no feminino, foco da presente reflexão. Para refletir sobre o tema, partimos do conceito de representação e exploramos algumas estratégias recorrentes nas narrativas gráficas. Longe de esgotar as suas possibilidades, o que nos interessa é verificar a existência ou não de tal aptidão.
Segundo Chute (2008, p. 459), em linha com McCloud (1994), a linguagem da narrativa gráfica consegue justapor passado e presente, em desafio, portanto, aos modos tradicionais e dominantes da construção narrativa. Some-se a isso a sua capacidade de diluir as fronteiras entre o que pode ser dito e o que pode ser mostrado, em outras palavras, a possibilidade de mostrar o que não pode ser dito e de dizer o que não pode ser mostrado.
O nosso ponto de partida é o de que qualquer contato com a realidade é sempre mediado. Essa mediação dá-se por meio da linguagem, entendida aqui de forma lata de modo a acomodar toda a diversidade que caracteriza a comunicação hoje. Nesse recorte, e tendo por fundamento os estudos culturais, toda a linguagem consiste em alguma forma de representação, e representar implica, necessariamente, o duplo movimento de seleção e recorte (cf. Hall, 1992/2014; Potter, 1996; Thompson, 1995/2004).
Posto isso, o corolário direto de tal afirmação é o de que não há neutralidade possível nessa representação. Deixando de lado o universo ontológico e adotando-se uma perspetiva pragmática, não nos interessa aqui discutir a existência de uma realidade a priori, que não pode ser apreendida senão por via da representação, ou seja, falamos aqui da construção socio-discursiva da realidade (Potter, 1996).
Daí a relevância da representação: identificar quais representações são construídas, por quem e com que valor significa analisar questões de agência e sujeição e relações de poder estruturantes das nossas sociedades (cf. Castells, 1997/2007; Hall, 1992/2014). O poder de representar e ser representado, e a nossa capacidade de intervir nesses processos, indica a nossa posição social nesse mundo estratificado e desigual que chamamos de nosso. Não por acaso, na sua reflexão sobre o papel da comunicação na sociedade em rede, Castells (2009/2013) conclui pelo poder da comunicação, mas essa reflexão não cabe aqui.
Os processos de construção de identidades, estereótipos e estigmas desenvolvem-se em significativa dependência do contexto comunicativo, em geral, e mediático, em particular - e as narrativas gráficas fazem parte desse universo. Já foi apontada a falta de representatividade das mulheres nas versões comerciais, assim como o viés sexista de muitas dessas representações (Brown & Loucks, 2014), mas essa é apenas uma parte da história. Mais uma vez, a grande diversidade das obras publicadas tem de ser levada em conta - e o objeto escolhido como estudo de caso nesta reflexão é exemplo disso.
Em seu estudo sobre as representações da violência de género nas narrativas gráficas italianas, Mandolini (2020) explora tais possibilidades, ao mesmo tempo que alerta para os riscos inerentes à representação. O desafio inicial é bipartido: por um lado, como representar o trauma dentro de um quadro ético que afaste a representação da violência sexista de forma gratuita; por outro, como evitar a construção de papéis fixos e estanques para vítima e algoz, mulher e homem, perpetuando a ideia de vitimização da mulher e da violência masculina?
Outra perspetiva a destacar é a crescente utilização da linguagem das narrativas gráficas, em função das suas “reconhecidas qualidades narrativas e didáticas”, para a divulgação da ciência e da reflexão académica, como bem apontam Mandolini e Mookherjee (2022, p. 3), ao referir, por exemplo, o trabalho de Mookherjee e Najmun Nahar, com a publicação de Birangona, em 2019, que reúne um conjunto de orientações sobre a recolha de depoimentos orais sobre o tema da violência sexual em situações de guerra. Do mesmo modo, abordar a banda desenhada Nódoa Negra (Lopes et al., 2018) com o intuito de entender a representação da dor no feminino evidencia as qualidades didáticas deste género narrativo no campo da ciência, nomeadamente da medicina, onde imperam discrepâncias várias em torno do reconhecimento e tratamento da dor.
4. A Dor no Feminino: Desafios e Complexidades
Quando falamos de dor, referimo-nos a uma experiência que, não obstante a sua transversalidade e universalidade, constitui um conceito polivalente de difícil definição, como apontado por Boddice (2014, p. 1): se, por um lado, a dor manifesta um estado interior (fisiológico ou neurológico), por outro pressupõe o seu reconhecimento por parte de outrem. Além de a dor se enquadrar em diferentes tipologias (física e psicológica), implica uma determinada vivência, expressão e reconhecimento que, por seu turno, diferem consoante o género1.
Começando pela vivência da dor, considera-se que a dor afeta mais as mulheres do que os homens: segundo Barbosa e Cardoso (2022, p. 17), além de terem um risco acrescido de dor crónica, as mulheres estão mais suscetíveis a desenvolver quadros clínicos de dor como endometriose, dismenorreia, entre outros.
Quanto ao reconhecimento da dor, importa referir as disparidades de género observadas no contexto da Saúde. Nos Estados Unidos, por exemplo, Banco et al. (2022, p. 5) notam diferenças no tratamento hospitalar urgente de mulheres e homens com dor torácica: o tempo de espera é superior para as mulheres, enquanto a prescrição de exames ou fármacos é inferior. O mesmo tipo de disparidade foi observado por Chen et al. (2008, p. 415) no caso da dor abdominal aguda, nomeadamente na prescrição de analgésicos, havendo, no caso das mulheres, uma probabilidade inferior (até 25%) destes lhes serem prescritos e administrados.
No caso específico de Portugal, onde cerca de 28% das mulheres vive com dor crónica, Barbosa e Cardoso (2022, p. 17) traçam um retrato semelhante, já que as mulheres afirmam ter passado várias vezes pela desvalorização das suas queixas. Barbosa e Cardoso (2022) referem ainda a acomodação por parte das mulheres ao desconforto e consequente normalização do sofrimento, considerando que o tratamento da dor é inadequado por várias causas: “seja porque a dor ainda é negligenciada por parte das mulheres e de alguns profissionais de saúde, seja porque se torne difícil atuar sobre a sua causa” (p. 20).
Este ponto vai ao encontro de Bartley e Filligim (2013), para quem as disparidades entre mulheres e homens no reconhecimento e tratamento da dor se devem não só a questões biológicas, como também a processos psicossociais diferenciadores de género, onde se inclui, como Bever (2022) sublinha, a ausência das mulheres da investigação científica ao longo dos tempos.
Como possíveis justificações para estas discrepâncias, importa referir o predomínio de normas distintas de género no modo como a dor é vivenciada e percecionada. Segundo Samulowitz et al. (2018, pp. 5-6), no caso da dor crónica, estas normas ancoram-se num paradigma hegemónico andronormativo, em que a dor no masculino é associada a características como força, resistência e estoicismo, enquanto a dor no feminino é entendida como emotiva e histérica.
De facto, a infiltração dos estereótipos de género no reconhecimento e tratamento da dor é perniciosa para ambos os géneros, como apontado por Barbosa e Cardoso (2022, p. 17): nos homens, o pressuposto do estoicismo fá-los menosprezarem a sua própria dor, ao passo que as mulheres, ao serem associadas a uma suposta fragilidade física e psíquica, correm o risco de ver a sua dor desvalorizada.
Por conta deste entendimento estereotipado, a dor no feminino é muitas vezes atribuída a causas psicológicas (mesmo quando a raiz é puramente física) e, por conseguinte, descredibilizada. Este aspeto é sublinhado por Hossain (2021), ao afirmar a existência de um fosso entre homens e mulheres no reconhecimento da dor, sendo frequente a descredibilização da dor no feminino.
Em boa verdade, a cisão entre dor física e psicológica tem sido amplamente contestada. Com base num estudo realizado por Eisenberger, Lieberman e Williams, o neurocientista Panksepp (2003, p. 237) levanta a possibilidade de a dor psicológica ocasionada por uma perda ou exclusão social seguir os mesmos circuitos cerebrais que a dor física, o que não só reconhece a validade da dor psicológica, como a coloca ao mesmo nível da dor física.
Por seu turno, Biro (2014, pp. 53-54) questiona até que ponto determinados estados afetivos (como a rejeição, o luto ou a perda) não serão capazes de desencadear uma dor semelhante à causada por lesões físicas. Pese embora o entendimento dominante da dor como um evento puramente físico, fortemente baseado no dualismo cartesiano, Biro (2014, p. 54) chama a atenção para a mudança ocorrida em meados do século XX, altura em que se começou a observar o impacto de fatores psicológicos na modulação da experiência da dor.
Por conseguinte, a definição consensual da dor foi reajustada de modo a dar conta das complexidades que lhe são inerentes. Segundo a página web da Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (s.d.), traduzindo a definição apresentada pela sua congénere dos Estados Unidos da América, a International Association for the Study of Pain, a dor é “uma experiência sensorial e emocional desagradável associada, ou semelhante à associada, a danos reais ou potenciais nos tecidos” (para. 3). Porém, como Biro (2014, p. 55) aponta, ainda que esta redefinição inclua a dimensão emocional e subjetiva, mantém-se ancorada na dor física, não dando diretamente conta da dor psicológica. Aliás, à luz do discurso científico atual, a dor psicológica é remetida para uma outra categoria, a do “sofrimento” e da “angústia” (p. 55), o que a torna num oxímoro ou numa metáfora.
A complexidade da dor está vertida no volume em análise, nomeadamente na atenção que Nódoa Negra (Lopes et al., 2018) dedica às suas diferentes manifestações, fazendo inclusive referência ao neurocientista Jaak Panksepp no texto introdutório, “Escala Sem Dó”, de Sara Figueiredo Costa (2018), que a certo ponto afirma:
algumas reflexões mais tarde, vem a pancada; o que nos dói, dói-nos mesmo, pouco importa se há trauma físico ou não ( ... ). Ninguém nos pede para quantificar as outras dores, as que não nascem do corte, do choque físico ou dos órgãos em avaria. “De 0 a 10, quanto lhe dói sentir-se absolutamente sozinho e perdido?” Se pedissem, e se tentássemos, haveríamos de tropeçar na impossibilidade da resposta e na imprecisão das palavras. (pp. 7-8)
Além de reconhecer a validade da dor psicológica, Costa (2018) aponta um aspeto fundamental da dor ao referir a “impossibilidade da resposta” e a “imprecisão das palavras” (pp. 7-8): a sua difícil relação com a linguagem verbal. Nesse sentido, e referindo-se concretamente à dor física intensa, Scarry (1987, p. 4) argumenta que, mais do que resistir à verbalização, a dor destrói a linguagem por implicar uma regressão a um estado pré-linguístico, aos sons e gritos emitidos antes da aprendizagem linguística.
Enquanto Scarry (1987) entende que a dor não só é inefável, como aniquiladora da própria linguagem, Boddice (2014, p. 1) afirma que é possível exprimir a dor, mas que esta expressão é inevitavelmente imprecisa por ser emotiva e subjetiva. Para Boddice (2014, p. 1), esta tradução indefinida da experiência física em palavras, trejeitos e arte é uma forma de converter as nossas vivências subjetivas em metáforas, um processo que permite fazer sentido do que sentimos.
Também Schweizer (1997, p. 2) defende a possibilidade de representar a dor, afirmando aliás que arte e dor são análogas entre si, pois ambas advêm de um espaço prélinguístico, estando o seu sentido presente na sua dimensão não-referencial, na sua temporalidade subjetiva e na sua especificidade irredutível. A expressão artística da dor, segundo Schweizer (1997, pp. 3-4), é intrinsecamente paradoxal, sendo tão impossível quanto necessária, o que novamente nos conduz às palavras de Costa (2018) em Nódoa Negra, a propósito da tentativa de representar a dor:
é capaz de ser aí que nasce a vontade de contar histórias, com palavras ou imagens ou ambas. E talvez a vontade seja quase sempre necessidade, mas a escolha de palavras tende a cair para a falésia onde fingimos melhor o equilíbrio. “De 0 a 10, quão melhor se sente por colocar numa narrativa as dores que não sabe suportar?”. (p. 8)
Esta breve reflexão sobre a dor evidencia a proporção do desafio assumido pelo coletivo de autoras do qual Costa faz parte: representar a dor, nas suas mais diversas manifestações, por meio da linguagem híbrida que caracteriza a narrativa gráfica.
5. Nódoa Negra e a Representação da Dor no Feminino
Enquanto projeto colaborativo que reúne diversas explorações da dor, Nódoa Negra (Lopes et al., 2018) apresenta naturalmente alguns pontos em comum. Além do tema, destaca-se, graficamente, a ausência de cor na totalidade do volume (exceto na capa e contracapa), o que lhe confere coerência visual. A opção pelo preto e branco cria ainda uma certa sobriedade e depuração, sugerindo também uma ligação com o título (como se as narrativas fossem marcas negras na pele do papel).
Um outro ponto em comum refere-se ao cenário em que estas narrativas decorrem, tendencialmente espaços interiores e domésticos, com uma tónica dominante no mundano. Se, por um lado, a preponderância do doméstico, do comum e do quotidiano remete para a esfera convencional do feminino, aqui reconfigurada em lugar de experimentação, por outro cria, segundo Moura (2019), um espaço adequado à representação da dor, uma “plataforma de expor a dor, nas suas mais distintas vertentes e implicações” (p. 111).
As narrativas em Nódoa Negra (Lopes et al., 2018) adotam uma perspetiva inclusiva ao representar não só diferentes géneros, mas também várias faixas etárias e diferentes tipos de dor. No entanto, tendo em conta o propósito da nossa reflexão, selecionámos cinco histórias específicas, nas quais analisaremos a utilização do duplo código semântico texto-imagem para expressar a dor - física e/ou emocional - no feminino.
A primeira história em análise, “Pequeno-Almoço com Sísifo” (pp. 23-30), de Marta Monteiro, pauta-se pela não-referencialidade, não se reportando diretamente a uma determinada tipologia de dor. No entanto, esta indefinição não tem correspondência visual, uma vez que o estilo gráfico é linear e as pranchas apresentam um padrão simétrico e sequencial (duas vinhetas por prancha, do mesmo tamanho, texto e imagem em cima, imagem em baixo; cf. Figura 1), com foco alternado numa tigela com comida e numa figura humana. Ainda que esta figura seja algo andrógina, há uma outra representação visual de um corpo feminino nas vinhetas superiores.
Fonte. Retirado de “Pequeno-Almoço com Sisífio”, de M. Monteiro, 2018, in B. Lopes, C. Silveira, D. Florez, Hetamoé, I. Caria, I. Cóias, M. Monteiro, Mosi, P. Guimarães, S. Costa, S. Rodrigues, & S. Monteiro (Eds.), Nódoa Negra, p. 28. Copyright 2018 por Marta Monteiro.
Observa-se uma tensão (e fusão) entre a esfera humana e animal, em que a atividade rotineira do pequeno-almoço é gradualmente invadida por formigas e caracóis, até a figura humana ficar coberta por formigas e a tigela repleta de caracóis (que, entretanto, saíram das suas conchas). Tanto as formigas como os caracóis podem ser entendidos como metáforas visuais que sugerem desconforto, desumanização e alguma repulsa, o que ilustra o entendimento de Boddice (2014, p. 1) sobre a tradução da vivência subjetiva da dor em metáfora.
Das oito vinhetas superiores, seis têm brevíssimas frases, quase todas rasuradas, e mostram-nos o trajeto de um caracol. As frases, que aqui transcrevemos (“todos os dias momentos”; “aguardo impacientemente”; “que partas.”; “de manhã”; “tenho medo receio acordar”; “e ter-te de volta.”; pp. 23-29), remetem para um ciclo repetitivo e desconfortável, reforçado pela referência à figura mitológica de Sísifo. A rasura, por seu turno, sugere dificuldade de expressão e hesitação, criando diferentes camadas de significado - estratégia que remete para o uso que Derrida (1967/1997) atribui a este termo, de modo a salientar a impossibilidade de fechamento, ou seja, de determinação de um significado único e final. Além disso, a elisão remete para os desafios inerentes à representação da dor, indo ao encontro de Scarry (1987).
Quanto às imagens sequenciais do caracol nas vinhetas superiores, importa referir o movimento e o ciclo de transformação aqui representados. Inicialmente, vemos o caracol a mover-se, transportando lentamente a sua concha, para a certa altura a abandonar e dar espaço a uma figura feminina, que passa agora a carregá-la (Figura 1). A concha, símbolo de corpo e de casa, é aqui um pesado fardo que diariamente se (des)carrega.
Por seu turno, “Distimia” (pp. 31-37), de Inês Cóias, refere-se à dor psicológica, como indicado pelo título, que designa uma forma de depressão persistente (American Psychiatric Association, 2013, p. 168). A figura central é feminina, visível quer nas imagens, quer no texto. Ao contrário da história anterior, “Distimia” é visualmente mais difusa, seguindo um padrão menos simétrico, com variabilidade na inclusão do texto; a relação entre texto e imagem é, ainda assim, de complementaridade.
A história retrata memórias de uma experiência passada, quando ela (a distimia) aprisionava a personagem, isolando-a num mundo à parte, pautado pelo vazio, pela solidão e pela ansiedade, sendo a música a sua única companhia. O sofrimento não é explícito, mas sugerido pela dificuldade de expressão (“as coisas que não sabia relatar ficaram enterradas noutra parte qualquer”; p. 35) e pelo rasto de violência física (“como o buraco aberto na porta com um martelo que a mãe mais tarde tapou com papel autocolante a imitar madeira”; p. 35).
Por seguir o fio da memória, a narrativa é fragmentada e episódica, não apresentando uma ordem clara de eventos, mas vários episódios entrecortados por analepses e prolepses: começamos nos tempos de faculdade, passamos pela infância, e terminamos no momento presente. Neste percurso caleidoscópico, há uma assumida distorção dos eventos, explicitada em palavras (“os episódios são encenados e revividos, num fio embaraçado de situações que se multiplicam e desdobram”; p. 36) e em imagens, nomeadamente na televisão distorcida do início (como se o que se segue fosse um filme, também ele pouco nítido).
Ainda que a história não siga uma linha narrativa diacrónica, há um fechamento na circularidade visual criada pela repetição da mesma organização das pranchas no início e no final, e pela presença repetida dos olhos. Se, no início, os olhos aparecem semicerrados, fechados em si mesmos e no mundo interior da personagem, no final há uma metamorfose, em que os olhos não só estão abertos, mas transformados numa entidade autónoma, com folhas e raízes que afinal são asas e lhe permitem voar livremente, sugerindo mudança e libertação (Figura 2) - como se o nosso olhar, o que vemos e como vemos, nos pudesse libertar.
Fonte. Retirado de “Distimia”, de I. Cóias, 2018, in B. Lopes, C. Silveira, D. Florez, Hetamoé, I. Caria, I. Cóias, M. Monteiro, Mosi, P. Guimarães, S. Costa, S. Rodrigues, & S. Monteiro (Eds.), Nódoa Negra, p. 37. Copyright 2018 por Inês Cóias.
Também “Bons Costumes” (pp. 69-80), de Sílvia Rodrigues, apresenta como foco a dor psicológica, mas de uma ordem diferente. Enquanto a distimia é um distúrbio resultante de fatores bioquímicos, genéticos e ambientais (American Psychiatric Association, 2013, p. 170), a dor psicológica retratada em “Bons Costumes” é causada pelo espartilho da tradição patriarcal.
Ao contrário de “Pequeno-almoço com Sísifo” e “Distimia”, “Bons Costumes” segue uma linha narrativa clara, guiada pela visão de um narrador omnisciente. A história centra-se na personagem L. (a utilização de iniciais é aqui significativa, remetendo para o anonimato, mas maximizando por outro lado o potencial de identificação), dona de casa convencional, responsável pelas tarefas domésticas e familiares que lhe ocupam a totalidade do tempo. No entanto, L. talha neste espaço doméstico de traços turvos, repleto de figuras grotescas (assaz sugestivas da estética da pintora Paula Rego; cf. Figura 3), um lugar subversivo de liberdade: a salinha das plantas, à qual ela chama de “selva” (p. 72).
Fonte. Retirado de “Bons Costumes”, de S. Rodrigues, 2018, in B. Lopes, C. Silveira, D. Florez, Hetamoé, I. Caria, I. Cóias, M. Monteiro, Mosi, P. Guimarães, S. Costa, S. Rodrigues, & S. Monteiro (Eds.), Nódoa Negra, p. 78. Copyright 2018 por Sílvia Rodrigues.
Ainda que L. tenha recebido uma educação convencional, como o narrador relata, assente numa atribuição rígida de papéis (a mulher como altruísta, abnegada, “o coração da família” e da casa, ambas da sua inteira responsabilidade; p. 73), desde a infância que L. resiste através das plantas, colecionando catos às escondidas da mãe. Mais tarde, depois de casar, L. assume este espaço de liberdade, mas o marido, M., é igualmente condenatório desta idiossincrasia da esposa, criticando-a por se dedicar a algo que não tem qualquer utilidade, ou seja, a uma tarefa que, enquanto mulher, não lhe deveria interessar.
Esta necessidade subversiva de apreciar o inútil mantém-se quando L. se muda para a cidade, expressando-se agora numa obsessão por pombos enclausurados. À semelhança da salinha das plantas, sinónimo de natureza domesticada, os pombos representam um aprisionamento com o qual L. se identifica: “L. fotografava os pombos incessantemente como quem fazia selfies ( … ). Se calhar era porque, apesar de todo o conforto, também eles não tinham escapatória” (p. 80). O espaço doméstico de L. é um cárcere, uma gaiola que a mantém imóvel e dormente e da qual deseja sair, picando-se propositadamente nos catos para se lembrar que tem um corpo que sente: “a busca por uma dor física que a arredasse desta dormência constante não era novidade” (p. 78; Figura 3). Enclausurada e sem voz (aliás, o narrador fala por ela), L. resiste ao rever-se nas plantas e nos pombos, também eles corpos vivos privados de liberdade.
Enquanto “Bons Costumes” se centra na dor psicológica causada pelo peso do patriarcado, as duas histórias que se seguem - “Siento y Sangro”, de Dileydi Florez (pp. 81-94), e “O Castigo”, de Bárbara Lopes (pp. 95-106) - tratam expressamente da dor física no feminino, nomeadamente a síndrome dos ovários poliquísticos (SOP) e o trabalho de parto.
Das narrativas incluídas no volume, “Siento y Sangro” é a menos ambígua, servindo-se de uma linguagem mais referencial, suportada por um estilo gráfico linear e uma organização consistente de quatro vinhetas por prancha. Ao contrário de “Bons Costumes”, esta história é narrada na primeira pessoa, com abundante utilização de legendas e balões de fala, ruído e pensamento; nesta história com mulheres e sobre mulheres, todas elas têm voz e espaço de fala.
“Siento y Sangro” relata uma situação vivida no passado, em que um episódio mundano de socialização - cozinhar com amigas - é interrompido por dores intensas, causadas pela SOP. Apesar do ambiente de normalidade rotineira, há uma preocupação em atribuir seriedade à narrativa. Ao datar a história (“em novembro de 2017 a Nata e a Tere combinaram fazer pizas e convidaram-me”; p. 82), a autora dignifica este evento, elevando-o acima do corriqueiro e tornando-o merecedor de atenção.
Já a inclusão de informação médica sobre a SOP (imagem do aparelho reprodutor feminino e descrição de causas, fatores de agudização e mecanismo de ação; cf. Figura 4) confere um teor didático à narrativa que aqui se apresenta como transmissora de conhecimento científico, uma forma criativa de ensinar e aprender sobre a doença (Williams, 2012, p. 21).
Fonte. Retirado de “Siento y Sangro”, de D. Florez, 2018, in B. Lopes, C. Silveira, D. Florez, Hetamoé, I. Caria, I. Cóias, M. Monteiro, Mosi, P. Guimarães, S. Costa, S. Rodrigues, & S. Monteiro (Eds.), Nódoa Negra, p. 93. Copyright 2018 por Dileydi Florez.
Além disso, a interseção entre narrativa na primeira pessoa e informação médica contribui para a credibilização da dor no feminino, exemplificando o potencial da narrativa gráfica para representar e valorizar uma experiência dolorosa, mas frequentemente desconsiderada, como afirmado a certa altura: quando uma das amigas pergunta à personagem principal se quer ir às urgências, ela responde: “não, obrigada… Eles não vão fazer nada a não ser passar receita para comprimidos” (pp. 87-88).
Nesse sentido, “Siento y Sangro” é passível de suscitar uma maior sensibilização junto de profissionais de saúde, pois cria uma ponte entre o conhecimento sobre a doença (neste caso, a SOP) e a compreensão sobre a vivência subjetiva dessa mesma doença (Williams, 2012, p. 21), alinhando-se assim com o propósito das humanidades médicas: a humanização dos cuidados de saúde (Bleakley, 2015). Deste modo, além de sublinhar o potencial da narrativa gráfica no âmbito da saúde, “Siento y Sangro” vai ao encontro da recente popularidade do conceito “graphic medicine” na produção de narrativas gráficas, como enunciado por Czerwiec et al. (2015). Ao materializar um corpo feminino que sente e sangra, intersectando arte e medicina, a narrativa de Florez contribui para o (re)conhecimento da SOP, tornando esta experiência válida e merecedora de atenção por parte de quem a lê.
Em “O Castigo”, este cruzamento entre linguagem artística e científica é aprofundado, explorando as várias dimensões - religiosa, histórica e médica - do trabalho de parto. A conciliação entre arte, cultura, medicina e história resulta da utilização de diferentes linguagens que, no entanto, não colidem entre si. Lopes apresenta informação histórica e científica através de citações da Bíblia (p. 97) e referências factuais (pp. 98, 102), o que não só confere legitimidade à narrativa, como cria ressonância cultural.
De todas as narrativas, “O Castigo” é a que inclui mais texto, que ora ocupa um espaço livre na página, ora está dentro da vinheta. As pranchas apresentam uma organização variável e orgânica, intercalando tiras sequenciais com vinhetas que ocupam a totalidade da prancha. Refira-se ainda a presença de um traço forte e fluido, e de imagens com textura, abertas a múltiplas interpretações. Temos, por exemplo uma sequência de diversas representações da vulva, em diferentes fases da dilatação cervical (Figura 5). Composta por duas tiras verticais, cada uma com três vinhetas com imagens escuras e claras, a sequência mostra-nos não só várias fases da dilatação cervical, mas também uma luz que gradualmente se vai intensificando, o que remete para uma designação mais poética do trabalho de parto: dar à luz.
Fonte. Retirado de “O Castigo”, de B. Lopes, 2018, in B. Lopes, C. Silveira, D. Florez, Hetamoé, I. Caria, I. Cóias, M. Monteiro, Mosi, P. Guimarães, S. Costa, S. Rodrigues, & S. Monteiro (Eds.), Nódoa Negra, p. 103. Copyright 2018 por Bárbara Lopes.
Esta harmonização entre estética, medicina e história cria um ambiente propício à leitura do relato de uma experiência particularmente dolorosa, o trabalho de parto, e as tentativas, ao longo dos tempos, de amenizar essa dor. Como indicado pelo título, nas culturas de matriz judaico-cristã, o parto é visto como um castigo merecido. Partindo da validação religiosa da dor no feminino, a narradora enumera várias tentativas de apaziguar esse sofrimento ao longo dos tempos, desde a Antiguidade, com mezinhas e placebos feitos a partir de plantas, passando pelo século XVIII, com a utilização de fórceps e de substâncias como o éter e o clorofórmio - tentativas estas que encontraram resistência por parte da Igreja, avessa à possibilidade de um parto indolor.
Nesta linha temporal, a autora dá especial destaque à Rainha Vitória, dedicando-lhe duas pranchas integrais, uma vez que, em 1853, a rainha utilizou sedativos pela primeira vez, administrados por um médico, incentivando assim as mulheres a procurarem apoio médico aquando do parto. Este episódio é-nos apresentado de forma teatral, como se fosse uma “história dentro da história”, recorrendo a balões de fala em discurso direto e em língua inglesa, intercalados com as legendas da narradora, como que envolvendo quem lê.
Porém, mesmo na medicina, o terreno estava minado, como visível pela utilização, no início do século XX, de morfina e escopolamina, combinatória que tornava as mulheres agressivas - e, consequentemente, alvo de agressão (pp. 102-103). Neste ponto, atentemos na imagem de uma mulher em trabalho de parto (Figura 6), banhada em luz e dor no centro da vinheta, rodeada de figuras escuras e assustadoras (um médico no meio, várias enfermeiras à volta), como se fossem entidades sobrenaturais (ou desumanas).
Fonte. Retirado de “O Castigo”, de B. Lopes, 2018, in B. Lopes, C. Silveira, D. Florez, Hetamoé, I. Caria, I. Cóias, M. Monteiro, Mosi, P. Guimarães, S. Costa, S. Rodrigues, & S. Monteiro (Eds.), Nódoa Negra, p. 105. Copyright 2018 por Chili Com Carne.
Este cenário foi-se gradualmente alterando, uma vez que, na atualidade, a utilização de procedimentos como a epidural ou a cesariana permitem um parto menos doloroso. Na prancha final, deparamo-nos com uma reflexão mais pessoal: “As minhas avós não tiveram acesso a estas opções - ninguém sequer lhes perguntou se queriam ou não contribuir para a multiplicação do homem pela terra. É bom ver o quanto as coisas mudaram desde então para as descendentes de Eva” (p. 106). Esta legenda, a par da imagem de uma mulher serena, com um bebé ao colo, conclui a história num tom otimista, contrário à severidade inicial.
Além de alargar o espetro de representação da experiência da dor, indo além da linearidade narrativa, o cruzamento entre texto-imagem, narrativa pessoal, medicina e história em “O Castigo” contextualiza a vivência (física e cultural) do parto. Deste modo, afirma-se o valor da narrativa gráfica não só para profissionais de saúde, mas, sobretudo, para a sociedade em geral, como argumenta Williams (2012), por permitir a identificação entre leitores e narrativa, e por convidar à aprendizagem.
Apesar do foco comum na dor, nenhuma das cinco narrativas analisadas reforça dinâmicas de vitimização ou culpabilização: aqui, não há heróis nem vilões, mas sim mulheres que sentem, agem, e se movem em diferentes espaços - físicos, culturais e históricos. Partindo do pessoal como (inevitavelmente) político, as diversas experiências representadas extravasam os limites do espaço privado do corpo ao entrar na esfera pública, servindo, nas palavras de Moura (2019), como “um escalpelo de análise de violências sistémicas nas nossas sociedades” (p. 112).
Longe de se conformar aos, muitas vezes, estreitos espaços dos livros de banda desenhada para crianças, as narrativas de Nódoa Negra (Lopes et al., 2018) configuram uma esfera de experimentação e expressão, envolvendo o/a leitor/a nessa empreitada. Por um lado, temos o próprio formato da banda desenhada, que pede uma colaboração ativa por parte do/a leitor/a na criação de significados, sequenciando vinhetas e colmatando espaços vazios, como Groensteen (1999/2007) descreve. Por outro, a temática da dor invoca abertura e vulnerabilidade, o que pede não só uma leitura ativa, mas eticamente consciente na receção da experiência do “outro”, como sublinhado por Scarry (1987, p. 6). Trata-se, portanto, de uma leitura responsável, na aceção de Attridge (2004), um modo de ler que, além de convocar ação, é hospitaleiro e recetivo ao “outro” (pp. 130-131). Numa altura em que, como Sontag (2003) nos relembra, a sobre-exposição ao sofrimento alheio cria uma “fadiga compassiva” (p. 111), é urgente olharmos a dor com empatia, num trabalho essencialmente criativo e imaginativo.
6. Conclusão
A capacidade e flexibilidade de construção de representações - quer de espaços, personagens e/ou ideias - propiciada pela narrativa gráfica, a partir da articulação das especificidades da sua linguagem (“imagemtexto”) e do seu potencial comunicativo, foi aqui evidenciada pela diversidade de estratégias adotadas pelas diferentes autoras, assim como pela amplitude de interpretações abertas aos leitores e às leitoras.
Nesse sentido, a nossa reflexão junta-se à diversidade de olhares sobre a obra em análise, tendencialmente focados na questão da autoria exclusivamente feminina de Nódoa Negra (Lopes et al., 2018), já que doze mulheres tomam para si o poder de representar e serem representadas. Do mesmo modo, importa atentar nos temas por elas explorados - no caso em estudo, a dor no feminino - e como tal convida a uma reflexão sobre o lugar (muitas vezes, restrito) que as mulheres ocupam numa sociedade de pendor patriarcal.
Esperamos que a nossa leitura de Nódoa Negra (Lopes et al., 2018) à luz de uma perspetiva multidisciplinar tenha contribuído para um entendimento mais aprofundado da sua textura. Em primeiro lugar, ilustrou-se a relevância cultural e comunicativa da narrativa gráfica, sublinhando a sua capacidade de comunicar questões tão complexas e de difícil expressão como a dor. Em segundo lugar, demonstrou-se o potencial da narrativa gráfica no âmbito da saúde ao abrir um espaço de debate sobre diferentes perceções do corpo em sociedade. Por fim, o foco específico na dor no feminino trouxe a lume as desigualdades de género em torno do reconhecimento, tratamento e perceção da dor, apelando assim a uma maior (e necessária) consciencialização por parte de profissionais de saúde e da sociedade em geral.