1. Introdução
Won’t you help to sing These songs of freedom? Bob Marley, Redemption Song, 1980
No prefácio à edição brasileira de O Atlântico Negro, Paul Gilroy (1993/2001) sugere que os movimentos antirracistas estiveram frequentemente articulados com “fortes versões de consciência histórica” (p. 17), construídos pela criação da memória de coletividades dotadas de patrimônio político e hermenêutico. Recusando a premissa de uma solidariedade racial automática, seu argumento exige reconhecer os esforços para formular e compartilhar interpretações subversivas do passado ao criticar o mundo “tal como ele é”. Que essas interpretações tenham sido elaboradas longe das (e em contraste com) versões históricas oficiais não deveria causar estranhamento. Ainda assim, há algo de profundamente subversivo em identificar compositores e compositoras como intelectuais e reconhecer que a luta contra o racismo é também uma luta estética e identitária, parte do longo processo de “tornar-se negro” (Souza, 1983), uma tarefa política coletivamente informada.
Para Gilroy (1993/2001), a memória é dinâmica e a luta contra o racismo é também uma luta de conscientização histórica. Isto porque a forma como contamos o passado expressa relações de poder e dominação, reveladas na própria dificuldade de acessar fontes documentais. O aniquilamento das revoltas contra a escravização, por exemplo, incluiu a destruição e o apagamento intencional de indícios das dissidências. As estratégias de censura operacionalizadas pelo projeto de poder ressoam hoje na manutenção do “pacto narcísico” (Bento, 2002, p. 49) e na perpetuação dos privilégios raciais simbólicos e materiais da branquitude (Müller & Cardoso, 2017, p. 15). Isso é verdade também para narrativas sobre os traumas da escravização e do colonialismo. Nos termos de Seligman-Silva (2008), a negação “antecede o próprio ato” (p. 75). Como este autor, acreditamos que a “política da memória” é complexa e que o trauma pode encontrar um meio expressivo em formas artísticas “imaginativas” capazes de coletivizar narrativas.
Para contornar a monopolização do passado, seguimos a proposta metodológica de Gilroy (1993/2001) de estudar o repertório musical produzido nos circuitos d’O Atlântico Negro. Este é um cânone não-hegemônico cuja tradição oferece um “modo melhorado de comunicação” (p. 164) de conhecimentos censurados nos arquivos oficiais. De acordo com essa matriz teórica, cabe analisar o poder da música negra na comunicação de informações, na mobilização política, na articulação da consciência e organização das lutas antirracistas. Em outras palavras, é tarefa também analítica articular (e legitimar) os registros do passado e o compromisso obstinado da música que celebra memórias e lutas do povo negro com a promessa de um futuro melhor. Isso porque, como observou o autor (Gilroy, 1993/2001), há nessas estéticas e contraestéticas uma “dramaturgia da recordação” que separa genealogia e geografia, ampliando a noção de pertencer, onde grupos que agem conjuntamente acabam por se munir de uma energia mais “substantivamente democrática do que a raça jamais permitirá existir” (p. 13).
Propomos um exercício de interpretação de quatro letras consagradas da música popular brasileira (MPB). São elas: “Chico Rei” (Binha, Djalma Sabiá & Geraldo Babão, 1964); “Zumbi” (Jorge Ben, 1974); “Mestre Sala dos Mares” (João Bosco & Aldir Blanc, 1975) e “Morena de Angola” (Chico Buarque, 1980)1. Encontramos nessas obras acesso privilegiado às recordações sobre revoltas contra a escravização e o colonialismo que contribuem para problematizar o racismo contemporâneo. Elas oferecem conhecimentos relevantes sobre a experiência das comunidades negras que nos parecem pepitas de ouro a serem descobertas. A metáfora da mina é premeditada, pois essas canções embalaram a segunda metade do século XX no Brasil e são amplamente conhecidas, mas grande parte das pessoas desconhece os engajamentos políticos implicitamente enunciados, que são como recursos históricos a serem garimpados2. De fato, parte da motivação que dá origem a esse artigo é fazer circular alguns dos significados implícitos em insinuações e sugestões nem sempre reconhecidas, mesmo em músicas muito famosas. É importante frisar que a seleção das quatro canções é controversa, como todas as seleções são3. Ela não aspira canonizar determinadas obras em detrimento de outras. Ela é fruto, antes de mais nada, de uma iniciativa tateante por buscar fontes e veios alternativos às narrativas hegemônicas. Se o recorte limitado às fronteiras brasileiras parece contrariar a proposta metodológica de Gilroy que nos incentiva a ultrapassar os horizontes nacionais, esperamos deixar claro que esse passo já foi dado pelas próprias composições. Efetivamente, as afinidades translocais e transtemporais são desde sempre a toada dessas melodias.
Informadas por lutas históricas travadas pelo povo negro, as músicas narram ações políticas levadas a cabo durante o regime colonial e representam um frutífero campo de debate para os estudos culturais na medida em que recuperam narrativas insistentemente invisibilizadas e questionam o suposto lugar de “não-agência” política das populações escravizadas - ou vivendo sob regimes autoritários - ao mesmo tempo que problematizam a ideia romantizada de uma África “pura”, vítima passiva do intenso tráfico que assolou e oprimiu suas populações sob a expansão ibérica. A interconexão entre lutas e vivências dessas populações nos dois lados do Atlântico também assume relevância no conteúdo das canções ao explicitar as relações de intercâmbio, deslocamento e colaboração presentes na construção das lutas negras e, mais recentemente, as aproximações entre grupos resistentes contra o regime colonial em países como Angola e Moçambique e militantes que lutaram contra a Ditadura Militar no Brasil a partir da década de 1960. Também merece destaque o papel da cultura popular para expressar - sob dois regimes tão distintos de exploração e domínio, como o colonial e o ditatorial - as opressões cotidianas vivenciadas por quem tinha seu direito à liberdade negado. Ao tomarmos as canções como parte do arcabouço intelectual d’O Atlântico Negro, consideramos duas principais chaves de leitura: (a) o imaginário de tempo/história e (b) os princípios generificados de enunciação. Após esta introdução, o artigo está dividido em quatro seções dedicadas à análise de cada uma das canções selecionadas em ordem cronológica, seguidas das considerações finais.
2. “Chico Rei” (1964)
“Chico Rei” foi samba-enredo da Acadêmicos do Salgueiro em 1964, cujo desfile ganhou o segundo lugar na competição do carnaval carioca. Foi composta por Jarbas Soares, Djalma de Oliveira Costa e Geraldo Soares de Carvalho, mais conhecidos por seus apelidos Binha, Djalma Sabiá e Geraldo Babão (todos fundadores da escola de samba e moradores do Morro do Salgueiro). A música teve seu sucesso contemporâneo garantido por regravações de Martinho da Vila4.
De acordo com a história oficial, desde meados da década de 1950, a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro apresentou “enredos que fugiam aos temas patrióticos impostos pelo Estado Novo” (Académicos do Salgueiro, 2014), promovendo ativamente “temas negros” como Navio Negreiro, em 1957, e Quilombo dos Palmares, em 1960. “Chico Rei” está, portanto, inserida em um esforço maior da escola (e do próprio movimento negro) por inovar no universo carnavalesco celebrando a resistência à escravização, recordando heróis e heroínas negros como Aleijadinho, Zumbi, Xica da Silva e o próprio Chico Rei5. A memória contemporânea da escola demonstra o esforço deliberado em deslocar as narrativas hegemônicas:
[em 1963] o Salgueiro apresentou uma nova personagem que estava à margem da história oficial [ênfase adicionada] - Xica da Silva, uma escrava que viveu em Minas Gerais [ênfase adicionada]. ( ... ) O impacto do desfile do Salgueiro foi irresistível e poucas vezes o grito de “já ganhou!”, que ecoava de ponta a ponta da avenida, foi tão unânime. Quando terminou o desfile, ficou no ar a impressão de que algo muito importante havia acontecido no carnaval carioca. (Acadêmicos de Salgueiro, 2014)
Parece especialmente revelador que a menção à Xica da Silva exija uma vírgula seguida de esclarecimentos: “uma escrava que viveu em Minas Gerais”. O tom didático adotado pela escola é parcialmente explicado pelo fato de que essas não fossem personalidades prontamente reconhecíveis por estarem “à margem da história oficial” (Acadêmicos da Salgueiro, 2014). Isto é óbvio no samba “Chico Rei”, que descreve mitologicamente a vida de Francisco, presumindo a ignorância dos e das ouvintes. Se tal “pedagogização” pode parecer esteticamente duvidosa para sensibilidades contemporâneas, destoando inclusive das demais composições analisadas a seguir, faz sentido reconhecer que interpretações alternativas carecem de bases hermenêuticas coletivamente construídas. Em outras palavras: “se as comunidades excluídas podem decodificar a programação dominante através de uma perspectiva de resistência, eles só podem fazê-lo na medida em que sua vida coletiva e sua memória histórica lhes ofereçam uma abordagem alternativa de entendimento” (Shohat & Stam, 1994/2006, p. 465).
Chico Rei teria sido o nome brasileiro de Galanga, um monarca do Reino do Congo escravizado que conquistou a liberdade e chegou a ser proprietário de uma mina de ouro, tendo fundado a primeira irmandade de negros livres e vivido com muita pompa cercado por sua corte em Vila Rica (Minas Gerais). Há consenso sobre a ausência de fontes que comprovem a veracidade histórica do personagem, mas sua existência fictícia data de pelo menos 1904, servindo de mote para um romance de Agripa Vasconcelos (1966) e um filme de Walter Lima Jr. (1985), cuja trilha sonora inclui Clementina de Jesus e Milton Nascimento.
No samba enredo da Acadêmicos de Salgueiro, o ponto de partida para o percurso do herói (Vogler, 2006) Chico Rei é o mundo idílico de onde foi arrancado: “vivia no litoral africano / Uma régia tribo ordeira cujo rei era símbolo / De uma terra laboriosa e hospitaleira” (00:00:02). Os adjetivos são dignos de nota, pois se relacionam com a comunidade (auto)imaginada (Anderson, 1983/2008) a respeito da população brasileira: trabalhadora e receptiva. No passado romantizado, a dimensão hierárquica é apresentada menos como dominação e mais como responsabilidade da liderança para com os súditos: frente à desgraça do sequestro e tráfico internacional de seres humanos, Chico Rei “jurou à sua gente que um dia os libertaria” (00:01:17). A liberdade é uma ambição desde sempre e, já na travessia, planos de insurreição começam a ser mancumunados na surdina: “ao longe, Minas jamais ouvia” (00:01:09).
É significativo que a enunciação evite usar descritivos de cor ou raça, identificando exploradores e explorados por sua nacionalidade: “um dia, essa tranquilidade sucumbiu / Quando os portugueses invadiram / Capturando homens / Para fazê-los escravos no Brasil” (00:00:21). Os horrores da escravização dão origem a um refrão que se despede das origens, sendo símbolos do mundo perdido a árvore baobá e a região de Bengo (atualmente província ao norte de Angola, onde também se situa o rio Bengo): “na viagem agonizante / Houve gritos alucinantes / lamentos de dor / Ô, ô, ô adeus, Baobá, ô, ô, ô / Ô, ô, ô adeus, meu Bengo, eu já vou” (00:00:42). O apelo ao vocal do refrão pode ser o espaço de expressão da dor compartilhada que, a acreditar em Gilroy (1993/2001), seria “indizível”, mas não “inexprimível” (p. 158).
A canção mapeia a geografia do comércio escravo: partindo da África ocidental, aporta no Rio de Janeiro, onde “no mercado de escravos / Um rico fidalgo os comprou / E para Vila Rica os levou” (00:01:27). Trabalhando no garimpo em Minas Gerais, Chico Rei teria incentivado “seu pessoal” a esconder ouro em meio aos cabelos, servindo para comprar as alforrias. A menção à Igreja Católica como lugar da coleta do ouro coloca um conjunto de indagações sobre as relações entre poder religioso e poder econômico no tocante à gestão da população escravizada. Amplamente documentadas são as táticas de pessoas escravizadas em ocuparem os espaços das irmandades religiosas para atividades que, apesar de não serem declaradamente políticas, proporcionavam reuniões coletivas legítimas (Lima, 1999).
O samba enredo da Salgueiro enfatiza a fé e descreve a conversão voluntária de Chico Rei nas últimas estrofes: “escolheu o nome de Francisco / E ao catolicismo se converteu / No ponto mais alto da cidade, Chico Rei / Com seu espírito de luz / Mandou construir uma igreja / E a denominou / Santa Efigênia do Alto da Cruz” (00:03:01). Obviamente seria superficial tomar as declarações de catolicismo como algo unívoco, ignorando a característica sincrética da religiosidade brasileira. Efeito direto das determinações coloniais que proibiam práticas religiosas africanas, o sincretismo foi em larga medida uma estratégia de sobrevivência que “sobrepôs” deidades de diferentes repertórios sagrados. A própria Escola de Samba Salgueiro tem como protetor o orixá Xangô, identificado com diferentes santos católicos (São Jorge, São José e São João).
Uma vez alforriado, o herói “Sob o sol da liberdade trabalhou / E um pouco de terra ele comprou / Descobrindo ouro enriqueceu” (00:02:50). Chico Rei aparece como a liderança que mobiliza a ação, mas a coleta do ouro é coletiva e os benefícios dessa coleta (a alforria) também o são. Que o locus da salvação estivesse na cabeça, no cabelo chamado obsessivamente de “ruim” pelos repertórios racistas, também não parece gratuito. Trata-se de uma coletividade, todavia, assumidamente masculina. É forçoso reconhecer como essa narrativa típica silencia a existência de uma experiência feminina do cativeiro. Desde as primeiras estrofes a música enuncia a captura de “homens” e não altera essa generalização duvidosa: quando o rei jura à “sua gente / que os libertaria” (00:01:20).
A história de Chico Rei, tal como descrita na canção, segue uma estrutura clássica colocada em um tempo que evolui: desde a tranquilidade idílica em África, a injúria agonizante contra o herói que é superada pela sua tenacidade e argúcia, possibilitando a liberdade e o enriquecimento, coroado por sua vez pela completude espiritual. A pretensão de imortalidade é representada pela construção da igreja e pela própria canção em louvor ao Chico Rei. É significativo, ainda, que o personagem não seja chamado Rei Chico e sim Chico Rei, como se o título viesse pelo reconhecimento de sua nobreza e não o contrário. A memória que assim se tece valoriza uma forma de subversão à escravização que, todavia, deixa intocadas não apenas as estruturas de poder (monárquico), como a hierarquia econômica (pretensamente acessível àqueles dotados de merecimento).
3. “Zumbi” (1974)
Zumbi é a mais célebre figura de resistência à escravização no Brasil. Vivia no Quilombo dos Palmares, comunidade de aproximadamente 20 mil pessoas formada na Serra da Barriga, atual estado de Alagoas, que resistiu a pelo menos dezoito investidas estatais e manteve sua independência por mais de um século. Zumbi era um dos principais líderes do quilombo quando este foi derrotado e sua cabeça foi pretensamente exposta como troféu de guerra na cidade de Recife. Apesar do pouco que se sabe sobre sua vida, trata-se de um símbolo da luta negra contra o sistema escravista e seu nome dispensa apresentações no universo brasileiro. Seria muito rico, se bem que inviável no escopo do presente artigo, acessar as representações sobre Zumbi em outros horizontes culturais.
“Zumbi” é um dos grandes sucessos de Jorge Ben. Lançada pela primeira vez no disco Tábua das Esmeraldas, de 1974, a música ganhou novo arranjo em África Brasil, de 1976, recebendo o nome “África Brasil (Zumbi)” e interpretação mais agressiva (Oliveira, 2012). Desde então foi regravada por inúmeros artistas consagrados, entre os quais, em levantamento não exaustivo, é possível encontrar Cidade Negra (“Negro no Poder”, 1992), Caetano Veloso (“Noites do Norte”, 2000), Mariana Baltar (“Uma Dama Também Quer se Divertir”, 2006), Maquinado (“Mundialmente Anônimo: O Magnético Sangramento da Existência”, 2010) e Ellen Oléria (“Ellen Oléria e Pret.utu”, 2013)6.
Assim como em “Chico Rei”, o ponto de partida da canção é África. As primeiras estrofes elencam grandes portos de venda de pessoas escravizadas no litoral africano até meados do século XIX: “Angola, Congo, Benguela / Monjolo, Cabinda, Mina / Quiloa, Rebolo” (00:00:05). A coletividade é parcialmente construída pela contextualização de tempo e espaço: “Aqui onde estão os homens / Há um grande leilão” (00:00:17). Esses “homens” abrem diversas chaves de interpretação: seja como sinônimo de humanidade, seja de masculinidade (em contraste com a princesa), de branquitude (em contraste com as mãos negras) ou ainda de concentração de interesses (estão fazendo um grande leilão). O transbordamento de significados é uma das riquezas da letra. Também a repetição é um recurso estilístico de forte impacto, especialmente o refrão “eu quero ver” (00:00:43), que condensa o desafio ao status quo implícito em memórias de resistência.
A letra faz referência às atividades econômicas sustentadas pela mão-de-obra escravizada, especificamente das grandes plantations para exportação: açúcar, café e algodão. Estes cultivos remetem aos últimos redutos escravistas bloqueadores da abolição: a produção de açúcar em Cuba, café no sudoeste do Brasil e algodão no sul dos Estados Unidos da América (Cooper et al., 2005). A elaboração da imagem que contrasta quem executa e quem vigia a colheita de algodão expõe o caráter racial da exploração ao enfatizar os senhores sentados, vendo “o algodão branco” sendo “colhidos por mãos negras” (00:01:29). Ao analisar a segunda versão de “Zumbi”, Luciana Xavier Oliveira (2012) articula à melodia tropos de representação sonora, chamando a atenção para a referência militar que vem marcada na descrição de Zumbi:
durante a faixa, o canto assume contornos figurativos pelo tom declamatório e discursivo, alienado do percurso melódico e rítmico da canção. É possível reparar uma preocupação com a rima em alguns versos, como os da ponte, onde a concordância gramatical é subvertida para permitir a rima ( ... ). Assim, o “s” da palavra “demandas” é omitido na entoação para que possa haver a combinação com a terminação do verbo “manda” ( ... ), destacam-se os instrumentos de sopro, tocados como nas bandas militares, anunciando a chegada do herói. Na repetição do refrão, surgem os instrumentos de sopro, conclamando o povo negro para a luta. (pp. 169-170)
É relevante que a composição tenha sido elaborada no contexto da ditadura militar brasileira, que professava a democracia racial como ideologia de Estado. Daí que a explicitação da exploração racial fosse especialmente significativa no contexto, exigindo conscientização sobre as dinâmicas do racismo. Ainda mais porque Jorge Ben conjuga os verbos no presente, localizando “aqui” a experiência da escravidão e projetando o futuro como incógnita, sendo, o refrão, por esse motivo, uma ameaça: “eu quero ver / quando Zumbi chegar / o que vai acontecer” (00:01:55).
A sentença “eu quero ver” assume um conteúdo próprio, simultaneamente de expectativa e desafio, que lança a possibilidade de mudança no tempo de vida de quem “vê” (reforçado pelo fato do refrão ser cantado em coro na primeira versão). Em paralelo, como argumenta Seligmann-Silva (2008, p. 69), no testemunho do trauma “o tempo passado é tempo presente ( ... ). Mais especificamente, o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa”. Frente à escandalosa desigualdade racial do Brasil contemporâneo, mais de uma leitura é possível para a compreensão de “um passado que não passa”. Daí a aspiração por Zumbi ecoar com força na melodia.
É importante reconhecer, entretanto, que a perspectiva pretensamente subversiva sustenha o caráter masculino da coragem e do poder (“Zumbi é quem manda”) ao contrastar com a imagem de uma “Princesa à venda” (00:00:28) que insinua passividade. A romantização das figuras aristocráticas (perceptível também em “Chico Rei”) é profundamente paradoxal, pois responde à injustiça da elite branca reivindicando uma elite negra. Além disso, parece sugerir que a escravização foi mais brutal em casos de príncipes e princesas, ignorando o rearranjo exigido no cativeiro.
Apesar de se observarem menções ocasionais a distinções anteriores de status no caso de certos escravos, por parte daqueles que os cercavam - a tão romanceada ideia do príncipe ou da princesa escravizados -, não é nada fácil perceber por que as distinções prévias da posição social tenderam a se tornar irrelevantes ou a ser totalmente transformadas no contexto das plantations. (Mintz & Price, 2003, p. 104)
A forma de enunciação explorada em “Zumbi” difere fortemente da dos sambistas em “Chico Rei”, que preferem salientar a nacionalidade em detrimento do caráter racial. Para Jorge Ben, a negritude foi desde sempre temática central e o uso de imagens nas quais a cor é preponderante não pode ser tomada como gratuita, como o algodão branco contrastado com as mãos negras. Isso responde a reivindicações estéticas compartilhadas nos movimentos negros. Neste sentido, Oliveira (2012) traça as relações de Jorge Ben com a música negra estadunidense, em especial o soul e o funk.
Foi através da circulação em maior escala no mainstream dos primeiros trabalhos de Jorge Ben Jor que essas fusões entre a música afro-brasileira e a música negra norte-americana, nunca estáveis nem definitivas, começaram a se tornar mais frequentes nos anos 60, ganhando mais visibilidade. [...] Essa estratégia mostrou-se eficaz, chegando aos 60 mil discos vendidos à época do lançamento, significativo para a época, o que confirmou uma nova estratégia de marketing, voltada também para mercado estrangeiro da World Music nos anos posteriores, especialmente por adotar definitivamente uma sonoridade mais dançante e comercial. Mudança esta que acompanhava a própria guinada pop que o mercado fonográfico brasileiro da MPB vai assumir na virada dos anos 70 para os 80. (Oliveira, 2012, p. 160)
O deslocamento de Jorge Ben em direção ao pop e ao mercado internacional acompanhou, portanto, o interesse das gravadoras pela valorização das produções culturais da diáspora negra. As estratégias de representação e a mercantilização do “Black is beautiful” respondiam parcialmente a interesses da indústria do entretenimento, capazes de transformar a negritude no negócio de um multiculturalismo asséptico e muito rentável (Gilroy, 2004/2007).
Que a produção de Jorge Ben tenha sido elaborada nas malhas da indústria fonográfica e apropriada por diferentes concepções, potencialmente exotizantes, não esgota a dimensão provocadora e subversiva que “Zumbi” (re)percute, especialmente ao sobrepor temporalidades, misturando passado e presente como tempo da revolta, da guerra, da demanda.
4. O “Mestre Sala dos Mares” (1975)
Antes de ser censurada, a letra de O Mestre Sala dos Mares, composta por João Bosco e Aldir Blanc, iniciava com uma homenagem direta a dois importantes personagens de revoltas negras no Brasil, o “almirante negro” (João Cândido Felisberto) e o “líder jangadeiro e abolicionista” (Francisco José do Nascimento), o Dragão do Mar. As histórias de ambos os personagens têm pontos comuns e talvez tenha sido essa alusão explícita à articulação entre lutas por emancipação que inquietou censores, remetendo-os ao cenário das lutas democráticas contra a ditadura militar na década de 1970 no Brasil. Os letristas acabaram substituindo “bravo marinheiro” e “Almirante Negro” por “bravo feiticeiro” e “Navegante Negro”, para liberar a canção do veto dos censores.
Conhecido também como Chico da Matilde, Dragão do Mar foi um personagem central no contexto abolicionista, sobretudo no Ceará, onde liderou, em 1881, a recusa coletiva dos jangadeiros de Fortaleza de transportar pessoas negras escravizadas para navios negreiros do tráfico interprovincial. Essa luta abolicionista logrou, em 1884, que o Ceará se tornasse a primeira província brasileira a abolir a escravidão. Além de homenagear essa memória de resistência à escravização, a letra de “Mestre Sala dos Mares” constitui um tributo à Revolta da Chibata, levante popular liderado pelo marinheiro João Cândido Felisberto no ano de 1910, na então capital federal, Rio de Janeiro. Esta articulação entre as lutas por liberdade fica explícita no trecho que sublinha a necessidade de produção de uma memória contemporânea sobre “todas as lutas inglórias” (00:01:27).
No início do século XX, quando parte da sociedade escravocrata ainda se debatia entre manter intactos os privilégios coloniais das oligarquias brancas e de ascendência europeia e projetar no exterior uma imagem de país vanguardista que investia em tecnologia, um grupo de marinheiros brasileiros foi destacado para uma missão na Inglaterra. Esta tinha por objetivo trazer ao país dois encouraçados recentemente adquiridos pela marinha brasileira: São Paulo e Minas Gerais, que garantiriam a renovação da esquadra nacional. O contato dos brasileiros - entre eles, João Cândido - com seus pares de vários países teve grande impacto. Os marinheiros brasileiros vieram a saber que a prática disciplinar costumeira no Brasil de punir duramente faltas e dissidências com a aplicação de castigos físicos tinha sido abolida pela marinha inglesa. Embora revogada no Brasil desde o século XIX, a chibatada continuava a fazer parte do repertório de punições da corporação militar, composta em sua maioria de almirantes brancos e marinheiros negros. Porém, como notaram os marinheiros em diálogos transcontinentais em 1910, a chibata já havia sido banida em quase todo o mundo.
Para Gilroy (1993/2001), seguindo as intuições de Baktin em The Dialogic Imagination, o navio deve ser considerado um “cronótopo”: uma unidade de análise que permite aceder categorias espaciais e temporais de representação. Pois, como observa, os navios eram modos viventes pelos quais os pontos entre o Atlântico (e, podemos acrescentar, o Pacífico e o Índico) eram interligados. A mobilidade desse “cronótopo” representava as transformações entre os pontos estáticos conectados. Daí se constituírem como unidades culturais e políticas, extrapolando a função comercial transnacional:
eles eram algo mais - um meio para conduzir a dissensão política e, talvez, um modo de produção cultural distinto. O navio oferece a oportunidade de se explorar as articulações entre histórias descontínuas dos portos da Inglaterra, suas interfaces com o mundo mais amplo. (p. 61)
A ressonância das experiências micropolíticas nesse espaço dinâmico de tensões entre modernização, colonialismo e industrialização de certo influenciou a longa viagem de retorno dos marinheiros brasileiros. As exitosas experiências das lutas internacionais empreendidas por marinheiros ingleses, africanos7, caribenhos e russos que, através da organização, haviam logrado melhorias em suas condições de trabalho, serviram de alento e fortaleceram o ânimo dos navegantes que, no dia 23 de novembro de 1910, deram o primeiro passo na luta pela abolição dos castigos físicos na marinha nacional com a tomada do encouraçado Minas Gerais.
O fim dos castigos corporais, a melhoria na qualidade da comida e a anistia aos revoltosos foram as principais pautas da Revolta da Chibata liderada por João Cândido (Morel, 2009). Para os marinheiros amotinados em quatro navios na baía de Guanabara, a aceitação das pautas pelo governo de Hermes da Fonseca deveria ser integral, caso contrário a capital federal seria bombardeada. Estando a bancada que fazia oposição ao governo ao lado dos revoltosos, no dia 26 de novembro, o presidente optou por aceitar as condições impostas pelos marinheiros, que no mesmo dia depuseram armas. O contragolpe do governo, entretanto, veio quatro dias depois: traindo o acordo de rendição, Hermes da Fonseca publicou tanto um decreto que permitia a demissão sumária da marinha por “falta de disciplina”, quanto ordenava a prisão dos marinheiros identificados como líderes do motim, entre eles, João Cândido. Os dois anos de encarceramento renderam ao “almirante negro” sequelas indeléveis e, após o julgamento em que foi absolvido em 1912, não logrou voltar a exercer sua profissão, pois, considerado um conspirador, foi expulso da marinha8. João Cândido viveu até 1969, testemunhando a implantação de duas ditaduras no país e falecendo como vendedor de peixes no Rio de Janeiro.
O tom da letra, desde o início, denota o caráter solene da produção de memórias sobre as revoltas negras, que resistem contra os apagamentos sistemáticos da história oficial: “há muito tempo nas águas da Guanabara / O Dragão do Mar reapareceu” (00:00:08). A homenagem a Chico da Matilde reforça a inscrição histórica da Revolta da Chibata, “a quem a história não esqueceu” (00:00:22), no cotidiano de lutas por liberdade. O conceito de memória aqui utilizado vem informado pelas lutas negras que no Brasil têm sido responsáveis por reinscrever pertencimentos e produzir análises sobre as hierarquias raciais. Nosso posicionamento compartilha das problematizações levantadas por Lélia Gonzalez (1984): “a memória, a gente considera como o não-saber que conhece [ênfase adicionada], esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade [ênfase adicionada], dessa verdade que se estrutura como ficção” (p. 226).
Se as práticas de encobrimento e os apagamentos sistemáticos são produções conscientes de agentes históricos da branquitude, que buscam reforçar as estruturas e relações de poder dominantes, é a produção da memória, “esse não-saber que conhece”, que subverte e reverte o contexto, restituindo ao povo histórias que não devem ser jamais esquecidas, mesmo quando não-escritas. Assim, a letra funciona como uma potente estratégia de inscrição da memória: “conhecido como / Navegante negro / Tinha a dignidade de um / Mestre-sala” (00:00:27). A luta dignifica o navegante negro que, tal qual um mestre-sala9, produz encantamento nos mais diferentes públicos que o saúda calorosamente, como prossegue a canção.
Contudo, a materialidade das desigualdades também é palpável, sendo imperioso imprimir à memória o que deve ser combatido e não pode ser esquecido: “rubras cascatas jorravam / Das costas / Dos santos entre cantos / E chibatas / Inundando o coração, / Do pessoal do porão / Que a exemplo do feiticeiro / Gritava então” (00:00:50). A crueldade dos castigos físicos, a chibata, o martírio: é contra esse quadro de tortura degradante que os navegantes se insurgem, contra a força bruta que mantém a exploração. O porão é também uma rememoração à experiência aviltante nos navios negreiros e ressoa com profundidade os argumentos de Paul Gilroy (1993/2001) ao descrever o Atlântico Negro, onde o fluxo entre ideias e pessoas, as lutas simbólicas em relação a modelos culturais e as construções diaspóricas subjetivas conformam um “recurso intelectual vivo” (p. 99), uma contracultura política expressiva própria capaz de consubstanciar ética e política, dicotomizadas por uma modernidade que naturalizou o terror racial.
Como não gritar? Como se calar frente a um sofrimento tão intenso? Como denunciar o dilaceramento desses corpos negros que, apesar de recém inseridos nas relações de trabalho assalariado, continuam sub-cidadãos, se não através de uma figura de linguagem que torne menos dolorosas as “rubras cascatas”? E, como não fazer memória do que é excesso e dor, se esses foram os impulsionadores da revolta negra? A música oferece a oportunidade de um coro coletivo contra as injustiças. Uma contracultura de consolação, que ativa “políticas de transfiguração” (Gilroy, 1993/2001, p. 96).
É nesse sentido que a letra de “Mestre Sala dos Mares” pode ser compreendida desde a perspectiva de uma “política de transfiguração”, na qual “o surgimento de desejos, relações sociais e modos de associação qualitativamente novos no âmbito da comunidade racial de interpretação e resistência e também entre esse grupo e seus opressores do passado” (Gilroy, 1993/2001, p. 96) são enfatizados.
Atuando como a rememoração direta de um evento histórico, a política de transfiguração presente na letra invoca propositalmente uma resistência opaca e subterrânea que, de modo amplo, exalta a experiência diaspórica - o cronótopos do Atlântico negro - e a reafirma em sua continuidade e persistência. Essa política não ingênua de transfiguração, re-atualizada a cada nova execução da canção, não se constitui um contradiscurso, mas sim uma poderosa contracultura crítica “que reconstrói desafiadoramente sua própria genealogia crítica, intelectual e moral em uma esfera pública parcialmente oculta e inteiramente sua” (Gilroy, 1993/2001, p. 96).
É também uma contracultura da consolação (Gilroy, 1993/2001) que se anuncia nos versos: “glória aos piratas, às / Mulatas, às sereias / Glória à farofa, à cachaça, / Às baleias” (00:01:09), uma estrofe que, de forma abrupta rompe com a dor produzida pela memória dos martírios relatados nas linhas precedentes. Códigos diferentes são exaltados e misturados: piratas, mulatas, sereias, farofa, cachaça, baleia são equalizados como lógicas que compartilham o mesmo universo de inscrição. Essa relação indeterminada das políticas de transfiguração, se torna mais compreensível por meio da ambivalência entre consciência e memória observada por Gonzalez (1984):
consciência exclui o que a memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, [a] consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso ela fala através das mancadas do discurso da consciência. (p. 226)
Assim, enquanto na estrofe anterior a memória reivindica a dor e a solidariedade do porão, para reinscrever-se em narrativas de luta do povo negro, a estrofe seguinte demonstra irreverência ao supostamente exaltar os signos da consciência dominante. Ao equacionar na mesma frase baleias, piratas, mulatas, sereias, farofa e cachaça, os autores indagam o lugar de inscrição das lutas negras por meio da fabulação e da ironia. Uma estrutura poética e melódica que, como também observaram Gilroy (1993/2001) e Davis (2011) codificam na tradição da música negra aspectos indizíveis da experiência da escravização, que compartilham sentidos e significados com as comunidades diaspóricas em diferentes latitudes. Tal postura dominante, que despreza a memória das revoltas para produzir uma consciência oportunista, busca forjar um simulacro que circunscreve a participação negra - na construção da sociedade brasileira - ao folclore de uns tantos pratos ‘típicos’ e uma insidiosa sexualidade da ‘mulata’, termo que sempre objetificou as mulheres negras. O tom de troça, assim, busca desconstruir os signos citados, situando-os como produção de uma consciência dominante contrária à emancipação do povo negro.
As últimas estrofes da canção, entretanto, produzem a homenagem mais contundente, não só aos marinheiros amotinados da Revolta da Chibata, mas a todos e todas que lutam: “glórias a todas as lutas inglórias / Que através da nossa história / Não esquecemos jamais” (00:01:27). Um monumento para João Cândido, reivindicado por ativistas dos movimentos negros e rechaçado veementemente por comandantes do governo e da marinha, levou quase um século para ser instalado na Praça XV do Rio de Janeiro. Não havia sido, portanto, instalado quando a canção foi elaborada. Contudo, nos parece que não há forma mais potente de inscrição de uma memória de lutas do que através de atos concretos e resistências ativas, ou como diriam Aldir Blanc e João Bosco, o “monumento” das “pedras pisadas do cais”. Memória inscrita no mundo através do fazer. A transfiguração do sofrimento imposto em resistência.
5. “Morena de Angola” (1980)
Luanda, Benguela e Lobito foram as cidades que receberam, no ano de 1980, os/ as representantes do Projeto Kalunga10. Liderados pelo produtor Fernando Faro e o cantor e compositor Chico Buarque, cantores/as e compositores brasileiros/as como Dona Ivone Lara, Dorival Caymmi, Martinho da Vila, Djavan, Clara Nunes e Edu Lobo fizeram apresentações em Angola, país que enfrentava uma guerra civil, cinco anos após o largo processo de luta pela libertação nacional. A ambição do projeto Kalunga era justamente (re)afirmar a cooperação, a colaboração e a solidariedade que, a despeito das forças da repressão em ambos países, tentavam consolidar as pontes de diálogo entre as duas margens do Atlântico. Diálogo este fortemente cerceado pela própria estrutura colonial, organizada como “triângulos sem base” (Cotler, 1969; Rivera Cusicanqui, 2010) em que o ápice monopoliza os processos comunicacionais e dificulta as conexões Sul-Sul. De fato, as pesquisas de Mário Augusto Medeiros da Silva (2012,) identificam uma “espécie de descoberta do continente africano” (p. 110) no início da década de 1960 entre ativistas do movimento negro de São Paulo. Neste sentido, os repertórios produzidos no Atlântico Negro são ainda mais preciosos, pois criam laços de solidariedade cerceados pelas estruturas de poder.
Em 1980 o Brasil continuava sob o jugo da ditadura militar, uma conjuntura de terrorismo de Estado, na qual se buscava reprimir qualquer movimento ou gesto considerado de “subversão” ao regime. A imposição de atos de terror e permanente vigilância por parte das forças militares fez com que muitos/as compositores/as escrevessem canções cifradas com o objetivo de burlar a censura oficial e, assim, fazer chegar sua mensagem ao público. Ao mesmo tempo, o regime buscava consolidar uma narrativa de “unidade na diversidade” que identificava o samba e expressões da cultura africana no país como síntese de uma mestiçagem bem sucedida (Bakke, 2007; Meihy, 2004; Soares, 2016). Um discurso que, projetado para o exterior, buscava ocultar as graves violações de direitos e vender a ideia de um país ‘harmônico’, igualitário e sem tensões sociais e raciais. Embora a proposta de celebração da mestiçagem como ideal societário e a escamoteagem das profundas desigualdades do país houvesse sido implementada no governo de Getúlio Vargas, na década de 1940, foi a ditadura militar pós-golpe de 1964 que logrou reorganizar o campo da produção cultural - produção, mediação e recepção - a partir de políticas de Estado, como consequência de um projeto identitário “oficial” brasileiro. Este projeto incluía uma apropriação de elementos das culturas africanas banta e yorubá - ritmos, sabores, história, linguagem - e sua difusão como parte da identidade popular brasileira.
Neste contexto, “Morena de Angola”, composta no mesmo ano do Projeto Kalunga, foi um presente de Chico Buarque à cantora Clara Nunes, que, já de volta de Angola, iniciava as gravações do seu álbum Brasil Mestiço (1980). Bakke (2007), Brügger (2008, 2009) e Soares (2016), que se debruçaram sobre a produção fonográfica de Clara Nunes, são uníssonas ao afirmarem que embora o delineamento da carreira artística da cantora, realizado por Adelzon Alves, mobilizasse a mestiçagem como signo fundamental, o Brasil mestiço exaltado era, sobretudo, negro. Esse Brasil que valoriza a ancestralidade, as conexões com a diáspora negra e a cultura africana são percebidos não só no repertório de Nunes como em suas performances e na persona pública que a artista notabilizou, falando abertamente sobre sua religiosidade e participação nas religiões afro-brasileiras. Portanto, uma mestiçagem distinta do discurso oficial em voga.
Foi em Benguela que a ideia e a promessa da música surgiram. Mais especificamente na Praia de Catumbela, mencionada ao final da canção: “Eu acho que deixei um cacho do meu coração na Catumbela” (00:02:14). Com uma miríade de referências aos contextos social, cultural e político de Angola, Chico Buarque escreveu uma letra ritmada que, na superfície, parece destoar da conjuntura de uma guerra civil violenta. De fato, a melodia enfatiza os sons de “CH” ou “X”, mimetizando um chocalho. Todavia, nossa leitura de “Morena de Angola” discorda de interpretações que a tomam como uma canção “alienada” e distante da guerra11. Talvez não seja ocioso recordar o próprio contexto político brasileiro, de perseguição e vigilância contínuas, onde qualquer referência a iniciativas revolucionárias era identificada imediatamente como ameaça ao regime e passível de censura sumária. A relação entre a música popular brasileira e de Clara Nunes com Angola, contudo, está bem documentada (Meihy, 2004; Silva & Oliveira Filho, 1983; Soares, 2016) e denota a vitalidade dos trânsitos culturais no Atlântico negro no tempo, e de como esses trânsitos influenciaram a produção fonográfica dos dois países. Como constata Meihy (2004), a “existência de uma língua comum, o português, e a rica trajetória histórica que vincularam as duas partes através de sofisticada adaptação, correspondem a uma jornada de influências mútuas em que elementos das duas manifestações se trançam” (p.122).
“Morena de Angola” é um dos sambas mais emblemáticos da música popular brasileira, sendo considerado pelo pesquisador José Carlos Sebe Bom Meihy (2004) a síntese do trânsito afetivo cultural que deu origem a esta melodia. No texto “O Samba é Morena de Angola: Oralidade e Música”, o autor recupera a historiografia do samba brasileiro para demonstrar que não só a africanidade é sua marca mais notável como esta é uma expressão cultural que permite “uma história da cultura negra em que não presidam apenas os aspectos doloridos da experiência de dominação sobre os negros” (Meihy, 2004, p. 139). O samba brasileiro, e suas interconexões com as tradições orais bantas e, sobretudo, com o batuque utilizado em celebrações religiosas de Angola cum priria o que, para outro contexto histórico-político, Gilroy (1993/2001) denominou de “políticas de realização” (p. 95). Isto porque, para além da experiência dramática do sequestro e escravização, muitos sambas oferecem a noção de que uma sociedade futura será capaz de satisfazer a promessa de liberdade e justiça para todas e todos.
Se, por um lado, a letra comporta uma chave de leitura que oferece a imagem de uma mulher “negra” que “chocalha”, reforçando o essencialismo da equação mulher-negra-corpo, por outro, uma leitura feminista negra nos faz compreender que é essa mesma mulher que encarna a desordem protagonizando uma reação feminina à dominação vigente. A “Morena de Angola”, sintetizada nos versos aparentemente incoerentes, é a mulher da classe trabalhadora, que caminha, interage, ama, luta e resiste na cidade revolucionária negra. Freire e Queiroz (2011) já apontaram a introdução da desordem através dos versos aparentemente desconexos da letra:
a Morena de Angola “sai chocalhando pro trabalho”, “batucando na panela”, “afoita pra dançar na chama da batalha”, “faz requebrar a sentinela”, “fazendo buchincho com seus penduricalhos”, e “tá no remelexo”. Ou seja, a ideia central é a perturbação da ordem, a bagunça. Isso que desfaz o previsível, os costumes, os acordos, é da ordem da diferença, da alteridade, da estranheza. (p. 689)
Diferentemente das demais músicas analisadas neste artigo, “Morena de Angola” não faz referência a um personagem específico, um “ato heroico” ou um evento histórico particular. “Chico Rei”, “Zumbi” e “O Mestre Sala dos Mares”, todas trazem aclamações a líderes por seus feitos. Apesar de nenhum movimento ser realizado apenas pelas/os dirigentes ou prescindir de mulheres, tal como em outras dimensões culturais, o cancioneiro popular tende a reproduzir a estrutura social que hierarquiza feitos realizados por homens e mulheres, visibilizando a maioria dos casos masculinos enquanto apaga ativamente a contribuição feminina. Do mesmo modo que hierarquiza racial e geograficamente, ao legitimar com presteza as narrativas de homens brancos heterossexuais europeus dentre todas as outras. Interpretada por Clara Nunes, a canção disruptiva “Morena de Angola”, contudo, vai na direção oposta quando descreve a vida cotidiana de uma mulher não nomeada, alguém “comum” profundamente engajada na transformação do mundo, do fazer no gerúndio. Assim como “Zumbi”, é no presente que a Morena carrega o chocalho na canela: seu tempo é aberto de possibilidades. Um horizonte que a última estrofe celebra - quase de maneira imperceptível para quem não detém o código -, no engajamento político da Morena de Angola, com quem a canção solidariza: “morena bichinha danada / Minha camarada do MPLA” (00:02:31), enunciando ao mesmo tempo o cumprimento tipicamente comunista (camarada) e a luta armada pela independência empreendida pelo Movimento Popular de Libertação de Angola.
Outra dimensão que permanece ausente das análises é a indistinção entre casa e rua12vivenciada no cotidiano das mulheres negras e como a ausência desta dicotomia é representada nos versos. Os trânsitos e espaços ocupados pela Morena de Angola ilus tram aspirações de liberdade inegociáveis e também se interconectam com outras tradições do Atlântico negro, como a das cantoras de blues. É interessante notar que, mesmo não tendo sido escrita por uma mulher negra13, a canção explicita laços de solidariedade que reivindicam uma espacialidade livre de convenções e determinações. As cantoras de blues, ao produzirem uma contracultura que operava “políticas de transfiguração” (Gilroy, 1993/2001), utilizavam-se do humor, da sátira e da ironia para falar de tabus, do silêncio em torno da violência misógina, da imobilidade imposta às mulheres negras no pós-emancipação estadunidense, a quem não era permitido por exemplo, viajar em trens (Barboza et al., 2021). As mulheres do blues para Angela Davis (2012) “redefiniram o ‘lugar’ da mulher. Forjaram e imortalizaram imagens de mulheres duras, fortes e independentes que não tinham medo nem da sua própria vulnerabilidade nem de defender o seu direito a serem respeitadas como seres humanos autônomos” (p. 185).
Sabemos que o trabalho - não adjetivado na letra se assalariado ou não, mas sempre submetido às ordens de outrem - é central na vida dessa morena angolana: “será que a morena cochila escutando o cochicho do chocalho / Será que desperta gingando e já sai chocalhando pro trabalho” (00:00:28). A morena é uma mulher negra independente, que mesmo no trabalho continua a posicionar-se politicamente - uma vez que consideramos o “chocalho” da canção como o signo que sintetiza o posicionamento político feminino contra a ordem estabelecida. Signo da desordem, da transformação, que as mulheres negras insistem em imprimir em seu espaço e tempo, subvertendo relações de trabalho: “será que ela tá na cozinha guisando a galinha à cabidela / Será que esqueceu da galinha e ficou batucando na panela” (00:00:44). Entretanto, as estrofes carregam ainda outra carga simbólica: se a versão determinista e linear da história espera que o lugar da morena-trabalhadora seja a cozinha - como as ancestrais escravizadas -, exercendo as funções a que as mulheres negras foram submetidas, não se pode afirmar ao certo se a morena está mesmo na cozinha, ocupando o lugar previamente imposto a ela dentro da lógica de produção e poder capitalistas. Sua personalidade combativa introduz a rebeldia, quando sugere que unindo-se a uma manifestação, foi batucar contra o regime?
Em Mulheres, Raça e Classe, Angela Davis traça uma instigante análise da constituição do trabalho como uma dimensão fundamental na vida das mulheres negras. Seja no período escravista ou no pós-emancipação, o imenso espaço ocupado pelo trabalho forçado ou super-explorado “ofuscava todos os outros aspectos” (Davis, 2016, p. 17) de suas existências. O estudo minucioso da inserção das mulheres negras no modo de produção escravista permitiu a Davis a construção de um aparato teórico que articula aspectos centrais das condições vividas por essas mulheres, como o lugar do trabalho em suas vidas; a construção da escravidão como uma persistência histórica que definia formas de ‘ser mulher’ e de ser oprimida dentro de um sistema patriarcal; e como os marcadores de gênero funcionavam na condição específica de ser escravizada/o, des locando ambiguamente o conteúdo repressivo de acordo com as necessidades da supremacia branca: por um lado, as mulheres negras eram exploradas nos campos como homens e, por outro, abusadas sexualmente como mulheres (Barboza et al., 2021). Se bem que o trabalho seja uma das questões mais debatidas na teorização marxista, Davis inova com o seu contributo ao reivindicar a centralidade do trabalho na vida das mulheres negras, em relação a outras mulheres.
Embora muitos prismas da canção permaneçam abertos a interpretações a partir dos feminismos negros, à guisa de conclusão, observamos como o verso “passando pelo regimento ela faz requebrar a sentinela” (00:01:06) reforça os laços de cumplicidade forjados na luta contra a opressão. A “morena” que chocalha a ordem através de seus pés caminhantes, faz da luta armada sua trincheira. A solidariedade da sentinela ilustra um dos grandes temores da cidade branca contra a cidade negra, como apontou o historiador Sidney Chalhoub (1988) sobre a vida no Rio de Janeiro, pré-abolição: “e a cidade negra, a cidade esconderijo, ficava ameaçadora mesmo quando ela se mostrava possivelmente solidária” (p. 101). Isso porque a cidade negra urdia redes profundas de ajuda mútua, redes horizontais que refutavam os códigos brancos de parentesco e colaboração, construindo laços afetivos entre trabalhadores/as assalariados/as, negros e negras alforriados/as e em busca de alforria: “esta rede horizontal é densa, minuciosamente costurada, conferindo sentido a estas vidas negras e instituindo lugares sociais onde a cidade branca não podia penetrar” (Chalhoub, 1988, p. 102), em teias de sociabilidades que têm sido recentemente nomeadas como pertencentes ao undercommons (Moten & Harney, 2004).
As redes de ajuda mútua na diáspora negra não são totalidades cerradas em si, mas estão abertas ao movimento incessante de diálogo e intercâmbio, formando resistências duradouras e favorecendo tráficos transatlânticos que rompem discursos prontos de submissão. Diferentemente de Marco Polli (2009), não consideramos que chamar a Morena de Angola de “bichinha danada” e melodizar seu chocalho seja uma incompreensão do contexto de guerra civil angolana por alguém que parece não ter visto “a crueza das imagens veiculadas nos jornais”, mas sim uma forma de afirmar a cumplicidade com o código negro, então recém-traduzido, apropriado e incorporado por Chico Buarque e a intérprete Clara Nunes. Subverter a ordem, chacoalhar as estruturas de dominação, enfrentar os privilégios a partir de uma voz feminina, negra, da classe trabalhadora e destemida era uma lição “danada”, compartilhada com “as camaradas do MPLA” e, explicitamente inspirada nos incessantes trânsitos anticoloniais do Atlântico (Pacífico e Índico) Negro.
6. Considerações Finais
Embora as grandes revoltas negras da história constituam pontos fundamentais de recuperação da memória frente ao apagamento sistemático da história oficial que se pretende única, parece relevante atentarmos para as relações cotidianas vividas pelas populações negras para apreendermos como resistências ativas eram, e são, engendra das em tarefas do dia a dia, nos modos de vida e de apropriação da cidade. As relações de ajuda mútua e de afeto, as produções culturais e o lazer da população negra, como nas músicas aqui apresentadas, podem oferecer pistas potentes para desconstruirmos a imagem de submissão e carência que tentam associar às populações que tiveram ancestrais submetidos à aterradora experiência da escravização.
A produção e inscrição de uma memória oposicional - aquela que reivindica espaço e lugar ao mesmo tempo em que contesta versões sedimentadas - é um trabalho constante que está intimamente relacionado com o estabelecimento de novos horizontes de luta. Isso não é o mesmo que dizer que não devemos inscrever nossas memórias no campo das disputas por outras versões da história, pelo contrário: são nossas lutas atuais que nos movem a reinterpretar o passado e redimensioná-lo. Sem as lutas e resistências já levadas a cabo, estamos certas de que nosso presente seria drasticamente distinto (e piorado). Contudo, essas lutas têm de ser o ponto de partida de nossa atuação e nunca o de chegada. Como percebemos nos ritmos aqui analisados, não esquecer jamais implica tomar decisões politicamente situadas e explícitas, estabelecendo laços, construindo redes e, sobretudo, chacoalhar as estruturas, multiplicando os registros do passado para recuperar as memórias de resistência. Isso implica também um fazer no mundo, um caminhar cotidiano como nos sugere o monumento ao “almirante negro”: as pedras pisadas do cais. E nesse processo, somos todas responsáveis: se é preciso dançar conforme a música, nos cabe escolher com cuidado a melodia. Convidamos mais gente a se aproximar do repertório musical do Atlântico Negro como um acervo intelectual a ser estudado e difundido. Um projeto coletivo ofereceria a oportunidade de aprofundar questões fundamentais que escaparam ao escopo desse artigo, como as táticas de solidariedade interracial, o lugar das mulheres negras na produção artística e o papel do feminismo negro na elaboração de narrativas de contestação.