Introdução
Em dezembro de 2019 foram reportados os primeiros casos de pneumonia viral provocada pelo severe acute respiratory syndrome coronavírus 2 (SARS-CoV-2) em Wuhan, China.1,2 De acordo com os registos reportados, a diabetes mellitus (DM) foi a segunda comorbilidade (16,2%) mais frequente nos casos graves de COVID-19.3) Esta relação parece ser bidirecional, tendo em conta o número de casos reportados de infetados pelo SARS-CoV-2 com complicações metabólicas tais como a cetoacidose diabética (CAD) em indivíduos com DM pré-existente ou até mesmo em doentes sem diagnóstico prévio.4
Em termos fisiopatológicos, especula-se que as citocinas pró-inflamatórias libertadas durante a infeção possam desempenhar um papel substancial, uma vez que a interleucina-6 encontra-se elevada tanto na CAD como na COVID-19.5 Por outro lado, a enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2) responsável pela entrada direta do vírus nas células, expressa-se nas células beta-pancreáticas, permitindo a entrada do vírus com lesão e diminuição da função. A downregulation dos ACE2 após a entrada do vírus impede, também, a secreção de insulina pelo aumento de angiotensina.6
Este artigo tem como objetivo descrever três casos de CAD associados a infeção por SARS-CoV-2.
Casos Clínicos
Caso Clínico 1
Homem de 40 anos com antecedentes pessoais de vitiligo (Tabela 1). Admitido no Hospital por quadro de confusão mental e dispneia três dias após o diagnóstico molecular de infeção por SARS-CoV-2. À admissão apresentava uma acidemia metabólica grave acompanhada de hiperglicemia de 430 mg/dL com presença de cetonúria e cetonemia de 6 mmol/L (Tabela 2). A radiografia de tórax não apresentava lesões pleuroparenquimatosas agudas e não houve necessidade de oxigenoterapia durante o internamento. Analiticamente verificou-se elevação dos parâmetros de fase aguda (PFA) com leucocitose. Foi instituída terapêutica com fluidoterapia e perfusão de insulina. Do ponto de vista de infeção SARS-CoV-2 manteve-se sempre assintomático. Apresentou estabilidade clínica ao fim de dez dias de internamento, tendo alta hospitalar medicado com o esquema terapêutico realizado durante o internamento após ter sido atingida a estabilidade clínica e analítica, nomeadamente, insulina basal glargina 12 unidades (U) à noite com associação a insulina prandial glulisina 4 U ao pequeno-almoço (PA), almoço (AL) e jantar (JA).
Características | Caso 1 | Caso 2 | Caso 3 |
---|---|---|---|
Idade | 40 | 72 | 26 |
Sexo | Masculino | Feminino | Masculino |
Comorbilidades | Vitiligo | DM, HTA, DRC | DM |
Grau CAD | Moderado | Moderado | Ligeiro |
Número de dias de internamento | 10 | 16 | 3 |
Utilização de corticoterapia sistémica no internamento | Não | Sim | Não |
Mortalidade | Não | Não | Não |
CAD=cetoacidose metabólica; DM2=diabetes mellitus tipo 2; HTA=hipertensão arterial; DRC=doença renal crónica
Valores laboratoriais | Caso 1 | Caso 2 | Caso 3 | Valor de referência |
---|---|---|---|---|
Leucócitos (x 103 μ/L) | 15,6 | 8,7 | 7,6 | 4,5 - 11 |
Linfócitos (x 103 μ /L) | 2,0 | 1,4 | 1,5 | 1,5 - 4,0 |
Plaquetas (x 103 μ /L) | 295 | 88 | 277 | 150 - 450 |
D-dímeros (ng/mL) | 655 | 1211 | - | < 200 |
Ferritina (ng/mL) | 599 | 392 | - | 30 - 400 |
LDH (U/L) | 301 | 283 | 198 | 0 - 246 |
Glicemia (mg/dL) | 467 | 431 | 309 | 74 - 110 |
Creatinina sérica (mg/dL) | 1,13 | 2,21 | 1,32 | 0,70 - 1,20 |
Ureia (mg/dL) | 22 | 79 | 31 | 8 - 50 |
Sódio sérico ajustado (mEq/L) | 134 | 143 | 139 | 136 - 145 |
Potássio sérico (mEq/L) | 4,10 | 4,4 | 4,5 | 3,50 - 5,10 |
Cloro sérico (mEq/L) | 89 | 103 | 98 | 98 - 111 |
PCR (mg/L) | 22 | 15 | 2 | < 6,10 |
pH | 6,9 | 7,30 | 7,26 | 7,35 - 7,45 |
pO2 (mmHg) | 102 | 98 | 100 | 80 - 105 |
pCO2 (mmHg) | 22 | 29 | 15 | 35 - 45 |
Bicarbonato (mmol/L) | 11 | 15 | 12 | 22 - 28 |
SaO2 | 99 | 98 | 100 | > 95% |
Lactato (mmol/L) | 2 | 1 | 0,9 | 0,5 - 1 |
AG (mmol/L) | 34 | 15 | 17 | 12 ± 4 |
Cetonúria (mmol/L) | Positivo | Positivo | Positivo | < 0,5 |
Cetonemia (mmol/L) | 5,4 | 4 | 6,1 | < 0,6 |
LDH=lactato desidrogenase; PCR=proteína C-reativa; AG=anion gap
Caso Clínico 2
Mulher de 72 anos com antecedentes pessoais de DM tipo 2, não insulinotratada (com valor de hemoglobina glicada A1C (HbA1c) prévio ao internamento de 9,8%), Hipertensão arterial e doença renal crónica estádio 3 (Tabela 1), medicada para a DM com metformina 850 mg em associação com dapaglifozina 5 mg, duas vezes ao dia. Admitida no serviço de urgência por quadro de dispneia, febre e mialgias após contacto de alto risco com indivíduo com diagnóstico de COVID-19. Analiticamente apresentava linfopenia, elevação dos PFA, agravamento da função renal e teste molecular de pesquisa de SARS-CoV-2 positivo. Apresentava, ainda, uma acidemia metabólica moderada acompanhada de hiperglicemia 431 mg/dL (Tabela 2), e radiografia de tórax sem lesões pleuroparenquimatosas agudas. Ao segundo dia de internamento, apesar da terapêutica instituída, observou-se agravamento clínico da acidemia metabólica (pH de 7,13 com bicarbonato de 12 mmol/L), mantendo hiperglicemia de 224 mg/dL. Houve necessidade de admissão na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), ao quarto dia de internamento, por agravamento respiratório com insuficiência respiratória tipo 1 com a presença de infiltrados algodonosos bilaterais na radiografia de tórax, resultado da evolução desfavorável da infeção e da fluidoterapia intensiva para correção do quadro metabólico. Iniciou-se oxigenoterapia de alto fluxo por cânula nasal, gestão da fluidoterapia e do perfil metabólico. Observou-se dificuldade na estabilidade clínica, com alta hospitalar apenas ao fim do décimo sexto dia de internamento. Dado o agravamento da sua função renal durante o internamento foi suspensa temporariamente a metformina e dapaglifozina, tendo tido alta medicada com insulina basal glargina de 14 U à noite associada a 4 U de insulina prandial glulisina ao PA, AL e JA.
Caso Clínico 3
Homem de 26 anos com antecedentes de DM tipo 1, insulino-tratado, com mau cumprimento terapêutico e consequente mau controlo metabólico (previamente ao internamento valor de HbA1C de 13%) (Tabela 1) medicado com insulina basal glargina de 20 U à noite em associação com insulina prandial glulisina 6 U ao PA, AL e JA. Admitido no hospital ao segundo dia de infeção por SARS-CoV-2, até à data, assintomática, por quadro de vómitos alimentares. À admissão apresentava acidemia metabólica ligeira e hiperglicemia de 280 mg/dL acompanhada de cetonúria e cetonemia de 6,7 mmol/L (Tabela 2). Analiticamente verificou-se discreta elevação dos PFA com presença de linfopenia. Radiografia de tórax sem presença de lesões pleuroparenquimatosas agudas e sem necessidade de oxigenoterapia durante o internamento. Instituída terapêutica para correção da CAD com estabilidade metabólica ao fim do terceiro dia de internamento, tendo alta hospitalar assintomático com indicação para cumprimento terapêutico com incremento da insulina basal para 24 U à noite e insulina prandial de 8 U.
Discussão
Os casos reportados demonstram que a COVID-19 poderá precipitar um quadro de CAD. Foram apresentados dois casos em indivíduos com DM já conhecida e um com diagnóstico inaugural de DM.6 A idade e outras comorbilidades apresentadas pelos doentes, assim como o valor elevado de HbA1c e a má adesão à terapêutica são fatores de risco, determinantes, para complicações metabólicas e infeciosas.7,8) A destacar, o valor de HbA1c dos últimos dois doentes (> 9%) como possível causa de complicações infeciosas, uma vez que o ambiente hiperglicémico parece favorecer a disfunção imunológica e o aumento de virulência dos patógenos.9
A relação entre a infeção e as complicações metabólicas parece ser bidirecional, observando-se a possibilidade da infeção por SARS-CoV-2 ser um fator infecioso precipitante da CAD mesmo em doentes assintomáticos. A presença de DM complicada com CAD parece, também, conferir um risco acrescido na gravidade da COVID-19 determinando a admissão em UCI.10
A abordagem deste tipo de doentes é desafiante, tendo em conta que a ressuscitação hídrica excessiva poderá potenciar a dificuldade respiratória aguda, tornando a gestão da fluidoterapia crucial.4)
São necessários mais ensaios clínicos para compreender a correlação entre a COVID-19 e a CAD.