Introdução
Os distúrbios gastrointestinais representam queixas frequentes na consulta em cuidados de saúde primários, a maioria de curso autolimitado ou como resultado de distúrbios funcionais. Apesar de em menor proporção, o médico de família depara-se não raramente com casos de diarreia prolongada, tendo de estar preparado para iniciar uma marcha diagnóstica para despiste das principais causas subjacentes a esta condição.
Define-se diarreia crónica predominantemente pela diminuição da consistência das fezes, correspondente aos tipos 5 a 7 da escala de Bristol, com duração superior a quatro semanas.1 Apresenta uma prevalência estimada de cerca de 5% da população adulta, (1,2 podendo ser caracterizada mais pormenorizadamente de acordo com a frequência das dejeções, odor e consistência das fezes e associação a outros sintomas, entre os quais urgência defecatória, tenesmo ou incontinência fecal. (3 O diagnóstico diferencial é vasto, incluindo doença inflamatória intestinal, doença celíaca, neoplasias, síndrome do intestino irritável, doenças infeciosas, síndromes de má absorção, hipertiroidismo e imunossupressão. (1,2 Pode ainda apresentar relação de causalidade com a dieta ou com a toma de determinados fármacos. (3 O vírus da imunodeficiência humana (VIH) representa uma das etiologias possíveis da diarreia crónica, devendo ser considerado no diagnóstico diferencial desta entidade clínica e devidamente testado quando clinicamente apropriado. (1,4
Caso Clínico
As autoras descrevem o caso de um indivíduo do sexo masculino, 59 anos, casado, com antecedentes de hipertensão arterial, tabagismo ativo e silicose pulmonar. Apresentava história de transfusão de sangue em 1984 na sequência de cirurgia após trauma do pé esquerdo. Medicado habitualmente com perindopril 5 mg por dia. Sem alergias conhecidas.
Em consulta de vigilância na Unidade de Saúde Familiar, apresentou-se com quadro de dejeções líquidas com duas semanas de evolução, correspondentes ao tipo 7 da escala de Bristol, em pequena quantidade, sem sangue ou muco, associadamente a anorexia. Não conseguia especificar frequência das dejeções, porém à data da observação não apresentava dejeções há cerca de dois dias. Negava dor ou distensão abdominal, náuseas, vómitos, febre ou perda ponderal. Sem viagens recentes ou identificação de contexto epidemiológico suspeito. Negava início recente de nova medicação. Ao exame objetivo, exibia bom estado geral, biótipo magro dentro do seu habitual, mucosas coradas, não evidenciando sinais de desidratação. A auscultação cardíaca e pulmonar não apresentava achados de relevo, enquanto a palpação abdominal era indolor, sem massas ou organomegalias palpáveis, com ruídos hidroaéreos ligeiramente aumentados à auscultação. Tendo em conta o quadro clínico, foi solicitado exame bacteriológico e parasitológico de fezes e efetuada prescrição de probiótico. Em consulta telefónica de reavaliação, cerca de duas semanas depois, o utente referiu normalização do trânsito gastrointestinal, pelo que foi aconselhado a manter vigilância e recorrer novamente se ressurgimento das queixas.
Cerca de dois meses depois, o utente recorreu a consulta aberta na Unidade de Saúde Familiar por recorrência do quadro de dejeções diarreicas (escala de Bristol tipo 7), de duração superior a quatro semanas, incluindo no período noturno, sem resposta a probiótico previamente prescrito. Referia, ainda, perda ponderal de cerca de dois quilogramas durante esse período, sem sintomatologia adicional, e trazia consigo resultado negativo do exame bacteriológico e parasitológico de fezes solicitado. O exame objetivo era sobreponível ao previamente descrito. Neste contexto, prosseguiu-se a investigação etiológica com requisição de exames complementares de diagnóstico para despiste, entre outras causas, de doença celíaca, disfunção tiroideia, doença inflamatória ou neoplásica intestinal, infeções crónicas e imunossupressão. Dos resultados obtidos, destacou-se a positividade dos anticorpos para o VIH, confirmada por western blot, que se revelou positivo para VIH-1. O restante estudo analítico não apresentava alterações relevantes, nomeadamente hemograma completo, função renal, enzimologia hepática, glicose, função tiroideia, estudo da coagulação e rastreio de doença celíaca. Os estudos endoscópicos do tubo digestivo alto e baixo demonstraram gastropatia do antro e sequelas de úlcera duodenal, sem outras alterações significativas. Foi efetuada a respetiva notificação no SINAVE da infeção por VIH e referenciação urgente a consulta de Infeciologia, tendo o doente iniciado posteriormente tratamento com antirretrovíricos. O contexto do contágio permaneceu desconhecido, dado que o doente negou comportamentos de risco.
Discussão
A pandemia global do VIH afeta 38 milhões de pessoas em todo o mundo, tendo sido diagnosticadas 1,5 milhões de novas infeções durante o ano de 2020. (5 Em Portugal, foram notificados 778 novos casos de infeção por VIH relativos ao ano de 2019, 69,3% dos quais em indivíduos do sexo masculino, o que coloca o país com uma das mais elevadas taxas de infeção anual da União Europeia. (6
A infeção primária caracteriza-se por uma síndrome clínica com início duas a quatro semanas após a inoculação do vírus, em paralelo com os níveis elevados de virémia que se verificam previamente à resposta do sistema imune e consequente seroconversão. (7 A infeção aguda é sintomática em 50% a 90% dos casos, (8,9 constituindo uma janela de oportunidade para o diagnóstico. Os sintomas duram habitualmente duas a três semanas, mas podem persistir durante alguns meses. (10 A apresentação clínica é frequentemente descrita como influenza-like ou mononucleose-like, albergando uma constelação de sinais e sintomas variável que pode incluir febre, odinofagia, linfadenopatias, exantema maculopapular inespecífico, mialgias/artralgias, fadiga, cefaleia, anorexia, diarreia, náuseas/vómitos, suores noturnos, perda de peso e úlceras orais/genitais. (7,8 A febre representa o sintoma mais frequente, afetando 80% a 90% dos doentes com infeção primária, (9 enquanto os sintomas gastrointestinais são reportados em até 50% dos casos. (11 Dada a inespecificidade da apresentação clínica, os sinais e sintomas são facilmente enquadrados no contexto de outras infeções víricas, conduzindo a atrasos no diagnóstico. Menos de um quarto dos doentes com sintomas sugestivos de infeção aguda/seroconversão são corretamente diagnosticados ad initium, (12 sendo que doentes diagnosticados tardiamente apresentam um risco de morte cerca de cinco vezes superior comparativamente aos indivíduos diagnosticados precocemente. (13 Adicionalmente à maior morbimortalidade, diagnósticos tardios associam-se a custos mais elevados em saúde e a risco superior de transmissão a terceiros, dado que a infeção primária se associa a níveis mais elevados de virémia. (14 Torna-se, portanto, fundamental considerar um baixo limiar para testagem e efetuar um diagnóstico precoce, com benefícios clínicos individuais e para a saúde pública.
O VIH induz mudanças significativas na estrutura e função imunológica da barreira gastrointestinal. (15 Aquando da infeção aguda, ocorre uma depleção rápida de linfócitos T CD4+ no tecido linfoide intestinal. A depleção de células Th17 propicia a disfunção da barreira imunológica intestinal, potenciando o aumento da translocação de microrganismos. (16 Além disso, o vírus favorece a ocorrência de alterações na microbiota intestinal, induzindo disbiose, o que agrava a disfunção imunitária da mucosa. (15 Várias causas concorrem adicionalmente para a ocorrência de diarreia no doente com VIH, designadamente infeções oportunistas, disfunção pancreática, neoplasias associadas ao VIH e, em última instância, a própria terapêutica antirretrovírica (TARV). (17 A diarreia constitui inclusivamente um dos efeitos adversos mais frequentes destes fármacos. A disfunção do trânsito gastrointestinal potencia a má absorção, perda ponderal e deficiências nutricionais, causando um impacto negativo significativo adicional na qualidade de vida do doente com VIH. (17
Com este trabalho, as autoras visam alertar para a importância de considerar a pesquisa do VIH no estudo etiológico da diarreia crónica, ainda que possa não ser solicitado numa fase inicial, de acordo com as recomendações internacionais sobre o tema. (1 Inclusivamente, a norma da Direção-Geral da Saúde dedicada ao diagnóstico e rastreio laboratorial da infeção por VIH, assinala a diarreia crónica de causa desconhecida como condição em que o teste para o vírus deve ser disponibilizado. (4 Este constitui, apesar de tudo, um diagnóstico incomum no dia-a-dia do médico de família, que deve manter um elevado grau de suspeição nestes casos com vista a um diagnóstico precoce, independentemente da ausência aparente de comportamentos de risco. Além disso, com a sua abordagem holística e orientada para as dimensões biopsicossocial, deve também estar atento ao impacto da doença no doente e na família, desempenhando um papel-chave na quebra da cadeia de transmissão e no acompanhamento da adaptação familiar a esta doença crónica.