SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número1Um Desfecho Infeliz de um Diagnóstico Evitável: Caso ClínicoArtrite Psoriática e o seu Desafio Diagnóstico: Relato de Caso índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.11 no.1 Queluz mar. 2024  Epub 28-Mar-2024

https://doi.org/10.29315/gm.v1i1.696 

Casos Clínicos

Um Caso de Delírio de Infestação nos Cuidados de Saúde Primários

A Case of Delusional Infestation in Primary Health Care

1. Unidade de Saúde Familiar Ajuda, Agrupamento de Centros de Saúde de Lisboa Ocidental e Oeiras, Lisboa, Portugal.

2. Serviço de Psiquiatria, Hospital de Egas Moniz, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, Lisboa, Portugal.

3. Departamento de Saúde Mental, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal.


Resumo

O delírio de infestação é uma perturbação que se caracteriza pela crença persistente de infestação por organismos vivos ou inanimados na ausência de evidência para tal. Perante as queixas é frequente os doentes recorrerem primeiramente ao médico de família ou a um dermatologista, ao invés de um psiquiatra, por não acreditarem que os seus sintomas são delirantes.

Descrevemos o caso de uma doente de 86 anos que recorreu aos cuidados de saúde primários com história de ideias delirantes de infestação, acompanhadas de alucinações visuais e cenestésicas.

Após investigação etiológica, o caso foi discutido com um colega de Psiquiatria do hospital da área de residência. Assumido o diagnóstico de delírio de infestação, foi iniciada terapêutica com risperidona, verificando-se a remissão completa dos sintomas.

Este caso pretende alertar para a necessidade de os médicos de família reconhecerem esta patologia de forma a poderem orientá-la corretamente. Reforça ainda a importância da comunicação entre várias especialidades na gestão de perturbações semelhantes, que envolvem diagnósticos menos comuns, mas cuja abordagem inicial pode ser feita nos cuidados de saúde primários, desde que haja validação pela especialidade em questão.

Palavras-chave: Cuidados de Saúde Primários; Parasitose Delirante/diagnóstico; Parasitose Delirante/tratamento; Perturbações Mentais

Abstract

Delusional infestation is a disorder characterized by the persistent belief of infestation by living or inanimate organisms, although there is no evidence for that. In the presence of complaints, patients often seek medical advice from a family doctor or a dermatologist, rather than a psychiatrist, since they do not believe that their symptoms are delusional. We describe the case of an 86-year-old female patient who presented to primary health care with a history of delusional ideas of infestation with visual and cenesthetic hallucinations. After an etiological investigation, the case was discussed with a psychiatrist from the local hospital. The patient was diagnosed with delusional infestation and started risperidone, with complete remission of symptoms. This case intends to emphasize the need for family doctors to recognize this pathology in order to be able to manage it correctly. It also reinforces the importance of communication between different specialties in the management of disorders like this, which correspond to rarer disorders, but whose initial approach can be carried out in primary health care, as long as it is validated by the respective specialty.

Keywords: Delusional Parasitosis/diagnosis; Delusional Parasitosis/therapy; Mental Disorders; Primary Health Care

Introdução

O delírio de infestação (DI) caracteriza-se pela crença persistente de infestação por organismos vivos (parasitas, vermes, insetos) ou inanimados, na ausência de evidência médica e/ou microbiológica. (1 A primeira descrição médica desta condição foi realizada em 1984 pelo dermatologista francês Georges Thibierge, tendo apelidado os doentes de “les acarophobes”. (1) Desde então, vários termos foram sendo utilizados para designar esta patologia. Um dos mais conhecidos, síndrome de Ekbom, deveu-se ao trabalho desenvolvido pelo psiquiatra sueco Karl-Axel Ekbom em 1938, tendo sido substituído pela designação “delírio de parasitose” em 1946 por Wilson e Miller. (1,2 Atualmente, considera-se mais correta a designação “delírio de infestação”. (2

Estima-se que a sua prevalência seja de 20 a 80 casos por cada milhão de pessoas, anualmente, sendo as mulheres duas vezes mais propensas do que os homens. (2 O pico de incidência da doença ocorre na sexta década de vida. (2

O DI é uma perturbação que raramente é diagnosticada, sendo, muito provavelmente, subestimada. (3 Este facto poderá ser explicado pela relutância dos doentes em procurar avaliação médica psiquiátrica por não acreditarem que as suas crenças sejam delirantes. (3 Desta forma, frequentemente, estes doentes recorrem primeiramente ao seu médico de família ou a um dermatologista. (1,3

Geralmente, esta perturbação tem um início insidioso, sendo frequente a sintomatologia preceder o diagnóstico em vários meses ou anos. (2 Podem ocorrer alucinações visuais, táteis e até mesmo auditivas, relacionadas com o delírio em causa.2) É frequente os doentes queixarem-se de prurido e sensação de picada, mordedura ou de insetos a rastejarem sobre a pele. (3,4) Como tentativa de eliminar os “parasitas” do corpo, os doentes utilizam, por exemplo, inseticidas, produtos de limpeza e utensílios como pinças ou agulhas, (2 podendo resultar em lesões cutâneas que variam desde irritação cutânea ligeira a lesões ulceradas. (4 Para provarem que a infestação é real, os doentes recolhem amostras de fragmentos de pele, tecidos ou plantas, fenómeno conhecido originalmente como “sinal da caixa de fósforos”. (2,4

São reconhecidos dois principais tipos de DI: o primário e o secundário. (1 O DI primário corresponde a uma perturbação psiquiátrica isolada, enquanto que o DI secundário pode ser secundário a uma condição médica (nomeadamente, doenças cerebrais neurodegenerativas, neurovasculares, tumores cerebrais ou infeções), psiquiátrica (como, por exemplo, esquizofrenia, perturbações afetivas e perturbações da ansiedade) ou induzido por substâncias (como drogas psicotrópicas, como cocaína, anfetaminas, ou fármacos, nomeadamente, corticosteroides e alguns antibióticos). (1

Atualmente, o tratamento com doses baixas de antipsicóticos é a intervenção mais efetiva no DI (principalmente, no DI primário). (2,5 Dentro do grupo dos antipsicóticos, os de segunda geração são os mais recomendados pela sua segurança e tolerabilidade, quando comparados com os de primeira geração. 2,5

Caso Clínico

Descrevemos o caso de uma utente de 86 anos de idade que recorreu a uma consulta no Centro de Saúde por queixas de prurido intenso no couro cabeludo, olhos, nariz e ouvidos, com cerca de dez meses de evolução. Referia que o prurido era causado por “bichinhos que saíam da sua cabeça e entravam pelos olhos, nariz, boca e ouvidos” (sic), tendo chegado a ver uma pequena “lagarta vermelha a soltar-se do cabelo” (sic). Antes de procurar ajuda médica, a doente já se tinha automedicado com doses elevadas de anti-histamínicos e encontrava-se a aplicar diariamente vinagre no couro cabeludo, sem melhoria evidente. A doente acreditava que os seus sintomas tinham origem numa infestação, ainda que demonstrasse recetividade para a possibilidade de outras causas, verbalizando que necessitava era de um alívio célere da sua sintomatologia.

A doente apresentava história de hipertensão arterial, miocardiopatia isquémica, doença arterial periférica, insuficiência venosa crónica, glaucoma e miopia. Encontrava-se medicada com azilsartan e clorotalidona, dinitrato de isossorbida, cilostazol e timolol (oftálmico). Bebia um copo de vinho por dia e negava consumo de tabaco. Negava viagens recentes. Não apresentava história pessoal ou familiar de doenças psiquiátricas. A doente era viúva, vivia sozinha, sendo completamente autónoma para as atividades da vida diárias. Completou o sexto ano de escolaridade.

Ao exame objetivo a doente apresentava-se vígil, orientada no tempo, espaço, auto e alopsiquicamente, colaborante e com aspeto cuidado. A atenção era fixável e captável. Não apresentava défices mnésicos ou alterações da perceção no momento da entrevista. O discurso não apresentava alterações do débito, da latência ou sintático-semânticas. O pensamento era caracterizado por ideias delirantes de infestação. Apresentava humor eutímico, com afetos congruentes. Não apresentava alterações ao exame neurológico. A observação do couro cabeludo, olhos, nariz, boca e orelhas não evidenciava alterações. Pontuou 26/30 pontos no teste Montreal Cognitive Assessment (MoCA).

Com o objetivo de exclusão de uma patologia demencial - hipótese diagnóstica plausível, tendo em conta características sociodemográficas e sintomatologia apresentada pela doente - foi realizada avaliação analítica com hemograma, função renal, função hepática, perfil lipídico, função tiroideia, ionograma, vitamina B12 e ácido fólico, que não revelou alterações de relevo. Foram ainda realizadas serologias para hepatite B, hepatite C, vírus da imunodeficiência humana e sífilis, que se encontravam negativas. Não foi solicitado o doseamento de substâncias, uma vez que não integram rotineiramente o pedido de exames da investigação da patologia demencial, mas poderia ter sido útil neste caso, nomeadamente o doseamento de substâncias psicotrópicas, uma vez que o seu consumo pode estar associado a manifestações de delírio.

Ainda para investigar uma possível doença neurocognitiva, foi realizada uma tomografia computorizada crânio-encefálica, que revelou “acentuação da hipodensidade relativa da substância branca periventricular adjacente aos cornos frontais e átrios dos ventrículos laterais em relação com alterações incipientes de natureza vascular microangiopática”, “discretas hipodensidades circunscritas lenticulo-capsulares bilaterais de natureza microangiopática”, “ligeira atrofia cerebral cortical difusa de predomínio insular”.

Admitindo-se um provável delírio de parasitose, o caso foi discutido com um colega de Psiquiatria do hospital da área de residência através de um contacto informal (forma verbal direta). Perante os dados da história, foi sugerido início de terapêutica com antipsicótico, nomeadamente, risperidona em dose baixa. Foi então iniciada terapêutica com risperidona 0,25 mg por dia e marcada reavaliação da doente ao fim de um mês.

Na consulta de reavaliação, a doente apresentava remissão completa dos sintomas, referindo-se à terapêutica instituída como “o comprimido milagroso” (sic).

Discussão

Neste artigo relatamos o caso de uma doente com DI, a qual apresenta algumas características sociodemográficas típicas descritas na literatura, nomeadamente, sexo feminino, idade avançada e viuvez. No entanto, a sintomatologia descrita pela doente não se inclui na mais típica da DI. De facto, a doente negava as alucinações hápticas comummente presentes nesta perturbação (nomeadamente, a sensação de rastejamento e formigamento na pele), referindo, por outro lado, queixas compatíveis com alucinações cenestésicas (saída e entrada dos “bichos” pelos orifícios do corpo).

Um dos desafios do clínico no diagnóstico desta perturbação é o de distinguir um DI primário de um DI secundário, questão esta com implicações na abordagem terapêutica. Esta situação torna-se ainda mais relevante perante um caso de uma doente idosa (com idade superior a 80 anos), em que a exclusão de uma perturbação neurocognitiva é imperativa. Neste sentido foi feita observação completa da doente e pedidos os exames complementares necessários. Relativamente aos exames pedidos, a tomografia computorizada crânio-encefálica apresentava algumas alterações minor de natureza vascular microangiopática, não inéditas numa doente com 86 anos, provavelmente relacionadas com alguns fatores de risco da doente e sem aparente relação com sintomatologia apresentada pela mesma. A avaliação laboratorial não revelou alterações significativas. Assim, perante uma utente que mantinha a sua autonomia nas atividades da vida diária, com um exame do estado mental e uma pontuação no MoCA normais, excluímos perturbação neurocognitiva.

Este caso permite corroborar também a evidência que se tem demonstrado sobre a eficácia do uso de antipsicóticos atípicos no tratamento desta perturbação, verificando-se remissão completa da sintomatologia um mês após instituição desta terapêutica.

Finalmente, um dos aspetos mais importantes que queremos realçar com este caso é o facto de ser imprescindível a comunicação ágil entre várias especialidades na gestão de perturbações menos comuns, como a DI. Efetivamente, como já abordado anteriormente, as pessoas com DI recorrem, frequentemente, aos cuidados de saúde primários (CSP) para resolução das suas queixas, o que também se verificou no caso apresentado. A comunicação entre o médico de família e o psiquiatra facilitou a chegada ao diagnóstico correto e, consequentemente, à abordagem terapêutica adequada. Formalmente, a articulação entre os CSP e as especialidades hospitalares é realizada mediante pedido de referenciação informatizado por parte do médico de família. No entanto, os programas informáticos de referenciação existentes estão maioritariamente formatados para o pedido exclusivo de consulta externa hospitalar. Seria interessante um modelo que permitisse a comunicação bidirecional entre o médico de família e o médico hospitalar, nomeadamente através de um pedido de consultadoria externa. Não obstante, este caso vem ainda assim alertar para a necessidade de os médicos de medicina geral e familiar terem conhecimento sobre esta perturbação (ainda assim, rara nos CSP), de forma a poderem orientá-la da melhor forma possível.

Referências

1. Freudenmann RW, Lepping P. Delusional Infestation. ClinMicrobiol Rev. 2009;22:690-732. doi: 10.1128/CMR.00018-09. [ Links ]

2. Moriarty N, Alam M, Kalus A, O’Conner K. Current understanding and approach to delusional infestation. Am J Med. 2019; 132: 1401-9. doi: 10.1016/j.amjmed.2019.06.017. [ Links ]

3. Suh KN. Delusional Infestation: Epidemiology, clinical presentation, assessment and diagnosis. UpToDate 2022 [accessed Aug 2022]. Available fromAvailable from: https://www.uptodate.com . [ Links ]

4. Hinkle, NC. Ekbom Syndrome: A Delusional Condition of “Bugs in the Skin”. Curr Psychiatry Rep. 2011; 13:178-86. doi: 10.1007/s11920-011-0188-0. [ Links ]

5. Suh KN. Treatment of delusional infestation. UpToDate 2022 [accessed Aug 2022]. Available from: Available from: https://www.uptodate.com . [ Links ]

Declaração de Contribuição/ Contributorship Statement

SJ: Escrita do artigo e aprovação da versão final

RA e IL: Revisão e aprovação da versão final

SJ: Writing and approval of the final version

RA and IL: Review and approval of the final version

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical Disclosures

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Patient Consent: Consent for publication was obtained.

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 19 de Outubro de 2022; Aceito: 24 de Janeiro de 2024; : 21 de Fevereiro de 2024; Publicado: 28 de Março de 2024

Autor Correspondente/Corresponding Author: Sara João [sarapsjoao@gmail.com] ORCID iD: 0000-0003-4659-3828

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons