SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número1Um Caso de Delírio de Infestação nos Cuidados de Saúde PrimáriosPerfuração Gástrica por Migração de Fio Torácico índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.11 no.1 Queluz mar. 2024  Epub 28-Mar-2024

https://doi.org/10.29315/gm.v1i1.510 

Casos Clínicos

Artrite Psoriática e o seu Desafio Diagnóstico: Relato de Caso

Psoriatic Arthritis and its Diagnostic Challenge: Case Report

1. Interna de Formação Específica de MGF, USF Mare, ACES Cascais, Cascais, Portugal.

2. Assistente de MGF, USF Afurada, ACES Grande Porto VII, Gaia, Portugal.

3. Assistente de MGF, USF Gaya, ACES Grande Porto VII, Gaia, Portugal.

4. Assistente de MGF, USF Saúde Laranjeiro, ACES Almada Seixal, Almada Seixal, Portugal.

5. Assistente de Reumatologia, Hospital de Braga, Braga, Portugal.

6. Assistente de MGF na USF Lusitano, ACES Estuário do Tejo, Alverca do Ribatejo, Portugal.


Resumo

A artrite psoriática (AP) apresenta-se, habitualmente, como uma oligoartrite ou monoartrite, e pode constituir um desafio diagnóstico na ausência de história de psoríase.

Relata-se o caso de um paciente de 57 anos que recorreu ao Médico de Família (MF) após um ano de evolução de sinais inflamatórios e onicólise do 3º dedo da mão direita. Os exames iniciais mostravam sinais inflamatórios dos tecidos peri-ungueais até à articulação interfalângica distal, e parâmetros inflamatórios analíticos negativos. O quadro foi interpretado em contexto infecioso e, posteriormente, como osteoartrose, não tendo existido melhoria com os tratamentos instituídos. A doença e o atraso no diagnóstico tiveram significativo impacto psicológico e profissional no paciente.

Este caso relata uma apresentação rara de AP, podendo aumentar a suspeição diagnóstica desta entidade nos Cuidados de Saúde Primários, e evidencia o papel do MF no acompanhamento holístico e gestão das expectativas do paciente, além da articulação com as outras especialidades.

Palavras-chave: Artrite Psoriática/diagnóstico; Dedos

Abstract

Psoriatic arthritis (PA) usually presents as oligoarthritis or monoarthritis and can be a diagnostic challenge in the absence of psoriasis background.

We report the case of a 57-year-old patient who presented to the Family Physician (FF) after one year of inflammatory signs and onycholysis of the 3rd finger of the right hand. Initial exams showed signs of inflammation from the periungueal tissues to the distal interphalangeal joint, and negative analytical inflammatory parameters. The condition was interpreted in an infectious context and, later, as osteoarthritis, without improvement with the instituted treatments. The disease and the diagnosis delay had significant psychological and professional impact on the patient.

This case reports a rare presentation of PA, that could increase the diagnostic suspicion of this entity in Primary Health Care and highlights the role of the FF in the holistic follow-up and management of patient expectations, besides articulation with other specialties.

Keywords: Arthritis, Psoriatic/diagnosis; Fingers

Introdução

A artrite psoriática (AP) é uma doença inflamatória crónica, incluída nas espondilartrites, com uma prevalência nos países desenvolvidos de aproximadamente 0,3%, afetando igualmente homens e mulheres, sobretudo entre os 30 e 50 anos. Em cerca de 70% dos casos, a manifestação articular ocorre posteriormente à psoríase cutânea, com um intervalo mediano de 7 a 8 anos. A distrofia ungueal, lesões do couro cabeludo e interglúteas são as manifestações cutâneas de psoríase mais associadas à AP. Esta apresenta entre os fatores de risco a obesidade e o trauma articular.1,2

A AP manifesta-se, mais frequentemente, como uma oligoartrite assimétrica, ou poliartrite artrite reumatoide like, podendo também cursar com envolvimento axial, entesite ou dactilite, frequentemente. A artrite de interfalângicas distais (IFD) é muito característica, mas é rara como manifestação única e habitualmente surge em associação com onicopatia e outras manifestações musculoesqueléticas.1,2,3

Perante uma monoartrite inicial, o MF deve realizar o diagnóstico diferencial de AP, gerir o impacto social, psicológico e profissional da doença e reconhecer a importância de uma abordagem multidisciplinar, frequentemente necessária, e para a qual são fundamentais processos de referenciação eficientes.

Caso Clínico

Doente do sexo masculino, 57 anos, técnico de manutenção e inspetor do controlo de qualidade aeronáutico. Sente-se realizado profissionalmente e tem um estilo de vida ativo. Tem como antecedentes pessoais hipertensão arterial, obesidade, síndrome de apneia obstrutiva do sono, síndrome do ombro doloroso por status pós-rotura do supraespinhoso em contexto traumático, hérnia discal lombar com ciatalgia, e perturbação ango-depressiva. Sem história pessoal ou familiar de psoríase ou doenças imunomediadas. Medicado habitualmente com amlodipina, valsartan, sertralina em dias alternados (em desmame) e ventiloterapia.

Recorreu a consulta com o MF, em agosto de 2019, por distrofia ungueal e edema distal do 3º dedo da mão direita desde há um ano. Referia instalação progressiva ao longo da primeira semana do quadro, com rubor, dor e limitação funcional do dedo (Fig. 1). Ao longo do ano, recorreu a consultas de Dermatologia, Ortopedia e Reumatologia. Realizou radiografia dos dedos da mão, que não apresentou alterações osteoarticulares, e ressonância magnética (RM) do dedo afetado, que evidenciou alterações inflamatórias dos tecidos moles periungueais, extensíveis à esponjosa da segunda e terceira falanges e articulação interfalângica (IF) distal, ligamentos laterais, placa palmar e canal extensor na sua inserção na terceira falange, com discreto derrame sinovial e tenossinovite. O utente referia ter realizado vários ciclos de antibioterapia, sem melhoria clínica, pelo que se assume que terá sido considerada etiologia infeciosa. Havia também realizado vários ciclos de anti-inflamatórios.

Figura 1 Apresentação clínica na consulta com o Médico de Família, com distrofia ungueal e sinais inflamatórios da extremidade distal do 3º dedo da mão direita. 

Na consulta com o MF, mantinha dor e rigidez constantes da articulação IF distal do 3º dedo, sem fatores de alívio ou agravamento. Negava queixas referidas a outros dedos ou articulações, quadro anterior semelhante, ou queixas referidas a outros órgãos ou sistemas, como alterações cutâneas atuais ou prévias. Ao exame objetivo, apresentava marcado rubor e edema na região da articulação IF distal do 3º dedo da mão direita, doloroso à palpação, e limitação marcada dos movimentos de flexão e extensão do dedo. Apresentava, concomitantemente, onicólise da unha do mesmo dedo. Solicitou-se novo estudo radiológico e analítico, com parâmetros inflamatórios. A alteração ungueal, interpretada como onicomicose, foi medicada com antifúngico oral e tópico, associando-se a acemetacina 60 mg bid de forma contínua para analgesia e diminuição da inflamação. Foi emitida baixa pela limitação funcional.

Após um mês, o quadro mantinha-se. Analiticamente, não apresentava alterações do hemograma, hiperuricemia ou aumento dos parâmetros inflamatórios (VS e PCR), com HLA-B27 e FR negativos. A radiografia das mãos demonstrou, desta vez, alterações na articulação IF distal do 3º dedo (Fig. 2), com componente de flexão parcial mantida, erosões ósseas marginais, redução do espaço articular e lesões de periosteíte, ligeira artrose da metacarpofalângica (MF) de ambos os polegares e discreta remodelação osteofitária marginal da cabeça do 2º metacarpo esquerdo. Considerando os movimentos repetitivos realizados no contexto profissional, prevaleceu a hipótese de osteoartrose pós-traumática em fase inflamatória como etiologia mais provável. Perante possibilidade de doença inflamatória, solicitou-se uma ecografia articular, embora já tivesse realizado a RM com as alterações inflamatórias peri-articulares descritas.

Figura 2 Alterações radiológicas da articulação IF distal do 3º dedo, incluindo erosões ósseas marginais, redução do espaço articular e lesões de periosteíte. 

O paciente manteve contactos frequentes com o MF para renovação de baixa, demonstrando ansiedade com a situação pessoal e profissional, potenciada pela incerteza do diagnóstico. Referia perda de certificações profissionais e preocupação com a retoma da atividade, equacionando a reforma antecipada. Acrescia frustração pela limitação para atividades do dia-a-dia, como rodar uma chave, escrever ou abotoar botões. Reconhecia repercussões emocionais e psicológicas, afastamento social e um estilo de vida menos ativo. Esta situação levou a manutenção do antidepressivo e ao uso de um benzodiazepínico atípico (zolpidem 10 mg) para melhoria do sono.

A ecografia apresentava apenas alterações hipertróficas da IF distal do 3º dedo da mão direita, sem outras alterações osteoarticulares descritas. Em nova consulta de Ortopedia, mantinha as alterações radiográficas prévias da IF distal do 3º dedo, com superfícies ósseas subcondrais irregulares e erosionadas, bem como aumento difuso do volume das partes moles deste dedo e artrose da IF do 1° dedo da mão direita. Foi, então, solicitado novo parecer a Reumatologia, que diagnosticou AP com envolvimento das articulações IF do 1º dedo e IF distal do 3º dedo da mão direita.

Em consulta para reavaliação de incapacidade, um mês depois, o paciente referiu ter optado por um seguimento paralelo por uma equipa multidisciplinar (Reumatologia, Ortopedia e Dermatologia), juntamente com MGF. Iniciou um fármaco anti-reumático modificador da doença (metotrexato subcutâneo, 1 administração semanal, inicialmente na dose 15 mg/0,3 mL, com progressão mensal para 20 mg/0,4 mL e, posteriormente, para 25 mg/0,5 mL), e refere ter realizado uma infiltração local com corticoide. Por intolerância e ineficácia terapêutica, foi proposta progressão para terapia biológica após 3 meses, tendo iniciado Secucinumab 150 mg/1 mL (2 injeções subcutâneas de 4 em 4 semanas), com o qual notou melhoria nos meses iniciais de tratamento, tendo sido posteriormente substituído pelo Adalimumab 40 mg/0,4 mL (1 injeção subcutânea de 2 em 2 semanas), que mantém até à data. Neste momento, apresenta boa tolerância à terapêutica, referindo melhoria álgica e funcional, tendo conseguido retomar a sua atividade profissional (Fig. 3).

Figura 3 Apresentação clínica do dedo afetado após período de tratamento com secucinumab. 

Discussão

No quadro descrito, a manifestação inicial foi a distrofia ungueal (onicólise) do 3º dedo da mão direita, com aparecimento de sinais de artrite da articulação IF distal do mesmo dedo após uma semana (tumefação articular, mobilidade dolorosa e limitada), entesite, tenossinovite e dactilite. A onicólise foi inicialmente interpretada em contexto de onicomicose, que é responsável por cerca de 50% dos casos de distrofia ungueal e um dos diagnósticos diferenciais de psoríase ungueal, que não foi incluída nas hipóteses diagnósticas iniciais. As lesões ungueais ocorrem em 80%-90% dos casos de AP, sobretudo quando há envolvimento das IF distais.4,5,6,7

Quanto ao diagnóstico diferencial, a ausência de história de trauma penetrante, imunossupressão, infeções prévias ou parâmetros analíticos de infeção, tornam a hipótese infeciosa pouco provável.

Entre as causas articulares, a AP pode ter envolvimento inicialmente mono ou oligoarticular, assimétrico, acometendo as articulações IF distais, com rigidez marcada e associação frequente a alterações ungueais características e dactilite (ocorre em quase metade dos casos e associa-se a maior risco de dano articular progressivo). O FR é negativo na maioria dos pacientes (espondiloartropatia seronegativa), e o HLA-B27 é positivo em apenas 40%-50% dos casos. Assim, a AP seria um diagnóstico muito provável para o quadro descrito, se considerarmos as alterações inflamatórias da IF distal em contexto de artrite e a onicodistrofia como manifestação de psoríase ungueal. O paciente apresentava antecedentes de obesidade e trauma articular em contexto profissional, ambos fatores de risco para AP. As restantes espondiloartropatias seronegativas apenas se associam a psoríase em 10% dos casos e não costumam estar associadas a lesões ungueais, pelo que seriam pouco prováveis.1,2

O diagnóstico de AP é normalmente clínico, e caracteriza-se pela presença de artrite, dactilite ou entesite, e história pessoal ou familiar de psoríase. .1,2

A radiografia ajuda no diagnóstico diferencial com outras artrites inflamatórias e, em alguns casos, identifica doença assintomática, embora as alterações sejam raras em fases iniciais da doença. Alterações radiológicas precoces sugerem doença muito agressiva ou uma duração superior da artrite face à relatada, o que pode justificar a ausência de alterações na radiografia inicial. A coexistência de alterações erosivas e proliferação óssea numa mesma articulação ou em diferentes articulações do mesmo dedo, lise das falanges terminais, periosteíte e formação de osso nos locais de entesite, destruição marcada de articulações isoladas, aparência de pencil-in-cup e a ocorrência de lise articular e anquilose são características da AP. A RMN e a ecografia são sensíveis na deteção precoce de inflamação articular, periarticular e dos tecidos moles e das erosões. .1,2

Não existem achados laboratoriais específicos de AP: o FR é, habitualmente, negativo. Pode coexistir hiperuricemia e associação com determinados HLA. .1,2

A ausência de história pessoal ou familiar de psoríase ou AP, e a ausência de alterações radiográficas numa fase inicial, poderão ter afastado esta suspeita diagnóstica numa primeira abordagem, atrasando o diagnóstico.

Este caso é raro em CSP e reforça a importância de uma correta abordagem inicial. Reflete, também, a repercussão que o atraso no diagnóstico teve no paciente, a nível profissional, económico, social e psicológico. Os autores consideram que o médico de MGF se encontra na posição ideal para garantir um acompanhamento holístico e multidisciplinar, considerando o impacto socioeconómico e necessidade de gestão de comorbilidades destes pacientes, mas também para capacitar os mesmos para lidar com as flutuações do processo diagnóstico e a evolução natural da doença.

Referências

1. Gladman DD, Ritchlin C. Clinical manifestations and diagnosis of psoriatic arthritis. UpToDate 2023[consultado Jan 2023] Disponível em: Disponível em: https://www.uptodate.com/ . [ Links ]

2. Psoriatic Arthritis. DynaMed[Internet]. Ipswich (MA): EBSCO Information Services; 2021. 091;consultado Jan 2023] Disponível em: Disponível em: https://www.dynamed.com/ . [ Links ]

3. Liu JT, Yeh HM, Liu SY, Chen KT. Psoriatic arthritis: Epidemiology, diagnosis, and treatment. World J Orthop. 2014;5:537-43. doi: 10.5312/wjo.v5.i4.537. [ Links ]

4. Queller JN, Bhatia N. The Dermatologist's Approach to Onychomycosis. J Fungi. 2015;1:173-84. doi: 10.3390/jof1020173. [ Links ]

5. Shibuya R, Tabuse H, Yamaji T, Kiso K, Yoshikawa H. Treatment of osteomyelitis of the distal interphalangeal joint with antibiotic-impregnated calcium phosphate paste granules. J Hand Surg Global Online. 2019;1:119-23. doi: 10.1016/j.jhsg.2019.01.002. [ Links ]

6. Couto-Gonzalez I, Brea-García B, Taboada-Suárez A. Purulent infection in the third finger with associated osteomyelitis. BMJ Case Rep. 2013;2013:bcr2012008476. doi: 10.1136/bcr-2012-008476. [ Links ]

7. Flevas DA, Syngouna S, Fandridis E, Tsiodras S, Mavrogenis AF. Infections of the hand: an overview. EFORT Open Rev. 2019;4:183-93. doi: 10.1302/2058-5241.4.180082. [ Links ]

Declaração de Contribuição/ Contributorship Statement

IG: Escrita e revisão do artigo

SC, LL, AM, MC e LC: Revisão do artigo

IG: Writing and article review

SC, LL, AM, MC and LC: Article review

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical Disclosures

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Patient Consent: Consent for publication was obtained.

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 06 de Outubro de 2021; Aceito: 06 de Fevereiro de 2024; : 04 de Março de 2024; Publicado: 28 de Março de 2024

Autor Correspondente/Corresponding Author: Ina Garuta [inagaruta@campus.ul.pt] ORCID iD: 0009-0004-5659-9080

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons