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Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.11 no.2 Queluz jun. 2024  Epub 26-Jun-2024

https://doi.org/10.29315/gm.v11i2.717 

Artigo de revisão

Racecadotril no Tratamento da Diarreia Aguda em Idade Pediátrica: Qual a Evidência?

Racecadotril in the Treatment of Acute Diarrhea in Pediatric Age: What is the Evidence?

1. USF Nova Via, ACeS Espinho/Gaia, Gaia, Portugal.

2. USF Saúde no Futuro, ACeS Gaia, Gaia, Portugal.

3. USF Gaya, ACeS Gaia, Gaia, Portugal.

4. USF Abel Salazar, ACeS Gaia, Gaia, Portugal.

5. Serviço de Gastrenterologia Pediátrica, Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, Gaia, Portugal.

6. Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho Gaia, Portugal


Resumo

A gastroenterite aguda (GEA) continua a ser uma das patologias mais frequentes em idade pediátrica, sendo que a rehidratação oral permanece a pedra angular do seu tratamento.

O racecadotril é um fármaco antidiarreico utilizado no tratamento da diarreia aguda em crianças, dado que reduz a secreção de água e eletrólitos pelo aparelho digestivo. Apesar de poder ser considerado no tratamento da GEA, não é claro se é realmente eficaz. O objetivo deste trabalho é, através de uma revisão bibliográfica, avaliar se existe evidência que suporte o seu uso no tratamento da diarreia aguda em idade pediátrica.

Foi realizada uma pesquisa de artigos publicados nos últimos 10 anos, na língua portuguesa ou inglesa, nas bases de dados MEDLINE; NICE; Cochrane Library; BMJ; CPG Infobase - Clinical Practice Guidelines; Bandolier.

As palavras-chave utilizadas foram “Racecadotril”, “Child”, “Child, Preschool”, “Diarrhea” e “Gastroenteritis”. A seleção dos artigos foi feita em duplicado pelas autoras que, perante dúvidas, discutiram conjuntamente a sua inclusão/exclusão. Para a atribuição dos níveis de evidência e forças de recomendação, foi usada a escala Strenght of Recommendation Taxonomy.

Obtiveram-se um total de 443 artigos, tendo, no final, sido incluídos oito artigos: três meta-análises, duas revisões, duas guidelines e uma opinião de peritos.

Os estudos incluídos nesta revisão demonstraram uma redução no número e volume de dejeções, na duração da diarreia e no tempo de cura.

Conclui-se que o racecadotril parece ser eficaz no tratamento da diarreia aguda e pode ser considerado em conjunto com a solução de rehidratação oral (SORT B).

Palavras-chave: Antidiarreicos/uso terapêutico; Criança; Diarreia/tratamento farmacológico; Gastroenterite/tratamento farmacológico; Racecadotril

Abstract

Acute gastroenteritis (AGE) remains one of the most frequent diseases in pediatric age with oral rehydration being the cornerstone of its treatment.

Racecadotril is an antidiarrheal drug used for the treatment of acute diarrhea in children, as it reduces the secretion of water and electrolytes by the digestive tract. Although it could be considered in the treatment of AGE, it is not clear whether racecadotril is really effective. The objective of this study is to assess whether there is evidence to support its use in the treatment of AGE in pediatrics, through a literature review.

A search of articles published in the last 10 years, in Portuguese or English, was carried out in the MEDLINE databases; NICE; Cochrane Library; BMJ; CPG Infobase - Clinical Practice Guidelines; Bandolier. The keywords used were “Racecadotril”, “Child”, “Child, Preschool”, “Diarrhea” and “Gastroenteritis”. The selection of articles was made in duplicate by the authors who, when in doubt, jointly discussed its inclusion/exclusion. The Strength of Recommendation Taxonomy scale was used to assign levels of evidence and strengths of recommendation.

A total of 443 articles were obtained, and in the end, eight articles were included: three meta-analyses, two reviews, two guidelines and one expert opinion.

The studies included in this review demonstrated a reduction in the number and volume of stools, in duration of diarrhea, and in healing time.

It is concluded that racecadotril seems to be effective in the treatment of acute diarrhea and can be considered in conjunction with the oral rehydration solution (SORT B).

Keywords: Antidiarrheals/therapeutic use; Child; Diarrhea/drug therapy; Gastroenteritis/drug therapy; Racecadotril

Introdução

A gastroenterite aguda (GEA) continua a ser uma das patologias mais frequentes em idade pediátrica, associada a morbimortalidade importante com um número não negligenciável de mortes que, apesar de terem diminuído nas últimas duas décadas, permanecem como a segunda causa de morte mais comum em idade pediátrica em todo o mundo, principalmente em África e sul da Ásia. Nos países desenvolvidos, a GEA raramente se associa a mortalidade, mas atinge praticamente todas as crianças até aos 5 anos de idade e associa-se a um elevado número de admissões hospitalares, constituindo mesmo a segunda causa mais frequente de internamento em Pediatria, a seguir às infeções respiratórias virais.1-3

A GEA é definida como a diminuição da consistência das fezes e/ou aumento da frequência das evacuações (três ou mais dejeções em 24 horas), associada ou não a febre ou vómitos. A diarreia apresenta tipicamente duração compreendida entre sete e catorze dias. No entanto, a alteração da consistência das fezes é mais indicadora de diarreia do que o número de dejeções, especialmente nos primeiros meses de vida.1

Os vírus são a causa mais frequente de GEA na criança em todo o mundo, sendo os rotavírus e norovírus apontados como os principais agentes, sobretudo na criança pequena (idade <5 anos), com um número significativo de coinfecções.2

Na Europa, as infeções por rotavírus variam entre 25,3% (Grécia) e 63,5% (Suécia), estando descritas em Portugal, taxas de 45%-54,5% na comunidade e de 18%-40% em internamento, sendo, no entanto, os dados epidemiológicos escassos.2 Estas infeções cursam habitualmente com vómitos, desidratação, scores de gravidade e necessidade de internamento superiores, quando comparados com outros vírus. Nos países desenvolvidos, grande parte dos casos de GEA por rotavírus não necessita de hospitalização, mas o impacto desta patologia na saúde pública é muito significativo, porque a morbilidade permanece elevada, com custos para os sistemas de saúde. A infeção tem também marcado impacto nas famílias, uma vez que as crianças ficam impossibilitadas de frequentar as creches/infantários, com consequente absentismo laboral dos pais, quer por ficarem em casa a prestar cuidados aos filhos, quer por terem também contraído a mesma infeção.4,5

Desde 2006, estão aprovadas e comercializadas duas vacinas contra rotavírus (Rotarix® e RotaTeq®), muito seguras e particularmente eficazes na prevenção das GEA por este vírus. Esta vacina faz parte do Plano Na- cional de Vacinação Português desde o dia 1 de outubro 2020 para grupos de risco, divulgados na Norma nº 007/2021 de 15/10/2021 da DGS.4

A introdução de vacina contra rotavírus fez diminuir a sua prevalência e o número absoluto de episódios de gastroenterite aguda infantil, começando a emergir com frequência crescente outros agentes víricos, como norovírus.1,3 O papel do norovírus na GEA tem vindo a ser cada vez mais importante nos últimos anos, principalmente em países com elevada cobertura vacinal anti-rotavírus, representando já a causa mais frequente de GEA nas crianças e adultos nos Estados Unidos, de acordo com o Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Em Portugal, a incidência da infeção a norovírus é desconhecida, mas estão descritos surtos com origem alimentar.2

As principais recomendações para a abordagem e gestão da GEA são idênticas na Europa e nos países em desenvolvimento.1 No entanto, na Europa, a maioria dos casos de GEA pode ser gerida em ambulatório, uma vez que é geralmente uma doença ligeira e autolimitada.

Uma consulta telefónica pode ser apropriada na gestão dos casos não complicados de GEA, com o objetivo de obter informação que permita ao médico avaliar o estado geral do doente e o risco de desidratação.6

A rehidratação oral é a pedra angular do tratamento da GEA, pelo que os cuidadores devem ser encorajados a ter soluções de rehidratação oral (SRO) em casa e iniciar a administração às crianças logo após o início dos sintomas, para reduzir as complicações e a necessidade de observação médica.1,6

O racecadotril é um fármaco antidiarreico, que atua como inibidor da encefalinase de ação periférica, com atividade anti-secretora exclusivamente intestinal. O racecadotril tem sido utilizado, adicionalmente à reposição de fluídos, para o tratamento da diarreia em crianças, uma vez que reduz a secreção de água e eletrólitos pelo aparelho digestivo.7

Apesar de poder ser considerado no tratamento da GEA, não é claro se o racecadotril é realmente eficaz em crianças com diarreia. Deste modo, esta revisão tem como objetivo dar resposta a esta questão, avaliando o papel deste fármaco no tratamento da GEA, através da reunião da evidência mais atual existente, de forma a apoiar o clínico na prescrição médica.

Métodos

Foi realizada uma pesquisa de ensaios clínicos aleatorizados e controlados, revisões, revisões sistemáticas e meta-análises publicados nos últimos 10 anos. Esta foi realizada entre 27 de dezembro de 2021 e 4 de janeiro de 2022, tendo sido procurados artigos em língua portuguesa ou inglesa.

As palavras-chave utilizadas foram “Racecadotril”, “Child”, “Child, Preschool”, “Diarrhea” e “Gastroenteritis”, nas seguintes bases de dados: MEDLINE; National Institute for Health and Care Excellence (NICE); Cochrane Library; British Medical Journal (BMJ); CPG Infobase - Clinical Practice Guidelines e Bandolier.

A população em estudo incluiu indivíduos em idade pediátrica com diagnóstico de diarreia aguda. Foi avaliado o uso de racecadotril em associação com SRO versus o uso de SRO de forma isolada no tratamento desta patologia, nomeadamente, o seu efeito na diminuição do número de dejeções diárias, duração da doença e/ou volume das fezes.

Para a atribuição dos níveis de evidência e forças de recomendação, foi usada a escala Strenght of Recommendation Taxonomy (SORT), da American Family Physician.8

Resultados

Da pesquisa inicial efetuada, obtiveram-se um total de 443 artigos (Fig. 1), dos quais 416 foram excluídos, após a leitura do título e abstract. Destes 27, foram excluídos mais 14 artigos, após a sua leitura integral, por não se enquadrarem nos critérios de inclusão estabelecidos nos métodos. Para os restantes 13 artigos selecionados, os autores fizeram ainda uma revisão em duplicado, ou seja, cada artigo foi lido na totalidade por pelo menos dois autores, de forma a aumentar a qualidade da seleção. Nesta fase, foram excluídos mais 5, por já se encontrarem descritos noutros artigos ou não cumprirem critérios definidos nos métodos. Em cada uma das etapas de seleção, os autores discutiram entre si os resultados encontrados e, perante dúvidas e/ou divergências encontradas, discutiram em conjunto a inclusão/exclusão do artigo com uma taxa de concordância final de 100%.

Figura 1: Organograma da seleção dos artigos incluídos 

Incluíram-se, assim, um total de oito artigos: três meta-análises, duas revisões, duas guidelines e uma opinião de peritos. Os resultados encontram-se organizados nas Tabelas 1, 2 e 3.

Tabela 1: Quadro resumo das meta-análises e revisões analisadas. 

Referência Estudos incluídos População Resultados NE
Meta-análise
Eberlin et al, 2018 6 RCTs

  • Grupo tratado com racecadotril: n=326

  • Grupo placebo: n=312

  • 7 estudos open-label

  • Grupo tratado com racecadotril: n=350

  • Grupo controlo: n=348

Crianças com idades entre 1 mês e 10 anos

  • Redução de 0,617 no número de dejeções no segundo dia de tratamento (IC -0,759, -0,474, p=0,000)

  • Redução do tempo de cura em 1,095 dias (IC -1,210, -0,981, p=0,000)

2
Florez et al, 2018 NA NA O racecadotril foi superior ao tratamento standard na redução da duração da diarreia 2
Lehert et al, 2011 9 RCTs

  • grupo com racecadotril: n=692

  • grupo controlo: n=692

  • SRO + placebo: n=407

  • SRO + kaolin-pectin: n=108

  • SRO: n=177

Crianças com idades entre 1 mês e 15 anos

  • Redução do número de dejeções em 0,63 (IC 0,47-0,85, p<0,001) na população em ambulatório

  • Redução no volume de dejeções em 0,59 kg (IC 0,51-0,74, p<0,001) na população internada

2
Revisão
Pienar et al, 2020 1 MA NA

  • Redução dos sintomas em 53 horas (IC -65,64, -41,33)

2
Liang et al, 2019 7 RCTs: n=1140 Crianças com idades entre os 3 meses e 5 anos

  • Redução significativa de 0,65 g/h no volume de dejeções em 48 horas (IC -0,88, -0,41

  • Redução não significativa no número de dejeções em 24 horas (-0,24, IC -0,90, 0,43) e 48 horas (-0,80, IC -1,87, 0,27) após início do racecadotril

  • Não foi possível determinar se o racecadotril influencia o número de dejeções e duração da diarreia

2

IC - intervalo de confiança a 95%, NA - não aplicável; NE - nível de evidência; RCT - randomized control trial, SRO - solução de rehidratação oral

Tabela 2: Resumo das guidelines analisadas. 

Guidelines
Referência Recomendação NE FR
Chen et al, 2018 O racecadotril pode diminuir a frequência da diarreia aguda em crianças com mais de 2 meses, pelo que o seu uso é recomendado NA B
Guarino et al, 2014 Diminui duração da diarreia e número de dejecções diarreicas II B

FR - força de recomendação; NE - nível de evidência.

Tabela 3: Resumo da opinião de peritos analisada. 

Opinião de peritos
Referência Recomendação NE
Guarino et al, 2012 O racecadotril pode ser considerado no tratamento da diarreia aguda, mas são necessários mais estudos no ambulatório 3

NE - nível de evidência.

Eberlin et al9 publicaram em 2018 uma revisão sistemática com meta-análise em que analisaram um conjunto de RCTs que compararam os efeitos do racecadotril com o placebo (n=6), onde ambos os grupos de intervenção e controlo tinham como terapêutica de base reposição de fluidos; e ainda estudos open-label, onde o racecadotril foi adicionado a um tratamento de reposição de fluidos já iniciado anteriormente, quer por via oral, quer por via endovenosa (n=7). A população estudada incluiu doentes tanto em meio hospitalar, como em ambulatório, com idades compreendidas até aos 10 anos. Da meta-análise realizada tendo em conta todos estes estudos, os resultados demonstraram que o racecadotril é eficaz ao reduzir a duração da diarreia e o volume e número de dejeções, corroborando o seu uso no tratamento da diarreia aguda. A destacar também o facto de os autores terem realizado uma pesquisa alargada, com fontes de pesquisa vastas e sem limitação dos estudos tendo em conta a sua data, país de origem ou linguagem; no entanto, principalmente em relação aos estudos open-label, verificou-se que a maioria eram originários da China.

A meta-análise de Florez et al,10 publicada no final de 2018, estudou vários tipos de intervenções farmacológicas usadas no tratamento da diarreia aguda na população pediátrica, entre elas o racecadotril. Concluíram que este fármaco é melhor do que o “tratamento standard” (isto é, em que não há um tratamento ativo para além da SRO) na redução da duração da diarreia aguda em crianças, no entanto, com efeitos modestos. Classificam ainda a qualidade da evidência que encontraram, de um modo geral, como baixa a muito baixa. Os autores consideram que a forma de apresentação dos resultados obtidos nesta meta-análise, através de tabelas com múltiplas entradas, é de difícil análise e compreensão, pelo que não são claros os resultados obtidos.

Segundo a meta-análise realizada por Lehert et al,11 de 2011, o racecadotril mostrou reduzir significativamente a duração da diarreia, o volume de fezes nos doentes internados e o número de dejecções diarreicas nos doentes em ambulatório, quando comparado com placebo ou com SRO usada isoladamente (de referir que a substância kaolin-pectin é considerada como um equivalente ao placebo). Assim, o dobro dos pacientes recuperou mais rapidamente com o racecadotril, comparativamente ao placebo (HR [hazard ratio] 2.04, IC [intervalo de confiança a 95%] 1,85-2,32, p <0,001).

Mesmo após o ajuste para fatores como grau de desidratação, presença ou não de infecção por rotavírus, tratamento em contexto hospitalar ou em ambulatório, ou país, continuou a verificar-se a eficácia do racecadotril.

De notar que este estudo teve em conta uma população de vários países (Índia, Peru, Guatemala, Espanha, França e México), o que também trouxe heterogeneidade nos critérios de inclusão de cada estudo.

Da evidência recolhida por Pienar et al,12 publicada em 2020, os autores sugerem que associar o racecadotril à SRO pode reduzir a duração da doença, assim como o número e volume de dejeções, com base em 2 RCTs, já incluídos nesta revisão, e uma meta-análise, que mostrou uma diminuição significativa dos sintomas em 53 horas, quando comparado com o grupo com placebo ou sem intervenção.

A revisão de Liang et al,13 publicada pela Cochrane em 2019, teve em conta uma população de crianças até aos 5 anos de idade com diarreia aguda não complicada - definida como pelo menos 3 dejeções de consistência mole ou líquida num período de 24 horas e com duração inferior a 7 dias. A análise de dois RCTs, já incluídos na nossa análise, que avaliaram o volume de dejeções em 48 horas em 301 crianças, demonstrou uma redução significativa de -0,65 g/h (IC -0,88, -0,41) no grupo que usou o racecadotril, quando comparado com o grupo placebo ou sem tratamento. No entanto, relativamente à duração da diarreia e ao número de dejeções, os resultados foram inconclusivos.

Os autores classificam a evidência encontrada como de qualidade baixa a muito baixa. Guarino et al,16 publicaram em 2012, um artigo de opinião no qual relatam evidência discordante relativamente à eficácia do racecadotril em crianças com diarreia tratadas em ambulatório, embora tenham encontrado estudos que apoiem o seu uso em crianças internadas. Referem, ainda, os resultados positivos encontrados por Lehert et al,11 meta-análise incluída nesta revisão, pelo que consideram o seu uso.

Em relação às guidelines chinesas,14 desenvolvidas por um grupo de peritos que estabelecem recomendações sobre o diagnóstico, tratamento e prevenção da diarreia infecciosa aguda e baseadas na pesquisa bibliográfica em bases de dados fiáveis, o uso de racecadotril é recomendado em crianças a partir dos 2 meses de idade, uma vez que pode reduzir a duração da diarreia.

A dose sugerida para crianças entre os 3 meses e os 10 anos é de 1,5 mg/kg, administrada 3 vezes por dia antes das refeições, durante 5 dias ou até à recuperação.

As guidelines da ESPGHAN (European Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology, and Nutrition) e Sociedade Europeia de Doenças Infecciosas Pediátricas,15 relativas à abordagem da GEA em crianças na Europa, publicadas em 2014, consideram que o racecadotril pode ser usado no tratamento desta patologia, com uma força de recomendação IIB.

Discussão

Tendo em conta a evidência reunida, o racecadotril parece ter benefício no tratamento da diarreia aguda na população estudada, quando adicionado ao tratamento de rehidratação oral.

Os estudos incluídos nesta revisão demonstraram uma redução no número e volume de dejeções em populações tratadas em ambulatório e ambiente hospitalar, respectivamente, e globalmente na duração da diarreia e no tempo de cura. Ainda assim, vários destes estudos reportaram a existência de elevada heterogeneidade, dada a utilização de doentes quer em regime de ambulatório, quer de internamento, englobando um nível de gravidade de diarreia diferente, o que pode influenciar a resposta ao racecadotril (doentes com doença mais grave poderão responder melhor) e limitar a conclusão obtida.

Da mesma forma, existe variabilidade na definição dos critérios de inclusão e outcomes para cada estudo.

O racecadotril parece ter poucos eventos adversos, quando comparado com o placebo.9,11 Alguns dos efeitos reportados são vómitos, dor e distensão abdominal, obstipação e rash.12 Florez et al10 faz ainda referência a um estudo em que houve um aumento das transaminases hepáticas. Apesar de se tratar de um fármaco que interage no sistema opioide, não há evidência de depressão respiratória.17

Dos estudos incluídos, grande parte da evidência obtida foi avaliada como de qualidade baixa a muito baixa. São, portanto, necessários mais estudos relativamente à eficácia do racecadotril em idade pediátrica, com melhores desenhos de estudo e envolvendo uma população de maiores dimensões, de forma a minimizar os vieses.9

Outro fator importante a ser avaliado é o custo-benefício do uso do racecadotril. Numa análise da perspectiva do Reino Unido, realizada em 2012, os autores concluem que o racecadotril, em conjunto com a SRO, é mais eficaz e mais barato quando comparado com a SRO isoladamente, numa população de crianças com menos de 5 anos. Estes resultados são explicados pela redução de custos como consequência da diminuição da duração da diarreia e, consequentemente, da menor necessidade de nova consulta médica ou de admissão hospitalar.18

Não podemos ainda excluir a possibilidade de viés de seleção na nossa revisão, pelo facto de, na pesquisa bibliográfica feita, poderem não ter sido incluídos alguns estudos relevantes para responder à pergunta de investigação definida.

Concluindo, o racecadotril parece ser eficaz no tratamento da diarreia aguda e pode ser considerado em conjunto com a SRO, recomendação à qual os autores atribuem uma força de recomendação grau B.

Referências

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Declaração de contribuição/Contributorship statement

SS, RP, AT, AA, IP, CC E AR: Desenho, análise, interpretação de dados e escrita, escrita e aprovação da versão final a ser publicada.

SS, RP, AT, AA, IP, CC AND AR: Design, analysis, data interpretation and writing, writing and approval of the final version to be published.

Responsabilidades éticas

Conflitos de interesse: Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.

Suporte financeiro: O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsidio o bolsa ou bolsa.

Proveniência e revisão por pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financial support: This work has not received any contribution grant or scholarship.

Provenance and peer review: Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 15 de Dezembro de 2022; Aceito: 07 de Abril de 2024; : 06 de Junho de 2024; Publicado: 26 de Junho de 2024

Autor Correspondente/Corresponding Author: Sara Pereira Santos [sarasantos_18@hotmail.com] ORCID ID: https://orcid.org/0009-0008-6374-4345

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