Introdução
A aptidão ou preparação de uma criança para iniciar o primeiro ciclo de escolaridade, pode ser vista como uma medida, complexa e multifatorial, de como os primeiros cinco anos de vida de uma criança a prepararam para a aprendizagem formal.
Analisando a realidade do ensino pré-escolar em Portugal, observa-se que, em 2018, 90% das crianças dos três aos cinco anos estavam matriculadas no pré-escolar e 10% das crianças com seis anos ainda frequentavam o pré-escolar (Tabela 1).1
A duração média do ensino pré-escolar em Portugal tem aumentado de forma progressiva ao longo dos anos - 0,04 anos (1961); 2,8 anos (2018); 2,95 anos (2022).1
Crianças que iniciam a escolaridade mais aptas têm maior probabilidade de atingir um nível académico mais elevado e têm mais oportunidades de emprego no futuro.2,3 Contrariamente, crianças que iniciam a escolaridade menos aptas vão enfrentar maiores dificuldades em obter bons resultados e em progredir no percurso académico, apresentando maiores taxas de abandono escolar e, consequentemente, maior probabilidade de vir a ter comportamentos delinquentes, de se tornarem pais adolescentes e de dependerem dos apoios do Estado.2,3 De notar que em Portugal, em 2022, 1,8% dos alunos do 1º ciclo, 3,1% dos alunos do 2º ciclo e 4,5% dos alunos do 3º ciclo reprovaram o ano.1
Não existindo na literatura portuguesa uma expressão consagrada para denotar a presença destas competências para a aprendizagem formal, optou-se neste documento por utilizar a expressão aptidão para o início da escolaridade (AIE).
O conceito de AIE desenvolveu-se significativamente nas últimas décadas, evoluindo de um conceito unidimensional, relacionado com as competências da criança, para um conceito multidimensional, dependente de vários fatores a ter em conta, relacionados com a criança, com a escola, com a família e com a comunidade.
No que diz respeito aos fatores relacionados com a criança,4 são de salientar o seu bem-estar físico, emocional e social, a sua maturidade e as características dos sistemas sensoriais. Também a capacidade para comunicar e o desenvolvimento da linguagem, o vocabulário, a consciência fonológica e a cognição são fatores importantes para a AIE. A capacidade da criança para se autorregular, o seu temperamento, curiosidade e a sua cultura e valores são também aspetos fundamentais.
Os fatores relacionados com a escola4 que promovem a AIE são: a forma como é gerida e vivenciada a transição casa-escola; o envolvimento que existe entre os pais e a escola; o relacionamento com os pares e com os educadores/professores; a adequação pedagógica; a existência de programas educativos fundamentados, de alta qualidade e individualizados.
Em relação à família e à comunidade,4 é importante o acesso a cuidados pré-natais e cuidados de saúde primários de qualidade, manter uma boa nutrição e a prática de atividade física e, obviamente, o próprio acesso à escola.
Existem alguns fatores de risco, já documentados na literatura científica, que influenciam a AIE, como um nível socioeconómico baixo, a exposição pré-natal ao tabaco e ao álcool, o baixo peso à nascença, atraso do desenvolvimento, depressão materna e experiências adversas na infância (EAI). Crianças com duas ou mais EAI têm uma probabilidade quase três vezes superior de ficarem retidas num ano escolar quando as comparamos com crianças que não relatam EAI.4
Em 1970 Satz e Sparrow5 elaboraram um protocolo de avaliação de competências, na avaliação sistemática do estado global de saúde das crianças aos cinco anos, e demonstraram o poder preditivo de determinadas tarefas incluídas no seu protocolo e futuras dificuldades de aprendizagem: provas de identificação de palavras, de coordenação visuo-motora fina, de praxias construtivas, de memória a curto prazo e de gnosia dos dedos.
Com base neste protocolo, em 2010, Braga-Tavares et al, propõem um instrumento de rastreio de perturbações do desenvolvimento psicomotor e de indicadores de risco de perturbações específicas de aprendizagem a aplicar aos cinco-seis anos de idade no contexto do exame global de saúde previsto no Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil. No seu estudo nenhuma criança que, mais tarde, evidenciou um desempenho escolar “muito abaixo da média” tinha passado no teste de rastreio, e nenhuma das crianças consideradas sem risco para a aprendizagem escolar veio a revelar dificuldades graves de aprendizagem. Os itens do protocolo menos cumpridos pelas crianças que vieram a revelar um desempenho académico inferior ao esperado foram: a memória de dígitos, ordem complexa com três passos, nomeação de figuras e segmentação silábica. A memória de dígitos foi o item de rastreio mais falhado (>60%), independentemente da área académica avaliada.6 Para além do estudo referido,6 não encontrámos na literatura médica portuguesa outras propostas de avaliação não formal que deem ao pediatra e médico de família ferramentas de avaliação específicas que contribuam para a avaliação de AIE nas crianças aos cinco-seis anos de idade.
Nas últimas décadas tem-se assistido a uma discrepância cada vez maior a nível mundial entre o sucesso escolar em indivíduos do sexo feminino comparativamente com os do sexo masculino, com um maior sucesso no sexo feminino.7 Este facto reflete-se, por exemplo, no aumento da diferença de alunos que frequentam o ensino superior do sexo feminino comparativamente com o sexo masculino.7 Segundo Leonard Sax a diminuição do sucesso escolar no sexo masculino ocorre desde 1980 e relaciona-se com vários fatores, nomeadamente: o ambiente escolar não estar adaptado para as crianças do sexo masculino,7 a mudança das construções sociais relacionadas com masculinidade7 e o impacto dos videojogos na motivação escolar.8
Segundo Leonard Sax, o facto da experiência escolar atualmente ser menos lúdica e menos voltada para a aprendizagem informal, comparativamente com o que acontecia no passado, tem consequências negativas, ao levar a uma menor satisfação das crianças do sexo masculino com a escola. De notar que a atitude das crianças em relação à escola desenvolve-se cedo, ainda no pré-escolar. Esta atitude, uma vez formada, tem tendência a manter-se estável ao longo do tempo.9
Isto significa que um rapaz que sinta no pré-escolar que não gosta da escola, provavelmente vai continuar a não gostar da escola mais à frente no seu processo escolar.
Neste sentido, é importante frisar a importância do brincar e da aprendizagem informal para o desenvolvimento infantil. Brincar é um meio privilegiado de aprendizagem que leva ao desenvolvimento de competências transversais a todas as áreas do desenvolvimento e aprendizagem.10
Este trabalho tem como objetivo fazer uma revisão da literatura sobre competências pré-escolares segundo as Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar (2016) (nas Áreas de Formação Pessoal e Social, Expressão e Comunicação, e de Conhecimento do Mundo, definidas nestas orientações), de forma a poder contribuir para o reconhecimento das competências pré-escolares que são preditoras de AIE e a possibilitar a adoção de estratégias de acompanhamento, avaliação e intervenção adequadas.
Metodologia
Conduzimos uma extensa pesquisa na base de dados PubMed com as palavras-chave: “preschool”, “school readiness”, “social functioning”, “motor skills”, “mathematics”, “reading”, “writing”, “communication”, “language”, “comprehension of the world”, “attention”. Dos 889 artigos encontrados, selecionaram-se 33 artigos pela sua adequação ao tema e relevância, tendo sido excluídos artigos publicados previamente ao ano de 2000. Recorreu-se ainda às Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar (2016) da Direção Geral da Educação e à Norma Técnica da Direção Geral de Saúde para o Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil (2013).
Resultados
De acordo com a revisão bibliográfica realizada, sintetizam-se as associações encontradas entre as várias áreas de competências e a AIE (Tabelas 2, 3 e 4), respeitando a divisão em áreas utilizada nas Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar. Optou-se, ainda, por incluir na revisão bibliográfica a Componente da Atenção que não está incluída nas orientações curriculares referidas.
Artigos | Área de Formação Pessoal e Social | Área de Expressão e Comunicação | |||
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Ed. Artística/Música | Linguagem oral e abordagem à escrita | Ed. Física | Matemática | ||
Arnold DH et al. (2012)6 | Os problemas de comportamento podem interferir negativamente na aprendizagem. Comportamentos pró-sociais parecem ter um impacto positivo na aprendizagem. Associações mais significativas no sexo masculino. | ||||
Wenz-Gross M et al. (2018)7 | Gostar ou não globalmente da escola tem um impacto importante. | ||||
Nix RL et al. (2013)8 | Ganhos nas competências emocionais e sociais das crianças no pré-escolar parecem ter um impacto positivo nas competências académicas. | Ganhos nas competências sociais têm impacto na área da Linguagem. | |||
Bart et al. (2007)22 | A motricidade fina parece relacionar- se com a adaptação à escola e com as competências sociais. | A destreza manual e a coordenação olho-mão parecem ser um bom preditor da AIE. A motricidade fina relaciona-se com a adaptação à escola e com as competências sociais. |
Artigos | Área de Expressão e Comunicação | |||
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Ed. Artística/Música | Linguagem oral e abordagem à escrita | Educação Física | Matemática | |
Sullivan MC, Margaret MM. (2003)9 | Uma competência motora comprometida parece ser um importante precursor de insucesso escolar. | |||
Hill, E. L. (2001)13; Shevell M,et al. (2005)10; Missiuna C,et al. (2006)12 | Uma competência motora comprometida pode ter impacto ao nível da Linguagem. | |||
Pagani LS, et al. (2010)11 | A motricidade fina parece ser um bom preditor da AIE. | Uma competência motora comprometida pode ter impacto ao nível da Linguagem. | Não encontraram associações entre a motricidade global e as competências académicas futuras. | |
Gonzalez, S. L., et al. (2019)15 | Quer a motricidade global quer a motricidade fina demonstraram efeitos longitudinais ao nível da Linguagem nos últimos anos da escola primária. | |||
Pienaar AE, et al. (2014)14 | A perceção visual, a integração visuo-motora e a eficiência motora são competências fundamentais para a AIE, nomeadamente ao nível da Leitura, da Escrita e da Matemática. | |||
Macdonald, et al. (2020)16 | A motricidade fina parece ser um melhor preditor das competências futuras ao nível da Matemática, do que das competências futuras ao nível da Leitura. | Quer a motricidade global quer a motricidade fina demonstraram efeitos longitudinais ao nível da Leitura e da Matemática, nos últimos anos da escola primária. A motricidade fina parece ser um melhor preditor das competências futuras ao nível da Matemática, do que das competências futuras ao nível da Leitura. | Associações positivas entre a coordenação dos membros superiores, a velocidade e a agilidade, e o rendimento académico futuro. | Quer a motricidade global quer a motricidade fina demonstraram efeitos longitudinais ao nível da Leitura e da Matemática, nos últimos anos da escola primária. A motricidade fina parece ser um melhor preditor das competências futuras ao nível da Matemática, do que das competências futuras ao nível da Leitura. |
Escolano-Pérez E,et al. (2020)17 | A motricidade fina parece estar associada às competências académicas futuras. | Não se encontraram associações entre a motricidade global e as competências académicas futuras. | ||
Pitchford, et al. (2016)19 | A motricidade fina parece ser um bom preditor da AIE e parece relacionar-se com a adaptação à escola, com as competências sociais e com o empenho escolar. | Não se encontraram associações entre a motricidade global e as competências académicas futuras. | Amotricidade fina parece ser um melhor preditor das competências futuras de Matemática, do que de Leitura. | |
Roebers, et al. (2014)20 | A motricidade fina parece ser um bom preditor da AIE, especialmente a destreza manual e a coordenação olho-mão. | Associações positivas entre a coordenação dos membros superiores, a velocidade e a agilidade, e o rendimento académico futuro. | ||
Putkinen, et al. (2013)22 | A noção de ritmo parece ser importante na consciência fonológica, no processamento fonológico e na Leitura. | |||
Gerry, et al. (2012)23; Linnavalli, T., et al. (2018)23 | Ter aulas de música semanais parece ter impacto positivo no desenvolvimento linguístico e cognitivo. | |||
Pinto G, et al. (2016)25 | A consciência fonológica parece predizer competências nos vários domínios da Linguagem. | As competências pré- escolares de Matemática parecem predizer o rendimento posterior no domínio da Linguagem, em particular da Leitura. | ||
Gimbert et al. (2019)27; Wong T. et al. (2016)28 | A acuidade do sistema numérico aproximado e a precisão de mapeamento têm carácter preditivo de sucesso escolar aos cinco anos. |
Artigos | Área de Expressão e Comunicação | Área do Conhecimento do Mundo | Atenção | |||
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Ed. Artística/Música | Educação Física | Linguagem oral e abordagem à escrita | Matemática | |||
Grissmer D, et al. (2010)18 | A motricidade fina parece ser um bom preditor da AIE, especialmente a destreza manual e a coordenação olho- mão. | Não se encontraram associações entre a motricidade global e as competências académicas futuras. | O conhecimento geral do mundo (CGM) parece ser o preditor mais forte para as competências futuras na área das Ciências e da Leitura, e, conjuntamente com as competências precoces de Matemática, para as competências futuras na área da Matemática. As competências futuras na área das Ciências foram preditas fortemente pelo CGM e, com menor contribuição, pelas competências precoces de Matemática. | |||
Duncan, et al. (2007)26 | As competências de Matemática têm um impressionante poder preditivo de sucesso escolar. | Relação entre a capacidade pré- escolar em controlar e manter a Atenção e o rendimento escolar subsequente. Competências de Atenção conjugadas com outras, como a Matemática ou a Leitura, atingem um caráter preditivo de sucesso escolar muito consistente. A Atenção em idade pré-escolar parece ter carácter preditivo para as competências de Leitura no 3º ano de escolaridade. | ||||
Yen, et al. (2004)31) Howse, et al. (2003)32 | No ensino pré-escolar, a correlação entre a qualidade da Atenção e o rendimento escolar posterior parece ser independente das outras capacidades cognitivas da criança. |
Área de formação pessoal e social
A área de Formação Pessoal e Social foca-se na forma como as crianças se relacionam consigo próprias, com os outros e com o mundo. Abrange atitudes, valores e disposições que constituem as bases de uma aprendizagem bem sucedida ao longo da vida e de uma cidadania autónoma, consciente e solidária.9
Fatores como a agressividade e os problemas de comportamento podem interferir negativamente na aprendizagem, enquanto que a existência de comportamentos pró-sociais (ou seja, interações positivas com os colegas, cooperação, responsabilidade e empatia) parece ter um impacto positivo. A evidência sugere que estas associações tendem a ser mais significativas no
sexo masculino do que no sexo feminino.10
A criança gostar ou não globalmente da escola tem um impacto importante no interesse, na persistência e na motivação para o investimento académico.11 Quando a escola é sentida como um lugar protetor, os aspetos sociais mais negativos podem ter um menor impacto.
Por outro lado, crianças mais motivadas para a escola também despertam maior motivação nos professores para os ajudarem a superar as suas dificuldades. O gosto pela escola parece estar associado ao género, idade, à relação com os professores, com as preocupações com a escola, com a ansiedade/stress e perceção de controlo e com a qualidade do sono.12
Os ganhos nas competências emocionais e sociais das crianças no pré-escolar parecem ter um impacto positivo não só no comportamento das crianças como nas suas competências académicas, nomeadamente na área da Linguagem.13
Área de expressão e comunicação
(Domínio da Educação Física, da Educação Artística, da Linguagem Oral e Abordagem à Escrita, e da Matemática)
COMPONENTE MOTORA: O compromisso das competências motoras parece ser um importante preditor de insucesso escolar,14 podendo estar relacionado, por exemplo, com dificuldades ao nível da Linguagem, nomeadamente ao nível da programação fonológica.15-18
A perceção visual, a integração visuo-motora e a coordenação motora são competências fundamentais para a AIE, sendo que compromissos em qualquer uma destas áreas podem interferir com o sucesso académico, nomeadamente ao nível da Leitura, da Escrita e da Matemática.19
Quer a motricidade global quer a motricidade fina demonstraram efeitos longitudinais ao nível da Linguagem,20 da Leitura21 e da Matemática,21 nos últimos anos da escola primária. No entanto, a motricidade fina parece estar mais intimamente associada às competências académicas futuras, comparativamente com a motricidade global.16,22-24 Inclusivamente, alguns estudos não encontraram associações entre a motricidade global e as competências académicas futuras.16,21-24
Contudo, alguns estudos encontraram associações positivas entre a coordenação dos membros superiores, a velocidade e a agilidade e o rendimento académico futuro.21,25
Quanto à motricidade fina, esta parece ser um bom preditor da AIE,16,24,25 especialmente a destreza manual e a coordenação olho-mão.16,23,25,26 A motricidade fina parece ser um melhor preditor das competências futuras ao nível da Matemática, do que das competências futuras ao nível da Leitura.21,24 A motricidade fina parece relacionar-se ainda, com a adaptação à escola,24,26 com as competências sociais24,26 e com o empenho escolar.16,24
COMPONENTE ARTÍSTICA - ÁREA DA MÚSICA: Vários estudos evidenciam a existência de diferenças anatómicas de cérebros de músicos e não músicos em crianças e adultos, não só nas áreas da audição e sensoriomotoras, como também noutras áreas como as regiões frontal inferior e no corpo caloso. Estes trabalhos têm evidenciado que a noção de ritmo parece ser importante na consciência fonológica, no processamento fonológico e na Leitura.27 Ter aulas de música semanais parece ter um impacto positivo na aquisição de vocabulário28 e no desenvolvimento linguístico e cognitivo.29
ÁREA DA LINGUAGEM: A consciência fonológica parece ter potencial para predizer, de forma significativa e consistente, o sucesso na aprendizagem da Leitura.30
ÁREA DA MATEMÁTICA: As competências precoces de Matemática parecem ter um impressionante poder preditivo de sucesso escolar.31 Quer a acuidade do sistema numérico aproximado (sistema cognitivo que permite a estimativa da numerosidade sem recurso à linguagem), quer da precisão de mapeamento (capacidade em associar símbolos numéricos à sua magnitude) têm um carácter preditivo de sucesso escolar.32,33
Da mesma forma, em 2013, Sasanguie et al,34 reforçaram a consistência desta associação entre a precisão de mapeamento e o rendimento escolar, em particular da importância das experiências de aprendizagem simbólicas. Existe ainda uma forte associação entre o processamento de magnitude numérica, sobretudo não-simbólica, e a competência matemática ao longo de toda a vida.35
As competências pré-escolares de matemática também parecem predizer o rendimento posterior no domínio da Linguagem, em particular da Leitura.36
Área do conhecimento do mundo
A área do Conhecimento do Mundo permite à criança uma melhor compreensão do mundo que a rodeia e enraíza-se na curiosidade natural da criança e no seu desejo de saber e compreender porquê.9
O conhecimento geral do mundo parece ser o preditor mais forte para as competências futuras na área das Ciências e da Leitura, e, conjuntamente com as competências precoces de Matemática, para as competências futuras na área da Matemática.23
Componente da atenção
A literatura é notoriamente escassa acerca de uma possível associação entre a componente da Atenção, nesta faixa etária, e o sucesso escolar futuro. Contudo, esta identifica uma relação consistente, apesar de moderada, entre a capacidade da criança pré-escolar em controlar e manter a atenção e o rendimento escolar subsequente.31 No ensino pré-escolar, a correlação entre a qualidade da atenção e o rendimento escolar posterior parece ser independente das outras capacidades cognitivas da criança.37,38
No entanto, se conjugadas as competências da Atenção com as de outros domínios, como a Matemática ou a Leitura, atinge-se um caráter preditivo de sucesso escolar muito consistente.31
A contribuição da Atenção para as competências escolares das crianças parece ser transversal a várias áreas. A atenção em idade pré-escolar parece ter carácter preditivo para as competências de Leitura no terceiro ano de escolaridade.32
Discussão
Foram identificadas associações com valor preditivo da AIE nas várias áreas de competências estudadas.
À semelhança dos resultados encontrados, em 2010, por Braga-Tavares H et al, este trabalho suporta que o desempenho da criança parece resultar do equilíbrio entre as suas aptidões e limitações nas diferentes áreas de competências. Uma disfunção em qualquer uma das áreas pode repercutir-se no desempenho académico da criança. O impacto dependerá de várias variáveis, nomeadamente das áreas afetadas, do grau de limitação das mesmas, do potencial da criança nas restantes áreas e dos apoios disponíveis. De notar que as repercussões não se limitam ao campo académico, afetando frequentemente, por exemplo, a autoestima da criança.
O Exame Global de Saúde dos cinco-seis anos, que integra o plano de avaliações periódicas pediátricas definido pela Direção Geral de Saúde, inclui uma avaliação do Desenvolvimento Psicomotor. Consultando o Boletim de Saúde Infantil e Juvenil é possível observar que existem vários parâmetros fundamentais para a aprendizagem que constam da lista de parâmetros que o médico deve avaliar em consulta, nomeadamente a visão, audição, exame físico completo, a linguagem, o desenvolvimento e o comportamento. Embora estes parâmetros vão surgindo como variáveis a avaliar ao longo do desenvolvimento, o que reforça a importância de não serem só avaliados aquando do ingresso no ensino básico, estes parâmetros não são avaliados de forma sistematizada na consulta. Para além disto, não é referido como os avaliar, nem como interpretar e valorizar os achados encontrados.
Na lista de temas de conversa a abordar em consulta surgem alguns temas
importantes para o processo de aprendizagem, nomeadamente a preparação da entrada para a escola; o relacionamento com outras crianças e adultos, cumprimento de regras e capacidade de terminar tarefas; hábitos de leitura; exercício físico, ar livre, atividades de lazer e estímulo intelectual; atividades promotoras do desenvolvimento. Contudo, embora se mencionem estes tópicos, não é claro quais as informações importantes a esclarecer e a transmitir aos cuidadores.
No sentido de tentar colmatar algumas dificuldades e lacunas identificadas apresenta-se uma tabela sumária de recomendações gerais a ter em conta aquando da avaliação da AIE (Tabela 5).
Recomendações Gerais |
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A avaliação da AIE deve ser multidisciplinar (profissionais, pais e equipa educativa) e deve-se colher informação de diferentes contextos, sendo a articulação com a educadora da criança fundamental para a tomada de decisão. |
A colheita de história clínica poderá ser complementada com a utilização de escalas que avaliam o desenvolvimento da criança, mas estas devem ser interpretadas no contexto de uma avaliação mais global. De notar que as escalas de desenvolvimento atualmente utilizadas para, de forma direta ou indireta, avaliar competências, não estão atualmente validadas como ferramenta de avaliação da AIE. |
Da avaliação das competências pré-escolares deve constar a avaliação das competências psicossociais, motoras (especialmente de motricidade fina), de Linguagem (especialmente a consciência fonológica), competências precoces de Matemática, conhecimento geral do mundo e atenção. |
A avaliação das competências pré-escolares deverá ser feita em várias ocasiões ao longo do desenvolvimento da criança e não apenas aquando da necessidade de tomada de decisão de ingressar no ensino básico. Quanto mais precoce for a identificação de dificuldades e de eventuais discrepâncias entre as várias competências da criança, e mais precoce for a intervenção dirigida, melhor o prognóstico. |
Aquando da ponderação acerca do adiamento escolar não nos devemos esquecer de ter em conta as várias variáveis (biopsicossociais) da criança, não esquecendo, por exemplo, a importância do grupo de pares. |
A decisão de optar por um adiamento escolar deve ter em consideração se se prevê que exista ganho para a criança com a permanência mais um ano no pré-escolar (nomeadamente ao nível do desenvolvimento de competências nesse ano, otimização de apoios, entre outros). Caso não sejam previstos ganhos, o adiamento, por si só, não é benéfico. |
Conclusão
A AIE, termómetro do bem-estar da criança e da sua família, deve ser aferida com todos os elementos importantes para a criança e tendo em conta os recursos existentes.
O Exame Global de Saúde dos cinco-seis anos representa um momento privilegiado para a avaliação da AIE, sendo fundamental que sejam dadas ferramentas aos médicos de família e aos pediatras para que essa avaliação seja realizada com consistência. Nesse sentido, recomenda-se que sejam seguidas as orientações apresentadas previamente nas Tabelas 2,3 e 4.
A literatura aponta para a pertinência de, aquando da avaliação da AIE, ter em conta as seguintes capacidades da criança: competências psicossociais, motoras (especialmente de motricidade fina), competências precoces de Linguagem (especialmente a consciência fonológica), competências precoces de Matemática, conhecimento geral do mundo e atenção.
As competências pré-escolares devem ser construídas e aferidas ao longo do tempo. A utilidade da identificação de competências pré-escolares preditivas da AIE é a adoção precoce de estratégias preventivas. Tal só é possível se existirem estruturas de referenciação capazes de dar resposta atempada e eficaz aos problemas identificados. Pretendemos com este artigo contribuir para a discussão sobre a necessidade de um protocolo integrado, sobre a AIE, na avaliação de saúde global aos cinco anos de idade.
É importante não esquecer que a AIE depende de vários fatores, pessoais, socioculturais, políticas, familiares e/ou do meio escolar. Nesse sentido, a melhoria quer do acesso aos cuidados de saúde pré-natal e infantil na comunidade, quer da oferta de educação ao nível do pré-escolar podem ser fatores protetores que se traduzam numa melhoria da AIE.