Os direitos dos utentes referem-se à garantia de acesso justo e digno a serviços e recursos de saúde essenciais.
Ao utente frequentador de serviços de saúde é dado o direito à escolha, ao consentimento e à recusa, ao sigilo, à informação, entre outros.1 O direito à escolha compreende a autonomia em decidir quais os serviços de saúde que frequenta e quais os médicos a que recorre.
Na prática médica atual, o respeito pela legítima autonomia dos utentes emerge como um pilar inabalável da ética médica. Esse respeito transcende a simples aceitação de decisões; implica reconhecer a autenticidade e a liberdade nas opiniões e escolhas dos utentes, sem qualquer coação externa2; pressupõe o direito fundamental de decidir sobre o seu próprio atendimento, incluindo a escolha entre serviços de saúde, e nomeadamente entre serviços públicos e privados.
No entanto, essa liberdade de escolha também traz consigo uma série de desafios. À medida que a autonomia do utente é cada vez mais valorizada, surgem dilemas relacionados com as decisões que os utentes podem tomar. Como podemos equilibrar o direito de opção do utente, com a necessidade de garantir a coerência dos seus cuidados? Como é que os médicos devem lidar com segundas e terceiras opiniões diferentes, acreditando que a multiplicidade das mesmas poderá ser prejudicial ao paciente e à relação entre os dois?
Será a recorrência a consultas de diferentes médicos e a procura por diferentes opiniões uma oportunidade ou um obstáculo para o utente? E para o médico?
A multipatologia e a complexidade dos nossos pacientes também surgem como um desafio. Frequentemente, os utentes são seguidos em simultâneo em consultas de diferentes especialidades e em diferentes instituições de saúde. Este cenário resulta não só da maior oferta como também da evolução dos cuidados de saúde ao longo dos tempos, cada vez mais especializados e diferenciados. Este novo paradigma veio substituir o tradicional médico geral do utente e sua família, tradicionalmente soberano e incontestado nas decisões em relação aos seus pacientes.
Por outro lado, a ampla e crescente oferta de serviços de saúde proporciona ao utente uma grande flexibilidade permitindo-lhe, entre outras coisas, optar por horários mais convenientes. Se um utente se encontrar numa considerável lista de espera para uma consulta no setor público, permite-o acelerar este atendimento, mesmo que através da marcação direta de consulta num estabelecimento privado. Apesar dessas vantagens evidentes, surgem desafios que devemos considerar cuidadosamente. Questões logísticas, como a coordenação eficaz entre as diferentes instituições de saúde, tornam-se cruciais para garantir que esta flexibilidade não comprometa a qualidade e a continuidade dos cuidados. Encontrar um equilíbrio entre a comodidade do utente e a necessidade de uma gestão eficaz dos recursos médicos é essencial.
Consideremos o exemplo das grávidas que têm, muito frequentemente, seguimento simultâneo no centro de saúde, no hospital público e no hospital privado. Tal situação, entre outras, vai levar ao risco de serem solicitados exames complementares de diagnóstico em duplicado, resultando em desperdício de recursos, quer do utente quer dos serviços de saúde, nomeadamente tempo e recursos financeiros, e vai implicar uma importante sobrecarga da agenda dos serviços de saúde.
Esta prática levará, inevitavelmente, a constrangimentos na relação médico-paciente.
Outro elemento importante nesta equação é a tecnologia médica, que tem sofrido uma enorme e rápida evolução nos últimos anos, traduzindo-se em claras vantagens para ambas as partes. A proliferação de websites com informação médica tem contribuído significativamente para o aumento da literacia em saúde, proporcionando às pessoas acesso a recursos que ampliam o seu conhecimento sobre os seus sintomas e doenças.
Tomemos até o exemplo do Hospital de Stanford, nos Estados Unidos da América (EUA), que tem um website dedicado apenas a fornecer segundas opiniões a utentes que foram vistos por outro médico que lhes diagnosticou com uma doença ou que lhes receitou um medicamento e/ou tratamento.3 Por cá, a informatização dos serviços clínicos permite ao médico aceder aos registos clínicos do paciente, da sua ou de outra instituição de saúde, e o desenvolvimento da prescrição médica eletrónica (PEM) permite aceder à informação da medicação crónica do paciente. No entanto, o médico depara-se ainda com muitos obstáculos inerentes ao deficiente funcionamento em rede destas tecnologias, sendo necessário o seu aperfeiçoamento para garantir uma maior eficácia da comunicação pretendida, por exemplo, entre os cuidados de saúde primários e as instituições hospitalares públicas e privadas, que nem sempre utilizam os mesmos softwares informáticos. A falta de partilha adequada dos registos clínicos pode levar à falta de coerência nos tratamentos médicos e uma informação errada na PEM pode estar na origem de uma interação medicamentosa.
O principal problema das consultas em série reside na rotura da relação médico-doente, que afeta, impreterivelmente, a qualidade e continuidade dos cuidados ao paciente que é tratado em diferentes médicos e em diferentes locais. Apesar da maior facilidade que o utente tem no acesso a diversas instituições e serviços clínicos, da modernização e informatização dos sistemas de saúde que facilitam a informação clínica, existem dificuldades várias, relacionadas com a eficácia e coordenação de todas estas ferramentas e que conduzem à falta de confiança em todo o processo de tratamento do utente. Estará este mundo cada vez mais técnico, tecnológico e ávido de conhecimento a prejudicar a relação médico-doente?4
Com este texto, procuramos refletir sobre as oportunidades e os obstáculos que advém da maior facilidade do acesso do utente aos cuidados de saúde. Para os médicos de família, isto representa uma oportunidade para otimizar os cuidados prestados ao utente, mas também uma dificuldade em assegurar a sua complementaridade e consistência. A tecnologia poderá ser, sem dúvida, o nosso principal aliado para enfrentar este desafio e unir estes universos médicos tão distantes. No entanto, o sistema atual ainda não é, evidentemente, capaz ou suficiente para o fazer. São necessárias reformas e melhorias, sob pena de se tornar um problema, ao invés da solução que todos desejamos.