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Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.11 no.3 Queluz set. 2024  Epub 27-Set-2024

https://doi.org/10.29315/gm.v1i1.878 

Perspective article

Consultas em Série: uma Inevitabilidade à Procura de Solução

Serial Medical Appointments: An Inevitability in Search of a Solution

1. USF Marginal, ACeS Cascais, Lisboa, Portugal


Resumo

É central e inquestionável a importância de um acesso justo e digno à saúde Os direitos e a autonomia do utente, sendo um pilar central da ética médica, permite a escolha livre entre serviços de saúde públicos e privados. Contudo, esta autonomia traz consigo desafios, especialmente quando se trata de equilibrar a liberdade de escolha do utente com a necessidade de manter a coerência na prestação de serviços de saúde. A esta consideração surge associada a questão da multipatologia e da complexidade de pacientes que são seguidos em várias especialidades e instituições, diluindo o papel tradicional do médico de família. Em simultâneo, a modernização dos serviços de saúde proporcionou uma maior flexibilidade e conveniência aos utentes, permitindo-lhes optar por horários mais convenientes e acesso mais rápido a consultas.

No entanto, tudo isto resulta em desafios logísticos, como a coordenação eficaz entre diferentes instituições de saúde, essencial para manter a qualidade e a continuidade dos cuidados. A utilização de múltiplos serviços pode levar à repetição desnecessária de exames, sobrecarga nos serviços de saúde e riscos para a relação médico-doente. Apesar da informatização dos processos clínicos dos utentes e a rápida evolução da tecnologia médica têm vindo a contribuir significativamente para uma maior coerência dos cuidados prestados aos utentes, trazem também desafios como a falta de integração entre os sistemas de informação de diferentes instituições de saúde.

Como consequência, apesar da maior facilidade que o utente tem no acesso a diversas instituições e serviços clínicos, da modernização e informatização dos sistemas de saúde que facilitam a agregação e partilha de informação clínica, dificuldades relacionadas com a eficácia e coordenação de todos os atores envolvidos e de todas estas ferramentas conduzem à falta de confiança em todo o processo de tratamento do utente.

Palavras-chave: Autonomia Pessoal; Confiança; Encaminhamento e Consulta; Preferência do Doente; Prestação de Cuidados de Saúde

Abstract

The importance of fair and dignified access to healthcare is unquestionable. Patient rights and autonomy, a central pillar of medical ethics, allow for free choice between public and private healthcare services. However, this autonomy brings challenges, particularly in balancing the user's freedom of choice with the need to maintain coherence in healthcare. The issue of multipathology and the complexity of patients often treated in various specialties and institutions dilutes the traditional role of the family physician. The modernization of healthcare services has provided users with greater flexibility and convenience, allowing them to choose more convenient appointment times and faster access to consultations. However, this results in logistical challenges, such as effective coordination between different healthcare institutions, essential for maintaining the quality and continuity of care. The use of multiple services can lead to unnecessary repetition of tests, overload on healthcare services, and risks to the doctor-patient relationship.

Furthermore, the digitization of user clinical processes and the rapid evolution of medical technology have significantly contributed to the coherence of care provided to users, bringing challenges such as the lack of integration between information systems from different healthcare institutions.

The article concludes that despite users having easier access to various institutions and clinical services, and the modernization and digitization of healthcare systems facilitating clinical information, there are multiple difficulties related to the effectiveness and coordination of all these tools that lead to a lack of confidence in the entire user treatment process.

Keywords: Delivery of Health Care; Patient Preference; Personal Autonomy; Referral and Consultation; Trust

Os direitos dos utentes referem-se à garantia de acesso justo e digno a serviços e recursos de saúde essenciais.

Ao utente frequentador de serviços de saúde é dado o direito à escolha, ao consentimento e à recusa, ao sigilo, à informação, entre outros.1 O direito à escolha compreende a autonomia em decidir quais os serviços de saúde que frequenta e quais os médicos a que recorre.

Na prática médica atual, o respeito pela legítima autonomia dos utentes emerge como um pilar inabalável da ética médica. Esse respeito transcende a simples aceitação de decisões; implica reconhecer a autenticidade e a liberdade nas opiniões e escolhas dos utentes, sem qualquer coação externa2; pressupõe o direito fundamental de decidir sobre o seu próprio atendimento, incluindo a escolha entre serviços de saúde, e nomeadamente entre serviços públicos e privados.

No entanto, essa liberdade de escolha também traz consigo uma série de desafios. À medida que a autonomia do utente é cada vez mais valorizada, surgem dilemas relacionados com as decisões que os utentes podem tomar. Como podemos equilibrar o direito de opção do utente, com a necessidade de garantir a coerência dos seus cuidados? Como é que os médicos devem lidar com segundas e terceiras opiniões diferentes, acreditando que a multiplicidade das mesmas poderá ser prejudicial ao paciente e à relação entre os dois?

Será a recorrência a consultas de diferentes médicos e a procura por diferentes opiniões uma oportunidade ou um obstáculo para o utente? E para o médico?

A multipatologia e a complexidade dos nossos pacientes também surgem como um desafio. Frequentemente, os utentes são seguidos em simultâneo em consultas de diferentes especialidades e em diferentes instituições de saúde. Este cenário resulta não só da maior oferta como também da evolução dos cuidados de saúde ao longo dos tempos, cada vez mais especializados e diferenciados. Este novo paradigma veio substituir o tradicional médico geral do utente e sua família, tradicionalmente soberano e incontestado nas decisões em relação aos seus pacientes.

Por outro lado, a ampla e crescente oferta de serviços de saúde proporciona ao utente uma grande flexibilidade permitindo-lhe, entre outras coisas, optar por horários mais convenientes. Se um utente se encontrar numa considerável lista de espera para uma consulta no setor público, permite-o acelerar este atendimento, mesmo que através da marcação direta de consulta num estabelecimento privado. Apesar dessas vantagens evidentes, surgem desafios que devemos considerar cuidadosamente. Questões logísticas, como a coordenação eficaz entre as diferentes instituições de saúde, tornam-se cruciais para garantir que esta flexibilidade não comprometa a qualidade e a continuidade dos cuidados. Encontrar um equilíbrio entre a comodidade do utente e a necessidade de uma gestão eficaz dos recursos médicos é essencial.

Consideremos o exemplo das grávidas que têm, muito frequentemente, seguimento simultâneo no centro de saúde, no hospital público e no hospital privado. Tal situação, entre outras, vai levar ao risco de serem solicitados exames complementares de diagnóstico em duplicado, resultando em desperdício de recursos, quer do utente quer dos serviços de saúde, nomeadamente tempo e recursos financeiros, e vai implicar uma importante sobrecarga da agenda dos serviços de saúde.

Esta prática levará, inevitavelmente, a constrangimentos na relação médico-paciente.

Outro elemento importante nesta equação é a tecnologia médica, que tem sofrido uma enorme e rápida evolução nos últimos anos, traduzindo-se em claras vantagens para ambas as partes. A proliferação de websites com informação médica tem contribuído significativamente para o aumento da literacia em saúde, proporcionando às pessoas acesso a recursos que ampliam o seu conhecimento sobre os seus sintomas e doenças.

Tomemos até o exemplo do Hospital de Stanford, nos Estados Unidos da América (EUA), que tem um website dedicado apenas a fornecer segundas opiniões a utentes que foram vistos por outro médico que lhes diagnosticou com uma doença ou que lhes receitou um medicamento e/ou tratamento.3 Por cá, a informatização dos serviços clínicos permite ao médico aceder aos registos clínicos do paciente, da sua ou de outra instituição de saúde, e o desenvolvimento da prescrição médica eletrónica (PEM) permite aceder à informação da medicação crónica do paciente. No entanto, o médico depara-se ainda com muitos obstáculos inerentes ao deficiente funcionamento em rede destas tecnologias, sendo necessário o seu aperfeiçoamento para garantir uma maior eficácia da comunicação pretendida, por exemplo, entre os cuidados de saúde primários e as instituições hospitalares públicas e privadas, que nem sempre utilizam os mesmos softwares informáticos. A falta de partilha adequada dos registos clínicos pode levar à falta de coerência nos tratamentos médicos e uma informação errada na PEM pode estar na origem de uma interação medicamentosa.

O principal problema das consultas em série reside na rotura da relação médico-doente, que afeta, impreterivelmente, a qualidade e continuidade dos cuidados ao paciente que é tratado em diferentes médicos e em diferentes locais. Apesar da maior facilidade que o utente tem no acesso a diversas instituições e serviços clínicos, da modernização e informatização dos sistemas de saúde que facilitam a informação clínica, existem dificuldades várias, relacionadas com a eficácia e coordenação de todas estas ferramentas e que conduzem à falta de confiança em todo o processo de tratamento do utente. Estará este mundo cada vez mais técnico, tecnológico e ávido de conhecimento a prejudicar a relação médico-doente?4

Com este texto, procuramos refletir sobre as oportunidades e os obstáculos que advém da maior facilidade do acesso do utente aos cuidados de saúde. Para os médicos de família, isto representa uma oportunidade para otimizar os cuidados prestados ao utente, mas também uma dificuldade em assegurar a sua complementaridade e consistência. A tecnologia poderá ser, sem dúvida, o nosso principal aliado para enfrentar este desafio e unir estes universos médicos tão distantes. No entanto, o sistema atual ainda não é, evidentemente, capaz ou suficiente para o fazer. São necessárias reformas e melhorias, sob pena de se tornar um problema, ao invés da solução que todos desejamos.

Referências

1. Decreto Lei n.º 24/2014, de 21 de Março de 2014. Diário da República. 1ª Série Nº57 [ Links ]

2. Simões JR. (2008). A ética em Medicina Geral e Familiar. Rev Port Med Geral Fam.2008;24:45-7. doi:10.32385/rpmgf.v24i1.10457 [ Links ]

3. Stanford Health Care. Stanford Medicine Online Second Opinion Program. [accessed Dec 2023]. Available at: Available at: https://stanfordhealthcare.org/second-opinion/overview.htmlLinks ]

4. Poças J, editor. A relação médico-doente: um contributo da Lisboa: Ordem dos Médicos; 2023 [consultado Jan 2024] Disponível em: Disponível em: https://ordemdosmedicos.pt/wp-content/uploads/2023/02/Relacao_medico_doente_26jan23.pdfLinks ]

SC: Conceptualization, writing and revision of the article.

JH: Writing and revision of the article.

2All authors approved the final version to be published.

SC: Conceptualização, escrita e revisão do artigo.

JH: Escrita e revisão do artigo.

5Todos os autores aprovaram a versão a ser publicada.

Responsabilidades éticas

Conflitos de interesse: Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.

Suporte financeiro: O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsídio ou bolsa.

Proveniência e revisão por pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financial support: This work has not received any contribution grant or scholarship.

Provenance and peer review: Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 12 de Fevereiro de 2024; Aceito: 20 de Agosto de 2024

Autor Correspondente/Corresponding Author: Sofia Campos Correia [sofiacamposcorreia8@gmail.com] ORCID ID: https://orcid.org/0009-0006-7293-5472

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