Então, percebi que poderia aprender coisas que não conseguiria de outra maneira, a não ser reproduzindo-as.
- James Benning, “Interview: James Benning on The United States of America”
1. Introdução
Em 2017, a diretora Sofia Coppola afirmou à revista The Hollywood Reporter que na sua família o termo remake sempre teve o peso de um palavrão: "meu pai dizia que ninguém faz um remake a não ser para ganhar dinheiro. Não há outra razão" (Rooney, 2017, para. 2). A declaração pode ser vista como fina ironia ao próprio trabalho, uma vez que àquela altura ela percorria o circuito de festivais com The Beguiled (O Estranho que Nós Amamos), longa pelo qual acabara de receber o prêmio de direção em Cannes e justamente um remake do filme homônimo de 1971, dirigido por Don Siegel. A exemplo da opinião do cineasta de Apocalypse Now (Apocalipse Agora; 1979), críticas generalistas e desabonadoras sobre o remake se manifestam ainda hoje, geralmente ancoradas em uma suposta incapacidade de originalidade por parte daqueles que o realizam ou no aspecto estigmatizante de caça-níqueis que parece assombrar esta categoria audiovisual, quer seja no cinema ou na televisão.
No âmbito acadêmico, porém, a percepção é outra e a discussão bem mais fértil. Autores como Jennifer Forrest, Leonard Koos e Sven Lütticken se alinham ao posicionamento do crítico francês André Bazin (1985/2018) que, há mais de 60 anos e na contracorrente do pensamento da época, já enxergava virtudes nos empréstimos narrativos e adaptações feitos pelo cinema. Para Forrest e Koos (2002), é justamente o caráter comercial inerente ao remake que convida à desconfiança e desafia a desnudá-lo para reconhecer o que há nele de crítica à sua própria natureza. Por sua vez, Lütticken (2004) crê ser possível (e prefere) um tipo de remake que veja "o 'original' não como um Vorbild a ser seguido... mas como algo a ser questionado e pervertido" (p. 116). Somam-se à discussão as vozes de Heinze e Krämer (2015), que defendem o remake como uma prática cultural complexa, organizada em torno mais de uma tradução do que de uma cópia, a partir do caráter dialógico que este estabelece com sua matriz.
Apesar da perspectiva exclusivamente cinematográfica de tais argumentos, não se pode ignorar sua pertinência para uma compreensão abrangente do remake enquanto fenômeno televisivo transnacional e suas implicações em questões relacionadas à cultura e à identidade, sobretudo no contexto da subscrição de vídeo on demand. É preciso também voltar a atenção para a pesquisa dedicada às articulações entre televisão, mídia e cultura, com vasta literatura disponível. Nesta trilha, Castelló Cogollos (2004) aponta para a influência histórica dos meios de comunicação sobre a construção identitária e sua aptidão de criar mitos e símbolos, capazes de interferir diretamente na maneira como os indivíduos se posicionam em relação ao seu entorno, que será interpretado pela cultura. Para Hall (2013/2016), o termo “cultura” diz respeito a uma realidade existencial expressa em um conjunto não de coisas, mas de práticas e significados partilhados; na produção de sentido e senso de pertencimento, indicando a centralidade do domínio simbólico na vida em sociedade.
Países e territórios assumem, então, papel fundamental nos discursos identitários, porque as culturas nacionais são uma das principais fontes de identidade cultural (Hall, 1992/1999) e a televisão se estabelece como o mais poderoso meio de comunicação para difundir e mesmo criar esta identidade nos contextos interconectados e industrializados do mundo moderno (Castelló Cogollos, 2004). Uma vez que a coprodução internacional, a adaptação de formatos e o estabelecimento de franquias vêm se firmando como pedras de toque da cadeia produtivo-comercial do streaming, desvendar os meandros deste tipo de operação torna-se parte indispensável do esforço para entender o que é e como funciona a televisão de nosso tempo.
Aberta como nunca a novas possibilidades, a televisão está no epicentro de um maremoto de reciclagens e adaptações. Mehdi Achouche (2017) encara o fato com entusiasmo ao afirmar que "as formas modernas de remake, subordinadas à serialidade, reinterpretação, reinvenção e sampling, colocam em primeiro plano as mecânicas da narração contemporânea e oferecem, ironicamente, novas maneiras para a televisão se reinventar" (p. 77).
Para que não nos percamos na correnteza, mesmo antes de estabelecer uma definição mais exata para o remake, talvez seja prudente delimitar alguns exemplos do que não pode ser considerado estritamente como tal. Como os revivals - novas temporadas que dão sequência a séries previamente canceladas antes de um desfecho ou propriamente finalizadas, que trazem de volta os mesmos atores e atrizes em papéis já vistos anteriormente (como ocorrido com Arrested Development [De Mal a Pior] - Fox, 2003-2006; Netflix, 2013-2018; Gilmore Girls [Raparigas Gilmore] - WB, 2000-2006; CW, 2007; Netflix, 2016; e Murphy Brown - CBS, 1988-1998; 2018). Independentemente de quanto tempo tenha se passado até a retomada, representam simples continuações, porque "para se qualificar como um remake no nível textual, um novo enunciado deve cancelar qualquer forma de continuidade narrativa com o seu predecessor" (Achouche, 2017, p. 62). Com isto em mente e pelo mesmo motivo, prequels (como Better Call Saul [É Melhor Chamar o Saul]; AMC, 2015-2022, com eventos que se antecipam cronologicamente àquilo visto em Breaking Bad [Rutura Total]; AMC, 2008-2013) e spin-offs (como Frasier, NBC, 1993-2004, cujo protagonista foi alçado a este posto após ter sido um personagem coadjuvante em Cheers [Aquele Bar]; NBC, 1982-1993), não se enquadram na categoria.
Determinadas as balizas a excluir o que não diz respeito ao objeto deste estudo, me servirei dos conceitos de remake e adaptação, conforme definidos por Gemzøe (2020):
eu uso o termo “remake” para descrever uma nova versão de propriedade intelectual dentro de uma mesma mídia, isto é, quando se realiza uma nova série de televisão baseada em uma antiga. De acordo com esta definição, um filme baseado em um livro não seria um remake. ( ... ) "Adaptação" é usado como um termo guardachuva, cobrindo todas as novas versões de propriedade intelectual, incluindo filmes baseados em livros e séries de televisão baseadas em outras séries de televisão. (p. 108)
Assim, as inúmeras versões produzidas em diferentes países a partir da sitcom inglesa The Office (O Escritório; BBC, 2001-2002) ou da série policial suecodinamarquesa Bron/Broen (A Ponte; SVT1/DR1, 2011-2018) são remakes, embora também sejam adaptações. Os exemplos selecionados não são aleatórios; representam a vertente clássica televisiva do remake transnacional, gozando hoje de crescente apelo e influência, quer seja pelas possibilidades de experimentação de linguagem e intervenção cultural que oferece ou pela expectativa de retorno comercial. Da tradução de aspectos específicos de narrativas originalmente produzidas em um outro país, espera-se que resultem produtos com tramas e personagens identitariamente aclimatados ao novo contexto cultural e ao mercado particular em que serão exibidos.
O grau de transformação varia substancialmente de um caso para outro mas, quando realizado com sucesso, as origens do programa resultam tão bem mascaradas que torna-se improvável o público perceber tratar-se do remake de um programa criado em outro país. (Perkins & Verevis, 2015, p. 679)
Enquanto esta operação ocorria na esfera do broadcasting, o jogo de ressignificações solicitado pelo remake era mais claro, uma vez que o público alvo de cada produção (territorialmente delimitado pelo alcance da transmissão), servia de referência cultural para a adaptação. Porém, já a partir da chegada da televisão paga - propiciando a internacionalização dos canais - e efetivamente com o advento das plataformas de streaming - com alcance multinacional via internet -, a equação se complexificou. Se antes programas eram reformatados de um contexto regional para outro contexto regional visando uma audiência restrita, no streaming a escala de consumo passou a ser global. Nesta passagem do local para o global1, como são afetadas as questões ligadas à representação identitária? O que se perde e o que se ganha na tradução?
2. Metodologia
O presente artigo se insere no campo dos estudos de adaptação televisiva e, por meio da análise simbólico-interpretativa de casos significativos, pretende investigar parâmetros que vêm sustentando há décadas o filão do remake transnacional no modelo do broadcasting em contraposição a novas abordagens, conforme praticadas pelas plataformas de streaming e estabelecendo uma nova ordem para o segmento.
Sobre as práticas da televisão tradicional, o corpus a ser trabalhado abarcará as já citadas The Office e Bron/Broen. A seleção seguiu dois critérios: relevância e abrangência. Como indicativo de relevância, considerou-se a quantidade de países para os quais sua exibição foi licenciada, denotando tanto o respaldo da crítica quanto o interesse do público. A britânica The Office foi licenciada para mais de 80 países e o procedural policial Bron/Broen para mais de 200. Quanto à abrangência, a régua utilizada foi também quantitativa, porém, em relação ao número de remakes produzidos em outros países, localizados em pelo menos três continentes do globo.
Além de episódios esparsos de todas as séries citadas no texto, foram assistidas na íntegra a The Office original e sua versão estadunidense (NBC, 2005-2013), assim como a matriz sueco-dinamarquesa Bron/Broen e as duas temporadas já lançadas de seu remake germânico Der Pass (O Passaporte; Sky Deutschland, 2019-), além de House of Cards (Casa de Cartas), Dix Pour Cent (Dez por Cento) e La Casa de Papel (A Casa de Papel), somadas à primeira temporada de La Casa de Papel Corea (A Casa de Papel Coreia; Netflix, 2022).
3. Movimentos de uma Partitura em Construção
Na paisagem televisiva do século XXI, em que os serviços de streaming se estabeleceram e reinam, a audiência foi expandida globalmente, mas pulverizada em inúmeros mercados nacionais. Estabeleceu-se um novo breviário de práticas, influenciando até na definição de modelos de coprodução - inclusive entre players e produtoras baseados em diferentes países. Ainda que a coprodução internacional seja uma constante no universo cinematográfico desde os anos 1940, o modelo teve desenvolvimento mais lento na televisão. Com exceção dos Estados Unidos, até finais dos anos 1980 agentes reguladores vogavam pela proibição de operadores estrangeiros de televisão em seus territórios em nome da manutenção de uma soberania cultural (Chalaby, 2016). O posicionamento fortalecia a presença nacional das emissoras de televisão aberta, que apenas incrementavam a programação majoritariamente de produção própria com a compra a baixo custo de produtos prontos de outros países (Hilmes, 2014).
Mesmo entendendo que os serviços de streaming funcionam de forma operacionalmente descentralizada em relação à sua sede corporativa - a exemplo da definição da Netflix feita por Ramon Lobato (2018) como uma série de "serviços nacionais ligados por meio de uma arquitetura de plataforma comum" (p. 244) -, é possível observar políticas gerais estabelecidas por um "quartel-general", coordenando conceitualmente cada um destes tentáculos espalhados pelo mundo. Ainda assim, seria ingênuo não admitir as implicações ideológicas contidas neste panorama, uma vez que as maiores empresas globais de streaming (Netflix, Amazon Prime Video, Disney+ e HBO Max) operam territorialmente a partir dos Estados Unidos e sob a égide de valores e símbolos cristalizados no imaginário do país. Uma das principais críticas a esta supremacia estaria na homogeneização sofrida em escala global pelos formatos televisivos a partir de um ponto de vista essencialmente estadunidense, processo traduzido pelo termo "americanização" (Moran, 2011).
Abordando especificamente a questão da ficção seriada e seus fluxos de produção, licenciamento e exibição transnacionais (um contexto em que os remakes ocupam lugar de destaque), sistematizei em movimentos a dinâmica na qual vêm operando as plataformas de streaming até o presente2. A nomenclatura inspira-se na equivalência proposta por Erwin Panofsky (1978) entre o filme e a catedral medieval, ambos produzidos
através de um esforço cooperativo em que todas as contribuições têm o mesmo grau de permanência... o papel do produtor correspondendo, mais ou menos, ao do bispo ou arcebispo; o do diretor ao do arquiteto-chefe; o dos roteiristas ao dos conselheiros escolásticos, estabelecendo o programa iconográfico; e o dos atores, operadores de câmera, montadores, técnicos de som, de maquiagem e demais especialidades aos daqueles cujo trabalho conferia a entidade física ao produto terminado, desde os escultores, pintores de vitrais, fundidores de bronze, carpinteiros e pedreiros habilitados até os cavouqueiros e lenhadores. E se conversarmos com cada um desses colaboradores, ouviremos de cada um, em perfeita bonna fides, que a sua parte é importantíssima - o que é verdade, na medida em que é indispensável. (pp. 337-338)
No rastro de Panofsky e por uma questão de escala, se os produtos cinematográficos podem ser assim considerados, por que não equiparar metaforicamente aqueles realizados para a televisão a uma sinfonia? Em sua execução, cada naipe de uma orquestra sinfônica corresponderia às áreas de produção, técnica e artística, e o showrunner assumiria o papel de maestro à frente de um coletivo de profissionais (desempenhando funções tão importantes quanto insubstituíveis) reunidos para interpretar o trabalho de um compositor (o roteirista). Uma grade de programação (ou um catálogo de plataforma) seria, então, como o programa da temporada anual de concertos promovidos pela instituição provedora da orquestra; uma sequência de execuções de variadas obras que precisam fazer sentido vistas em conjunto, tal fossem uma partitura única.
Estabelecida esta imagem, podemos também considerar cada um dos aspectos da suma dos processos de produção televisivos como sinfonias, da mesma forma como proposto acerca de seus produtos. Daí a ideia de organizar em movimentos os estágios pelos quais estes processos vêm se desenvolvendo. No recorte delineado, esquematizei uma estrutura cronológica dividida em três movimentos que se sucedem, sem se anular: à medida que um deles se estabelece, passa a conviver concomitantemente com os outros.
No primeiro movimento, plataformas de streaming pagavam pelo direito de exibição de programas finalizados e já exibidos de diversos canais de vários países do mundo, disponibilizando-os para outras regiões. O procedimento não difere daquilo praticado por canais e emissoras durante toda a era do broadcasting, a não ser pelo fato de representar a totalidade do conteúdo colocado à disposição dos assinantes de empresas como Netflix e Amazon Prime. Sem o apoio de um acervo próprio de conteúdos audiovisuais à disposição (ao contrário, por exemplo, da HBO Max e Disney+, que começariam a operar anos depois, mas já com uma coleção robusta de produtos desde o lançamento) a conduta estabeleceu-se como única regra possível no momento em que seu catálogo começava a ser montado.
Ao fazer o levantamento histórico da evolução dos modelos de negócios da Netflix, Laura Osur (2016) propõe uma timeline dividida em três fases. Este primeiro movimento coincide com a segunda fase, iniciada em 2007 segundo a compilação da autora. Neste período, a Netflix funcionou exclusivamente como um syndicator, mimetizando uma prática corriqueira da televisão tradicional estadunidense.
No segundo movimento, a partir de 2012 e acompanhando uma bem-sucedida iniciativa da Netflix, as plataformas passaram a coproduzir programas em parceria com canais e produtoras de vários países do mundo (novas temporadas de programas antigos e programas originais, além de remakes), criando, inclusive, um intercâmbio entre diferentes players de diversas nacionalidades, de forma impensável para os padrões praticados por canais e emissoras da televisão tradicional.
Curiosamente (ou sintomaticamente), a primeira produção assinada pela Netflix - um fato inédito até então no universo dos serviços de streaming - foi um remake transnacional, a série política House of Cards, versão estadunidense da minissérie homônima britânica (BBC, 1990). No ano seguinte foi a vez de Orange Is the New Black (O Laranja É o Novo Preto; Netflix, 2013-2019); não um remake, mas uma adaptação literária. A iniciativa causou total reviravolta no mercado, apontando o caminho que toda a concorrência seguiria daí para frente. Osur (2016) defende que a estratégia da "programação original" recorrente (senão obrigatória) na indústria do streaming a partir de então, se baseou na visão da Netflix de, mais uma vez, revisitar antigas fórmulas da televisão e incorporá-las. Neste caso, bebendo da fonte da televisão a cabo, notadamente da HBO. Ainda acompanhando a proposta da autora, este segundo movimento emparelha-se com a terceira fase histórica da Netflix, em que a empresa passa a funcionar como uma rede de televisão de internet.
Outra série que merece destaque é Dix Pour Cent, produção do canal France 2 e exibida originalmente na televisão aberta francesa, a primeira a integrar igualmente o primeiro e o segundo movimento, dentro da proposta do artigo. Após ter sido licenciada e incorporada ao catálogo da Netflix, passou do sucesso doméstico ao global e não tardou a engrossar as fileiras do franchising. Duas dessas versões, a indiana e a sul-coreana, são coproduções da própria plataforma. A trama da série diz respeito a uma agência de talentos em Paris que vive uma etapa crítica, fazendo com que os sócios entrem em guerra para redefinir a liderança da empresa após a morte de seu fundador. Constituída da nata do cinema francês, a clientela da agência se reveza a cada episódio em participações especiais ao longo de quatro temporadas. Encarnando versões nem sempre lisonjeiras de si mesmos, Juliette Binoche, Isabelle Huppert, Fabrice Luchini e Jean Dujardin, entre outros, estabelecem um jogo que embaralha biografia e ficção. A série é uma bem urdida (e divertida) crítica a características marcantes de nossa época, como a mercantilização da celebridade, a busca pela fama e o consumo massivo e proliferação dos reality shows (e da falsa impressão de realidade que os sustenta).
A aceitação unânime da série junto à crítica e público fez com que as plataformas e canais concorrentes desejassem ter cada uma a sua própria Dix Pour Cent e, com esta meta, se lançaram à coprodução e ao licenciamento. Já são cinco remakes transnacionais até o momento: o inglês Ten Percent (Agência; Amazon Prime Video, 2022); o indiano Dix Pour Cent Bollywood (Dez por Cento Bollywood; Netflix, 2022), o turco A Agência (HBO Max, 2022), o sul-coreano Agência de Celebridades (Netflix, 2022) e o italiano Call My Agent: Italia (Liga ao Meu Agente: Itália; Sky, 2023); além de versões em desenvolvimento em mais oito países da Ásia e Europa (‘Call My Agent!’ Updates: More Global Remakes for the Hit French Series Under Development, 2022).
Finalmente, no terceiro movimento, as plataformas passam a investir em remakes de suas próprias produções, realizados em países outros que não aquele do programa original. Mais uma vez, é a Netflix a estrear a prática, com o remake La Casa de Papel Coreia (Netflix, 2022), sobre o qual discorrerei detidamente mais adiante. Primeiro, é necessário voltar algumas casas do tabuleiro para examinar as circunstâncias que guiaram os fluxos internacionais e trocas culturais da produção televisiva durante a era do broadcasting, pavimentando o caminho para que se chegasse até este ponto.
4. Um Mundo Repleto de Escritórios, Pontes e Fronteiras
Desde que a reformulação de sitcoms britânicas encontrou êxito entre o público estadunidense nos anos 1970, o intercâmbio entre a produção televisiva dos dois países se reconfigurou totalmente. Se antes o licenciamento para exibição de programas ingleses era capaz de angariar apenas uma limitada audiência na televisão pública dos Estados Unidos, a repercussão positiva e o sucesso de audiência alcançado por séries como All in the Family (Uma Família às Direitas; CBS, 1971-1979) e Sanford and Son (Sanford e Filho; NBC, 1972-1977) - remakes das inglesas Till Death Us Do Part (Até que a Morte Nos Separe; BBC, 1966-1975) e Steptoe and Son (Steptoe e Filho; BBC, 1962-1974), respectivamente -, estabeleceram um novo paradigma para a presença de produtos britânicos no mercado de televisão norte-americano. Ainda que nas décadas seguintes resultados tão favoráveis só tenham encontrado corpo por meio da adaptação de formatos de reality e competição - sedimentando uma relação de altos e baixos, mas nunca abandonada, como descreve Steemers (2011) -, o advento do remake de The Office devolveu à categoria o antigo status.
Totalizando nove temporadas, sete a mais do que sua matriz inglesa, The Office US (NBC, 2005-2013) escolheu ser fiel à matriz apenas no episódio piloto, buscando a partir daí personalidade própria e maior sintonia com a tradição da comédia e o imaginário dos Estados Unidos. Abriu-se mão do cinismo para apostar no nonsense, refletindo o que seria para o ator e escritor inglês Stephen Fry (2012) uma diferença basal entre o senso de humor de estadunidenses e britânicos. Para Fry, mesmo na comédia, estes últimos tenderiam ao flerte com o fatalismo e à admiração pelo heroísmo trágico.
O herói cômico americano é um espertinho que está acima das próprias piadas e acima dos idiotas que o cercam ( ... ). Nós [os britânicos] queremos interpretar o fracasso. Todos os grandes heróis de comédia britânicos são pessoas que desejam uma vida melhor e em quem a vida caga de uma altura terrível, e cuja dignidade é ameaçada constantemente por um mundo que só os deixa na mão. (Fry, 2012, 00:01:36)
O dia a dia da subsidiária regional de uma grande empresa de vendas de material de escritório conta hoje com remakes produzidos e exibidos por emissoras de televisão de 12 países e três continentes. O que permaneceu comum a todas as versões foi o humor tirado das querelas cotidianas das relações pessoais e de poder no ambiente de trabalho, retratadas metalinguisticamente por meio das gravações de um suposto documentário sobre um escritório e seus funcionários. A encarnação indiana do programa, com duas temporadas já exibidas, vem recebendo duras críticas desde a estreia em 2019 justamente pelo excesso de fidelidade ao original. Rohan Naahar (2019), articulista do Hindustan Times, de Nova Delhi, questiona o porquê de se realizar um remake que seja "cópia carbono" do original - como o Vorbild evocado por Lütticken (2004). No jogo do remake os limites impostos em nome da fidelidade não raro se apresentam como uma questão central para a adaptação, porém, a grande débâcle ocorre quando a tradução de uma realidade local para outra deságua na subversão do espírito crítico, resultando na afirmação daquilo que originalmente era reprovado ou denunciado. Apesar do enorme sucesso e da comédia eficaz de The Office US, para Booth e Ekdale (2011) a sitcom foi "americanizada" no trânsito continental e seu subtexto passou a legitimar a hegemonia burocrática antes satirizada pelo original inglês.
The Office [US] se posicionou como um lugar em que a burocracia existe tautologicamente: a burocracia está lá não para favorecer o mercantilismo, mas pelo bem da burocracia. ( ... ) A versão britânica satiriza a ideia de um escritório burocrático exagerando o constrangimento e permitindo que seus mais simpáticos personagens escapem para encontrar um trabalho mais satisfatório. Mas no escritório americano, até nossos heróis se tornam enredados na teia da hegemonia. Talvez haja um erro de tradução não entre os detalhes de uma e outra, mas na própria ideia de sátira: o escritório americano é uma sátira higienizada, uma paródia que não morde. (Booth & Ekdale, 2011, p. 206)
A análise remete à diferenciação postulada por Fry (2012) sobre como a comédia de um e outro país trabalha a temática do fracasso. Da The Office inglesa para sua contrapartida norte-americana, a crítica à falta de humanidade do mundo corporativo assumiu segundo plano quase subliminar, abrindo mão da veia política para provocar risos mais inocentes. Apesar do sucesso ao redor do mundo, a série não poderia estar mais distante ideologicamente do texto que a originou.
Outra série prolífica em remakes transnacionais é Bron/Broen (ponte, em tradução literal). Um corpo deixado no meio exato da ponte Oresund, que liga Suécia e Dinamarca, obriga as forças policiais dos dois países a conduzirem em conjunto a investigação. Volta à cena a velha história dos dois tiras antagônicos que se tornam parceiros pela força das circunstâncias e acabam superando as diferenças graças ao convívio e pelo bem do trabalho. A jovem oficial sueca designada para o caso, Saga Noren, possui uma mente brilhante para resolver crimes, mas é incapaz de compreender protocolos básicos do convívio social - provavelmente em função de algum tipo de autismo funcional, embora isso nunca seja declarado. A ela irá se unir Martin Rhode, um detetive dinamarquês de meia idade, cujos princípios éticos foram se dilatando ao longo da carreira.
Bem-sucedida incursão do nordic noir3 na televisão, por si só a série original já é representativa das interações transnacionais sobre as quais este artigo se debruça, uma vez que se trata de coprodução entre as emissoras públicas de televisão dos dois países em que a trama é ambientada4. A depender da região retratada nas adaptações, a ponte do título pode se transformar em túnel ou montanha - afinal, o que de fato importa são as articulações que se dão em torno da divisa territorial entre duas nações. Trazendo para o centro do palco questões candentes da pauta política europeia (tais como terrorismo, ascensão da ultradireita e imigração), a narrativa de Bron/Broen já reverberou em seis outras versões. Ainda que cada novo braço da franquia trabalhe problemas específicos de uma diferente fronteira, o espírito politizado da fonte escandinava tem se mantido. Robert A. Saunders (2017) aponta como uma das marcas do programa a capacidade de mostrar "o poder e a fragilidade das fronteiras internacionais" (p. 708). Elogiando a consistência em relação ao original de seus dois primeiros remakes - o norte-americano (The Bridge; A Ponte; FX, 2013-2014), ambientado na divisa entre Estados Unidos e México; e o franco-britânico (The Tunnel; O Túnel; Sky Atlantic/Canal+, 2013-2017), que transforma o túnel submerso do Canal da Mancha em cena de crime - Saunders (2017) ainda declara:
trocando tensões intraescandinavas por conflitos políticos mais robustos no Rio Grande e através do Canal Britânico, Bron/Broen produz dissonância textual no traslado de lugar para lugar. Ainda assim, a série mantém a essência crítica sobre assuntos prementes do mundo globalizado de hoje, providenciando coerência intertextual ao espectador do conjunto de séries (ao menos nos termos de sua intervenção geopolítica). (p. 109)
A versão germânica, Der Pass (Sky Deutschland, 2019-), se passa na fronteira entre Alemanha e Áustria e na primeira temporada recupera a figura do Krampus, monstro que acompanha São Nicolau durante os festejos natalinos para castigar quem não se comportou durante o ano, segundo as lendas dos alpes austríacos. Apesar de uma mudança completa no perfil dos protagonistas e da construção de uma trama diversa (centrada na investigação de serial killers), preservou-se o subtexto político.
Ao se espraiar mundo afora, tanto a sátira social de The Office quanto o thriller político-policial de Bron/Broen mostram que a busca por estabelecer com sua matriz alguma coerência intertextual (como asseverado por Saunders, 2017) e não uma relação de estrita fidelidade, usando-a mais como trampolim do que como lastro, pode ser o melhor caminho para o êxito de um remake. Em se tratando de remakes transnacionais, o cuidado deve ser redobrado para que não se caia no truque fácil das representações calcadas em meras equivalências ou comparações.
Dedicar-se a produzir representações de um grupo específico (abordando inclusive suas imperfeições e contradições) é um processo não só de afirmação, mas de construção identitária. Como preconizou Benedict Anderson (1983/2008), "as comunidades se distinguem não por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas" (p. 33).
5. Lugar da Netflix na Indústria do Streaming ou "Leve-me ao Seu Líder"
Ainda que o algoritmo - este oráculo do nosso tempo - siga superutilizado pela plataforma, iniciativas da Netflix focadas na experiência do usuário e na inclusão elegem como prioridade elementos que não passam de mero detalhe aos olhos de outras empresas. A preocupação com legendagem, dublagem e audiodescrição dos produtos oferecidos em seu catálogo ou o investimento constante no incremento do número e da capacidade de servidores dedicados redundam em uma navegabilidade mais satisfatória, gerando maior potencial para a captação e retenção de assinantes - ou "clientes", como as próprias empresas de streaming se dirigem à sua base não mais de "telespectadores", mas de "consumidores".
Simples mecanismos como o “top 10” ou a organização do catálogo em determinados gêneros e subgêneros servem de base para que a concorrência reformate igualmente suas interfaces. Além de ter lançado os alicerces definidores do que seria e de como procede uma rede de televisão de internet (Osur, 2016), a Netflix também desenhou no processo a globalização do entretenimento sob uma visão neoliberal da economia, reduzindo a própria audiência a apenas mais uma commodity do mercado da televisão (Mirrlees, 2013).
Ideologicamente, a construção do catálogo da Netflix apoia-se na estratégia de oferecer "uma variedade de discursos, gêneros e estéticas que possam atender a cada nicho consumidor do seu serviço" (Quinan, 2019, p. 2). A estas prerrogativas soma-se a obediência a um receituário notadamente liberal que tenta promover (a) cor local para fisgar o interesse dos nichos nacionais em que atua e (b) diversidade (ainda que muitas vezes generalizada), em nome de um verniz de tolerância e posicionamento político, ancorado em exigências políticas da contemporaneidade - como aquelas expressas em movimentos que se opõem à xenofobia, ao fascismo e a preconceitos étnicos, raciais e de gênero. Em paralelo, há ainda a se considerar as normas postas pela legislação de cada país em que atua, inclusive com a observância de cotas para produtos locais, como determinado no âmbito da Comunidade Europeia5. A partir daí, não é de se admirar que as coproduções envolvendo diversas nacionalidades tenham se estabelecido fortemente em seu modus operandi. Nesta conjuntura, as franquias baseadas no modelo do remake transnacional vêm assumindo maior relevância, ainda que nem sempre com a mesma lógica em que se baseava a televisão tradicional.
A franquia diz respeito ostensivamente ao licenciamento e é comumente associada a times esportivos, fast food e indústrias de serviços. No entanto, é também uma estratégia cada vez mais adotada por produtores de televisão que procuram vender conceitos, bem como programas, através de fronteiras nacionais. A ideia da franquia empresarial é baseada em um acordo entre o proprietário de um conceito (o franqueador) que celebra um contrato com um agente independente (o franqueado) para utilizar um modelo específico de venda de bens de serviços sob a marca do primeiro. (Keane & Moran, 2008, p. 156) A predominância dos formatos sobre os gêneros verificada na era da mídia pósbroadcasting (Moran, 1998) encontrou no mecanismo da franquia um pródigo veículo para suprir necessidades e interesses da indústria televisiva em sua escalada global porque, afinal, "é mais fácil copiar o sucesso de alguém do que se arriscar com uma nova ideia ainda não testada" (Keane & Moran, 2008, p. 168). Sob o ponto de vista comercial, a relativa segurança quanto ao investimento em novos produtos pode explicar o destaque assumido pelo modelo da franquia transnacional - mas não só isso. Se o remake transnacional já nos levava na direção de "comunidades imaginadas", suas franquias refletem toda a carga de transformações carregada no bojo do escalonamento global da produção televisiva e ajudam a ampliar o conceito de Anderson (1983/2008) para a grandeza, segundo Arjun Appadurai (1996/2004), de "mundos imaginados": universos construídos pela imaginação historicamente situada de grupos e pessoas espalhados pelo mundo.
A nova economia cultural global tem que ser considerada uma ordem complexa, estratificante, disjuntiva, que já não podemos compreender nos termos dos modelos centro-periferia preexistentes (mesmo os que podem explicar centros e periferias múltiplos). ( ... ) Um fato importante no mundo em que hoje vivemos é que em todo o globo muitas pessoas vivem nesses mundos imaginados (e não apenas em "comunidades imaginadas"), sendo portanto capazes de contestar e por vezes até de subverter os mundos imaginados na mente oficial e na mentalidade empresarial que as rodeia. (Appadurai, 1996/2004, pp. 50-51)
Das "comunidades imaginadas" aos "mundos imaginados", a teia social das identidades que os constituem e dos discursos que os representam firma seus alicerces em uma polifonia de vozes cada vez mais ampla e diversa; daí sua riqueza e capacidade de intervenção sobre a realidade. Recordando a afirmação de Castelló Cogollos (2004) sobre o poder da televisão em difundir e moldar identidades no mundo moderno, o formato televisivo assume papel chave na equação e "deve ser entendido como um processo de negociação cultural, em que novas formas de cultura são produzidas ( ... ) e elementos culturais são amalgamados em vários níveis (produção, texto e reprodução) da cultura televisiva" (Keinonen, 2016, p. 2). Porém, para abordar o remake transnacional e suas franquias como agentes de intercâmbio cultural no contexto do streaming, é necessário olhar também através de uma outra lupa e determinar aquilo que é mera homogeneização nos processos simbólicos e industriais das rotas de comércio do entretenimento globalizado. Tomemos, por exemplo, o caso da franquia Dix Pour Cent.
Em Ten Percent, a versão britânica, a passagem do francês para o inglês se dá mais na ambientação do que propriamente na narrativa, fazendo com que o fundador da agência passe a ser o pai de seu principal sócio, destacando ainda mais o peso da família enquanto instituição social. Fora isso, a única mudança significativa observável é a sombra do Big Ben em substituição à da Torre Eiffel no cair da tarde. A versão indiana tem a exibição restrita a assinantes do mercado sul asiático - o que condiz com ponderações levantadas ao longo do artigo. O remake turco, ao contrário, integra os catálogos disponibilizados para outros países que não a Turquia, o Brasil incluído. Apesar de manter a base crítica ao universo das celebridades proposta pela Dix Pour Cent original, perde-se na tradução o reconhecimento por grande parcela do público não turco dos artistas que se auto interpretam. Um interesse genuíno pelo país para além de suas fronteiras não estaria melhor abastecido com a exibição de programas originalmente turcos em detrimento da releitura de uma obra de outra nacionalidade? A exibição global para uma representação adaptada e tão regionalmente específica parece mais um equívoco de programação do que propriamente uma oportunidade de visibilidade para a cultura otomana. Esta busca pela identificação com o público nacional é tão grande que até o caráter episódico da matriz é abandonado para dar lugar a uma narrativa de continuidade, própria do formato das telenovelas, produto largamente consumido pela audiência local.
Em situação ainda mais frágil apresenta-se o remake La Casa de Papel Coreia. Da série espanhola original (La Casa de Papel, Atresmedia, 2017-2019; Netflix, 2020-2021) foram mantidos a estética de filme policial hollywoodiano - efeito da americanização de uma programação global gestada e distribuída por players guiados ideologicamente por preceitos estadunidenses - e o plano da invasão e tomada de uma Casa da Moeda; mas ignoradas suas possíveis virtudes, o que era paródia se verteu em mera farsa.
Ambientada em uma improvável distopia que une as duas Coreias e preconiza uma vitória final do capitalismo, a série simula uma politização que de fato não possui, infantilizando militantes e movimentos políticos. A crítica ao capitalismo, força motriz da narrativa original, passa a ser enunciada diretamente nos diálogos e na narração em off, passando do subtexto ao didático e providenciando até uma justificativa moral para os atos criminosos da protagonista-narradora Tóquio.
Outro elemento digno de nota é a indumentária usada pela quadrilha. Sem qualquer contextualização do significado da máscara hahoe na tradição teatral coreana, o artefato se torna simples alusão ao disfarce utilizado na matriz espanhola. Como contraponto, pode-se recorrer à forma orgânica como a lenda do Krampus é trabalhada em Der Pass, assumindo a dupla funcionalidade de evocar a cultura popular austríaca ao mesmo tempo em que oferece chave dramática, enriquecendo e fazendo avançar a narrativa. Em La Casa de Papel Coreia a máscara hahoe assume condição genérica de qualquer máscara aos olhos da audiência global a que a série se dirige. Exilada de seu significado, passa a habitar apenas o terreno superficial de uma coreanidade6.
Podemos considerar esta operação como dano colateral causado pela cosmopolitização, conceito que o streaming vem se dedicando a implantar como tabula res de um novo tipo de programação multicultural, forjada para exibição global e que pressupõe uma ressignificação ideológica da própria noção de fronteira, como a conhecemos.
A cosmopolitização atravessa fronteiras como um clandestino, como consequência imprevista de decisões mundanas de mercado: as pessoas desenvolvem o gosto por um determinado tipo de música pop ou por comida "indiana"; ou reagem a riscos globais separando o lixo ou mudando a dieta; ou investem seu dinheiro em Estados cujas políticas estejam de acordo com o ideal neoliberal de adequação aos imperativos do mercado global. (Beck, 2008, p. 19)
Produtos como La Casa de Papel Coreia (bem como seu lugar na estrutura de movimentos proposta por este artigo) refletem os esforços crescentes da Netflix em particular, mas da indústria do streaming em geral, tanto de despertar quanto de se aproveitar de uma "sensibilidade cosmopolita"7 (Jensen & Jacobsen, 2020, p. 16) no público. Calcada em "um tipo de fluxo notadamente diferente, não mais delimitado, limitado ou controlado pela língua, cultura ou políticas públicas nacionais que promovam uma programação nacional ou regional ou a identidade" (Straubhaar et al., 2021, p. 193), a prática aponta para um modelo comercial de dominação cultural, jogando por terra todo o potencial de intervenção simbólica na realidade e de construção identitária do remake transnacional.
6. Considerações Finais
Embora consciente dos riscos e dificuldades de sumarizar em tipologias ou esquemas as práticas de um ecossistema tão dinâmico e complexo quanto a televisão e seus processos de produção, lancei-me à tarefa de organizar a estrutura de movimentos proposta neste artigo por entender que a identificação de padrões (mesmo aqueles de recorte tão específico, como neste caso) pode ser, se não significativa, ao menos pertinente para o avanço dos estudos da área.
Pode-se afirmar que é do intercâmbio entre duas culturas regionais específicas que nasce o remake transnacional. Sua relevância reside na capacidade de afirmar a identidade cultural que representa e de auxiliar na construção da identidade do público a que se dirige. Se o público é local, reforça a identidade local (daquela "comunidade imaginada" específica); se global, contribui para o incremento de uma "sensibilidade cosmopolita" (parte inevitável da identidade dos "mundos imaginados").
Devido à presença global das plataformas de streaming, essa "sensibilidade cosmopolita" vem encontrando singular espaço de expansão entre os mais variados públicos. No entanto, graças à globalização do entretenimento, nos inúmeros mercados nacionais em que a indústria deste tipo de serviço se instalou, identificase uma estratégia em curso para a instauração de processos de cosmopolitização da audiência.
Pensando especificamente no terceiro movimento da estrutura ora proposta e em La Casa de Papel Coreia, me vem à mente uma das anotações dos Incidentes, de Roland Barthes (1987/2004). Pela dificuldade de escolher uma lembrança de Paris para um conhecido no Marrocos, o autor acaba optando "pela recordação codificada, quer dizer, excessivamente inútil: uma Torre Eiffel de latão" (Barthes, 1987/2004, p. 26).
Para se adequar aos interesses comerciais e ideológicos da cosmopolitização, o remake transnacional é esvaziado de sentido, superficializando o diálogo e interação entre culturas. Alijado de sua vocação, torna-se apenas mais um desses souvenirs baratos de rodoviária, lembrancinha banal de um lugar distante que nunca chegaremos a conhecer. Se cada movimento expressa uma tendência ou padrão, devemos nos preparar para uma infestação de torres de latão nos catálogos das plataformas de streaming? - Esta é a pergunta que se impõe.