1. Parte I
No ano de 2022, assisti a uma série de visitas de ferroviários da Comboios de Portugal (CP) ao museu - A Estação -, localizado na cidade de Pinhal Novo, concelho de Palmela, inscritas na iniciativa “No Meu Tempo...”. Tratou-se de uma atividade de dinamização e animação cultural complementar às coleções existentes neste museu. Na medida em que o museu reúne um espólio assinalável do mundo ferroviário, foram organizadas um conjunto de palestras realizadas por trabalhadores aposentados da CP sobre as suas histórias de vida como ferroviários, contribuindo assim para a contextualização de algum dos equipamentos, utensílios e fardas expostos. Relativamente a este projeto, o meu intuito foi conciliar as histórias relatadas na altura das visitas e, também, de uma série de entrevistas por mim realizadas com a implementação de uma proposta de execução de uma série de retratos fotográficos. Esta proposta, que foi aprovada e subsidiada pela Câmara Municipal de Palmela para ser produzida nesse ano e implementada no ano seguinte (2023), integrou duas valências: a de uma exposição de retratos fotográficos e a de um livro - Linhas com Cruzamentos de Destino (photobook; Câmara Municipal de Palmela; Camilo, 2023) -, que conciliasse esses retratos com pequenos textos capazes de sintetizar os depoimentos formulados por aqueles trabalhadores, quer durante as iniciativas realizadas pelo museu, quer no âmbito das entrevistas.
A exposição teve lugar em 2023, entre os dias 1 e 26 de fevereiro, no Auditório Municipal de Pinhal Novo - Rui Guerreiro, caracterizada pela exibição de 15 retratos, complementados com uma paisagem da estação ferroviária de Pinhal Novo. Foi também na inauguração da exposição que foi lançado o photobook - um livro de fotografias e de textos de 50 páginas, composto por 15 retratos suplementares - originais, não constantes da exposição - conjugados com short stories (contos) evocativas da vida profissional de cada ferroviário. Todo este material foi complementado com fotografias de um espólio pessoal, referente a viagens de comboio entre Lisboa e a Covilhã, escolhidas, todavia, com precaução para que esse itinerário não fosse evidente. Interessava-me que aquelas imagens fossem exclusivamente evocativas da realidade ferroviária.
1.1. História e Ficção: As Dimensões Subjacentes
Embora este projeto, composto por uma exposição e um livro, seja sincrético (se por tal considerarmos a conciliação de diversas substâncias de expressão, como sucedeu com a imagem fotográfica, o texto, e, até mesmo, o espaço da exposição, significativo de possibilidades de descoberta das imagens), nele se cruzaram duas realidades que também caracterizam a ontologia de qualquer imagem fotográfica: a realidade histórica (que considero estar adjacente às “histórias da vida”) e a realidade simbólica (a do sentido, a do discurso - referente às “vidas de história”). Passo à sua caracterização, formulando previamente três ideias: estas realidades são “reais” no respeitante às suas particularidades narrativas; apresentam um estatuto interdependente; e sobre elas abstenho-me de formular algum juízo de valor.
1.1.1. Histórias da Vida
Do ponto de vista epistemológico, é no domínio das histórias da vida que se descortina o objeto de estudo do historiador, do sociólogo, do antropólogo. Perante o passado ou o presente, procuram estudar uma sociedade ou uma cultura do modo mais abrangente e objetivo possível.
No que respeita a este projeto, este plano de análise pôde ser encarado de duas formas: a primeira, reporta às vidas dos ex-ferroviários, das suas famílias, das suas carreiras na CP, dos seus valores, entre outros, que, de alguma maneira, foram relatados na iniciativa “No Meu Tempo...”. Esta é a dimensão que mais interessa a um historiador ou a um antropólogo/sociólogo, procurando reconstruir identidades e culturas pessoais e corporativas. Já a segunda forma de encarar este plano de análise das histórias da vida não incide no estudo dos ferroviários reformados da CP, mas no contexto e nas circunstâncias subjacentes quer à realização das iniciativas “No Meu Tempo...”, quer à produção de um projeto que integrou a produção de uma exposição de fotografia e a publicação de um photobook.
As “histórias” já não incidem na vida profissional dos ex-ferroviários, mas nas do fotógrafo, relativamente às minhas decisões, padrões de produção, influências estéticas, editoriais, entre outros. Que relações se estabeleceram entre mim e o museu em termos de expectativas e requisitos (até porque este projeto recebeu um apoio para implementação da exposição e para a edição do livro)? Por que razão optei por este tipo de retratos tão centrado no plano médio e numa pose frontal? Qual o motivo subjacente à paginação, ao género de texto fundamentado na short story, na seleção do local da exposição e no período de exibição? Porque foi o registo fotográfico tão baseado no estúdio? Terá sido este o mais adequado à concretização das expetativas e objetivos das partes envolvidas no projeto (o museu, eu e os ferroviários fotografados e entrevistados)? Toda esta problemática exigiria um descentramento analítico, rumo à descoberta de outras vidas e de outras histórias - a dos protagonistas que estiveram na origem da produção de uma exposição e de um livro - mas que não se inscrevem agora no escopo deste ensaio.
Seja a partir de um ponto de vista centrado nos ex-ferroviários ou nos sujeitos que produziram os “artefactos” de comunicação, é neste domínio que se inscreve o mundo da vida - em constante mudança, multidimensional - de cujo fragmento - no espaço e no tempo - a imagem fotográfica regista e de que (do ponto de vista semiótico) é seu vestígio documental. São estes fragmentos que constituem as fotografias: momentos fixados numa superfície mais ou menos sensível à luz, remetendo para um espaço e tempo de ação (o espaço geográfico e o momento histórico do registo), mas também espacializados e temporalizados a partir de um dispositivo mecânico de representação, de um enquadramento e de uma “velocidade” de registo.
Incido, então, a abordagem nalgumas especificidades contextuais da feitura deste projeto. Como referi, o projeto teve por assunto a representação de trabalhadores ferroviários reformados da CP em fotografias de retrato em estúdio (Figura 1, Figura 2, Figura 3 e Figura 4), expostas e publicadas num photobook.
As expectativas eram essencialmente de natureza comunicacional: pretendi produzir imagens e redigir depoimentos significativos de histórias da vida, que fossem evocativos de uma carreira profissional, mesmo até de uma subjetividade. Em contrapartida, as do museu eram, principalmente, a necessidade de registar fielmente os testemunhos formulados nas iniciativas “No Meu Tempo...”. Já no âmbito das relações com os ex-ferroviários, outras expectativas fizeram-se sentir, principalmente no que concerne à forma como gostariam de ser “bem retratados”. Por vezes, houve necessidade de explicar que o que era encenado fotograficamente ou relatado estabelecia uma relação figurada (conotativa) de evocação, exigindo uma leitura e olhar que não poderia nem ser literal, nem direto. Voltarei a este assunto quando refletir sobre as modalidades veridictórias e no contrato de veridicção que nortearam este projeto.
Compreende-se que estas disparidades de conceções na produção de um retrato - as do fotógrafo e do fotografado - sejam resultantes de um reconhecimento, mais ou menos, assumido das potencialidades da fotografia na construção de um ethos. Esta é uma particularidade que não é nova, já existente nos primórdios da fotografia, sendo sentida e gerida por fotógrafos de retratos de estúdio como Félix Nadar (1820-1910) ou André-Adolphe-Eugène Disdéri (1819-1890), aquando da gestão/encenação das poses e das fisionomias circunspectas dos burgueses nos retratos como recursos significantes evocativos da seriedade e da honra. Sobre este aspeto, não refuto que a coleção de retratos produzida seja caracterizada por certa composição, impondo a mobilização de determinados objetos e fardamentos, até mesmo de um animal doméstico (um gato), e a encenação recorrente de uma pose a 3/4 (nem totalmente de frente, nem de perfil). São recursos significantes com a mesma vocação evocativa dos adereços daqueles antigos estúdios fotográficos. A diferença estará na intencionalidade subjacente a todas estas recorrências expressivas: a evocação de uma identidade, de um ethos que não é só subjetivo (como sucedia no retrato burguês ou no retrato da carte-de-visite dos bonhomme), mas que se pretende, principalmente, corporativo: mulheres e homens cujas identidades foram forjadas na ferrovia e na CP.
Destaco que esta evocação de um ethos corporativo não se desenvolveu exclusivamente a partir do registo fotográfico. Relembro que o projeto é sincrético - alimentado por imagens e palavras. Constituiu uma exposição e um photobook. Assim sendo, as evocações que pretendi suscitar também resultaram de uma relação de complementaridade entre as imagens e as palavras, que se evidenciou partir do modo como o livro foi paginado. Numa folha, página ímpar, encontra-se a fotografia, na outra, o texto encabeçado pelo título. As imagens encenam um sentido fundamental no texto ou no título, algumas vezes ilustrando-o (“Os Bilhetes São de Cartão e de Papel” - Rafael Rebola Rodrigues; Figura 4), outras vezes subtilmente evocando-o por metonímia (“O Senhor Saber o que Guia um Comboio?” - Henrique Alcaçorenho da Silva; Figura 5) ou por metáfora (“Estória de uma ‘Gata’ e da Sua Bandeira” - Madalena Nobre Rodrigues João; Figura 6). Outra vezes, sucede o oposto: é o texto que impõe um sentido à imagem (“Memórias de um Rapaz que Era Borrego da Páscoa” - José António Galhofas Carvoeira; Figura 7).
Já referi que este projeto fotográfico e editorial apresentou uma complementaridade com as iniciativas realizadas no museu, “No Meu Tempo...”. Assisti aos depoimentos proferidos aquando das visitas, procurando registar ideias-chave. Por vezes, também me vi na necessidade de realizar entrevistas suplementares. O objetivo foi o de redigir pequenos textos - sob a forma de curtas narrativas, crónicas com princípio, meio e fim (na forma de um desenlace) - que fossem evocativas da carreira ou de aspetos exemplares da vida profissional destes indivíduos. Em suma, num projeto em que a imagem desempenhou um papel importante, a palavra, principalmente a dita e escutada, foi incontornável. Foi por referência às palavras que os retratos foram produzidos, mas também induziram à leitura para que pudessem ser interpretados. Sem esta relação simbiótica, as fotografias arriscavam-se a serem encaradas como representações de uma presença antropométrica, à semelhança das de My Portman (O Meu Homem do Porto) sobre a tribo Uchick (1890; Andrade, 2002, pp. 56-57) ou como uma “curiosidade exótica”. Com a conjugação de texto, o objetivo foi o de, mais do que significarem uma identificação, serem capazes de evocarem uma identidade (corporativa). Eis a razão por reivindicarmos a inscrição deste trabalho na linha dos retratos desenvolvidos por Edward Curtis (Figura 8), fixando “a história de todas as tribos índias, a sua vida, as suas cerimónias, as suas lendas e mitos” (Adam, 2001/2008, p. 32). Tal como este artista fotógrafo, assumo o papel desempenhado pela encenação, pela composição (ostensivamente de estúdio), pela escolha dos adereços (mas, também, o papel desempenhado pelas palavras para a evocação dessa tal identidade corporativa), independentemente de reconhecer a disparidade dos contextos, objetivos e naturezas subjacentes a estes projetos.
Em suma, não quis encarar estas imagens como meros registos - que, do ponto de vista científico, são sempre difíceis de aproveitar derivado à especificidade contínua de qualquer imagem e ao subjetivismo da interpretação. Sobre este assunto confira-se a posição de Gregory Bateson e de Margareth Mead (1942) no que concerne às potencialidades da utilização da fotografia para a compreensão da cultura e do carácter dos balineses: ela é uma excelente forma de registo e apreensão (por exemplo, verifique-se o trabalho de Fabiana Domingues Sanches, 2017), mas que contrasta com as dificuldades de interpretação e a falta de metodologias para a análise iconográfica. Ao invés, preferi encará-las de modo semelhante ao que se concretiza na antropologia visual, em que a fotografia - neste caso complementada com o texto - remete para conteúdos abstratos e formais, adjacentes à ideologia, à cultura, à organização social, à política (Sanches, 2017, p. 73), o que, de um ponto de vista semiótico, sempre imporá uma análise conotativa. No caso deste meu projeto, compreendam-se as fotografias como significantes evocativos de histórias da vida corporativa; como significantes que estabelecem uma relação de complementaridade com as palavras proferidas e escritas dos entrevistados, num processo pessoal de descoberta. Reconheço o carácter seminal destas considerações, que exigem aprofundamento inscrito no domínio da antropologia visual e da fotografia, o que implicará um desenvolvimento em futuras reflexões. Recordo, contudo, que o background epistemológico repescado para esta reflexão é principalmente provindo do domínio mais clássico da semiologia e da semiótica - Charles Peirce, Roland Barthes, Georges Péninou, Jean-Marie Floch, Martine Joly, Philippe Dubois, e, necessariamente, Algirdas Greimas -, sendo que foi a partir dele que me posicionei relativamente a esta matéria.
1.1.2. As Vidas de História
No estudo da fotografia como fonte de informação, como documento - e não há dúvidas sobre o estatuto da fotografia como documento (Kossoy, 2012) - surgem considerações para formular decorrentes de alguns aspetos da sua especificidade semiótica, isto é, do seu estatuto como signo. A sua formulação é relevante porque na materialidade sígnica da fotografia se cruzam aspetos que, por vezes, suscitam formas díspares de a interpretar. Também estiveram presentes neste projeto. Vou discriminá-los a partir de um conjunto de considerações.
Primeira consideração: sobre o que está na fotografia. Perante a “história da vida”, a fotografia, do ponto de vista semiótico, é só um índice de um momento, uma “prova de contacto”, termo muito interessante, que pertence ao léxico da praxis fotográfica. Esta particularidade impôs que o que anteriormente foi escrito a propósito das histórias com vida se reduzisse ao produto de uma opção de escolher certos factos no âmbito de um livro e de uma exposição, patrocinados pelo museu A Estação, em 2022, num espaço concreto, onde se produziram os retratos (o meu estúdio fotográfico, situado na cidade do Barreiro) relativamente a um elenco (os participantes, cuja identidade é facilmente reconhecível nos registos no photobook e nas legendas da exposição). No âmbito da produção fotográfica em si, esta escolha pode ser ainda mais precisa: o que foi enquadrado em termos de plano? Como foi enquadrado em termos de velocidade de registo (velocidade de exposição)? E, aqui, poderia para sempre ficar descortinando aspetos cada vez mais diversos. É como se no projeto e, principalmente, no registo fotográfico, as escolhas se consubstanciassem em cortes, segmentações espaciais e temporais das tais histórias da vida, pelo que não é de confundir a parte (o registo indiciático desses cortes) com o todo (a globalidade do contexto histórico a que se refere o projeto). Qualquer “momento histórico” é incontornavelmente transformado num “momento simbólico”, ao mesmo tempo que o mundo (das “histórias da vida”) se transforma em mundo da representação e do sentido (das “vidas de história”). Por ser indiciático, na perspetiva do testemunho da cissura de um espaço e de um tempo, a fotografia é a marca da emergência de um documento. Mas é também marca de uma escolha - intencional ou involuntária, consciente ou não - de a ter feito naquele momento, naquele sítio e ter optado por salientar certos momentos e aspetos em detrimento de outros.
E o que está nestas fotografias? O registo visual de várias presenças de alguém, que se distingue e conhece a partir de um relato e de uma identificação verbal (nome, data de nascimento, função profissional). O historiador pode explorar neste corpus algum material interessante para o seu estudo sobre o mundo ferroviário, principalmente no respeitante a adereços de trabalho: as lanternas, as bandeiras, os bilhetes, as fardas, a picareta, os manuais das composições, as folhas de itinerário, os fardamentos. A fotografia (complementada com algum tipo de texto) é o registo testemunhal de dados, ferramenta de campo, instrumento de observação. Adicionalmente, o que está nas fotografias são sentidos referentes a indícios das minhas decisões como fotógrafo, testemunhos sobre opções de uma tomada de vista consubstanciada num enquadramento (principalmente plano médio), num ângulo (frontal, nem picado, nem contrapicado), numa pose (principalmente a 3/4, por vezes frontal perante um cenário neutro caracterizado por um pano bordeaux), numa opção por certa velocidade de registo (1/125), de abertura de diafragma (principalmente f:8) e sensibilidade de sensor (ISO 100); na valorização de certo de tipo de fotografia (exclusivamente digital e a cores), na gestão de uma iluminação (suave, decorrente de um octobox, algumas vezes com luz de recorte num rácio de intensidade de luz de 2:1) e numa pós-edição mínima em Lightroom e Phostohop para uniformizar a exposição e temperatura de cor. Em suma, estas decisões refletem um estilo pessoal e uma visão “ideológica” sobre o tema: a de pretender produzir uma “coleção de imagens” padronizada a partir da qual o adereço ou a pose do fotografado fossem os principais elementos significantes de uma identidade pessoal e, principalmente, corporativa (a de ex-ferroviários da CP). Confiram-se, por exemplo, a Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4, Figura 6 e Figura 7, anteriormente apresentadas, e a Figura 9 e Figura 10.
As opções técnicas adjacentes à padronização do registo fotográfico constituíram, portanto, um elemento expressivo importante para fazer “emergir” significados conotados que com o texto fossem evocativos do ethos, a tal subjetividade decorrente de uma carreira profissional. É por isso que este trabalho estabeleceu correlações com algumas referências no domínio da fotografia. Reconhecendo a importância do retrato como um género fotográfico e da existência de referências incontornáveis (como sucede, por exemplo, com August Sander no que reporta às suas séries de retratos ou com um artista que me marca imenso - Yann Arthus-Bertrand), algumas até inscritas nas indústrias culturais da música e da moda (como é o caso de Annie Leibovitz ou de Helmut Newton); reconhecendo importância de fotógrafos que reapresentaram o mundo do trabalho e dos trabalhadores, como sucedeu em Portugal com Eduardo Gageiro e Augusto Cabrita (1978). Saliento a coletânea de Gilberto Gomes (1995), um documentário da RTP produzido por Cabrita (1978), sobre a história dos comboios em Portugal, e, ainda, algumas imagens dispersas de ferroviários nos catálogos da família. As minhas influências neste projeto reportaram principalmente aos já mencionados Gaspard-Félix Tournachon (Félix Nadar) e André-Adolphe-Eugène Disdéri. Este último foi marcante, mercê do facto de não ser só um pioneiro da arte do retrato de estúdio, mas também no respeitante ao valor que atribuía à “encenação” do corpo (o gesto, a pose) e do adereço (cenário, objeto, vestuário) como recursos significantes capazes de ultrapassar os significados mais evidentes e denotativos da presença do retratado, rumo aos referentes a uma espiritualidade e a uma personalidade, inscritos no domínio que denominava por “fotogenia” (Frizot & Ducros, 1987, pp. 37-47; Figura 11 e Figura 12), mas que, no caso do meu trabalho, considerei ser de especificidade profissional (relativa ao mundo dos comboios) e corporativa (referente à CP).
Créditos. Félix Nadar, 1855. (https://publicdomainreview.org/collection/photographsof-the-famous-by-felix-nadar/)
Essa significação é mais evidente nalgumas fotografias, como sucede no retrato de Artur Dias Henriques (Figura 9), revisor; noutras, a imagem necessita do texto para que o espectador compreenda a importância de um avental e de uma travessa no retrato de Eliseu Correia do Santos, maquinista (Figura 10).
A dicotomia entre a significação de uma presença, de uma identificação, e a significação conotativa, evocativa de uma identidade (profissional e corporativa), também decorreu de referências e influências sobre o estatuto da fotografia na antropologia, tal como já referi. É certo que neste projeto fotográfico a pose e o adereço resultaram de uma assumida encenação fotográfica, mais relevante no âmbito de um universo simbólico adjacente à arte do que à ciência. Sucede que, de acordo com a posição de Rosane de Andrade (2002, p. 28), é insuficiente na fotografia etnográfica um olhar pretensamente positivista de estrito registo objetivo sem ponderação para a expressão dos sentimentos ou emoções. Segundo a autora, à ciência é necessário conciliar a arte para que possa significar algo mais imaterial adjacente a uma axiologia, a uma cultura, exigindo para isso o envolvimento do observador com o objeto de estudo, em suma, uma observação participante. E, apresenta exemplos que sustentam esta tese: Pierre Verger, aliás, Pierre Fatumbi Verger (1902-1996; Baptiste, 2009), fotógrafo-antropólogo francês, fundamental para o conhecimento da cultura afro-brasileira de Salvador da Bahia, procurando complementar uma abordagem documental com um registo artístico significativo de uma espiritualidade característica de uma dimensão cultural.
Nesta inventariação gostaria ainda de mencionar os trabalhos de Claúdia Andujar sobre o povo indígena Yanomami (Andrade, 2002, p. 62). Se é certo que o seu trabalho não é de estúdio (nem o de Pierre Verger), a menção a este trabalho decorre das relações de complementaridade que as suas imagens estabelecem com as palavras para evocação de uma espiritualidade, um objetivo que procurei atingir no photobook a partir da relação entre a fotografia, o título e o texto das histórias de vida, com o propósito de evocar o tal ethos subjetivo e corporativo anteriormente mencionado. Estes sincretismos, com o propósito de evocar esses significados conotativos “fluídos”, exigiram um trabalho por tentativas, com avanços e recuos. Impôs conhecimento e pesquisa sobre a CP, as condições de trabalho, principalmente nas oficinas do Barreiro, por onde se formaram, escuta atenta de depoimentos por altura das visitas ao museu, entrevistas aprofundadas, redação dos depoimentos em forma de short stories, discussão com os entrevistados para verificação de dados, reflexão com os funcionários do museu em busca de adereços evocativos das suas carreiras, e bastante tempo em estúdio para a produção fotográfica e outro tanto para a seleção das imagens. Neste trabalho, todavia, não foi mobilizada a observação participante. Compreende-se a razão: não está centrado na descrição e análise de práticas em uso, mas na descrição de memórias.
Outras particularidades testemunhais são também de ponderar, apreensíveis a partir do registo fotográfico de cada uma das fotografias do projeto (as que constituem o photobook e a exposição) e de uma “relação sintagmática” de disposição sequencial das imagens e da sua da relação com o texto e a paginação. As sequências, quer as decorrentes da ordenação das imagens na exposição ou da paginação no livro, são indiciáticas de inevitáveis hierarquizações, que refletiram posições pessoais sobre os indivíduos fotografados. Porque fui o autor deste projeto, esclareço que obedeceram a preocupações de natureza comunicacional. A gestão da coleção de fotografias testemunhou uma vontade de assegurar inteligibilidade dos sentidos transmitidos: no caso da exposição, a otimização do espaço onde foram dispostas no foyer para uma mais fácil apreensão; no que ao photobook reporta, a sua organização ao longo das páginas foi a partir de um critério temático relativo aos “ofícios da CP”.
Segunda consideração: a encenação da autenticidade. Tenho vindo a demonstrar como é incontornável a dimensão testemunhal da fotografia decorrente do seu estatuto semiósico como índice. Não existirá fotografia como documento sem ser o de um “toca e foge”, o de um registo do instante em que o momento e o movimento da história ficaram congelados a partir de uma opção pessoal por parte do fotógrafo.
Contudo, a fotografia também apresenta outras particularidades que decorrem das suas singularidades como ícone e símbolo e que não podem ser ignoradas. É testemunho, mas também ficção, suscitando, porém, no intérprete a convicção da representação fidedigna dos objetos na “mais alta definição” (interpretante). Curiosamente esta é uma das aceções mais contemporâneas sobre a fotografia, que não corresponde necessariamente ao modo como foi recebida como tecnologia nos seus primórdios. A fotografia é um ícone, que não é dos mais “completos”, na perspetiva da reprodução fidedigna, à maneira de cópia, das variadas características do objeto. É o produto da transformação bidimensional dos objetos e da sua representação originária a preto e branco. A adesão popular à fotografia tanto se deveu a um fascínio relativo à fidelidade do registo iconográfico (que superou o realismo pictórico mais conseguido), como à especificidade dos outputs de um mecanismo tecnológico revolucionário à época - um mecanismo de produção de índices. A “naturalização” realista da fotografia enquanto representação foi-se paulatinamente desenvolvendo à medida que este dispositivo se foi popularizando, até ao ponto em que deixou de ser recebido com estranheza e curiosidade. De acrescentar que tal naturalização também se deveu à capacidade técnica da câmara fotográfica para perpetuar formas de representação e apreensão visual ancestrais e canónicas adjacentes a um sistema de representação visual fundamentado na perspetiva e em vigor desde a Renascença (Kossoy, 2021, p. 18).
A especificidade (icónica) do registo fotográfico é geradora de ilusões adjacentes a uma verosimilhança: mais do que significar a verdade (decorrente de uma relação referencial da fotografia como índice que sempre pressupõe a existência de um referente), ganha relevância a ponderação das estratégias mobilizadas para a significação da verosimilhança da “autenticidade”. No projeto, do ponto de vista expressivo, esta série de retratos obedeceu a uma encenação intencional que fosse propiciadora de uma dimensão veridictória adjacente à significação de uma “presença”, de preferência de índole corporativa (portanto, evocativa de “ofícios” e de uma “realidade empresarial” - a da CP). Esta significação foi assegurada por intermédio da mobilização de um repertório de signos icónicos que, na sua articulação, fosse significativo de uma narrativa, de uma história: os relativos à pose dos sujeitos fotografados, à sua expressão relativamente neutra, captados em ângulo frontal sobre um fundo homogéneo, impeditivo que o espectador se dispersasse no olhar, e os signos icónicos ilustrativos de fardamentos e instrumentos de trabalho. Nesta dimensão icónica, a encenação fotográfica está ao serviço de um processo de criação de uma narrativa que possibilita uma autenticação de cariz subjetivo (referente ao conhecimento dos sujeitos fotografados), mas principalmente de índole institucional (no que reporta ao seu reconhecimento como “ferroviários da CP”).
Terceira consideração: sobre estratégias e gestão de expectativas. Nos ícones, entre outras particularidades, decidem-se as “verosimilhanças”, os efeitos de sentido relativos a “ilusões referenciais”. Ora esta especificidade dos registos fotográficos complementa-se com uma dimensão de cariz simbólico. O registo fotográfico não é só o do testemunho documental de uma presença e o registo icónico de uma parecença, mas também o sentido uma intencionalidade, de um propósito evocativo de uma axiologia estruturada e articulada numa ideologia. É no plano simbólico da fotografia que a estética dá espaço à ética, a visão à convicção moral perpassada, pelo menos, por três domínios: o meu, que concebi e produzi este projeto; o do museu - A Estação, que o supervisionou; e o dos retratados, no respeitante a conceções individuais sobre o que deve ser um retrato e um “testemunho autêntico”. Por um lado, uma “ideologia produtiva”; por outro, uma “ideologia institucional”; finalmente, uma “ideologia pessoal”, na qual se alojam valores referentes a um estatuto simultaneamente subjetivo e profissional, a um ethos que também é “corporativo”, adjacente ao “ser ferroviário da CP”.
Estas dimensões ideológicas estão associadas a modalidades de geração de sentido, através das quais o registo fotográfico adquiriu uma coerência. Desempenham um papel fundamental neste processo as modalidades veridictórias e os contratos de veridicção (Greimas & Courtés, 1993, pp. 417-419), conduzindo a que o que seria significado como um “testemunho autêntico” decorresse da confluência negociada de vontades e conceções entre as partes envolvidas (eu, o museu e os retratados).
No caso do museu - A Estação, o “testemunho autêntico” decorreria de uma conceção relativa uma profissão (o ser ferroviário), a uma cultura corporativa (ter trabalhado na CP e estar aposentado) que determinou um conjunto de expectativas editoriais sobre o que podia ou não ser fotografado, o que podia ou não ser relatado. Estiveram relacionadas com preocupações inerentes às histórias de vida. Nada seria relatado ou representado que não tivesse relação direta com a profissão de ferroviário e a carreira profissional na CP, não obstante a existência de informações igualmente interessantes recolhidas aquando das entrevistas e até durante as visitas, mas não inscritas neste âmbito. Estas opções produziram implicações não só sobre os conteúdos, mas, igualmente, no modo como as fotografias foram realizadas. Concretizo esta ideia.
Na Figura 6 está Madalena Nobre Rodrigues. Essa imagem estava originalmente intitulada “Estória de uma Gata e da Sua Bandeira”, que, mais tarde, seria modificado para “Estória de uma ‘Gata’ e da Sua Bandeira”. Explicaram-me que a palavra “gata” sem aspas poderia atribuir ao texto conotações sexuais, quando foi utilizada pela própria entrevistada (e reproduzida por citação: “quando casei vim de Odemira para o Montijo tal qual uma gata numa saca”) como uma metáfora que ilustra a juventude do seu casamento e de depois ter começado a trabalhar na CP. Voltarei a este assunto, mas para explicar as dificuldades que tiveram patentes na realização do seu retrato. Já no meu caso, as expectativas foram produtivas. Para mim, um “testemunho autêntico” seria resultado de uma opção por um tipo de encenação fotográfica (patente na exposição) e de expressão verbal (photobook). Seria decorrente de uma multiplicidade de opções de cariz técnico (luz de flash com sotfbox octobox complementado com luz de recorte em softbox strip com grid sobre fundo bordeaux) e de especificidade estética (a luz suave reporta à fotografia de publicidade; a pose, principalmente da posição dos dedos, remete para a pintura, quer de Rubens, quer de Leonardo da Vinci; a pose frontal ou a 3/4 atualiza arquétipos estéticos do retrato, concretamente, de Nadar e de Disdéri). Não esquecer que esta encenação fotográfica se complementou com o texto redigido e articulado no paradigma da crónica jornalística (parágrafo curto, síntese narrativa, registo detalhado dos pormenores), da história de vida (etnografia/antropologia/sociologia) e da short story - com especial destaque para o valor narrativo do desenlace, onde me surgiu um escritor paradigmático: Somerset Maughan (s.d.), no que concerne às “Histórias dos Mares do Sul”, principalmente a novela “Chuva”.
Na Figura 13 e na Figura 14, poderão observar-se diferentes páginas do photobook que são ilustrativas das relações que quis estabelecer entre as fotografias, os títulos e os textos. Finalmente, no caso dos ferroviários retratados, o “testemunho autêntico” também se caracterizou por expectativas decorrentes de modalidades de expressão fotográfica. Sobre este aspeto existem dois episódios a propósito de algumas dificuldades em produzir dois retratos do photobook: o de Madalena
Nobre Rodrigues João (Figura 6) e José António Galhofas Carvoeira (Figura 7).
No caso de Madalena Rodrigues, com alguma dificuldade inicial, produzi o seu retrato com um gatinho porque pretendi que constituísse uma encenação do título e de uma frase decisiva do seu depoimento, tal como já referi. O animal seria, portanto, a personificação, a metáfora da sua juventude e a metonímia da história de vida de uma menina e moça que se casa, é dona de casa e mãe e trabalhadora na CP. Foi explorado como elemento significante que faz a ligação do retrato com o título e o texto. Já com José Carvoeira, nem consegui encenar o título (“Memórias de um Rapaz que Era Borrego na Páscoa”): sobre quando viu a sua vida em perigo num assalto à estação que chefiava, no âmbito de uma carreira iniciada muito novo (“entrei na ferrovia, muito rapaz, era eu ainda um borrego da Páscoa”).
Estes dois episódios são modelares nesta reflexão sobre os contratos de veridicção e as modalidades veridictórias: a de como os valores individuais destes ferroviários se consubstanciaram em expectativas (e desejos) relativamente ao modo como desejavam posar porque intuíram que o retrato, ao ser evocativo de um ethos (“ser”), também implicaria uma expressividade fotográfica que lhes parecesse adequada (“parecer”) que poderia não ser compatível com a que o fotógrafo ou o museu gostariam de produzir. Tal como anteriormente referi, esta particularidade já se descortinava nos retratos da burguesia captados por Eugène Disdéri e Félix Nadar, em que a pose determinada pelos clientes e, principalmente, a gestão da fisionomia e a escolha do vestuário (“parecer”) eram evocativos de uma respeitabilidade, de um ethos de classe social (“ser”). Porque não haveria de suceder o mesmo com estes retratados, na pretensão de “quererem ficar bem na fotografia”, isto é, conforme um conjunto de preceitos expressivos (“parecer”) que “testemunhassem” de modo coerente (isto é “autêntico”) a sua reputação como ferroviários da CP (“ser”)?
Estes exemplos possibilitam compreender como a significação de “um testemunho autêntico” é um processo dinâmico, o resultado da negociação, de “contratos de veridicção”, entre partes: eu, que fotografei, o museu e os fotografados. Na verdade, o fulcro destas disparidades - umas vezes mais evidentes, outras mais latentes - facilmente se explicou a partir de opções distintas de encenação fotográfica: eu orientei conceptualmente o projeto a partir de um fundamento baseado na “revelação”, um registo expressivo relativamente obtuso (“não parecer”), isto é, que obrigasse a uma decifração, como se o ser ferroviário exigisse por parte do espectador a busca de signos-conotadores existentes quer nos registos fotográficos, quer nos textos que os acompanham, signos que progressivamente revelassem os sentidos de uma identidade subjetiva e corporativa. Este fundamento veridictório foi distinto do relativo à conceção destes dois ex-ferroviários: quanto mais revelador na sua transparência fosse o registo, maior fosse a clareza fotográfica, como se nada existisse para esconder ou implicitar, mais “autêntica” seria a significação do testemunho das suas carreiras. A clássica dicotomia entre denotação e conotação encontra-se patente e, do ponto de vista veridictório, expectativas distintas sobre um registo da ordem do segredo (que se revela e impõe ativismo hermenêutico - “não parecer”, mas “ser”) ou da verdade (que se “dá ao espectador/leitor”, que se clarifica - “parecer” e “ser”).
Que se fez quando esta situação sucedeu? A fotografia, como registo, foi símbolo dos valores do fotógrafo ou do fotografado sobre como se deveria significar um “testemunho autêntico” de uma identidade corporativa? Que jogo de forças se instituiu mais ou menos explicitamente?
Em disciplinas como a etnografia e a antropologia visual, em que a fotografia está integrada no domínio de uma observação participante, a resposta é clara: a axiologia que prevalecerá é a evocativa da cultura do fotografado, embora a situação ideal pudesse ser a da compatibilização entre o registo da cultura - numa perspetiva objetiva, até mesmo científica - e o registo “pessoalizado” - numa perspetiva subjetiva e artística. Examine-se então o projeto, constatando como foi indiciático de um ziguezaguear constante, de “negociações” conciliadoras de vontades, de conceções díspares sobre como se deve significar um “testemunho autêntico”. No caso da fotografia de Madalena Nobre Rodrigues João (Figura 6) é percetível a minha conceção veridictória patente num sentido que tem de ser “decifrado” e que só se revela a partir da competência hermenêutica do espectador e da leitura do texto; em contrapartida, a fotografia de José António Galhofas Carvoeira (Figura 7) evidencia a transparência de uma presença onde tudo se dá no seu imediatismo.
2. Parte II
Passo à descrição do projeto sob um ponto de vista performativo, isto é, como produto de processos de construção de sentido a partir de duas dimensões principais: a relativa à produção do registo fotográfico (e verbal) e a referente a um contexto de receção.
2.1. O Contexto de Produção
Neste plano de análise, interagiram os três protagonistas já referidos (o fotógrafo, o museu - A Estação, e os fotografados), no tal jogo dialógico de conciliação de expectativas e conceptualizações sobre a ordem dos sentidos a veicular.
Na perspetiva da intervenção do fotógrafo, concretamente, o trabalho adjacente à criação simbólica e icónica de uma narrativa já anteriormente foi descrito: fotografia em estúdio com flash (Godox 600 BM), à velocidade de sincronização 1/125, abertura f:8. Exceção a estas imagens encontra-se uma fotografia de um ex-ferroviário produzida em exterior com o mesmo flash, em que procurei reproduzir o mesmo valor de exposição (Figura 5).
Todas as fotografias do projeto foram editadas em Lightroom e Photoshop, numa operação básica de ajuste de temperatura de cor e intervenção muito pontual nos valores de exposição, sombra e altas luzes. As imagens que constituíram o corpus da exposição foram impressas em fine print, papel brilhante em disposição portrait, enquadradas em passe-partout e moldura de 60x70 cm. Como referido, foram exibidas no foyer do Auditório Municipal de Pinhal Novo - Rui Guerreiro no mês de fevereiro de 2023, e dispostas para possibilitarem uma mais fácil circulação e adequação à especificidade do espaço (Figura 15). As histórias do photobook não estão patentes na exposição. Apenas os títulos. Reconheço que esta particularidade constituiu um limite. O projeto caracteriza-se por um discurso sincrético e isso também definiu a sua singularidade. Assim sendo, as imagens expostas deveriam ter sido acompanhadas dos respetivos textos.
Quanto ao photobook, já ressalvei que os retratos se complementaram com um texto significativo das histórias de vida dos ex-ferroviários - um texto sempre titulado e objetivado por uma legenda final adjacente à identidade do fotografado e à sua ocupação profissional na CP (Figura 1 4). Estas páginas encontramse complementadas com outras sobre o mundo dos comboios e do transporte ferroviário. A relação entre o texto e imagem é da ordem da interdependência: nalguns depoimentos as imagens são uma encenação que transmite alegoricamente os significados adjacentes à tal “autenticidade testemunhal” transmitida nos depoimentos das histórias da vida. O photobook foi impresso em offset, em formato A4, como se fosse um álbum de banda desenhada, numa primeira tiragem limitada a 150 exemplares.
Estas são as principais especificidades produtivas do projeto a partir de uma dimensão material. Passo para as de cariz imaterial, relativas à substância dos sentidos veiculados, rumo às modalidades veridictórias subjacentes.
Que tipo de sentidos foram veiculados a partir do plano da manifestação (“parecer”)? As palavras narram histórias de vidas; as imagens encenam episódios fundamentais a partir do modo como os seus protagonistas foram retratados. Subjacente ao registo - quer fotográfico, quer verbal - intentei a existência de uma dinâmica de “revelação progressiva” que se assumisse como o seu fundamento. Essa especificidade estrutural da “revelação” já se antevia nas iniciativas das visitas e depoimentos levados a cabo pelo museu e os quais o projeto fotográfico veio complementar. Mas de modo díspar dessas iniciativas, nas quais os ferroviários relatavam as suas histórias, quis que o registo não fosse transparente, isto é, que não possibilitasse uma significação instantânea e explícita dos dados biográficos e corporativos. Foi uma opção pessoal e assumida: o relato seria, mais do que uma “relação” de factos, mais que um estrito depoimento, mas uma experiência progressiva de conhecimento, de descoberta. Por isso mesmo, os títulos também não seriam evidentes e imporiam significações figuradas, principalmente na correlação com as fotografias cuja encenação dos adereços e das poses forçaria interpretações que ultrapassariam o plano das denotações. Assim sendo, pretendi imputar uma expressividade obtusa no registo que, tal como já relatado, por vezes, suscitou polémica (latente ou evidente) nalguns retratados, uma expressividade que forçasse uma interpretação que não pudesse mais ser feita “à letra” ou a partir da transparência da composição. Ao considerar que os testemunhos seriam significados em sentido figurado; que não seriam transparentes; que estariam escondidos; que, para se interpretarem, seria necessário conseguir ultrapassar o que se encontrava fotografado, relatado ou exibido, a modalidade veridictória por qual optei neste projeto seria a do “segredo”, a de um “não parecer (mas) ser”, capaz de impor ao espectador um ativismo interpretativo de “decifração”. Esta opção contrastou com a da modalidade veridictória da “verdade” (“parecer-ser”) - a da transparência dos sentidos assumida por alguns dos fotografados.
Aprofundo, complementarmente, algumas ideias sobre esta singularidade veridictória alavancada no segredo porque me possibilita estabelecer algumas distinções deste projeto com outros géneros textuais que também veiculam sentidos relativos ao testemunho a partir de registos expressivos que conciliam a fotografia com as palavras. Estou a referir-me ao ensaio de antropologia/etnografia visual e a um tipo de jornalismo baseado na “crónica visual”, na fotorreportagem. Também nestes registos se descortina uma relação entre o registo do testemunho com a significação de uma “revelação”, seja de cariz jornalístico - portanto, adjacente a um valor-notícia - ou antropológica - portanto, referente a um valor científico-cultural. Mas a dinâmica veridictória destes registos distingue-se da que optei. Num caso, a “transparência”, que se consubstancia numa facilidade e/ou velocidade de leitura: tanto a reportagem como a pesquisa etnográfica dão a ver/ler de modo evidente, são registos de revelação. No outro caso, a “opacidade” que implícita os sentidos, exigindo ponderação e ativismo interpretativos.
2.2. O Contexto da Receção
Serão os registos do fotojornalismo e da antropologia visual mais eficazes do ponto de vista comunicacional, por comparação com o deste projeto, mais “obtuso”, “mais misterioso”?
É difícil responder a esta questão sem sair do plano semiótico do texto e da imagem, rumo ao sociológico da comunicação, isto é, a um plano de análise dos “usos e das gratificações” dos textos. O que poderei asseverar é que todas as práticas textuais se encontram fundamentadas por dinâmicas veridictórias que vão produzir efeitos de sentido (e, necessariamente, efeitos pragmáticos). Os da transparência referente à significação da “verdade” e da “objetividade” ou da “autenticidade”, no respeitante à fotorreportagem ou à antropologia e etnografia visuais, ou os da “descoberta”, os da “decifração”, inerente a certas fotografias e textos que produzi. Todas estas dinâmicas veridictórias se fundamentam, do ponto de vista do registo fotográfico, num studium (Barthes, 1980/1988, p. 46), numa composição intencional e planeada, voluntária ou involuntariamente, que é tanto mais evidente quanto melhor o registo for sobredeterminado por significações figuradas, isto é, por dinâmicas típicas da conotação. Eis algo que docilmente está à espera da interpretação dos espectadores (Barthes, 1980/1988, pp. 45-46). Grande distância necessariamente vai entre o que foi concebido, o que foi estudado e engenhosamente composto, encenado e intencionado, entre a gama de conotadores expectantes, na perspetiva da sua disponibilização nos registos fotográfico e verbal, e o efetivo repertório cultural dos espectadores, através do qual eles os conseguirão reconhecer, interpretar e sancionar. Reconheço a existência de uma inultrapassável margem de erro (interpretativo), como se o registo virtual do studium estivesse sempre além das capacidades interpretativas dos destinatários. O que deste projeto terão compreendido os leitores do livro ou os espectadores da exposição? E o que compreenderam estará conforme o que gostaria que tivessem compreendido? A esta “margem de erro” interpretativa, um outro fator fundamental vai interferir no processo da receção e da interpretação: o imprevisto, tudo o que dos registos for capaz de saltar espontaneamente para os sentidos dos espectadores, de ir ao seu encontro; os elementos perturbadores do sentido do studium presentes nas fotografias, mas não ponderados ou intencionados, complementares ou capazes de frustrar e relativizar o que desejava que tivessem visto e interpretado. Estou a referir-me ao punctum, a essas setas que da fotografia irrompem e ferem os sentidos, rumo a outros repertórios e conhecimentos (Barthes, 1980/1988, pp. 46-47).
A partir do momento em que este projeto foi produzido, ei-lo absolutamente livre, para sempre fora do controlo de todos os que concorreram para o produzir.
3. Conclusão
Por referência a um projeto desenvolvido e apoiado pelo museu - A Estação (Câmara Municipal de Palmela), que incluiu uma exposição e a edição de um photobook de retratos e de memórias de ex-ferroviários da CP, procurei formular algumas considerações. A primeira, adjacente ao domínio das “histórias da vida”, reporta à dimensão documental e testemunhal da fotografia a partir da qual é possível desenvolver uma reconstituição dos momentos que estiveram subjacentes ao registo fotográfico. De um ponto de vista semiótico, está associada ao estatuto da fotografia como índice que a distingue de outras imagens destituídas dessa vocação (como é o caso das imagens de síntese). A segunda consideração a relevar decorreu das dimensões icónica e simbólica, que também especificam semioticamente a fotografia, mas ao lhe atribuírem uma pregnância e complexidade que impõem a necessidade de a conceptualizar como uma realidade de sentido onde se gera e gere uma dimensão ficcional. A ficção da realidade - na qual as histórias da vida se transformam em vidas de história - impôs-me questões: do ponto de vista icónico, até que ponto na fotografia, os efeitos de sentido decorreram de uma verdade (concebida num contexto epistemológico e semiótico a partir do vínculo referencial dos signos com os objetos) ou de uma verosimilhança, isto é, de uma “ilusão referencial”? E, complementarmente, em que medida, subjacente ao registo fotográfico, se descortinou uma dinâmica simbólica associada a uma ética, a uma axiologia, enfim, a uma ideologia? Duas questões importantes, omnipresentes neste projeto, cuja resposta descobri a partir das opções subjacentes à “encenação dos testemunhos” e aos critérios patentes num trabalho expressivo fundamentado não só num processo de conhecimento (de “fazer-saber”, portanto, adjacente à significação de uma identificação), mas, principalmente, de reconhecimento (de “fazer-crer” - significação de uma identidade institucional - “o ser ferroviário da CP”).
Ainda nas dimensões simbólicas da fotografia, formulei ideias sobre o fenómeno semiótico da veridicção: como os retratos destes ex-ferroviários - conjugados com um registo verbal adjacente à crónica e à short story - seriam significativos de uma dimensão que refletisse conceções referentes a significações sobre o “testemunho autêntico”. São conceções negociadas, combinadas num contrato (de veridicção) entre as partes envolvidas neste projeto: eu, que o produzi; o museu, que o aprovou e supervisionou; e os ex-ferroviários, que protagonizaram os retratos e formularam os depoimentos. Essa negociação, mais ou menos, assumida ou latente, consubstanciou-se numa dinâmica expressiva com implicações no modo como “construí” o studium fotográfico, alicerçado pendularmente em modalidades veridictórias complementares: a do segredo - a partir do qual a significação da “autenticidade dos testemunhos” surgiu como o ponto final de um processo de busca, de decifração por referência a um discurso figurado, assumidamente conotativo; e a da verdade - por referência a um discurso transparente, claro e evidente, inscrito principalmente no domínio da denotação.